160 J Bras Nefrol 2003;25(3):160-4 Transformação maligna de condiloma acuminado gigante em dois transplantados renais Malignant transformation of giant condyloma acuminatum in two renal transplant patients Ana Maria Marques Fracaroa, Dênis Rogério Aranha da Silvaa, Reinaldo Hideto Moriokaa, Alda Losi Guembarovskia,b, Vinicius Daher Alvares Delfinoa,b e Altair Jacob Mocelina,b a Hospital Evangélico de Londrina. Londrina, PR, Brasil. bUniversidade Estadual de Londrina. Londrina, PR, Brasil Condiloma acuminado. Transplante de rim. Imunossupressores. Neoplasia. Condyloma acuminatum. Kidney transplantation. Immunosuppressive agents. Neoplasm. Resumo A incidência de neoplasias é muitas vezes maior entre receptores de transplante renal do que na população geral. Relatamos os casos de dois pacientes transplantados renais com condilomas gigantes, um em região vulvar e outro em região ano-intestinal, sobre os quais se desenvolveram áreas de malignação. Ressaltamos a estreita relação entre infecção por HPV, condilomas acuminados e neoplasias ano-genitais e chamamos a atenção para a necessidade de avaliações periódicas nos transplantados renais, visando reduzir a incidência destes tipos de neoplasias. Abstract The incidence of cancer is many times higher among kidney graft recipients than in the general population. It is reported two cases of renal transplant patients with giant condylomas in the vulva and anointestinal region with superimposed areas of malignization. It is stressed the direct relationship between HPV infection and condylomas and anogenital malignancies and the attention is drawn to the need of periodic screening for renal transplant recipients to reduce the incidence of these neoplasms. I n t r o d u ç ã o A incidência de neoplasias em receptores de transplante de órgãos é muitas vezes maior do que a vista em controles. Esta maior incidência deve-se ao aumento de carcinomas da pele (21 vezes), linfomas não Hodgkin (28-49 vezes), carcinomas anogenitais (100 vezes) e sarcomas de Kaposi (400-500 vezes).1 Está relacionada ao uso de imunossupressores, os quais prejudicam a vigilância imunológica. Podem diretamente promover defeitos mutagênicos, e aumentam a suscetibilidade para vírus pró-oncogênicos,2 como, por exemplo, os papiloma vírus humanos (HPV). Os cânceres de pele são as neoplasias mais comuns em transplantados renais, sendo o espinocelular o tipo mais freqüente, seguido do basocelular.3 Apesar disto, certas áreas da pele dos transplantados renais, como a genitália externa e as regiões anal e perianal, ainda não recebem a devida atenção na literatura, mesmo que as incidências de tumores malignos nestas áreas sejam 25-100 vezes maiores do que nos controles.3 Em receptores de transplantes de órgãos, os cânceres de períneo e de vulva aparecem em indivíduos mais jovens; são freqüentemente multifocais e de comportamento agressivo e, em cerca de 60% dos casos, são precedidos pelo aparecimento de condi- Transformação maligna de condiloma - Fracaro AM et al loma acuminado, uma das manifestações cutâneas da infecção crônica pelo HPV.4 A combinação de hibridização in situ com a reação da cadeia da polimerase (PCR), técnicas de detecção tissular de HPV, é capaz de demonstrar a presença do vírus em cerca de 90% dos casos de neoplasias anogenitais em transplantados de órgãos.5 Apresentamos a seguir os casos clínicos de dois transplantados renais que apresentaram transformações malignas de lesões de condilomas acuminados gigantes, pretendendo alertar sobre esta possibilidade e fornecer dados sobre o manejo do condiloma acuminado nestes pacientes. Caso clínico 1 Paciente de 39 anos, branco, casado, transplantado com rim de cadáver há 16 anos por glomerulonefrite crônica, imunossuprimido com ciclosporina, azatioprina e prednisona, com creatinina de 2,5 mg/dL por rejeição crônica. Nove meses após ter abandonado seguimento com a nefrologia e uso dos imunossupressores, foi internado por fístula e abscessos peri-anais, com creatinina de 32 mg/dL (biópsia: rim terminal por rejeição crônica). Colonoscopia evidenciou múltiplas fístulas e lesões verrucosas exuberantes ao longo de reto-sigmóide e cólon descendente, condilomas acuminados à biópsia. Foram feitos colostomia e desbridamento cirúrgico parcial das lesões condilomatosas que se estendiam além do trato gastrointestinal para a região retro-sacral. Durante a evolução, apresentou vários episódios de enterorragia, tendo sido submetido a vários desbridamentos cirúrgicos. No último, 10 meses após o seu retorno à hemodiálise, um dos fragmentos removido dos condilomas continha, além do efeito citopático viral, carcinoma epidermóide. Reação da cadeia da polimerase, PCR, utilizando sondas para HPV 6, 11, 16, 18, 31, 33, foi positiva para HPV 6 e 11. Agora, seis meses após este diagnóstico, apresenta ocasionalmente enterorragias de pequena monta, sem necessidade de intervenção cirúrgica. Paciente nunca apresentou condiloma acuminado externamente em região anogenital e admitiu relações hetero e homossexuais receptivas nos últimos oito anos, com vários parceiros, e sem utilização de condoms. Sorologias repetidas para o vírus da imunodeficiência humana, bem como para sífilis, foram negativas. Caso clínico 2 Paciente afro-brasileira de 32 anos, renal crônica por nefrite lúpica, foi transplantada, aos 12 anos, com J Bras Nefrol 2003;25(3):160-4 161 rim da mãe, o qual durou sete anos (rejeição crônica). Após quatro anos de hemodiálise, recebeu rim de cadáver, sob tríplice imunossupressão. No primeiro mês pós-transplante, rejeição córtico-resistente tratada com OKT3, ficando a creatinina basal em 1,2 mg/ dL. Quatro anos após, foram evidenciadas pequenas lesões vegetantes em região vaginal e perianal (condiloma acuminado), removidas cirurgicamente e tratadas com podofilina. Um ano após, aparecimento de condiloma acuminado gigante comprometendo vulva, mucosa vaginal e cervical, e região perianal. Azatioprina foi removida e a dose de ciclosporina reduzida à metade. Durante os dois anos seguintes, as lesões condilomatosas foram recidivantes e tratadas com exéreses, cauterizações e aplicações tópicas de podofilina, até que um dos fragmentos condilomatosos removidos da vulva mostrou carcinoma in situ. A Figura 1 apresenta o efeito citopático viral na lesão papilomatosa e a Figura 2 mostra a transformação cancerosa. PCR feita no tecido neoplásico utilizando sondas para os subtipos de HPV descritos no caso 1 foi negativa. Vulvectomia simples com margem de segurança foi realizada e, com anuência da paciente, ciclosporina foi descontinuada, ficando mantida apenas a prednisona. Cerca de um mês após a vulvectomia, documentou-se recorrência local do carcinoma epidermóide, sendo nova remoção cirúrgica necessária. Após isto, houve progressivamente redução no ritmo de aparecimento de novas lesões condilomatosas e atualmente, nove anos após o seu segundo transplante e 2 anos após a quase completa remoção Figura 1- Biópsia de lesão condilomatosa vulvar da paciente 2 mostrando intenso efeito citopático viral (seta indica extensa área de vacuolização citoplasmática na epiderme). Aumento de 31,3 vezes. Tamanho da barra: 100 µm. 162 J Bras Nefrol 2003;25(3):160-4 Figura 2 - Área de malignização (carcinoma epidermóide in situ) de lesão condilomatosa vulvar da paciente 2. Aumento de 31,3 vezes. Tamanho da barra: 100 µm. da imunossupressão, a creatinina sérica persiste em 1,2 mg/dL. A paciente relatou que, antes do aparecimento das lesões condilomatosas anogenitais, mantinha relacionamentos sexuais com parceiros distintos, sem uso de métodos de proteção por barreira. Sorologias para HIV e sífilis foram negativas. D i s c u s s ã o Verrugas e condilomas anogenitais, cujo modo de transmissão mais freqüente é o sexual, são estreitamente ligadas à infecção crônica pelo HPV, dos quais mais de 90 subtipos já foram identificados.6 As infecções anogenitais pelo HPV são freqüentemente assintomáticas e cerca de apenas 1% delas resultam em lesões clinicamente aparentes, a maior parte benignas e relacionadas aos HPV subtipos 6 e 11. Estima-se que para cada caso clínico de infecção anogenital crônica pelo HPV existam 15 subclínicos.7 Sobre o papel do HPV no câncer cervical, Franco assinala que a Organização Mundial de Saúde (OMS) classifica a infecção por HPV como carcinogênica para humanos (tipos 16 e 18) provavelmente carcinogênica (tipos 31 e 33) e possivelmente carcinogênica (outros tipos de HPV, exceto tipos 6 e 11).8 Wallin demonstrou que o desenvolvimento de novo câncer cervical foi precedido em 77% dos casos pela persistência de um mesmo determinado subtipo de HPV no cérvix uterino das acometidas, sendo os subtipos encontrados 16, 18, 31 e 33.9 Grandes estudos internacionais demostraram que o DNA do HPV Transformação maligna de condiloma - Fracaro AM et al está presente em 99,7% dos casos de câncer do cérvix uterino quando se utilizam técnicas aprimoradas de PCR. Estes achados apontam para o fato da infecção pelo HPV ser necessária para o aparecimento da neoplasia cervical e possuem implicações para a prevenção desta.8 Vários estudos relatam aumento na ocorrência de neoplasias anogenitais em transplantados de órgãos,3,5,10-12 com mulheres sendo 2,5 vezes mais acometidas que homens.3 A exemplo do que ocorre em pacientes imunocompetentes, o HPV é encontrado quase na totalidade destas neoplasias.3,5,8,10-12 O HPV não é sensível aos antivirais disponíveis. Portanto, o manejo dos condilomas acuminados costuma ser feito com cauterizações químicas com podofilina, extrato purificado de podofilina ou ácido tricloroacético. Pode-se, ainda, utilizar topicamente um modificador da resposta imune (imiquimod) e, em casos selecionados, realizar injeção intralesional ou sistêmica de interferons. Nos casos de insucesso terapêutico ou na dependência da localização, as lesões condilomatosas podem ser removidas cirurgicamente, eletrocauterizadas, cauterizadas a frio ou por laser.13 Dependendo da agressividade viral e da imunidade local e sistêmica, recidivas podem ocorrer. Em transplantados de órgãos com condilomas recidivantes, particularmente quando de malignização local, a redução/descontinuação da imunossupressão é medida útil, mas acarreta risco da rejeição do órgão.3 Em nossos casos de transplantados renais com transformações neoplásicas em condilomas acuminados gigantes, documentamos, no primeiro caso, a presença do HPV 6 e 11, considerado pela OMS como não carcinogênicos. Não conseguimos identificar a presença de HPV no segundo, embora também neste último tenha sido evidente a presença do efeito citopático viral (Figura 2). Lesões papilomatosas de transplantados de órgãos podem ser causadas por subtipos incomuns de HPV e vários subtipos podem estar presentes na mesma lesão condilomatosa,14 fazendo com que a técnica de PCR utilizada, embora seja suficiente para o estudo do HPV em lesões condilomatosas em indivíduos imunocompetentes, não tenha apresentado a sensibilidade necessária nos casos aqui relatados. No primeiro caso, o encontro de condilomas acuminados gigantes e múltiplos que sem se exteriorizarem pela borda anal estendiam-se do reto ao cólon descendente, promovendo fístulas intestinais e ocupando grande parte do espaço retro-cecal, foram pro- Transformação maligna de condiloma - Fracaro AM et al vavelmente decorrentes da transmissão sexual do HPV para um indivíduo imunocomprometido. Não encontramos na literatura médica, utilizando as bases de dados Medline e Lilacs, relato semelhante em transplantados de órgãos. De fato, transmissão sexual infecciosa foi mostrada ser causa importante de câncer epidermóide anoretal em imunocompetentes, sendo o HPV encontrado em 84% destas lesões.15 Um papel do HPV na patogênese do câncer de pele tem sido sugerido, havendo relatos de maior ocorrência de câncer anogenital em transplantados renais com antecedentes de carcinomas epidermóides ou basocelulares em outras localizações.11 Numa panorâmica mundial, o câncer do cérvix uterino é o segundo câncer mais freqüente em mulheres, com uma estimativa de 468.000 casos e 233.000 mortes no ano de 2000. Cerca de 80% desses casos foram registrados em países em desenvolvimento.16 Penn relata que estudos epidemiológicos estimam incidência 14-16 vezes au- J Bras Nefrol 2003;25(3):160-4 163 mentada deste câncer nas receptoras de transplantes de órgãos.1 Certamente, para a prevenção da neoplasia do colo uterino, e por inferência para as demais neoplasias anogenitais, deve-se tentar evitar a disseminação da infecção anogenital pelo HPV. Para isto, é sugerido o uso de condoms, diafragmas e a redução no número de parceiros sexuais.8 Muito recentemente, Koutsky et al comprovaram completa eficiência de uma vacina contra o HPV16 em mulheres imunocompetentes. Tal agente, dentre os mais de 30 subtipos de HPV que infectam a genitália humana, é o mais comumente ligado ao câncer do cérvix uterino, estando presente em 50% desses casos. Este achado representa uma esperança para a redução na infecção pelo HPV e no câncer anogenital.17 Para todas as mulheres sexualmente ativas, recomenda-se feitura anual de exame de Papanicolaou e, nos casos suspeitos, colposcopia e biópsia dirigida. 8 Para mulheres transplantadas, alguns autores advogam Papanicolaou semestralmente e colposcopia anualmente.12 R e f e r ê n c i a s 1. Penn I. De novo cancers in organ allograft recipients. Curr Opin Org Transplant 1998;3:188-96. 2. Coutinho HM, Groothoff JW, Offringa M, Gruppen MP, Heymans HSA. De novo malignancy after paediatric renal replacement therapy. Arch Dis Child 2001;85(6):478-83. 3. Penn I. Skin disorders in organ transplant recipients: external anogenital lesions. Arch Dermatol 1997;133(2):221-3. 4. Penn I. Cancers in renal transplant recipients. Adv Ren Replace Ther 2000;7(2):147-56. 5. Euvrard S, Kanitakis J, Chardonnet Y, Noble CP, Touraine JL, Faure M et al. 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