duas estrelas, um rio

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DUAS ESTRELAS, UM RIO
A ESTRELA SOBE (DE MARQUES REBELO) E A HORA DA ESTRELA (DE
CLARICE LISPECTOR),
UMA ANÁLISE COMPARATIVA.
2005
Carlos Azevedo*
Onde será que isso começa/
A correnteza sem paragem/
O viajar de uma viagem/
A outra viagem que não cessa/
Cheguei ao nome da cidade/
Não a cidade mesma espessa/
Rio que não é rio: imagens/
Essa cidade me atravessa/
Ôôô ôô ô ô êh!boi êh bus/
Será que tudo me interessa/
Cada coisa é demais e tantas/
Quais eram as minhas esperanças/
O que é ameaça e o que é promessa/
Ruas voando sobre ruas/
Letras demais, tudo mentindo/
O Redentor que horror! Que lindo!/
Meninos maus, mulheres nuas/
A gente chega sem chegar/
Não há meada, é só o fio/
Será que pra o meu próprio rio/
Este rio é mais mar que o mar/
Ôôô ôô ô ô êh bus
Sertão é mar.
(O Nome da cidade, música de Caetano Veloso)
1 ESTRELAS NO CORAÇÃO DA CIDADE
Macabéas, Lenizas, Rizoletas, Sussucas passeiam pela cidade do Rio de Janeiro. O
romance brasileiro contemporâneo passeia pelas metrópoles brasileiras. O Rio de Janeiro
retratado em diferentes épocas...Seria a mesma cidade? Uma cidade que muda a todo o
momento, um cenário em constante movimento, retratado pela prosa de escritores como
Marques Rebelo (1907-1973), nos romances Marafa (1935) e A Estrela Sobe (1937); e
Clarice Lispector (1925-1977) no romance A Hora da Estrela (1977).
Qual a relação entre espaço urbano e personagens femininos nos romances
escolhidos? Em que livros a mulher é protagonista e em que livros ela é mera
coadjuvante? Como é a construção do espaço da metrópole na obra de Clarice Lispector
e Marques Rebelo? Qual a relação de tais obras com o contexto histórico-político-social
das décadas de 30 e 70?
2 MARQUES REBELO: DO CONTO AO ROMANCE
Talvez pouca gente nas universidades brasileiras hoje conheça profundamente a obra
do escritor Marques Rebelo. Em um ensaio que tem como título “Introdução a Marques
Rebelo”[1], o professor da Unesp/Assis, J. C. Zamboni relata que a obra do carioca está
submetida a uma espécie de abandono, silêncio.Ele levanta a hipótese de que o
esquecimento dos romances e contos de Marques Rebelo por parte da instituição
universitária se dê por conta de um processo de pouca valorização dos escritores
brasileiros, assim, o autor “cairia num longo processo de purgatório crítico e editorial”.
No entanto, o professor afirma que Marques Rebelo já foi “lido e admirado pelos
candidatos a escritor dos anos quarenta”.
Andrade MURICY (1936:363-5), em A Nova Literatura Brasileira, uma antologia que
em meados dos anos 30 apontava os novos valores das letras nacionais do apósModernismo, saúda Rebelo como um continuador da tradição do conto de Lima Barreto e
de Machado de Assis.É interessante observar como um crítico da época leu o contista
Marques Rebelo:
Em meio das inumeráveis e tantas vezes fatigantes experiências da geração,
Marques Rebelo não tenta caminhos novos: encontra-os. Não experimenta: vai vivendo.
Oscarina é um livro natural. Livro de arte, também; porém arte tênue e transparente.
Arte leve, e que se diria sem conseqüências. Tudo franco e direto. Nenhuma insistência.
Na aparência não procura nenhum efeito. Aparência, só! Há intenção, na parte deste
novelista; mas a gratuidade predomina. Rio que corre, suave, sem ênfase, a água só
turbada, ocasionalmente, por algum involuntário redemoinho do subconsciente. Estilo
claro e singelo. Vigilante sempre, e esperto. A elegância da forma disfarça-se de
simplicidade camarada. Aqui e ali, com justeza, a língua afirma sua qualidade artística, e
o controle subentendido: expressões de um lirismo discreto, mas suficiente; e algum
indício de comoção sopitada. (...) Quer dizer: a sua força de simpatia humana. É por
causa dessa simpatia, fluindo por excelência de comunicação, que o grande nome de
Machado de Assis (de expansividade tão pudica), e o nome humilde e admirável de Lima
Barreto têm vindo à pena de cronistas escrevendo sobre Oscarina ou Três Caminhos.
Não se trata de comparar grandezas. O que sim, essas grandezas não são heterogêneas.
A família daqueles espíritos não é a mesma. Um mais contido: Machado; e outro
“derramado” (a expressão é do próprio Machado): Lima Barreto. Os dois romancistas
nossos em cuja produção aparece mais imediata humanidade. Com eles, porém num
âmbito singular, só Raul Pompéia. E nessa geração, Adelino Magalhães em certas
páginas. E Marque Rabelo. Este descende de Machado e de Lima Barreto sem dar maior
atenção ou importância a esse fato: como nos sentimos, por inevitável necessidade,
provir de nossos avós.
Assim sendo, é bom carioca. Alguém que compreende a vida mesquinha e triste, a
pacholice amável do Rio de Janeiro estável, autêntico, que disso oferece representação
um pouco amarga, mas expressiva e penetrante (...) O herói de Marques Rebelo, mais
do que os de Lima Barreto, vão vivendo, diante de nós, sem reserva alguma, a sua
existência diminuída, e, também sem os estremecimentos que indicam participação na
vida profunda. Sem intuições do mundo do espírito. Esse mundo está ausente dos livros
de Marques Rebelo, o que os circunscreve num círculo de sensibilidade pura e de
envergonhada volúpia de viver. Horizontes fechados.”
Para Renard PÉREZ(1960:210), mais recentemente, na década de 60, em Antologia
Escolar dos Escritores Brasileiros de hoje a obra de Marques Rebelo tem em:
Oscarina, contos (1931), é o primeiro passo nesta obra, e vem revelar um escritor
de visão terna, a apresentar, num estilo trabalhado, de grande pureza, tipos e ambientes
da pequena-burguesia carioca. A obra prossegue em Três Caminhos, novelas (1933),
livro ainda mais delicado, e se alarga em Marafa, romance (1935), Prêmio Machado de
Assis, da Companhia Editora Nacional; A Estrela sobe, romance (1938); e Estela me
abriu a porta, contos (1942)- livros onde continua apresentando temas e aspectos de um
Rio de Janeiro classe média- sobretudo a suburbana, tornando-se o autor, assim,
continuador da grande linha de ficção carioca, que, iniciada com Manuel Antônio de
Almeida, se prolongaria em Machado de Assis e Lima Barreto.
Como se pode notar acima, Renard Pérez acrescenta também como avô da prosa de
Marques Rebelo a figura de Manuel Antônio de Almeida(1831-1861), autor de Memórias
de um Sargento de Milícias (1854). Por sinal, o próprio Marques Rebelo foi o autor da
principal biografia do escritor, como assinala Otto Maria CARPEAUX (1967:136), na
Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira que atribui a monografia um espírito
congenial. É interessante ouvir do próprio Marques REBELO(1943:9-10), qual foi o
impacto de Manuel Antônio de Almeida na sua carreira de escritor:
Da paixão literária pelas MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS, achado
deslumbrante dos meus dezessete anos no deserto nacional dos livros, deslumbramento
que cresce dia a dia, deu-se de eu aceitar do ministro Gustavo Capanema, a incubência
de uma conferência sobre a vida de Manuel Antônio de Almeida, na série que o Ministério
da Educação e Saúde patrocinou sobre os “NOSSOS GRANDES MORTOS”, e que foi
realizada na Escola Nacional de Música, a 21 de setembro de 1937, com pouca gente e
as melhores intenções.
Se algumas pessoas se levantaram, incapazes de suporta-la até o fim, não há de
condená-las. Era obra má e de insuficiência do tempo para compô-la, dois meses
apenas-e tanta coisa para pesquisar!- as insuficiências de minha obra, principalmente,
pois não podemos esquecer também a pouca destreza oratória do conferencista, que
decepcionou os seus mais extremados amigos. E sempre do grande amor pelo morto a
idéia de fazer um trabalho melhor. É o que trago agora a lume, corrigindo seus erros
mais grosseiros, enriquecido de minúcias para mim importantíssimas, acrescido duma
série de páginas inéditas do escritor e do material fotográfico que me foi possível
conseguir, enfim, uma vida que parece ter sido a infeliz vida de Manuel Antônio de
Almeida.
Em História Concisa da Literatura Brasileira, Alfredo BOSI (1987:462) encaixa
Marques Rebelo como continuador do modernismo mesmo dentro de uma tradição do
realismo urbano:
Na ficção de Marques Rebelo cumpre-se uma promessa que o Modernismo de 22
apenas começara a realizar: a da prosa urbana moderna. Com a diferença notável de
que o escritor carioca não rompeu os liames com a tradição de nosso melhor realismo
citadino. A sua obra insere-se, pelos temas e por alguns traços de estilo, na linha de
Manuel Antônio de Almeida (de quem escreveu uma viva biografia), de Machado de Assis
e de Lima Barreto. Com eles o autor de Oscarina aprendeu a manejar os processos
difíceis do distanciamento, o que lhe permitirá contar os seus casos da infância e do
cotidiano com uma objetividade tal que a ironia e a pena difusas não o arrastariam ao
transbordamento romântico.
3 MARAFA: ROMANCE DO REALISMO URBANO
“Epopéia meio triste, do homem comum, do povo miúdo do Rio de Janeiro”
Otto Maria Carpeaux
Marafa – “vida desregrada, licenciosa e libertina”.
Dicionário Aurélio
3.1 Romance Urbano
O crítico Otto Maria CARPEAUX, no prefácio ao romance de estréia de Marques
Rebelo, Marafa, em 1935 faz (e ele mesmo responde) uma pergunta ao leitor: “mas
precisa MARAFA de apresentação? Não creio. É uma obra-prima, retrato perfeito do povo
carioca, da mão do mais consciencioso mestre da arte literária”. Ele situa Marafa dentro
da tradição do romance urbano brasileiro:
A partir de 1927 torna-se nítido o seu caminho literário- o romance urbano, romance
que tem seu berço no Rio de Janeiro, por força dos fatores políticos e econômicos que
forçaram a nossa emancipação. E é este mesmo Rio de Janeiro o seu cenário- os anseios
da sua gente, seu dia-a-dia de cidade recém industrializada, toda a problemática de uma
classe proletária, enfocada agora como classe participante, consciente de seus direitos
adquiridos com a Revolução de 30. São estes proletários personagens que, em fase de
profunda transição, desfilam pela trilogia Oscarina, Marafa e A Estrela Sobe com todas as
situações autênticas que marcaram o carioca de então. Mas não é Marques Rebelo um
pintor do passado. O homem carioca é seu personagem, o seu tema, e com ele lança-se
ao futuro, sente seus anseios e mostra sua mais importante fase. É o romancista
contemporâneo de todas as fases que atravessamos desde o início da industrialização.
De fato, relançado recentemente no mercado editorial brasileiro e rompendo com o
longo processo de esquecimento, Marafa foi reeditado em 2003. Em uma resenha
publicada na internet, o crítico Jardel Dias CAVALCANTI (2003:1) maravilha-se com a
atualidade do romance:
Com a atual decadência em que se encontra a cidade do Rio de Janeiro, sendo
tragada por um lamaçal de corrupção em todos os níveis, de pobreza, de politicagem, de
marginalização, de violência, de uma sujeira lamentável do espaço urbano, de incerteza
quanto ao futuro, da alienação e infelicidade geradas por tudo isso-a vida humana que
habita esse universo deveria ser tema aprofundado pela pena de um romancista.
Na falta desse romancista, podemos ler agora o livro Marafa, de Marques Rebelo,
lançado este ano pela Nova Fronteira. Embora o romance seja de 1935, quando ganhou
o Grande Prêmio Romance Machado de Assis, ele nos convida a um passeio por um Rio
de Janeiro longe de ter desaparecido ou de desaparecer.[2]
Em Marques Rebelo e o romance carioca, o crítico Francisco de Assis BARBOSA (s/d:
286) coloca Marques Rebelo como sendo um dos principais escritores do Rio de Janeiro
surgidos no final da década de 30:
(...) Marques Rebelo bem que pode( e bem que deve) ser apontado como o
romancista contemporâneo mais representativo ( e também mais importante) do Rio de
Janeiro que eclodiu com a Revolução de 30. É ele, sem dúvida, o romancista carioca de
todas as repúblicas e ditaduras subseqüentes ao movimento liberal que iniciou a era
Vargas, ou, se preferirem, a era da industrialização da cidade, que se confunde, de
resto, com a industrialização do próprio país. Esta é a razão pela qual os personagens de
Rebelo são bem diferentes, na sua motivação social, dos personagens de Manoel Antônio
de Almeida, José de Alencar, Machado de Assis ou Lima Barreto, gente que, de uma
maneira geral, pouco ou nada tinha que fazer vivia de rendimentos, eram padres,
doutores ou funcionários públicos. Nos romances de Marques Rebelo surge o proletariado
como classe definida (...)
Para OAKLEY(2004)[3], Marques Rebelo é um romancista que em Marafa segue a
trilha aberta por Lima Barreto ao retratar a vida suburbana do Rio de Janeiro, mas com
um leve tom panfletário. A narrativa do romance parece um agregado de partes que
podem ser lidas independentemente, pois a estratégia de fragmentação produz um texto
que “dança” aos olhos do leitor menos atento.
3.2 Tensões sociais e políticas
Em Marafa, publicado em meados da década de 30, estão presentes no enredo,
discussões sobre o contexto político e social da época. Primeiro, a presença de um
personagem comunista que se chama Baltazar(Exatamente, meu amigo.É o comunismo,
a redenção do nosso mundo de misérias. p.96), num romance que foi publicado no
mesmo ano da intentona comunista, duramente reprimida pelo presidente Getúlio
Vargas ((...)ditadura forte, uma espécie de fascismo feroz e saneador. Mas perseguiam
os comunistas. p.96). Do outro lado, os integralistas, representados pelo discurso do
médico-científico Dr. Hugo que pensa ser necessário para o país uma limpeza em regra!E punha uma secreta esperança na ação dos camisas-verdes, que se alastravam pelo
país. (p. 247.)
3.3 Universos que se encontram
O romancista Marques Rebelo, ao meu ver, constrói dois universos que
aparentemente não se comunicam. Na mesma cidade, convivem a ordem e a desordem,
o estabelecido e o outsider, o proletário e o malando, a moça e a prostituta. Dois casais
são retratados paralelamente no romance Marafa: o pólo Teixeirinha/Rizoleta (ele
malandro e gigolô e ela prostituta) e o pólo José/Sussuca (ele empregado num
escritório, mas que tenta ganhar dinheiro com o boxe usando o nome artístico de
Tommy Jaguar e ela uma moça que deseja casar). Só que estas duas retas ao invés de
nunca se encontrarem convergem para um final trágico, o encontro no qual Teixeirinha
assassina o boxeador Tommy Jaguar (José). No entanto, ainda existem personagens que
são por demais interessantes e que também aparecem nas páginas de Marafa: o
malandro Cavalcanti, o malandro Sebastião (que morre de tuberculose), a dona do
bordel Lolote, o comunista Baltazar, Jorge (o estudante de medicina e irmão de José),
Zuleica (a amiga avançada de Sussuca), o treinador de boxe Gustini, o misterioso
escritor, as polacas prostitutas habitantes do mangue.
Ainda que trabalhe durante todo o romance com o afastamento dos dois universos
de personagens, Marques Rebelo vai nos mostrar que os trabalhadores estão submetidos
à mesma violência, exclusão que as prostitutas e malandros. Os dois universos (o mundo
do trabalho e o mundo da malandragem) se encontram na personagem José, que é um
ser dividido entre estes dois caminhos. Ao verificar que mesmo trabalhando durante
anos nunca teria dinheiro para se casar com Sussuca, ele parte para uma outra profissão
que lhe dará dinheiro mais rápido e fácil, o boxe. No entanto, uma rivalidade entre José
e Teixeirinha vai existir por conta de uma desavença durante um ensaio de uma escola
de carnaval. José sai do pólo da ordem e passa a freqüentar o boxe, atividade de pouco
prestígio na sociedade e não vista com bons olhos pelos pais do rapaz. É no boxe que se
dá o encontro entre os dois e o final trágico.
3.4 Universo feminino: margem da margem
O interessante no romance Marafa é a construção das personagens femininas e sua
figuração no espaço urbano. Elas sempre estão à sombra dos homens. Explorada
constantemente por Teixerinha, Rizoleta vive no mangue, se prostituindo num bordel. Já
Sussuca é o protótipo da mulher feita para casar que procura estabilidade com José, um
bom rapaz. Vejamos como REBELO (s/d:17) constrói a personagem Rizoleta:
Era carnuda, tinha os seios fartos, as axilas raspadas, cabelo sedoso e negro. (...)
Estava ali há pouco mais de dois anos. Perdera-se com um soldado que a largara, não
achou jeito de voltar novamente para a ama-seca, dormiu com um e com outro- caíra na
vida.
Apesar da forma fragmentada, na qual todos os personagens aparecem em cenas
rápidas, em capítulos curtíssimos, Marafa é uma narrativa centrada no masculino. Os
homens (Teixerinha e José) enfrentam a cidade, o meio urbano em busca de
sobrevivência através da malandragem ou do trabalho.E as mulheres apenas esperam,
esperam. O destino trágico de Rizoleta conduz a personagem ao mangue, depois ao
hospício e finalmente ao suicídio (“Ela embebeu o vestido em álcool e atacou fogo.
Seguiu como uma estrela pela rua gritando!” p.260,grifo nosso).
3.5 Modernidade e Exclusão
O espaço no romance Marafa é o Rio de Janeiro que se moderniza.É comum se
“ouvir” no romance a música da cidade, o barulho da máquina urbana produzindo,
circulando, movimentando. Em contrapartida, os pobres respondem entoando sambas,
que se espalham ao longo do romance. Condenando os pobres a uma exclusão
territorial, as prostitutas e os malandros vão se estabelecer no Mangue e os operários na
periferia. A cidade e a modernidade parecem não terem sido feitas para eles. A
personagem Baltazar, o trabalhador comunista, se revolta contra o espaço dividido:
Ganhamos mal, não podemos dispor de dinheiro, é lógico, para sair do Rio com
decência e proveito. Digo mais: não podemos sair de nossos bairros. Os hotéis são
caros. Se moramos na Tijuca, não nos é possível passar alguns dias na praia, tomando
banhos de mar. É proibitivo. Só para os ricos. E temos férias obrigatórias de quinze dias
úteis!...São quinze dias que passamos em casa, chateados, dormindo, estupidíssimos,
cheios de maus pensamentos, cheios de inveja, de mal-estar e revolta. REBELO (s/d:47)
Para Alfredo BOSI (1987:442, grifo nosso), no entanto, os romances de Marques
Rebelo não tencionam ao extremo a relação entre protagonista e meio:
Nessa perspectiva, poderíamos distribuir o romance brasileiro moderno, de 30 para
cá, em, pelo menos, quatro tendências, segundo o grau crescente de tensão entre o
“herói” e o seu mundo:
a) romance de tensão mínima. Há conflito, mas este conflito configura-se em termos
de oposição verbal, sentimental, quando muito as personagens não se destacam
visceralmente da estrutura e paisagem que as condicionam. Exemplos, as histórias
populistas de Jorge Amado, os romances ou crônicas da classe média de Érico Veríssimo
e Marques Rebelo, e muito do neo-realismo documental mais recente.
b) Romances de tensão crítica. O herói se opõe e resiste às pressões da natureza e
do meio social, formule ou não em ideologias explícitas, o seu mal-estar permanente.
Exemplos, obras maduras de José Lins do Rego (Usina, Fogo Morto) e todo Graciliano
Ramos.
c) Romances de tensão interiorizada. O herói não se dispõe a enfrentar a antinomia
eu/mundo pela ação: evade-se, subjetivando o conflito. Exemplo, os romances
psicológicos em suas várias modalidades (memorialismo, intimismo, auto-análise...) de
Otávio Faria, Lúcio Cardoso, Cornélio Pena, Cyro dos Anjos, Lígia Fagundes Telles,
Osman Lins...;
d) Romances de tensão transfigurada. O herói procura ultrapassar o conflito que o
constitui existencialmente pela trasmutação mítica ou metafísica da realidade. Exemplos,
as experiências radicais de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. O conflito, assim
“resolvido”, força os limites do gênero romance e toca a poesia e a tragédia.
4 UMA ESTRELA SOBE EM 1939
4.1 Mulher e cidade
Quatro anos depois de estrear no gênero romance com Marafa, Marques Rebelo vai
lançar o livro que será o seu maior sucesso literário: A Estrela Sobe. Impiedoso painel do
meio artístico e do rádio brasileiro da década de 30, A Estrela Sobe tem como
protagonista uma personagem feminina chamada Leniza que tenta subir na vida através
de seus relacionamentos com os homens.
Recentemente lançado pela Ateliê Editorial, o livro Leniza e Elis- Duas Cantoras, Dois
Intérpretes, de autoria de Ariosvaldo José Vidal e Joaquim Alves de Aguiar, analisa o
percurso de Elis Regina, musa da Música Popular Brasileira e, Leniza personagem
imortalizada por Marques Rebelo, em A Estrela Sobe. Para as duas “é atribuído o espírito
do alcance e do progresso a todo o custo, não deixando de lado as contradições que
conturbaram e valorizaram suas carreiras”.
Não mais Teixeirinha e José (Tommy Jaguar) que dominam a cena urbana. Agora
uma estrela sobre e seu nome vai aos poucos dando novas formas ao romance de
Marques Rebelo. Em A Estrela Sobe, Leniza domina a ação do começo ao fim, revelando
as relações entre a mulher e o espaço urbano. O também escritor ADONIAS
FILHO(s/d:9), afirma que o romance marca o conflito entre mulher e a cidade:
O reino ficaria incompleto, porém, sem A Estrela Sobe. Constitui, num reino e na
obra de Marques Rebelo, o que chamaria de um território decisivo por efeito de sua
singularidade e função da cidade que envolve a personagem no destino e na aventura. O
romance, avançando horizontalmente, como se divide na própria unidade, de um lado a
atmosfera urbana em sua carga coletiva e do outro o exame lento que escava os nervos
e o sangue de uma mulher. Em uma visão direta, nesse encontro da mulher com a
cidade- saindo de si mesma para forçar o destino- há uma base social que se funde com
a personagem em sua caracterização interior. Não se defende uma tese, problemas não
são levantados, inexiste a preocupação dialética. Corre a história em si mesma, em
plena liberdade, as questões sobrevindo como implicações normais do romance.
4.2 Romance de aprendizado
Filha de Martin (um descendente de um imigrante alemão que chegou no Brasil mas
não enriqueceu) e de Dona Manuela, Leniza é a segunda filha do casal no país. A
primeira chamada de Mariza morreu ainda quando bebê duma “gastroenterite, que
zombou tanto da homeopatia e alopatia dos médicos como do empirismo solícito das
vizinhas”(p.21). Depois, com a morte do pai, Leniza e a mãe vão morar de favor com
uma comadre, numa pensão. Como a comadre não tinha parentes, depois de seu
falecimento, a casa de pensão passa para a propriedade de Dona Manuela.
É num ambiente suburbano (um ambiente desfavorável a um casamento possível.
P.25) que Leniza cresce. Bildungsroman suburbano carioca, A Estrela Sobe narra o
amadurecimento de Leniza que aos 14 anos é forçada a ir trabalhar numa fábrica de
doces, depois numa farmácia colando rótulos e, finalmente como representante de
medicamentos, visitando médicos, divulgando um fortificante. Na farmácia, “nessas
conversas intermináveis de linguagem solta e assuntos crus, Leniza se completou.
Isabela, Afonsina, Idália, Jurete, Deolinda- foram mestras. O mundo acabou de se
desvendar. Leniza perdeu o tom ingênuo que ainda podia ter. Ganhou um jogar de corpo
que convida, um quebrar de olhos que promete tudo, à toa, gratuitamente.” (P.27).
O lento “aprendizado” de Leniza se completa com sua relação com os homens. O
primeiro deles é “era um pobre diabo, empregado de uma agência de transportes no
Cais do Porto. Chamava-se Astério.” (p. 28). Depois, conhece o médico de subúrbio
Oliveira, o vendedor de rádios Mário Alves, o diretor de rádio Porto e por fim o industrial
cinquentão Amaro Santos. Utilizando os homens como escadas para sua subida, Leniza
vai aos poucos concretizando o seu sonho, tornar-se estrela, cantora de rádio.
Inevitável a comparação entre A Estrela Sobe e Grandes Esperanças (de Charles
Dickens). Em ambos, as personagens centrais são pobres que desejam uma ascensão
social e, para isso, vão se envolvendo com pessoas por puro interesse. E tanto Lenina
quanto Pip vão vendo suas “grandes esperanças” se dissolverem ao longo do curso da
narrativa. Se for inevitável a desilusão, de positivo, as personagens ganham o
aprendizado. O romance, nesses dois casos, faz uma crítica da sociedade, que é fundada
nos interesses de classe, excluindo mesmo aqueles que tentam absorver os valores
dominantes.
4.3 A presença do autor( ou de sua figura) na narrativa
A Estrela Sobe traz dentro de sua estrutura uma discussão sobre a relação entre a
autoria, narrativa e personagens. A presença do autor é sentida em alguns momentos
em que é usado o recurso das notas de rodapé. Em seis oportunidades o autor participa
da narração como elemento explicador, sendo que em cinco notas de rodapé e no
parágrafo final do romance. Vejamos um exemplo, no início de A Estrela Sobe, o
autor/narrador vai usar o recurso da nota de rodapé para explicar a descendência alemã
da personagem Martin, pai de Leniza:
Os avós, imigrantes de Hanover, chegaram ao Brasil destinados à agricultura. Como
tantos outros, ficaram na cidade e na cidade se perderam, a exceção de um tioHermann- que fez fortuna, em Petrópolis, com um hotel, depois com uma cervejaria; fez
política, viu um filho sentar-se na Assembléia Fluminense, e aos primeiros bafejos da
prosperidade achou que era hábil romper com todos os parentes pobres, próximos ou
remotos.
Em outra parte, a personagem central Leniza observa, sem que ele perceba, o
amado Oliveira a comprar cigarros. Ela acha-o “magro, pareceu-lhe mais côvado (...)”
(p.127). O autor intervém numa nota de rodapé dizendo que “Não era verdade, mas
Leniza juraria que sim, pois só há uma verdade real- a nossa. Tudo mais é mentira,
impostura,desacordo, opressão, conveniência, cinismo etc. (p.127).
Uma outra participação do autor na narrativa de A Estrela Sobe vai acontecer na
cena em que Leniza vai pedir ao médico Oliveira que lhe faça um aborto ou indique
algum colega dele para fazer a operação. O autor metalinguísticamente questiona sua
própria força narrativa, vendo-se impossibilitado de narrar como se deve uma passagem
tão importante: Dando o que pôde, o autor lamenta profundamente a debilidade das
suas forças para um trecho tão forte como este e como a maioria dos que se seguem.
Em compensação, absteve-se de lançar mão de recursos mistificantes para uso de
leitores ingênuos. (p.159)
Por fim, como parte do processo no qual o autor vai se distanciando da personagem
e vai também confessando a sua “fraqueza” para dar conta da narrativa tão
realisticamente o que deveria. Na passagem, Leniza, depois de ter quase morrido por
conta de um aborto feito clandestinamente no subúrbio e de ser abandonada pelos
amantes Mário Alves (na verdade o pai da criança) e Amaro Santos, vaga pelas ruas do
Rio de Janeiro como uma “vida fraca, feminina, sopro de vida, fantasma de homem”
(p.180). Procura o médico Oliveira que friamente lhe dá uma receita de fortificante.
Note-se a ironia já que ela era, antes de ser cantora de rádio, uma representante de
uma farmácia que vendia fortificantes. Perto de um delírio místico, Leniza quer se
humilhar quer procurar uma igreja. Ela cai na realidade, vê que está perto de uma igreja
e tenta entrar, mas ela está fechada. “Não! O céu não me quer”(p.181), confessa ela.
Depois que diz isso, dilui-se na multidão, já que “A vida esperava-a, era preciso viver. E
para viver, era preciso lutar, lutar, lutar- ia ganhando ânimo como um avião que toma
impulso para subir- lutar sempre!” (p.181). O autor fecha o livro com um afastamento
da personagem:
(...)Aqui termino a história de Leniza. Não a abandonei, mas, como romancista
perdia-a. Fico, porém, quantas vezes, pensando nessa pobre alma tão fraca e miserável
quanto a minha. Tremo: que será dela, no inevitável balanço da vida, se não descer do
céu uma luz que ilumine o outro lado das suas vaidades?”
5 O APARECIMENTO DE UMA SINGULAR ESTRELA
Embora minha pele cáqui/
Sem rosa ou verde, sem destaque/
E minha condição mofina, jururu, panema/
Embora, embora/
Há uma certeza em mim, uma indecência:
Que toda a fêmea é bela/
Toda mulher tem sua hora/
Tem sua hora de estrela/
Tem sua hora de estrela de cinema/
(Caetano Veloso, na música A Hora da Estrela de Cinema)
Quando da estréia da jovem Clarice Lispector na literatura brasileira, com o romance
Perto do Coração Selvagem, em 1944, críticos como Antonio Candido, Sérgio Milliet e
Álvaro Lins logo despertaram que algo diferente estava ocorrendo com o romance
brasileiro. Este último crítico, por sinal identificou como “um romance original em nossas
letras (...) a primeira experiência definida que se faz no Brasil do moderno romance
lírico, do romance que se faz dentro de uma tradição de um Joyce ou de uma Virginia
Woolf”(p.104-5).
Vale a pena transcrever o que Álvaro Lins sentiu de diferença em relação aos outros
romances que compunham o panorama da literatura brasileira da época:
Ao que estou informado, a autora ainda é muito jovem, uma quase adolescente. E
esta circunstância torna bem mais impressiva a experiência de ficção tentada no seu
livro; e não devemos por isso falar dele com os cuidados que usamos para principiantes.
Coube-lhe, vamos repetir, o papel de escrever o nosso primeiro romance dentro do
espírito e da técnica de Joyce e Virginia Woolf. E, pela novidade, este livro provoca desde
logo uma surpresa pertubadora. A surpresa das coisas que são realmente novas e
originais.
A surpresa, porém, não há de produzir transtorno até o limite em que se perde o
senso crítico. Há, neste livro, além da experiência que representa, dois aspectos a fixar:
a personalidade da autora e a realidade de sua obra. Li o romance duas vezes, e ao
terminar só havia uma impressão: a de que ele não estava realizado, a de que estava
incompleta e inacabada sua estrutura como obra de ficção. LINS (1968:105-6)
Álvaro Lins soube sentir que o romance de Clarice Lispector era diferente de tudo o
que se tinha produzido na literatura brasileira até aquele momento. No entanto, fez uma
leitura da obra como incompleta já que sua concepção de romance era tradicional. Como
ele leu o feminino em Perto do Coração Selvagem? O feminino era visto em oposição a
uma racionalidade e objetividade masculina:
Uma característica da literatura feminina é a presença muito visível e ostensiva da
personalidade da autora logo no primeiro plano. Sim, é certo que, de modo geral, toda a
obra literária deve ser a expressão, a revelação de uma personalidade. Há porém, nos
temperamentos masculinos, uma maior tendência para fazer do autor uma figura
escondida por detrás de suas criações, operando-se um desligamento, quando a obra já
esteja feita e acabada. LINS (1968:103)
Na visão de MARTINS (1997:58),Álvaro Lins embora de modo meio enviesado e
beirando o preconceito que normalmente se imiscui no tom dogmático, inaugura uma
corrente da fortuna crítica de Lispector que se fortaleceu com o tempo e ganha adeptos
até hoje: a que filia e lê a obra da escritora como exemplo de ficção “feminina”.
Abordando a construção do bildungsroman feminino no Brasil, Cristina Ferreira
PINTO vai apontar Clarice Lispector, ao lado de Rachel de Queiroz e Lúcia Miguel Pereita,
como responsáveis pela emergência do feminino no romance brasileiro. No entanto,
ressalta a diferença que Clarice Lispector fez em relação à tradição do romance social:
Perto do Coração Selvagem representou um importante momento de ruptura em
relação à literatura que vinha sendo feita no Brasil a partir de 1930(...) De 1930 até o
momento de estréia de Clarice Lispector, sobressai na literatura brasileira uma ficção
regionalista, na linha do “romance nordestino” de José Lins do Rego, Graciliano Ramos,
Raquel de Queiroz e Jorge Amado. Essa ficção se caracteriza por uma temática social,
assumindo freqüentemente um caráter de denúncia (...) Clarice Lispector surge, assim,
num momento em que a literatura brasileira buscava, através de tentativas isoladas,
novos caminhos para a prosa.PINTO (1990:80-1)
Em A Paixão Segundo C. L. , Bertha Waldman situa o romance de Clarice Lispector
na tradição de ruptura do moderno romance mundial:
Já o romance de Clarice propõe a ruptura da linearidade, fragmenta-se em sua
estrutura, oferecendo-se como um espelho da sociedade moderna, vislumbrada como
uma totalidade fragmentada.
Por mais que o romance se desligue voluntariamente da história, ele interioriza as
carências, as projeções utópicas e os dilemas da sociedade em que se inscreve. E
quando a carga conflitiva dos dilemas aumenta, o romance passa a expor a consciência
dilacerada e a falta de inteireza da existência, dilacerando-se também na sua estrutura.
Dito de modo ligeiro, este é o fenômeno da transformação do romance que se
processou como uma ruptura da forma, atingindo, ao mesmo tempo, o seu conteúdo.
O romance caminhará, depois do realismo/naturalismo, a desdobrar-se internamente
e a questionar num movimento auto-reflexivo, a sua natureza enquanto gênero.
WALDMAN (1983:32)
Em um apanhado rápido sobre a crítica de Clarice Lispector nas décadas de 70 e 80,
HELENA (1997) nos informa que na primeira década a tendência era entender o texto
clariceano como existencialista e epifânico como pensou pioneiramente Benedito Nunes
em O Dorso do Tigre. Já na segunda década, a escritora já tinha sido traduzida para
vários idiomas, sendo tomada no exterior como feminista, rótulo que a escritora recusou
antecipadamente. Clarice Lispector vem despertando um grande interesse internacional
por ser ao mesmo tempo “doméstica e selvagem, atual e ancestral”.(p.20), um sujeito
feminino singular na história da literatura brasileira.Para HELENA (1997), esses dois
caminhos se examinados separadamente revelam-se insuficientes para interpretar a
obra. O que se quer hoje segundo a estudiosa é reatar as duas pontas.
Em recente estudo sobre o conjunto da obra de Clarice Lispector, o professor
português Carlos Mendes de Sousa, afirma que o processo de canonização do texto
clariceano vai se dar ao longo da trajetória da escritora mas vai se consolidar nos anos
80:
Mais tarde na década de 80, logo após a morte da autora, consumar-se-á o definitivo
processo de entronização, que coincide com uma cada vez maior internacionalização da
obra e que não será de todo alheio o apoio rendido por um influente domínio da crítica
nesses anos: a chamada crítica feminista. SOUSA(2004:147)
Um dos grandes especialistas em Clarice Lispector no Brasil é o professor Benedito
NUNES (1973:3-77), autor de diversas obras sobre a escritora. Em Leitura de Clarice
Lispector, ele faz uma análise separada dos romances publicados até 1973, tentando
vislumbrar a obra completa. Perto do Coração Selvagem, obra lançada em 1944 é um
dos romances de grande densidade psicológica, no qual a maneira descontínua de narrar
rompe com o documentarismo de 30 e aproxima a autora de Guimarães Rosa. Segundo
o autor, o monólogo interior, a digressão e a fragmentação desligam Lispector de uma
visão objetivista e situam a obra em um realismo psicológico. Já em O Lustre existe uma
tensão entre o campo e a cidade; e o narrador e personagem se confundem. Em A
Cidade Sitiada, NUNES vê o caricatural e a sátira como elementos que mostram as
personagens como fantoches da cidade. Por fim, em A Maçã no Escuro, a personagem
Martin está em errância por acreditar ter assassinado a esposa. Ele faz uma espécie de
peregrinação mística fugindo dos homens e da cidade.Mais próximo da natureza, Martin
faz uma espécie de recuo à animalidade. Benedito NUNES vai chamar o drama da
expressão no romance de drama da linguagem no qual a obra vai exprimir numa latitude
metafísico-religiosa o problema do Ser e do dizer.
6 NOTÍCIAS NACIONAIS
1977...
A censura atinge atores, jornalistas e escritores; as primeiras greves fazem de Lula,
um metalúrgico pernambucano, uma das lideranças emergentes do ABC paulista; o
divórcio é aprovado de vez no país; na televisão, a Rede Globo exibe o seriado Malu
Mulher; o presidente Geisel fecha o congresso; o ministro da fazenda embarca para
Washington em busca de novos financiamentos para o país.
Pela primeira vez, uma mulher é eleita para ocupar uma cadeira na Academia
Brasileira de Letras em oitenta anos de existência da instituição. Rachel de Queiroz, uma
cearense, um dos grandes nomes do regionalismo, quebra de vez mais um preconceito.
1977, ainda...
No dia 26 de outubro, a escritora Clarice Lispector, mesmo doente, lança seu último
romance: A Hora da Estrela.
7 A HORA DE CLARICE
“As últimas obras são curtas e candentes como o fogo que tende para as estrelas”.
Hélène Cixous, em A Hora de Clarice Lispector
Em Clarice Lispector-Esboço para um possível retrato, Olga Borelli, a melhor amiga
da escritora, relata que, em 1977, Clarice tinha consciência que a morte estava próxima.
Então lutava com suas últimas forças para aprontar um romance, seu último livro que
seria publicado em vida: A Hora da Estrela. Diferente de todos os outros romances ou
contos, A Hora da Estrela é uma espécie de chave para se entender a escritura de
Lispector, bem como as relações entre literatura e vida no Brasil.
No mesmo livro, Olga Borelli, narra como foi a hora de Clarice Lispector, que morreu
escrevendo:
Segurei com força na sua mão. Ela ainda escreveu:
Lírios brancos encostados à nudez do peito. Lírios que eu ofereço e ao que está
doendo em você. Pois nós somos seres e carentes. Mesmo porque certas coisas-se não
forem dadas-fenecem. Por exemplo-junto ao calor de meu corpo as pétalas crestariam.
Chamo a brisa leve para minha morte futura. Terei de morrer senão as minhas pétalas
se crestariam. É por isso que me dou à morte todos os dias. Morro e renasço.
Inclusive eu já morri a morte dos outros. Mas agora morro de embriaguez de vida. E
bendigo o calor do corpo vivo que murcha os lírios brancos
(...)
Eu serei a impalpável substância que nem lembrança de ano anterior substância
tem.
Sussurei-lhe bem devagar a palavra paz; eram dez e meia da manhã da véspera de
seu aniversário. Acabava de morrer. BORELLI (1981:62)
A consciência da própria morte e o diálogo sobre a função do escritor permeiam o
texto/contexto de A Hora da Estrela. Em um outro fragmento, também extraído do livro
da melhor amiga da escritora, Lispector escreve sobre suas angústias:
Dentro do mais interior de minha casa morro eu neste fim-de-ano exausta. Até o fim
do ano eu tive. Mas como se verá-não correu sangue. Bem que eu queria que corresse, e
do mais brilhoso e da mais espalhafatosa faísca só para que fique provado que a veia
grossa minha foi tão de súbito lancetada. Chorei de raiva, raiva contra mim mesma. Me
detestei por ser tão ingênua. Minha desordem criadora: do caos nascem as estrelas. Mas
esta estrela, a do fim-de-ano, era de carne, pensava e, a cada talho, doía.
BORELLI(1981:61)
8 A HORA DE MACABÉA
“Eu só existo no diálogo” (Clarice Lispector)
Uma das principais divulgadoras da obra da escritora Clarice Lispector no mundo,
Hélène Cixous, pensando em A Hora da Estrela, reflete sobre a mística do último livro de
um escritor:
Sempre sonhei com o último texto de um grande escritor. Um texto que seria escrito
com as últimas forças, o último alento. No último dia antes de sua morte, o autor está
sentado à beira da terra, seus pés estão leves no ar infinito, e ele olha as estrelas.
Amanhã o autor será uma estrela entre as estrelas, molécula entre as moléculas. O
último dia é belo para quem sabe viver. É um dos mais belos dias da vida. Nesse dia (eu
deveria dizer nesses dias, porque o último dia pode ser vários dias) vê-se o mundo com
o olhar dos deuses: vou me tornar finalmente parte dos mistérios dos mundos. Sentado
a beira da terra, o autor já não é mais quase ninguém. As frases que vem ao seu
coração aos seus lábios são libertadas do livro. São belas como a obra, mas jamais serão
publicadas, e diante da iminência do silêncio estrelado, se apresentam, se juntam, e
dizem o essencial. Elas são um adeus sublime à vida: não luto mais agradecimento.
Dizem ó vida, como és bela.
CIXOUS (1999:125)
E é desse reencontro com a vida, com as múltiplas identidades que Clarice
Lispector vai retirar material para a escrita de A Hora da Estrela. O reencontro com o
Nordeste do Brasil, terra na qual ela chegou de navio ainda bebê, em Alagoas, indo,
posteriormente, para Recife, local onde passou a infância:
A última viagem de sua vida levou-a a Recife: o objetivo era o reencontro com suas
raízes e suas esperanças. Percorreu aí os lugares que viram, o iniciar de sua inquietação,
de sua ânsia de liberdade e o desabrochar dos primeiros textos. BORELLI(1981:43)
Rotulada por alguns críticos como “alienada” ou “individualista” ou mesmo
“introspectiva”, Clarice Lispector pensava no papel do escritor e na representação da
realidade, dos problemas sociais:
Outra quase obsessão de suas conversas: o de não saber expressar-se de modo
“literário” sobre o “problema social”. Coisa que, de resto, seu romance A hora da estrela
veio desmentir. A verdade, porém, é que tudo o que se refere à questão social sempre
esteve presente em sua vida. Ela jamais conseguiu apagar da memória a imagem da
miséria nordestina, ou melhor, da pobreza do Recife, principalmente a que hoje se
concentra nos mocambos dos mangues recifenses. Ela própria dizia que os problemas da
justiça social despertavam nela um sentimento tão básico, tão essencial que não
conseguia escrever sobre eles. Era algo óbvio. Não havia o que dizer. Bastava
fazer...BORELLI (1981:53)
A questão do engajamento ou não de Clarice Lispector é discutida no livro
Tempos da Literatura Brasileira:
Uma literatura alienada? Não se trata disso. As produções de Clarice Lispector não
deixam de se referir à realidade concreta. É admirável sua consciência técnica,
adequando forma e conteúdo. Por exemplo, dissocia as unidades narrativas para mostrar
a falta de ligações mais profundas na sociedade. Organiza a narrativa em ritmo lento,
para contrastar com o movimento da vida nas grandes cidades. Filtra os fatos através de
uma consciência que se isola do conjunto- eis aí a solidão do homem moderno.
Longe de fazer uma literatura alienada, Clarice Lispector levanta justamente o
cotidiano alienado. ABDALA JÚNIOR & CAMPEDELLI(1986:273)
Assim a personagem Macabéa é diferente como a própria Clarice, que marcou a
literatura brasileira pela diferença. Macabéa é o reencontro com as raízes nordestinas e
judias através da errância:
Existe um texto que é como um salmo discreto, uma canção de louvor à morte. Esse
texto se chama A Hora da Estrela. Clarice Lispector o escreveu quando quase já não era
ninguém nessa terra. Em seu lugar imenso se abria a grande noite. Uma estrela, menor
que uma aranha, passeava por lá. Vista de perto, era coisa ínfima poderia ser uma
criatura humana minúscula, pesando talvez trinta quilos. Mas vista depois da morte, ou a
partir das estrelas, ela era tão grande como qualquer coisa do mundo, e tão importante
quanto qualquer pessoa muito importante ou sem importância de nossa terra.
Essa pessoa ínfima e quase imponderável vai se chamar Macabéa: o livro de
Macabéa é extremamente fino, parece um pequeno caderno. É um dos maiores livros do
mundo.CIXOUS (1999:127)
A Hora da Estrela vai relatar a vida de Macabéa não num cenário rural nordestino,
mas, como a própria trajetória pessoal da autora, no Rio de Janeiro, sociedade urbana e
desumanizada. Retirante, Macabéa é uma jovem mulher que abandona sua terra natal
em busca de sobrevivência na metrópole:
A “pessoa” que Clarice escolheu, esse arremedo de mulher,é uma quase-mulher.
Mas ela é de tal modo quase mulher, que talvez seja mais mulher do que qualquer outra,
mas imediatamente mulher. Ela é de tal modo mínima, tão ínfima que está ao rés-dochão do ser, como se estivesse numa espécie de relação íntima com a primeira
manifestação de vida na terra; ela é capim, e ela acaba no capim, como capim.
Enquanto capim, enquanto fiapo de mulher, ela se situa fisicamente, afetivamente, de
fato abaixo da gênese, no começo e no fim.CIXOUS(1999:135)
Para GOTLIB(1995), A Hora da Estrela é uma espécie de catarse clariceana de uma
infância parcialmente recalcada, já que a própria escritora tinha declarado que “tinha de
botar pra fora um dia o Nordeste que eu vivi”. GOTLIB ainda identifica ecos de uma
outra catarse “de um sofrido passado judeu, evocação da cultura hebraica, tão presente
em seu nome- Macabéa- lembrando a luta dos macabeus”.
9 MOBILIDADE & ERRÂNCIA: MACABÉA E OUTRAS GENTES DO NORDESTE
“O sertanejo é antes de tudo um forte (...) sua aparência, entretanto, ao primeiro
lance de vista, revela o contrário (...) É desgracioso, desengonçado e torto. Hércules-
Quasímodo reflete no aspecto a fealdade dos fracos. (...) Entretanto, toda essa
aparência de cansaço ilude”.
(Euclides da Cunha, em Os Sertões)
Nascida em São Paulo, mas residindo no Nordeste desde 1973, Ivone Gebara é uma
das principais pesquisadoras sobre a mulher nordestina. Para ela, a história da
humanidade é uma história reconhecida de mobilidade grupal ou de múltiplos êxodos de
todos os tipos. E o fenômeno da migração afeta tanto mulheres como homens:
A mobilidade da mulher nordestina em busca de saídas, em busca de “salvação”
cotidiana revela essa capacidade de abrir novos espaços, porque no fundo a vida, apesar
dos pesares, vale a pena ser vivida (...)A mobilidade não é um comportamento
característico feminino. Ao contrário, os homens movem-se muito e certamente mais do
que as mulheres. GEBARA (2000:20-1)
A mobilidade em busca de melhores condições de vida, um traço que une a
personagem Macabéa de A Hora da Estrela e a sua autora Clarice Lispector. Ao se
moverem para espaços diferentes de sua terra, elas se defrontam com a questão da
identidade:
Sob tal perspectiva de leitura, Macabéa, a personagem do breve romance intitulado
A Hora da Estrela, da escritora judia (russa/ucraniana) e brasileira(mordestina/carioca)
Clarice Lispector, constitui um ponto-chave, pois encarna, no seu estado de
miserabilidade da identidade pessoal e social, grande parte das mulheres no Brasil. Sem
acesso à qualquer bem de produção, essa personagem nordestina parte do sertão de
Alagoas para uma grande capital, a cidade do Rio de Janeiro, onde vive na mais
completa miséria, sem ter acesso à cultura de bens materiais, intelectuais e
afetivos.GOTLIB (2003:19)
Segundo GUIDIN (2001), citando Eduardo PORTELA(1981), coloca A Hora da Estrela
como alegoria regional. E a personagem Macabéa seria um estereótipo, uma paródia do
feminino, estando dentro da ironia, do kitsch e do grotesco. Uma mulher de outra classe
social, uma personagem marginal na própria obra, uma personagem que é ao mesmo
tempo o outro e o mesmo, uma flor murcha, uma negação da flor. Macabéa é o avesso
do feminino na obra de Clarice Lispector:
Nos contos[de Clarice Lispector], predomina o modelo da dona de casa pequenoburguesa em conflito com sua condição de mãe e esposa, vivendo um cotidiano
institucionalizado, abafado pelo peso da rotina. As mulheres do romance, que vivem em
geral sozinhas, não têm relações amorosas estáveis nem filhos. Estas últimas
personagens vivem em contato com a cultura urbana letrada e não revelam problemas
de ordem financeira. GUIDIN (2001:18)
Para HELENA(1997), o feminino em Clarice Lispector se
apresenta a partir de diversas situações e atitudes na sociedade patriarcal tais como o
aprisionamento, a rebelião e o nomadismo. Há uma verdadeira repetição de perfis de
mulheres enclausuradas em quartos, casas ou em si mesmas, revelando uma situação
física e psicológica de confinamento. Então, questionar o patriarcal é questionar os
limites, limites estes que dividem os espaços da casa (para a mulher) e a rua (para o
homem). Lispector apresenta o sujeito feminino como também parte da história, lutando
contra um outro sujeito falocêntrico, falocrático e patriarcal:
Assim não ler o tema da emergência do feminino em Lispector-indicada com fartura
por sintomas até de aparentemente superfície, como se dá com a galeria de mulheres
que ela escolhe para protagonizar seus textos-é não ler Clarice Lispector num dos seus
traços específicos. HELENA (1999:27)
10 O ESPELHO E A MÁSCARA
Quem é você, você que estrangeiramente eu?
(Hélène Cixous, em A Hora de Clarice Lispector)
O que é um espelho?
(Clarice Lispector, em Para não Esquecer)
Quando quis tirar a máscara/estava pegada à cara/quando a tirei e me vi ao
espelho/Já tinha envelhecido.
(Fernando Pessoa, em Tabacaria, de 1928)
“O que é um autor?”, perguntou certa vez o pensador francês Michel Foucault (19261984). A noção de autoria é bastante discutida nas Ciências da Linguagem. Interessanos particularmente as relações entre autor, narrador e personagem em A Hora da
Estrela.
O professor Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, no Dicionário de Teoria Narrativa
discutem as relações entre autor e o universo da narração:
O termo autor designa uma entidade de projeção muito ampla, envolvendo aspectos
e problemas exteriores à teoria narrativa (...) O estatuto sociocultural do autor literário
reflete-se no domínio da teoria e da história da narrativa: neste contexto, o autor é a
entidade materialmente responsável pelo texto narrativo, sujeito de uma atividade
literária a partir da qual se configura o universo diegético com as suas personagens,
ações, coordenadas temporais etc.REIS & LOPES(1988:14)
As complexas relações entre a personagem-escritor-narrador Rodrigo S.M e a
escritora Clarice Lispector nos faz pensar na noção de autor implícito, discutida com
profundidade no Dicionário Enciclopédico das Ciências da Linguagem:
Muito freqüentemente a imagem do narrador é desdobrada: basta que o sujeito da
enunciação seja ele mesmo enunciado para que, atrás dele, surja um novo sujeito da
enunciação. Em outros termos, tão logo o narrador é representado no texto, devemos
postular a existência de um Autor Implícito ao texto, aquele que escreve e que não se
deve em caso algum confundir com a pessoa do autor, em carne e osso: apenas o
primeiro está presente no livro. O autor implícito é aquele que organiza o texto, que é
responsável pela presença ou ausência de determinada parte da história. (...)Se
nenhuma pessoa se interpõe entre esse autor inevitável e o universo representado, é
que o autor implícito e o narrador estão fundidos. Mas, na maior parte do tempo, o
narrador tem seu próprio papel, inconfundível. Esse papel varia de um texto para outro:
o narrador pode ser uma das personagens principais ( numa narrativa na primeira
pessoa), ou então simplesmente emitir um julgamento de valor ( em relação, num outro
ponto do texto, o autor mostrará seu desacordo) e ter acesso assim à existência.
TODOROV & DUCROT(2001:294)
Em 1986, a diretora Suzana Amaral resolveu adaptar o romance A Hora da Estrela
para o cinema, tendo no elenco a atriz paraibana Marcélia Cartaxo (Macabéa) e José
Dumont (Olímpico de Jesus). Na época, muitos leitores e críticos sentiram a exclusão de
uma personagem, ao nosso ver, importante na trama do romance: Rodrigo S. M.. A
cineasta S.Amaral em entrevista publicada em GUIDIN(2001), explicou que resolveu
adaptar alguma coisa de Clarice para o cinema e decidiu-se pela A Hora da Estrela por se
tratar de uma história simples e curtinha. A cineasta explicou também que em cinema a
adaptação é livre e que a personagem Rodrigo SM era supérflua para a versão para
cinema. Será que o escritor-narrador Rodrigo S.M é uma personagem perfeitamente
dispensável do romance ou ele é importante para se compreender A Hora da Estrela e o
restante da obra?
Em Como e Por que Ler o Romance Brasileiro, a professora Marisa Lajolo situa a
importância de Rodrigo S.M para o entendimento da complexa discussão de gênero
suscitada por Clarice Lispector em A Hora da Estrela:
Esta relação problemática entre mulheres e livros parece repetir-se num belíssimo
romance do final do século XX. Em 1977, Clarice Lispector(1925-1977), escritora que
nasceu na Europa e veio ainda bebê para o Brasil, publicou um dos seus mais instigantes
livros, A Hora da Estrela. É a história de uma retirante alagoana- Macabéa –que, vivendo
no Rio de Janeiro, se sente continuamente agredida pela cidade, toda feita contra
ela(p.19)
A Hora da Estrela começa apresentando quem vai escrever a história de Macabéa:
um homem. Com nome e sobrenome, Rodrigo SM é o narrador que, ao longo do livro,
vai orquestrando a sensibilidade dos leitores. É dele a voz que aponta as vantagens da
masculinização da tarefa de narrar(...) De forma muito particular e sofisticada, o livro de
Clarice, ao anunciar a necessidade de ser masculina a voz que narra a história de
Macabéa e ao trazer a cultura letrada para tantas passagens da história, recoloca e
atualiza a relação mulher/romance.LAJOLO (2004:51-3)
A teórica feminista Hélène Cixous no livro A Hora de Clarice Lispector dedica ao
romance A Hora da Estrela um capítulo em que discute a metamorfose de Clarice que
passa do feminino ao masculino através da “máscara verbal” Rodrigo SM. Na opinião de
Cixous, a personagem é uma armadura que incomoda, uma “falsa pele de
homem”(p.193). No entanto, mesmo escrita no masculino, a autoria do romance é “uma
mulher de mortal delicadeza”. (p.209):
(...)foi preciso que Clarice Lispector fizesse um exercício sobre-humano de
deslocamento de todo o seu ser, de transformação, de afastamento de si mesma, para
tentar se aproximar desse ser ínfimo e tão transparente (...) passar para o masculino,
passar por homem. Empreendimento paradoxal. (...) O eu passa para o masculino, e
esse masculino a empobrece. CIXOUS (1999:137)
Engana-se quem considera A Hora da Estrela um livro simples. Ele discute a questão
da autoria de modo complexo. Para GUIDIN (2001), A Hora da Estrela subverte os
gêneros literários ao se situar entre a novela e o romance, problematizando a linguagem
através do heterônimo clariceano, a personagem escritor-narrador Rodrigo SM. Ela
afirma que Clarice ao criar uma máscara masculina e ao mesmo tempo, logo no início do
romance se autodesmascarar, Lispector deseja problematizar a situação da escrita numa
sociedade marcada por papéis masculinos e femininos. Ainda para GUIDIN (2001:48), a
máscara clariceana, o escritor-narrador Rodrigo SM é protagonista de outra história, a
história da construção do texto de A Hora da Estrela. Para a autora, citando Benedito
Nunes, o romance é um jogo de encaixes narrativos, no qual Clarice Lispector se faz
igualmente personagem. Ou seja, Clarice Lispector é Rodrigo SM e Macabéa. Ocorre aí,
segundo GUIDIN (2001) um esvaziamento da identidade um recurso muito próximo da
morte.
Na opinião de GOTLIB (2003:54), a literatura de Clarice pode ser considerada como
um corajoso processo de desconstrução, pela via da linguagem, ela também, a todo o
momento, questionada, inserindo-se assim, na fértil linhagem de literatura
metalingüística do nosso século. A autora vê A Hora da Estrela como um jogo da
alteridade:
O jogo da alteridade (...) faz-se pelo desdobramento já típico dessa autora: o
indivíduo que, ao reconhecer-se como tal, aparece já desdobrável num eu e num outro,
cada um desdobrando-se, por si em mais dois, e assim sucessivamente.
Dessa forma, Clarice assina seu nome de autora sobre os treze títulos que dá ao
romance. E cria um outro, Rodrigo, que irá escrever o romance, criando por sua vez uma
outra, a Macabéa, que tem nome de origem judia e que é nordestina pobre-como, aliás,
a própria Clarice. A experiência individual-a mulher em busca de seu outro criando esse
outro em que se espelha- faz-se em vários níveis: autora que vira narrador que vira
personagem de si mesma, personagem que também é o narrador e é a autora.GOTLIB
(2003:54-5)
Para Bella JOZEF, no artigo Clarice Lispector e o Ato de Narrar, o questionamento
das autoria proposto por Lispector situa-se dentro do conjunto da obra da escritora,
sendo uma estratégia narrativa:
Clarice Lispector emancipou o autor de sua identidade num trabalho de autenticidade
criadora. Incrementou o processo de desestruturação da narrativa tradicional,
considerando as palavras como forças essências. Seu virtuosismo, de síntese
expressional e o caráter encantatório da linguagem, persegue o inexplicável cheio de
mistérios e sugestões.
Pelas freqüentes reflexões sobre a natureza da criação artística parte, com lucidez
criadora, das possibilidades da linguagem, propondo uma nova escrita-leitura. A obra
criadora de Clarice Lispector em sua recusa a aceitar o cotidiano, representa nova
atitude do fazer literário e um questionamento de sua significação. JOZEF (1999:180-1)
Autora de uma das mais completas biografias da escritora, Nádia Battella Gotlib
acredita que A Hora da Estrela é também um questionamento do papel do intelectual
brasileiro frente às contradições da realidade nacional:
Dificilmente, na história da nossa literatura-de homens e de mulheres- houve um
questionamento do intelectual de tal envergadura e coragem. Capítulo subseqüente dos
romances sociais dos anos 30, esse romance de Clarice Lispector desmitifica, ou
desconstrói também, a figura do intelectual, do escritor, do artista, que é um dos que
têm, em contraste com o seu objeto de arte, ou personagem, o que não tem. GOTLIB
(2003:57)
Como intelectual, Rodrigo SM distancia-se das classes populares e isso advém uma
culpa, culpa que pode ser sentida tanto pelo verdadeiro autor (Clarice) ou por sua
máscara:
O narrador de A hora da estrela sente-se culpado por se ver afastado do homem
comum, ao perceber que uma real identificação com sua personagem-e com os que ela
representa- é fato negado pela experiência, mito cuja inviabilidade prática mostra-se na
incapacidade que ele carrega de por ela sentir compaixão, no sentido primeiro do sofrercom, atingindo, no máximo, os limites da piedade- ainda assim recusada porque culpada
e culposa... Vê Macabéa, mas não a alcança; seu fracasso o atormenta e atrasa seu
relato. MARTINS (1997:48)
No artigo Armadilha para o Real:(uma leitura de A Hora da Estrela, de Clarice
Lispector), publicado no final da década de 70, a professora da Unicamp, Betha
WALDMAN(1979:63) afirma que o romance pode ser lido como ponto de chegada da
obra de Clarice por dissecar para o leitor e para si mesmo os mecanismos de criação
artística. A relação leitor, autor, narrador e personagem pode ser sentida em uma
passagem do romance, na qual a personagem Macabea vai se contemplar num espelho
mas:
(...) é a imagem do autor/narrador que se reflete no espelho quando Macabéa se
olha. Simulacro, o sentimento de sua irrealidade é dado pela ausência de um reflexo
que coincida com o objeto refletido. Tal como ficção, o espelho desdobra a realidade,
multiplica-a através da imagem, porém da imagem agenciada por um autor. É por isso
que o mesmo reflexo que constitui e consolida a identidade de Rodrigo S. M, subtrai a
substancialidade da Macabéa, reduzindo-a à sombra. Vigiada por um olho, ela ignora o
seu observador, não lhe reenvia o seu olhar, e, ao viver fora de um olhar reflexivo, se
delineia enquanto ser ilusório, fictício.
A identidade do autor/narrador, por outro lado, solidifica na contraposição com sua
personagem ( ela existe porque ele a olha), dilui-se fora da relação, porque se ela é
apenas vigiada por um olhar, ele é apenas o olhar que vigia, rompendo-se nos dois caiso
a dialética do ver/ser visto. WALDMAN (1979:66)
O crítico e professor Carlos Mendes de SOUSA(2004) observa a interação entre o
espelho e a máscara, particularmente na cena já referida por WALDMAN(1977)
anteriormente. O espelho e a máscara não refletem o real, pelo contrário, tornam-no
obscuro:
Nos últimos textos há, de se tem vindo a observar, uma expressa vontade de
desvelar os meandros da ficcionalização. No entanto, paradoxalmente, esse intuito
desvelador apóia-se numa estratégia que,muitas vezes, pressupõe a colocação da
máscara. O que se joga nesse gesto é um implacável desígnio da escrita de Clarice:
viver é mascarar-se, ser é mascarar-se, por conseguinte, só pela máscara se escreve a
vida mais verdadeira. A questão do duplo e dos valores da alteridade que nos
desdobramentos intervêm-o fazer coincidir no outro a própria identidade-leva-nos a uma
nova interrogação: por que a insistência na figura do escritor homem, do autor homem?
Temos então o caso de A Hora da Estrela, onde se encontra uma explicação que tem sido
objecto de várias leituras por parte da crítica, que vê aí uma forma de distanciamento e
de ironia (“Mas teria que ser um homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas”
p.18). Uma das imagens que melhor figurará a intenção liespectoriana é aquela em que
se projecta a intersecção de Macabéa com Rodrigo SM. Ao observar a nordestina,
Rodrigo vê o seu próprio rosto sobrepor-se à imagem da moça reflectida no espelho. A
intersecção, várias vezes apontada, parece suspender as oposições masculino/feminino,
que são deslocadas para a intensidade da experiência da escrita. SOUSA(2004:179)
O movimento de reflexão no sujeito da escritura de Clarice remete para um
permanente estado de contestação de si, do outro, da linguagem e do mundo:
O sujeito que nasce da escritura de Clarice, em sua errância e transitoriedade, é o
responsável pela cadência do texto. Toda a vez que o incessante jogo de significantes
recomeça ( e sua escritura é, de certo modo, um recomeço, sem início nem fim), um
sujeito é deduzido como significação. É no momento que o discurso está prestes a se
perder no infinito das palavras, quando o simbólico corre risco de se tornar imaginário,
que o real escancara sua boca e se apresenta como impossibilidade de representação. É
nesse buraco, nesse precipício, que se instala o sujeito como representante em si de um
paradoxo da linguagem. PINTO (1997:56)
11 DUAS ESTRELAS, UM ENCONTRO: MACABÉA E LENIZA
Quais seriam, a priori, as semelhanças entre os romances A Estrela Sobe (de
Marques Rebelo) e A Hora da Estrela( de Clarice Lispector)? Trinta e oito anos separam
as duas obras e, nesse tempo, o país passou por processos de industrialização, por
golpes militares, por ditaduras, por governos populistas de esquerda, por greves e
movimentos de redemocratização.
Ao meu ver, existem alguns pontos em que os dois romances se assemelham. O
primeiro é a presença da música (erudita e popular). Em A Hora da Estrela, o narrador
dedica-se e dedica a narrativa a compositores eruditos (Schumann, Bach, Chopin,
Beethoven, Debussy etc), “(...)todos esses que em mim atingiram zonas
assustadoramente inesperadas (...)” (p.9). Em A Estrela Sobe a música popular e sua
interface com a era do rádio é tema do livro. A todo o momento, nas ruas e nos estúdios
das rádios, ecoam refrões de samba. O segundo ponto em que há uma convergência
entre os dois romances é na presença da mulher no espaço urbano, o protagonismo
feminino na narrativa. Macabéa e Leniza, cada uma a seu modo, são devoradas pelo
espaço urbano. O terceiro ponto é que os dois livros foram adaptados para o cinema:
Leniza Mayer de A Estrela Sobe foi interpretada pela atriz Betty Faria, sob a direção de
Bruno Barreto, em 1974. Já Macabea foi interpretada pela atriz paraibana Marcélia
Cartaxo, em 1986. O quarto ponto diz respeito a questão da figura do autor nas duas
obras: em A Estrela Sobe o autor também hesita entre a proximidade e a distância em
relação à personagem Leniza, um movimento de atração e repulsa, sentido nas notas do
autor ao longo da narrativa e por fim no desfecho do livro. Já em A Hora da Estrela,
como mostramos anteriormente, Clarice Lispector estabelece o jogo de máscaras,
usando o falso autor Rodrigo SM para narrar no masculino a história de uma mulher
retirante. O quinto ponto é o próprio espaço da cidade como palco da sociedade de
consumo, da sociedade industrializada, na qual os excluídos têm que cotidianamente
lutar pela sobrevivência num cenário meio que darwinista. Por fim, como sexto e último
ponto de convergência, a visão mística da vida e da morte, presente no final dos dois
livros.
Notas
[1] Disponível em www.geosites.com/jczamboni/rebelo.htm acessado em janeiro de 2005
[2] Extraído de www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?código=1241 acessado
em janeiro de 2005.
[3] Utilizo aqui minhas anotações pessoais da aula ministrada pelo Professor Robert John
Oakley, na Pós-Graduação em Letras da Unesp/Assis,SP, em 26/11/2004, sobre o
romance Marafa ( de Marques Rebelo).
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*Carlos Alberto Farias de Azevedo Filho é professor UEPB/ Doutorando em Literatura
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