POR UMA ESTÉTICA DO FEIO: uma aplicação do conceito

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Ágora Filosófica
POR UMA ESTÉTICA DO FEIO:
uma aplicação do conceito de fealdade
aristotélica à realidade social atual
Prof. Dr. Marcos Roberto Nunes Costa1
Carlos Alberto Pinheiro Vieira2
Ricardo Evangelista Brandão3
Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar o conceito estético
de “fealdade”, contido na obra “A Poética”, de Aristóteles, tomando como
objeto de análise cenas fotográficas extraídas da realidade social atual, em
que, fazendo uma separação entre o belo em si e as regras artísticas (métrica,
simetria, harmonia etc.), podemos conceber cenas socialmente feias (miséria,
crueldade, descaso público) em belo artístico, o que resulta numa segunda
dissociação ainda mais perigosa, a saber: entre o belo e o bem em si, ou entre a
estética e a ética. Palavras-chave: Aristóteles, estética, feio, belo, ética.
Abstract: This Article aims at analyzing “ugliness” aesthetic concept, found
in “Poetics”, Aristotle’s Work that views, as an analysis object, photographical
scenes taken out actual social reality which through, introducing a separation
between beauty itself and artistic rules (metrics – symmetry – harmony and
so on) we can conceive socially ugly scenes (misery, cruelty, public uncare)
within artistic beauty, which results into a more dangerous second dissociation,
so to say between beauty itself and goodness itself or between Aesthetics and
Ethics. Key-words: Aristotle, Aesthetics, Ugliness, Beauty, Ethics.
Introdução
N
inguém contesta a genialidade do Pensamento Aristotélico,
porém, com o surgimento da Filosofia Contemporânea muitos questionam a relevância, na atualidade, de pensadores periodizados na Filosofia Antiga. A Filosofia, por si só, desses gênios
da humanidade possui elevada importância por sua profundidade abstrativa e coerência interna, porém, ao estudá-los, o desafio
permanece: até que ponto é possível fazermos aplicação deles na
complexidade do mundo hodierno?
No presente trabalho, partimos do pressuposto de que
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os escritos de filósofos como Platão, Aristóteles, Agostinho, etc.,
não só possuem valor enquanto filósofos de seu tempo, como em
muitos aspectos são, resguardando-se de exageros apaixonados,
perfeitamente atualizáveis na atualidade. Diante dessa premissa,
pretendemos, a partir do conceito de “fealdade aristotélica”, exposta na obra “A Poética”, de Aristóteles, fazer uma análise de
fotografias de fatos ou cenas sociais hodiernos que, apesar de demonstrarem explicitamente estados de misérias, crueldade, etc.,
nos tempos modernos, tornaram-se uma das muitas formas de representações artísticas, ou numa “estética do feio”.
1 Análise do conceito de fealdade aristotélica
Pontuando o contexto em que Aristóteles comenta acerca da “fealdade” em sua obra “A Poética”, encontramos-la num
trecho em que o estagirita teoriza a respeito das causas que geram
a poesia. Segundo ele, como a poesia é uma arte imitativa, essa
deve sua origem a uma tendência natural do homem, acentuada
por ele em duas causas: “O imitar é congênito, no homem [...] e
os homens se comprazem no imitado”4. E é aí que entra o conceito de “fealdade” que queremos utilizar como referência de nosso trabalho. Pois, segundo Aristóteles, os homens se comprazem
não só no belo, mas, principalmente, no feio: “Sinal disto é o
que acontece na experiência: nós contemplamos com prazer as
imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com
repugnância, por exemplo, as representações de animais ferozes
e de cadáveres”5.
Portanto, segundo o estagirita, as coisas que ao serem
contempladas imediatamente nos parecem feias e repugnantes,
quando mediadas pela representação artística, tornam-se aprazí-
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veis e agradáveis, fazendo assim uma dissociação entre a fealdade
da coisa em si (a realidade retratada) e a arte (regras artísticas).
É a partir de tal princípio que analisaremos as fotografias que
seguem.
1.1 A simetria como máxima de beleza, acima da realidade
Foto n. 01 – Mortos na Rua
Fonte: www.siriri.blogger.com.br/fotomortosmare.jpg
Na fotografia acima (n. 01), temos uma realidade extremamente feia ou cruel em que dois cadáveres humanos são expostos na rua, semelhante a cadáveres de dois animais jogados
ao lixo para apodrecer. No contexto da cena, observamos uma
senhora que passa com fria naturalidade, como se aquela realidade grotesca, violenta, animalesca, fizesse parte de seu cotidiano.
Possivelmente, ninguém, nem mesmo aquela senhora que aparece na cena, conseguisse enxergar essa realidade com prazer, ou
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considerá-la bela. Porém percebemos que, quando esse quadro
de horror é fotografado, o feio ganha certa dimensão artística de
beleza. Se observarmos a posição simétrica em que os dois corpos estão na foto, percebemos que estão em completa sintonia
um com o outro, semelhante a uma cena de balé clássico, como
também em sintonia com o chifre do bode, que possui a mesma
curva dos corpos, bem como com a forma circular da manilha. O
bode, por si só, com sua expressão imponente e ao mesmo tempo
relaxada por estar deitado, torna a cena ainda mais interessante.
Significativa participação tem a senhora, que não permaneceu no lugar para observar os mortos, mas continuou andando
para cuidar de sua vida, demonstrando que, apesar de tão cruel
cena, a vida continua. Portanto, como não dizer que, depois de
fotografada, aquela realidade se tornou artística, agradável, cheia
de significados e por que não dizer bela, chegando a sobrepor o
belo artístico à fealdade da realidade retratada.
1.2 Luz, cor e linhas como critério de beleza acima da realidade
Foto n. 02 – Manguezal do Espírito Santo
Fonte: www.proex.ufes.br/projetocaranguejo/albfotos/index
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Foto n. 03 – Manguezal do Espírito Santo
Fonte: www.proex.ufes.br/projetocaranguejo/albfotos/index
Foto n. 04 – Manguezal do Espírito Santo
Fonte: www.proex.ufes.br/projetocaranguejo/albfotos/index
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As fotos de número 02, 03 e 04 nos mostram a dura realidade de homens que encontram nos manguezais uma forma de
subsistência. Forma esta que mal dá pra sustentar suas famílias,
devido à baixa renda proporcionada pela venda do resultado da
lida. Os homens, para conseguirem realizar a pesca, têm necessariamente de se sujarem de corpo inteiro na lama, a qual, além de
naturalmente exalar um cheiro desagradável, com a crescente poluição dos esgotos domésticos despejados nos rios, torna-se ainda
mais podre ou mal cheirosa, causando em nós certa repugnância
ao sentir seu odor. Com toda certeza, realidades como esta pela
miséria que representam, mal cheiro exalado pela lama, humilhação por se sujar de lama em uma sociedade em que a mesma significa sujeira e degradação, como pelo fato de ser tão corriqueira
em nossos manguezais, dificilmente alguém as consideraria agradáveis ou belas.
Porém, quando essas supracitadas realidades são representadas artisticamente, a cena se torna agradável a nossa contemplação. Nas fotos n. 02 e 03, percebemos o foco que o artista
– o fotógrafo – ressaltou das raízes dos manguezais, que em suas
variadas linhas e tramas formam um desenho muito interessante.
Nas fotos 02, 03 e 04, a integração homem - natureza é tão grande
que não percebemos onde começa e termina homem, lama, manguezal e caranguejo, fazendo, de certa forma, com que a figura
humana se harmonize com o restante da cena. Nota-se também
que, nas supracitadas fotos, o brilho da lama é ressaltado como
um espelho negro resplandecente. As folhagens dos manguezais,
especialmente na fotografia n. 03, são ressaltadas: à direita do
pescador, folhas caídas na lama, mostrando que, em cima daquelas raízes pantanosas, há vasta folhagem e vida. Na mesma foto, o
braço do pescador estirado, escorando o corpo, confunde-se com
as muitas raízes aéreas que fazem parte da cena.
Outro fator que bastante impressiona nas fotos são as
expressões fisionômicas dos três pescadores: na fotografia n. 02,
é significativa a expressão do protagonista olhando para o caranguejo que, naquele momento, coroa seu esforço; na foto n. 03, o
pescador olha com atenção para a lama em busca de sua pesca,
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e o pescador da fotografia n. 04 mostra na foto todo seu esforço,
que quase o faz entrar na loca do caranguejo. As três fisionomias,
apesar das misérias, dos preconceitos de uma sociedade do ter
e não do ser, do descaso do Estado com os menos favorecidos,
revelam que, para eles, vale a pena viver. Quem poderia dizer que
essa dura e feia realidade, após retratada fotograficamente, não se
torna agradável e bela, como afirma nosso filósofo de Estagira?
1.3 As regras artísticas como um bem em si, desvinculado da
realidade
Foto n. 05 – Pontes do Recife - PE
Fonte: Fotografia de Carlos Alberto PinheiroVieira
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Foto n. 06 – Pontes do Recife - PE
Fonte: Fotografia de Carlos Alberto Pinheiro Vieira
Nas presentes fotos (n. 05 e 06), observamos que a realidade fotografada é tão comum nas pontes do Recife - PE que,
além de não enxergarmos beleza, por se tratar da parte inferior de
uma ponte, sentimos-nos muitas vezes com ojeriza ao cheiro de
putrefação que os rios do Recife, freqüentemente, exalam, devido
ao desembocar de esgotos e ao descaso da população que, não
raro, trata o rio como um lixão aquático.
Entretanto, a representação fotográfica, que, devido à
perícia e à criatividade do fotógrafo, ao buscar o ângulo mais
adequado, calibrar as objetivas e zoom da câmera para alcançar o
resultado por ele esperado, tornou aquela feia e comum paisagem
em algo agradável de se olhar, e, por que não dizer, bela.
Considerações finais
Todas as fotos apresentadas e comentadas em nosso tra136 - Universidade Católica de Pernambuco
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balho demonstram que a compreensão de Aristóteles a respeito do
feio e repugnante representado artisticamente é, perfeitamente,
atual. É claro que os tipos de expressões artísticas consideradas
pelo estagirita referiam-se à poesia e às artes plásticas, todavia,
resguardando-nos dos possíveis anacronismos, percebemos que
a fotografia moderna se encaixa perfeitamente nas considerações
aristotélicas.
Outros autores antigos, como Platão e Plotino, talvez
não resistissem a atualizações como as que fizemos no ramo da
Estética, por causa do mundo supra-sensível, que torna o belo
sensível distante do belo real, e o feio como uma defecção do
belo. Porém nos propomos aqui a aplicar a concepção de fealdade
artística aristotélica na hodiernidade, e acreditamos que o referido
propósito foi atingido.
Notas
Orientador dos alunos abaixo relacionados - Professor de Filosofia Patrístico/Medieval da UNICAP e do INSAF – Recife - Brasil, Líder do Grupo de
Estudos e Pesquisas em Filosofia Antiga e Medieval – GEPFAM/UNICAP/
CNPq, Presidente da Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval – SBFM
e Prof. dos Mestrados em Direito e Ciências da Religião da Unicap.
2
Graduando em Filosofia – UNICAP.
3
Graduando em Filosofia – UNICAP. Bolsista de Iniciação Científica da
FACEPE.
4
ARISTÓTELES. Poética. Trad. de Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 445. (Coleção Os Pensadores, vol. IV).
5
Ibid., p. 445.
1
Referências
ARISTÓTELES. Poética. Trad. de Eudoro de Souza. São Paulo: Abril
Cultural, 1973. (Coleção os Pensadores, vol. IV).
ALVES, André. Projeto caranguejo. Banco de dados. disponível em:
www.proex.ufes.br/projetocaranguejo/albfotos/index.htm. Acesso em: 2 de
dezembro de 2006.
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