ALEGORIA E TRAGÉDIA – TEATRO E REVOLUÇÃO A leitura

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ISSN 2176 -7017
PERIÓDICO
DO PROGRAMA
DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
EM ARTES
CÊNICAS
PPGAC/UNIRIO
PERIÓDICO DO
PROGRAMA
DE PÓS-GRADUAÇÃO
ARTES
CÊNICAS | PPGAC – UNIRIO
ISSN 2176-7017
ALEGORIA E TRAGÉDIA – TEATRO E REVOLUÇÃO
A leitura vygotskiana de Mistério-bufo
ALLEGORY AND TRAGEDY – THEATER AND REVOLUTION
Vygotskian reading of Mystery-Bouffe
Priscila Nascimento Marques
Priscila Nascimento Marques
Universidade de São Paulo (FFLCH-USP)
Mestre e Doutora em literatura e cultura russa pela
­Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
­Universidade de São Paulo.
Priscila Nascimento Marques
Universityof São Paulo (FFLCH-USP)
Master and PhD in Literature and Russian Culture from the
­ aculty of Philosophy, Letters and Human Sciences ­University
F
of São Paulo.
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RESUMO
Comentário sobre o ensaio de 1919, “Teatro e revolução”, escrito por
L. S. Vygótski. O artigo apresenta os principais pontos abordados pelo
autor bem como oferece ao leitor informações sobre o contexto em
que ele foi produzido, ou seja, o cenário cultural, particularmente a
produção de literatura dramática, nos anos imediatamente posteriores
à Revolução Russa. Pretende-se ainda colocar a visada vygotskiana em
perspectiva, tendo em vista outras apreciações sobre a temática.
Palavras-chave: Literatura russa; Teatro; Revolução russa
ABSTRACT
Commentary on the essay “Theater and Revolution”, written in 1919
by L. S. Vygotsky. The paper presents the main topics of the essay and
provides the reader with the context in which it was produced, that is,
the cultural scenario, particularly the production of dramatic literature,
in the years that followed the Russian Revolution. We also intend to put
the vygotskian view in perspective, considering other appreciations on
the subject.
Keywords: Russian literature; Theater; Russian Revolution.
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ALEGORIA E TRAGÉDIA – TEATRO E REVOLUÇÃO
A leitura vygotskiana de Mistério-bufo
Priscila Nascimnento Marques
Eu também não sei o que fazer com o teatro.
Sou um homem que veste por baixo a bandeira amarela dos
futuristas. Mas gostaria de ver, no lugar do teatro do bom
gosto e da restauração, um teatro que tivesse o direito de
corromper a arte, da mesma forma como agora corrompem a
língua.
Viktor Chklóvski1
1.
O BALANÇO VYGOTSKIANO SOBRE O TEATRO RUSSO ANTES E DEPOIS
DA REVOLUÇÃO DE 1917
Em “Teatro e revolução”, ensaio publicado em 1919 na antologia Versos e prosa
da revolução russa2, L. S. Vygótski (1896-1934) apresenta duras críticas acerca do
valor do teatro russo pré-revolucionário e das consequências dos eventos de 1917
para os palcos. Tal temática, amplamente discutida por historiadores do teatro, não
produziu, contudo, opiniões consensuais, especialmente entre aqueles que estavam
mais próximos do calor dos acontecimentos. Tomemos, por exemplo, a frase de
abertura do texto vygotskiano – “O teatro russo não tem mérito antes da revolução” –
e comparemos com o que diz Evréinov em sua História do teatro russo: “os vinte anos
que precedem a revolução de outubro são, do ponto de vista da história da arte, de
um interesse excepcional e cativante” (Evreïnoff, 1947, p. 356). Decerto, Evréinov leva
em conta, em sua avaliação, os diferentes experimentos teatrais que despontaram no
início do século XX, tais como o teatro dramático de Vera Komissarjévskaia, o Teatro1
SHKLOVSKY, 2005, p. 90.
2
A antologia foi publicada em Kiev, em 1919, com o alfabeto cirílico antigo. Segundo Kotik-Friedgut (2012),
o volume é atualmente uma raridade, pois foi retirado das bibliotecas durante o período de repressão aos ­“inimigos
o povo”. O ensaio “Teatro e revolução” não consta de nenhuma das listas de publicações de Vygótski c
­ onsultadas
­(Vygodskaia e Lifanova, 1999 e van der Veer e Valsiner, 1996). O acesso ao texto foi proporcionado pelo ­pesquisador
Anton Yasnitsky. Recentemente, o texto foi republicado pela revista Kulturno-istoritcheskaia Psikhologuiia ­(VYGÓTSKI,
2015).
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estúdio de Meyerhold, o Teatro Antigo do próprio Evréinov, o Teatro de Câmara de Taírov
e as miniaturas da companhia Espelho Curvo de Kugel; além das novas concepções
desenvolvidas no campo teórico, como as ideias de Briússov sobre teatralidade e
convenção teatral3. Semelhante valorização pode ser encontrada em Komissarjévski:
Obviamente o novo teatro não surgiu do nada. O teatro nascido
da revolução recebeu uma herança das mais preciosas: desde seu
nascimento, as grandes tradições da cena russa de vanguarda
velavam seu berço. Essas tradições ensinaram nosso teatro a tirar
sua força e inspiração da efervescência da vida do povo. Ensinaram
a considerar o trabalho do ator como recurso, a falar duramente
no palco sobre questões cruciais da época e criar personagens
vivos, cheios de verdade, sinceros e simples. Esse foi um presente
que não tem preço (Komissarjevski, 1959, p. 6-7).
A posição de Vygótski se aproxima das ideias de Meyerhold, expressas num
excerto de 1909 do seu Diário do Autor, em que reconhece uma crise profunda da
produção teatral daquele momento: “[...] existe alguma coisa de original no teatro
russo contemporâneo? Não. Ele é todo uma costura de empréstimos. [...] Nós não
possuímos um teatro verdadeiro, contemporâneo!” (Meyerhold, 2012, p. 146-7).
Vygótski comenta, assim como Meyerhold, as relações entre teatro e vida social e
política a partir da comparação do contexto russo com a França pré-revolucionária. O
caso russo, diferentemente do francês, revela um estado de profunda alienação entre
essas esferas, visto que, uma análise das produções teatrais seria completamente
incapaz de antecipar os acontecimentos de outubro. Curiosamente, tanto Vygótski
quanto Meyerhold concordam que o problema do teatro pré-revolucionário estava
em seu “rebaixamento” ao gosto do espectador, no fato de, como afirma Blok, os
dramaturgos terem descido à vida cotidiana. Para Meyerhold, o dramaturgo havia se
tornado um servidor da sociedade:
[...] o teatro se tornou afinado com seu público, o dramaturgo se
fez servidor de seu amo. A literatura dramática contemporânea,
imprescindivelmente examinada, é composta ou de thèse ou de
ruminação literária, ou mesmo dramas sociais com o objetivo de
propaganda e agitação, de comédias escritas para fazer o público
rir das curiosas posições dos personagens ou ainda de pesquisas
psicopatológicas em forma dramática, de peças tão corriqueiras
que beiram a etnografia (Meyerhold, 2012, p. 146).
3
Cf., por exemplo, BRYUSOV, Valery. Realism and Convention on Stage. In: Russian Dramatic Theory from
Pushkin to the Symbolists, an anthology. Texas: University of Texas Press, 1981.
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Tal raciocínio suscita um questionamento: se havia coincidência entre teatro e
público, por que ele foi incapaz de antecipar um acontecimento que envolveu grande
participação popular e que foi resultado de profunda agitação social? Para compreender
essa suposta contradição, há que se levar em conta a existência de diferentes níveis de
interação entre arte e sociedade. No cerne dessa questão está a ideia de “cotidiano”,
que perpassa as teorias sobre a mise en scène e é quase uma constante nos textos
de Vygótski. O teatro naturalista meningeriano4, aquele que se limita a reproduzir
elementos superficiais do cotidiano, sua exterioridade, revela-se incapaz de captar o
que se passa num nível mais profundo da sociedade, seu Zeitgeist5·. A esse respeito,
assim se expressou o próprio Nemiróvitch-Dántchenko:
... imediatamente antes da revolução de outubro, nós estávamos
na mais profunda confusão, [...] nossa arte definhou. Ela não era
mais tão ardente e apaixonada como quando a havíamos criado.
Começamos a duvidar dela e de nós mesmos. Nossa vida política
era sem-graça. Nós havíamos perdido a audácia criativa, sem a
qual a arte não poderia progredir (apud Komissarjevski, 1959, p.
7).
Além do “marasmo ideológico”, Vygótski discute os aspectos formais das
encenações. Mesmo as experimentações pré-revolucionárias não são vistas como
produtoras de bons resultados. Considera, por exemplo, que o realismo espiritual
(dukhovnyi realism)6 de Stanislávski reduz a interpretação do ator a um experimento
psicológico, o que resulta no aniquilamento da própria arte. Assim, o realismo é rejeitado
tanto como modo de reprodução da realidade histórica quanto da psicológica.
Para Vygótski, o teatro simbolista, por sua vez, identifica teatro e lírica. Representa
4
Referência à Companhia de Meiningen, dirigida por Georg II, duque de Saxe-Meiningen, cujo ­naturalismo
inspirou inicialmente o Teatro de Arte de Moscou a reproduzir no palco uma determinada época histórica tão ­fielmente
quanto possível.
5
É possível estabelecer um estreito paralelo entre esta ideia e o método de reconstrução artística, ­proposto
pelo Teatro Antigo de Evréinov: “O encenador partidário desse método deve penetrar o espírito e o detalhe de
uma época histórica ao ponto de adquirir a maestria de um artista da época em questão, e não de um ­artista atual
­reproduzindo servilmente os detalhes tirados de livros ou da iconografia” (EVREÏNOFF, 1947, p. 386). Em que pese o
sucesso alcançado pelo Teatro Antigo na empreitada de reconstruir artisticamente a antiguidade ­grega, o que ­Vygótski
observa é a inexistência de um teatro que aplique semelhante método sobre o material da ­contemporaneidade, a
inexistência do artista da época em questão, isto é, da época pré-revolucionária.
6
O método de Stanislávski é descrito por Rosenfeld como um conjunto de “técnicas psicofísicas destinadas
a produzir a disposição emocional, o ‘estado anímico’ próprio para desempenhar, e respectivo papel com a máxima
verdade psicológica” (ROSENFELD, 2008, p. 113). Segundo Leach, “Stanislávski acreditava que a verdade interior
tornava-se acessível no palco quando o ator ‘vivia’ o papel. A ideia de ‘viver’ o papel, ou talvez ‘viver através do
­papel’ não é fácil. A palavra que Stanislávski usava para tal, perejivânie, já foi motivo de muita controvérsia: é muito
provável que Stanislávski tenha sido deliberadamente vago, uma vez que ele se referia a algo quase impossível de
se determinar, embora um ator que tenha vivenciado isso saiba exatamente o que significa. Tem a ver com criar e
vivenciar simultaneamente e também inclui uma forte sensação de estar ‘no presente’. O público sente isso como
uma comunicação imediata de uma experiência ‘sentida’” (LEACH, 2004, p. 24).
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estados de espírito, realiza um jogo impressionista com a sensibilidade do espectador,
e, ao voltar-se ao mundo interior, perde de vista um aspecto essencial do teatro, isto é
a própria ação dramática. A esse respeito, Vygótski e Briússov estão de acordo. Para o
poeta e teórico, as artes não se diferenciam pelos materiais que utilizam. Considerandose que nenhuma arte revela a realidade em sua totalidade, isto é, ela sempre a abrevia,
o que distingue as artes são os aspectos do mundo visível e do real que elas são aptas
a contemplar: “Assim como as formas estão para a escultura, a linha e a cor para a
pintura, a ação direta está para o drama e o palco” (Bryusov, 1981, pos. 4445).
Vygótski menciona ainda a expansão dos cabarés e dos teatros de miniaturas, os
quais assumiram a tarefa de oferecer entretenimento para o público. Também nesses
casos, a alienação em relação à vida social e política é flagrante. Por fim, o autor cita
alguns dos “insignificantes” textos montados às vésperas da revolução, de modo que a
crise do teatro pode ser sentida tanto no nível da encenação quanto no dramatúrgico
(literário).
Os ecos da revolução nos palcos russos são celebrados por alguns historiadores
do teatro. Rudnítski, por exemplo, fala sobre a intensificação do interesse pelo teatro
e o fato de os espetáculos terem passado a desempenhar um importante papel na
vida das pessoas. O mesmo autor cita um artigo de jornal de 1919, que atesta a
“sede insaciável pelo teatro e por suas comoventes impressões [...] o teatro se tornou
uma necessidade para todos” (Rudnitsky, 1988, p. 41). Por ser uma arte capaz de
estabelecer comunicação com todas as camadas populacionais, inclusive com o povo
iletrado, o teatro se mostrou um instrumento apto a desempenhar tarefas informativas
e/ou educativas, isto é, funcionar como uma espécie de veículo de comunicação
ou escola. Não por acaso, despertou interesse quase imediato no governo recémestabelecido. Os artistas do palco foram convocados a fazer parte do projeto socialista.
Já em janeiro de 1918, foi criada a seção teatral do Comissariado Popular para a
Educação (Narkompros), cuja principal tarefa consistia na “criação do novo teatro,
ligado à reconstrução do Estado e da sociedade conforme os princípios do socialismo”
(Rudnítski, 1966, p. 63). Komissarjévski, por sua vez, enaltece o impacto dos eventos
de outubro para o teatro, chegando a afirmar que “a revolução salvou o teatro russo”
(1959, p. 7). Desconsiderando os juízos de valor, a maioria parece concordar que o
movimento se deu das ruas para os palcos, a revolução conclamou o teatro e não o
contrário.
Vygótski, voz dissonante entre os nomes citados, tem uma resposta dura à
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pergunta sobre o que a revolução efetivamente ofereceu ao teatro: “Por enquanto,
nada. Ou quase nada”. O “quase” é explicado por três motivos. Em primeiro lugar, cita
a extinção da censura, que, apesar de ter sido um fato essencialmente positivo, foi
mal aproveitado pelos encenadores, os quais se limitaram a incorporar temas eróticos
e outras peças que não representaram um salto qualitativo no repertório. Além disso,
essa não foi uma condição absoluta, se lembrarmos que a seção teatral foi criada
para fomentar um novo teatro fundado nos princípios socialistas, com um repertório
“consoante com a revolução”7.
Em segundo lugar, cita o desenvolvimento dos teatros nacionais a partir da
Declaração dos Direitos dos Povos da Rússia de 1917, que foi “a expressão prática da
resolução comunista, formulada por Lênin, para a questão nacional, [e] desempenhou um
papel determinante na vida de todos os povos do país soviético para o desenvolvimento
de suas culturas e, em particular, de seus teatros” (Rudnítski, 1966, p. 61). Os teatros
nacionais trouxeram inovações ao mesmo tempo em que recuperaram tradições locais.
Por fim, Vygótski destaca a chegada do novo espectador, isto é, a radical mudança
na composição social do público que assistia às peças. O teatro pré-revolucionário era
“comercial” e “burguês”, feito por e para uma elite, que o financiava, e, por isso, seu
gosto o determinava. Ripellino, por exemplo, aponta a chegada do novo espectador
como um fenômeno decisivo para o desenvolvimento de novas formas no teatro: “Não
nos parece exagero afirmar que as experiências de esquerda respondiam no fundo a
uma exigência precisa por parte dos novos espectadores” (Ripellino, 1986, p. 114).
Todos esses fenômenos são, em certa medida, relativizados por Vygótski, para
quem o “alargamento” do campo teatral (em termos de público e de repertório)
proporcionado pela revolução não foi acompanhado de um “aprofundamento”. A
produção e o acesso se popularizaram, mas não se pode dizer que os resultados fossem
relevantes. O campo teatral se profissionalizou, ganhou mais espaços de debate e de
formação, mas os avanços do teatro, pelo menos até aquele momento, não foram
muito além de alterações exteriores, formais (como, por exemplo, a substituição
do hino imperial pela Internacional). De modo que, após a revolução, a busca por
reverberações do Zeitgeist na cena russa resultava apenas em “pistas exteriores,
insignificantes”. O teatro permaneceu, na visão vygotskiana, essencialmente o mesmo.
7
“Já nos primeiros anos da revolução, o teatro buscou envolver tudo numa linha que ligaria sua arte com a
­contemporaneidade. Assim nasceu a ideia de espetáculos ‘consoantes’ com a revolução. Os maiores artistas e ­coletivos
queriam responder, ainda que à distância, das profundezas dos séculos da história ou da ­transcendental ­distância
dos românticos, ao chamado da revolução. As respostas nem sempre foram corretas, às vezes a ­‘consonância’ com
a revolução se revelava extremamente relativa” (RUDNÍTSKI, 1966, p. 75).
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O repertório e as encenações alteram-se muito pouco8. Essa visão é compartilhada por
outros historiadores do teatro russo, e é aplicada especificamente aos grandes teatros
oficiais, não experimentais:
Palcos ilustres, como o Máli ou o Aleksandrínski, estorvados por
uma experiência já antiga, deixaram de apropriar-se do ardente
material da revolução. E o mesmo se deu com o Teatro de Arte,
que na pesquisa assídua da vida interior perdera o sentido do
espetáculo, ficando de lado naqueles dias de temerárias proezas
formais. Muitos teatros de direita empenharam-se em elevar-se
de particulares naturalísticos a um estilo patético e monumental,
que viesse de encontro aos acontecimentos grandiosos, e mais de
um procurou no trabalho dos clássicos analogias com o presente.
Não foram, contudo, os acolchoados teatros tradicionais, mas os
tumultuosos palcos de vanguarda que exprimiram o ímpeto e o
fervor da revolução. Os teatros conservadores pareciam então
uma desbotada relíquia de uma idade ultrapassada. (Ripellino,
1986, p. 113-4)
Vygótski apresenta uma visão bastante crítica do estado da arte dramática
no contexto imediatamente posterior à revolução de outubro. Fazem-se presentes
considerações sobre o teatro como instituição, como texto literário e como encenação.
O autor transita de forma livre por esses âmbitos, o que torna o objeto de sua crítica
indistinto, como ocorre com a afirmação sobre a falta de mérito do teatro russo anterior
à revolução. Não fica claro o que exatamente o autor quer dizer com o termo “teatro”:
tratar-se ia da instituição, do texto ou da encenação?
A crítica aos grandes teatros e aos estudos de Stanislávski sobre o trabalho do
ator e, em especial, ao realismo espiritual não dá devido crédito aos avanços por eles
produzidos, ao menos como etapas de um processo que levaria posteriormente aos
experimentos de vanguarda. Vale lembrar que o Teatro de Arte de Moscou não era uma
instituição única e de sentido unívoco, mera reprodutora de fórmulas preestabelecidas
de encenação. Com efeito, Meyerhold, que se tornaria um nome fundamental para
8
Rudnítski ressalta o aspecto positivo de tal condição: “Os espetáculos clássicos anteriores dos teatros ­antigos
permaneceram substancial e decisivamente os mesmos de antes. E precisamente esses espetáculos ­encontraram
aceitação profunda e viva entre os novos espectadores – eis o que importa! Aqui é evidente como o povo ‘tomou
em seu poder’ as grandes riquezas artísticas, criadas na época de sua escravidão e opressão. O novo espectador
sentiu as ideias libertárias e democráticas existentes em obras distantes (pelo seu conteúdo indireto) da ­realidade
revolucionária. Sentiu também que nas obras clássicas abria-se para ele um mundo de ideias e e
­
­xperiências
­profundas; essas obras introduziram as pessoas na esfera do belo, eram o princípio da escola estética do povo
vencedor, e nisso consistia a grande, gloriosa missão educativa dos antigos teatros realistas nestes primeiros anos
da revolução” (RUDNÍTSKI, 1966, p. 74-5). Considerando as posições de Vygótski sobre estética manifestadas em
outros momentos, em especial sua valorização dos clássicos, é possível supor que ele subscreveria a maior parte das
ideias de Rudnítski, particularmente no que se refere ao aspecto atemporal dos efeitos da arte. Contudo, no presente
texto, a discussão passa por outra questão, qual seja a capacidade de uma nova arte emergir de um contexto social
bastante específico, como o revolucionário.
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renovação das concepções do campo teatral, é filho do Teatro de Arte e desenvolveu o
Teatro-estúdio no interior deste.
A discussão levantada por Vygótski acerca da alienação do grande teatro
institucional russo em relação aos movimentos da sociedade da época que culminariam
na revolução e em relação a ela mesma é bastante pertinente e reveladora de tanto
da natureza do teatro de então quanto da dinâmica social russa. Há, não obstante, um
fator crucial para compreensão deste fenômeno que aparece apenas implicitamente
em Vygótski, qual seja: a marca social e de classe impressa no teatro pré-soviético.
Uma arte feita por e para elites dificilmente poderia ecoar e representar os anseios
e transformações pelas quais passavam as camadas mais populares. Nesse sentido,
Vygótski é bastante certeiro ao observar a chegada do novo público como uma das
principais contribuições da revolução.
Sua queixa de que as transformações proporcionadas pela revolução foram de
caráter superficial, ou seja, mais de alargamento do que de aprofundamento do campo
teatral, não é desprovida de sentido, mas talvez seja excessivamente rígida com um
processo ainda incipiente e de grande potencial renovador. O cerne dessa crítica é
postura do crítico social e politicamente engajado que vê sua atividade como a de um
mediador entre a arte e público, cujo objetivo final é o aperfeiçoamento tanto da arte
quanto da recepção estética. Tal atitude se mostra consistente com os demais trabalhos
de crítica do autor, que se revela uma voz militante da revolução, mas essencialmente
dialética e crítica. Se o establishment soviético reconheceu imediatamente a importância
do teatro para a revolução, Trotski, por sua vez, chamou atenção para o papel do crítico
na transformação social revolucionária:
O teatro está numa posição em particular difícil e não sabe para
onde vai nem o que mostrar. Nota-se que, como forma de arte,
talvez a mais conservadora, possui os teóricos mais radicais. Todo
mundo sabe que o grupo mais revolucionário na União da República
Soviética compõe-se dos críticos teatrais (Trotski, 2007, p. 185).
2.
O MISTÉRIO-BUFO, DE MAIAKÓVSKI, NA LEITURA DE VYGÓTSKI
Para Vygótski, a única exceção à “surdez” da dramaturgia em relação à revolução
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foi a peça Mistério-bufo de Maiakóvski9, à qual ele dedica a quarta seção de seu ensaio.
O subtítulo da peça (“Retrato heroico, épico e satírico da nossa época, feito por Vladímir
Maiakóvski”) confirma a pretensão do autor de representar a “mais contemporânea
contemporaneidade”. Vygótski apresenta uma síntese do enredo, entremeada pela
citação de alguns excertos. Essa sinopse é pontuada por breves, porém incisivos
comentários críticos, tais como: “Existe algo de alegórico e tendencioso na peça, que
é intolerável no palco”; “tudo o que existe de mistério na peça [...] é malsucedido,
racionalizado, escrito à thèse, de forma transparentemente alegórica”; “Essa pobreza
de espírito [...] é o aspecto ideológico da peça. Não existe espírito trágico nela”; e, por
fim:
É uma criação malsucedida de Maiakóvski: ele não se dá bem com
coisas alegres. Existem palavras, versos, cenas, características
alegres [...], mas a obra, como um todo, é malsucedida. No sentido
estritamente teatral, ela reinventa seus aspectos isolados: seus
próprios versos, a união do mistério com o bufo seria extremamente
significativa para o teatro se o mistério não fosse tão frágil.
Ripellino faz referência às “malévolas e violentas” críticas feitas à peça na
época. Um dos pontos criticados foi a interferência de temas e objetivos políticos no
teatro (algo que o próprio Maiakóvski admitia 10). Também foi considerada uma obra
inadequada ao proletariado, incompreensível. A acusação de que as experimentações
formais dos futuristas eram ininteligíveis para o novo público foi um verdadeiro fantasma
que acompanhou os artistas dessa tendência até os últimos dias do movimento. As
críticas de Vygótski, contudo, não coincidem exatamente com as avaliações de seus
contemporâneos. Estão mais próximas, talvez, de algo que poderia ser dito hoje em
dia:
Poucos de nós poderíamos agora aprovar uma partição esquelética
como aquela que divide a comédia de Maiakóvski. Os esquemas
aborrecem-nos, mesmo se revestidos de fantasias e metáforas.
E quem poderia convencer-nos de que o mundo seja claramente
divido em dois recintos opostos, de que uma linha precisa,
obsessiva, separe o preto do branco, a virtude do delito? Mas
naqueles dias os poetas e artistas gostavam de assumir o papel
9
Evidentemente, Vygótski comenta a primeira versão da peça, escrita em 1918 para o primeiro aniversário
da revolução. Outro ponto importante é que os comentários de Vygótski dizem respeito ao texto de Maiakóvski e não
à montagem, dirigida por Meyerhold, que estreou em novembro de 1918 no Teatro do Drama Musical.
10
Veja-se o programa escrito pelo próprio autor para a montagem de 1921: “Mistéria-Buf é a nossa grande
revolução, condensada em versos e em ação teatral. [...] Os versos de Mistéria-Buf são as epígrafes dos comícios, a
gritaria das ruas, a linguagem dos jornais. A ação de Mistéria-Buf é o movimento da massa, o conflito das classes,
a luta das ideias: miniatura do mundo entre as paredes do circo” (apud RIPELLINO, 1986, p. 77).
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de jogral, representando os homens e a vida com impiedosos
contrastes alegóricos, com uma grandiosa “moralidade” (Ripellino,
1986, p. 85).
Os comentários de Vygótski devem ser vistos como resposta aos primeiros
movimentos de um processo que ainda teria muitos desdobramentos, tratam-se
de observações preliminares sobre um fenômeno em curso. O autor demonstra ter
consciência disso ao iniciar a última seção de seu texto com uma pergunta: “Conclusões?”.
O ensaio, assim como os trabalhos que ele desenvolveria nos anos posteriores como
crítico teatral nos periódicos Nach ponediélnik e Poliésskaia pravda, são testemunhas
do interesse vivo de Vygótski pelo atual e pela produção contemporânea.
O crítico volta a fazer apontamentos sobre as relações entre arte e sociedade, ou
melhor, entre formas de arte e Zeitgeist. A revolução coloca um ponto final numa época
da história russa. Com isso, segundo o autor, as formas de arte nascidas no passado
começam a se desintegrar e morrer de causas naturais. Contudo, isso não significa que as
produções artísticas pré-revolucionárias fossem desaparecer ou perder sua relevância.
Vygótski faz uma distinção entre a “grande arte”, que é eterna, e as diferentes formas
de arte, que têm um ciclo de vida: “Cada época tem seu próprio teatro”. O crítico
também coloca os pingos nos “is” acerca do papel do artista. Ele é, simultaneamente,
homem de seu tempo (“suas criações são necessariamente marcadas pelo signo da
contemporaneidade”) e criador do novo (“não repete ou reproduz o antigo”). Inspirado
pelo espírito do tempo, o artista é aquele que cria novas formas para expressá-lo11.
Para transmitir essa ideia, Vygótski recorre ao provérbio “não se deve colocar vinho
novo em odre velho”, o mesmo, aliás, utilizado por Meyerhold, quando o diretor se vê
às voltas, em seu Diário do Autor, com o desafio imposto pelos novos tempos:
Deveria estar já há séculos consagrada a expressão “não despejar
vinho novo em garrafas velhas”. [...] Novos sumos na terra fresca
e cheirosa. O novo homem não começará a cultivar suas couves
nos “grandes teatros”. São nas “hortas” (“estúdios”) que nascerão
as novas ideias (Meyerhold, 2012, p. 134).
Somente Maiakóvski, com Mistério-bufo, fez um movimento nessa direção. Não
obstante, para Vygótski, a inexistência de um novo repertório, para o novo tempo, não
11
Ainda sobre a questão da encenação dos clássicos, Vássina afirma: “Ao se posicionar como criador do original e íntegro mundo cênico, o encenador não deixaria de buscar sua inspiração nas obras da literatura universal.
E talvez esta complexa dinâmica das inter-relações de diretores com o texto clássico seja um dos fatores mais que
significativos na formação de novo tipo de linguagem cênica desde o início do século passado até nossos dias e, em
especial, na Rússia” (VÁSSINA, 2011, p. 333).
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impede por si só o desenvolvimento da cena russa. Os clássicos, exemplos da grande
arte, são obras atemporais que as novas gerações devem redescobrir e reinventar
permanentemente. Isso porque, como descreve Rosenfeld, há uma diferença fundamental
entre literatura dramática e teatro (no sentido da encenação, ou encarnação sensível
dos elementos sugeridos pela palavra): “A indeterminação do esquema projetado pela
língua torna possível a grande flexibilidade do teatro vivo que pode preencher de mil
maneiras os vãos e vácuos deixados pelo texto, conforme a época, a nação, o gosto
específico do público local” (Rosenfeld, 2006, p. 36). O mesmo autor ressalta que ator,
diretor e público tomam parte nesse processo decisório que define a montagem (2006,
p. 27).
Aqui a discussão se transfere do campo da obra de arte propriamente dita, para
a esfera da recepção: “O leitor e o espectador recriam o poema. Cada época tem seu
Hamlet. A própria obra é somente uma possibilidade que o espectador, o leitor realiza
com seu trabalho criativo”. O tema da reação estética persistirá em Vygótski e se tornará
um dos eixos mais importantes de suas ideias sobre psicologia da arte. A compreensão
da reação estética como co-criação, isto é, como trabalho criativo, reaparecerá em
Psicologia da arte, de 1925, como se observa no seguinte excerto:
[...] a percepção da arte também exige criação, porque para essa
percepção não basta simplesmente vivenciar com sinceridade o
sentimento que dominou o autor, não basta entender da estrutura
da própria obra: é necessário ainda superar criativamente o seu
próprio sentimento, encontrar a sua catarse, e só então o efeito
da arte se manifestará na sua plenitude (Vigotski, 2001, p. 314).
Algumas tentativas de renovação são citadas por Vygótski, mas, para ele, elas
não são capazes de responder adequadamente, com força proporcional, ao chamado
da época revolucionária; o teatro produzido nesses primeiros momentos “não conhece
nenhum abismo do espírito, nenhum ápice, nenhum voo criativo, nem altura, nem
distância, nem amplitude, nem profundidade”, e o aparecimento de Mistério-bufo não
alterou essencialmente o estado das coisas. Para Vygótski, a peça de Maiakóvski chega
a apontar caminhos interessantes, como a mistura de mistério e bufonaria. Contudo, o
que torna a obra problemática é a transparência de sua alegoria: ao fim e ao cabo, o
mistério não é tão misterioso assim. Nesse sentido, a visão vygotskiana se aproxima do
que disse Chklóvski sobre a mesma peça: “Eu não considero que Mistério-bufo esteja
entre as melhores obras de Maiakóvski. O final da peça é, na minha opinião, fraco, não
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resultou bem” (Shklovsky, 2005, p. 30). Esses mesmos críticos, contudo, se mostram
distantes em um ponto específico do debate sobre as relações entre sociedade e arte.
Para Chklóvski, os pensadores da arte incorriam no grave erro de colocar no mesmo
patamar a revolução nas artes e a social, e imaginar que a nova arte deva corresponder
à ideologia da nova classe:
[...] esses autores supõem que as novas formas da vida cotidiana
criam novas formas de arte, ou seja, eles consideram a arte como
uma das funções da vida. […] A arte sempre esteve livre da vida.
Sua bandeira nunca refletiu as cores da bandeira que voa sobre o
forte da cidade. (SHKLOVSKY, 2005, p. 22).
Vygótski se mostra invariavelmente um defensor da autonomia do campo artístico.
Suas ideias estão alinhadas às de Chklóvski nesse sentido. Tal convergência não se
verifica em relação à seguinte afirmação de Chklóvski: “Novas formas aparecem na
arte para substituir formas antigas, que deixaram de ser artísticas.” (Shklovsky, 2005,
p. 23). A defesa de que a arte se desenvolve autotelicamente, isto é, como resposta
ao mundo artístico e não ao social difere da concepção vygotskiana presente neste
ensaio, segundo a qual existe um diálogo entre a esfera social e a artística. Mais tarde,
Vygótski voltará a esse tema na conclusão de Psicologia da arte, ao apresentar uma
síntese de suas reflexões sobre arte e vida. Defende que a arte é mais do que mero
ornamento, ela possui uma função social, atua como “um meio de equilibrar o homem
com o mundo nos momentos mais críticos e responsáveis da vida” (Vigotski, 2001,
p. 329). Assim, a reestruturação da sociedade, sua refundação em novos princípios,
gerará necessariamente novas manifestações estéticas. Mas de que tipo? Sua resposta
é incerta, ainda que a centralidade da arte nesse processo seja inequívoca:
Não se pode nem imaginar que papel caberá à arte nessa refusão
do homem, quais das forças que existem mas não atuam no nosso
organismo ela irá incorporar à formação do novo homem. Só não
há dúvida de que, nesse processo, a arte dirá a palavra decisiva
e de maior peso. Sem a nova arte não haverá novo homem. Não
podemos prever nem calcular de antemão as possibilidades do
futuro nem para a arte, nem para a vida; como disse Espinosa:
“Até hoje ninguém definiu aquilo de que o corpo é capaz” (Vigotski,
2001, p. 329).
Excesso de transparência alegórica na apresentação da ideologia e ausência de
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espírito trágico: assim é possível resumir a avaliação vygotskiana sobre o Mistériobufo. Considerando que o ensaio está fundado na ideia do diálogo entre fenômenos
artísticos e contexto sócio-histórico, e mais, tendo em vista a queixa do autor sobre a
inexistência de espírito trágico na peça analisada, vale a pena recuperar as palavras
de Rosenfeld acerca do tipo de contexto social que proporciona o desenvolvimento da
tragédia:
O surgimento da tragédia, na plenitude de suas implicações de fundo
e forma, é um fenômeno histórico intimamente relacionado com
determinadas condições socioculturais. [...] Sem que se possam
estabelecer teses muito rigorosas a esse respeito, parecem ­­imporse como fases mais propícias à tragédia aquelas em que uma certa
unidade de cosmovisão se desfaz ante o advento de atitudes,
crenças e filosofias novas, tidas como tão válidas como os valores
tradicionais. Não só a tragédia, mas o próprio gênero dramático
surge na Grécia no momento em que a unidade do logos, tal como
se exprime na epopeia (em que, contudo, não faltam elementos
trágicos), se decompõe no dia-logos, no espírito dividido de uma
civilização urbana e comercial diferenciada, de intensos contatos
nacionais e internacionais, mas, ainda assim, de fortes tendências
tradicionais (Rosenfeld, 2008, p. 71-2).
Dessa forma, ao afirmar que Mistério-bufo carece de espírito trágico, Vygótski
se manifesta tanto sobre a peça quanto sobre a própria revolução, de modo a deixar
implícito um paralelo entre contexto revolucionário e o tipo de configuração social que
gera o trágico, isto é, um momento de irrupção de ideias novas, desmantelamento de
paradigmas tradicionais, e, neste caso, rompimento radical com as estruturas sociais
em que se baseava a Rússia imperial. Visto sob esse prisma, verifica-se que a forma
do mistério se mostra inadequada, uma vez que esse gênero medieval, épico em sua
essência, tem por objetivo a encenação de episódios bíblicos por meio de quadros
ligados por um narrador (Pavis, 1999, p. 246). O mistério está organicamente vinculado
a uma visão de mundo religiosa que abarca e justifica todos os fenômenos12. Segundo
Rosenfeld, “há muita ingenuidade no teatro medieval, mas também uma certa grandeza
que decorre da unidade da cosmovisão de que todo o povo estaria profundamente
impregnado” (Rosenfeld, 2008, p. 90).
É preciso observar, contudo, que, para Vygótski, o social deve servir como
12
Ripellino, ao descrever o cosmismo, isto é, a tendência, surgida logo após a revolução, de buscar em personagens e episódios bíblicos paralelos com o momento que viviam, afirma que: “Havia naqueles dias, nos poetas e
nos homens de teatro, a febre de tecer afrescos monumentais, alegorias complicadas que refletissem os extraordinários acontecimentos da época. Olhavam ao longe, perdendo-se em ingênuas tramas de comparações e símbolos.”
(RIPELLINO, 1986, p 79).
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material a ser elaborado artisticamente e não refletido documentalmente, ou como
fonte de prescrições rígidas para a criação estética. Assim, a renovação das artes se dá
pela criação de novas formas artísticas. Neste ponto, convergem Vygótski, Chklóvski e
os próprios futuristas, cujo preceito norteador consiste em que “a nova forma gera o
novo conteúdo” (Shklovsky, 2005, p. 22), e para quem a novidade das formas coincidia
com a renovação política (Ripellino, 1986, p 71). Vygótski termina o ensaio invocando
o novo teatro. Ele acredita que a revolução convida à criação de uma arte popular,
um teatro que “chacoalhe a coxia” e “leve Shakespeare da sala para a rua”. Em certa
medida, tal conclamação à renovação encontra paralelo no endosso de Chklóvski aos
futuristas. Cada um, à sua maneira, parece levar por baixo das vestes “neutras” de
crítico a bandeira amarela do futurismo.
A sensibilidade estética de Vygótski, que pode ser comprovada em seus demais
escritos sobre arte, reconhece a novidade de Maiakóvski e de seu drama no contexto
revolucionário. Trata-se de uma obra altamente pertinente que busca resolver
artisticamente uma experiência tão radical quanto a revolução. Sua perspectiva é
construída por elementos contraditórios; toda peça é fundada em polos antagônicos,
como se observa na divisão dos personagens entre puros e impuros, mas também
desde o título: mistério versus bufo, épico versus contemporâneo.
Vygótski, como pensador dialético que é, valoriza a exposição e o confronto de
tais polos. Para ele, contudo, a falha de Maiakóvski está na conformação formal dessa
experiência social e histórica. A crítica de Vygótski tem em vista uma perspectiva sóciohistórica e é, antes de tudo, formal, ou seja, liga-se à questão dos gêneros literários.
Com efeito, a insolúvel contradição entre épico e contemporâneo torna a empreitada
maiakovskiana profundamente paradoxal desde sua concepção. Para Vygótski, falta
um elemento, o espírito trágico, que seria capaz de reorientar a peça e torna-la apta a
realizar seu intento de levar a revolução ao palco.
A definição de Peter Szondi (2001) do drama genuíno como sendo a forma poética
do fato presente e intersubjetivo, o “espelho de sua época”, em cujas personagens “se
espelha a camada social que forma como que a vanguarda do espírito objetivo” (Szondi,
2001, p. 100) parece, num primeiro momento, poder ser integralmente aplicada ao
retrato da contemporaneidade oferecido por Maiakóvski. O equívoco, segundo Vygótski,
estaria no enfoque épico. A mistura de gêneros que intervém no Mistério-bufo revela
um estágio ainda mais aprofundado da crise do drama de que fala Szondi (2001). A
vinculação entre tragédia e revolução feita por Vygótski não é inédita. Para Trotski, por
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exemplo, a arte socialista renovaria a tragédia (2007, p. 190), uma vez que “nossa
época volta a ser a dos grandes objetivos [...] Sua grandeza reside no esforço do homem
para libertar-se das nuvens místicas ou ideológicas a fim de construir a sociedade e a
si mesmo de acordo com um plano por ele elaborado” (Trotski, 2007, p. 189).
Entre os autores contemporâneos, Raymond Williams pondera que a revolução
é “trágica nas suas origens – na existência de uma desordem que não pode senão
comover e causar perplexidade -, é igualmente trágica na sua ação” (Williams, 2002,
p. 107). Ainda nas palavras de Williams:
Uma época de revolução é tão evidentemente uma época de
violência, deslocamento e de longo sofrimento que é natural
senti-la como uma tragédia, no sentido cotidiano da palavra. No
entanto, quando o evento se torna história, é normalmente visto
de forma inteiramente diversa. [...] uma revolução bem-sucedida,
poderíamos dizer, torna-se não uma tragédia, mas uma épica: é a
origem de um povo, e de um modo de vida pelo qual tem apreço.
Quando lembrado, o sofrimento é simultaneamente ou honrado ou
justificado. Aquela revolução específica, dizemos, foi uma condição
necessária da vida (Williams, 2002, p. 92).
Dessa reflexão formal e de gênero sobre o Mistério-bufo é possível extrair diferentes
visões e intenções em relação à arte e à revolução. Vygótski parece se interessar
pelo fenômeno social em curso e suas implicações diversas no campo político, moral,
humano. Já Maiakóvski, ao plasmar a experiência revolucionária na forma do mistério
e da épica tenta forjar a nova ordem revolucionária, a nova sociedade. A seu modo,
cumpre o papel do poeta descrito por Octávio Paz: “[...] frente ao desmantelamento do
cristianismo pela filosofia crítica, os poetas se convertem em canais de transmissão do
antigo espírito religioso, cristão e pré-cristão. Analogia, alquimia, magia: sincretismo e
mitologia pessoais” (Paz, 1984, p. 135). Maiakóvski, ao reunir o elemento religioso e a
bufonaria, encarna em seu drama a ambiguidade dos poetas, que, segundo Paz nem os
revolucionários nem os filósofos podem suportar13; os poetas
[...] vêem na magia e na revolução duas vias de paralelas, mas
não inimigas, para transformar o mundo [...] A vocação mágica da
poesia moderna, desde Blake até nossos dias, não é senão a outra
face, a vertente obscura, de sua vocação revolucionária. Este é
o nó que ninguém pode desfazer. Se o poeta renega sua metade
mágica, renega a poesia, transforma-se em um funcionário e
13
Segundo Trotski: “No mais amplo sentido filosófico, e não no sentido estreito de uma escola literária, pode-se dizer com segurança que a nova arte será realista. A Revolução não pode coexistir com o misticismo.” (TROTSKI,
2007, p. 184).
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em um propagandista. A magia, no entanto, devora seus fiéis, e
entregar-se a ela pode também levar ao suicídio. (Paz, 1984, p.
137-8).
De modo geral, o comentário de Vygótski sobre o lugar do espírito trágico na arte
revolucionária mostra-se relevante e provocador. Aqui não se tem a simples reprodução
da reabilitação da tragédia pela arte socialista anunciada por Trotski, até porque não
se trata, dessa vez, da tragédia propriamente como gênero. Para que se compreenda
a concepção vygotskiana do trágico é preciso ter em vista a distinção entre poética da
tragédia e filosofia do trágico (cf. Szondi, 2004, p. 24). Seu anseio está direcionado ao
fomento de uma arte que dê conta da complexidade do real e não que o simplifique. É
nesse sentido que deve ser compreendido o incômodo de Vygótski com certo “didatismo”
da peça de Maiakóvski. Contudo, como foi dito acima, sua intuição pode ter subestimado
o potencial da peça de Maiakóvski, mas não o do movimento futurista como um todo.
Por fim, o ensaio vygotskiano precisa ser colocado em perspectiva, uma vez que
trata de um processo em curso, sobre o qual pouco se pode concluir de definitivo. Ainda
assim, sua visada histórica e pensamento crítico resultam em considerações bastante
particulares e originais acerca das relações entre revolução e teatro, que continuariam
a se desenvolver em momentos subsequentes de sua obra e que se destacam das de
seus contemporâneos.
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