Fundação Perseu Abramo Instituída pelo Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996. Diretoria Ricardo de Azevedo – Presidente Selma Rocha – Diretora Flávio Jorge Rodrigues da Silva – Diretor Editora Fundação Perseu Abramo Coordenação Editorial Flamarion Maués Editora Assistente Sandra Brazil Revisão Maurício Balthazar Leal Capa Eliana Kestenbaum Editoração Eletrônica Enrique Pablo Grande Impressão Bartira Gráfica 1a edição: junho de 2007 Todos os direitos reservados à Editora Fundação Perseu Abramo Rua Francisco Cruz, 224 04117-091 — São Paulo — SP — Brasil Telefone: (11) 5571-4299 – Fax: (11) 5571-0910 Correio eletrônico: [email protected] Visite a página eletrônica da Fundação Perseu Abramo http://www.fpabramo.org.br Copyright © 2007 by autores ISBN 978-85-7643-038-4 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C977 Curso de formação em política internacional / [organização de] Mila Frati. – São Paulo : Editora Fundação Perseu Abramo, 2007. 288 p. ISBN 978-85-7643-038-4 1. Política internacional. 2. Ásia – Europa – América – Oriente Médio – África. 3. Capitalismo. 4. Relações internacionais. 5. Movimentos sociais. 6. Política de esquerda.. I. Frati, Mila. CDU 327 CDD 327 (Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo – CRB 10/1507) Curso de Formação em Política Internacional.p65 2 5/6/2007, 12:39 Sumário Apresentação .............................................................................................. 5 Mapas – organização política 2007 ............................................................. 7 A teoria, as instituições e os grandes temas das relações internacionais ....................................... 15 Kjeld Jakobsen Retalhos para uma história dos movimentos contra a globalização neoliberal ................................................................ 35 Gustavo Codas Capitalismo, imperialismo e relações internacionais ................................. 54 Valter Pomar A evolução histórica da Europa ................................................................ 75 Kjeld Jakobsen Um olhar sobre a Ásia .............................................................................. 92 Wladimir Pomar Um olhar sobre a Índia ............................................................................ 108 Wladimir Pomar A Santa Rússia: Modernização e atraso ................................................. 126 Daniel Aarão Reis Filho O petróleo do Golfo Pérsico, ponto-chave da estratégia global dos Estados Unidos ................................................. 147 Igor Fuser 3 Curso de Formação em Política Internacional.p65 3 5/6/2007, 12:39 Curso de formação em política internacional Altos e baixos na África Austral ............................................................. 165 Beluce Bellucci A América Latina na história do capitalismo .......................................... 184 Roberto Regalado A trajetória do Brasil: Construção nacional e inserção internacional ..... 203 Alexandre Fortes A política internacional do Brasil e suas fases........................................ 219 Paulo Fagundes Visentini Rupturas e continuidades da política comercial do governo Lula .......... 247 Fátima V. Mello Integração regional e construção da democracia na América do Sul .... 263 Ana Maria Stuart Livros indicados ....................................................................................... 281 Filmes indicados ...................................................................................... 287 4 Curso de Formação em Política Internacional.p65 4 5/6/2007, 12:39 Curso de formação em política internacional Prefácio Apresentação A Fundação Perseu Abramo e a Secretaria de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores (PT), com apoio da Secretaria Nacional de Formação Política do PT e da Fundação Rosa Luxemburgo, da Alemanha, organizaram o Primeiro Curso de Formação em Política Internacional. Realizado de 15 a 30 de julho de 2007, na cidade de São Paulo, o curso tem como objetivos estudar e refletir sobre: a) a situação internacional, seus principais conflitos e debates; os principais países, as instituições internacionais e o comércio internacional; o debate sobre os grandes temas internacionais: meio ambiente, energia, migrações; b) a situação atual da luta dos trabalhadores, em suas várias dimensões; os partidos políticos, as organizações internacionais, os movimentos sociais e as centrais sindicais; o Fórum Social Mundial; os governos de esquerda e progressistas; c) o surgimento, a evolução e o estágio atual do capitalismo, dando ênfase aos debates atuais sobre o imperialismo, a globalização, a mundialização e a financeirização; d) a evolução histórica e a situação das grandes regiões do mundo: Estados Unidos, Europa, Eurásia, Oriente Médio, África, América Latina e Caribe; e) as relações Estados Unidos/América Latina; f ) a evolução histórica do Brasil, as grandes correntes da política externa no Brasil, a política externa e a política comercial do governo brasileiro; g) os nacionalismos, os socialismos, o internacionalismo hoje e a integração do continente americano. Os professores convidados a tratar destes temas foram também convidados a contribuir para este livro, que tem portanto como objetivo principal subsidiar o Primeiro Curso de Formação em Política Internacional. 5 Curso de Formação em Política Internacional.p65 5 5/6/2007, 12:39 Curso de formação em política internacional Entretanto, dada a qualidade das contribuições, esta coletânea possui também um valor autônomo e pode servir para a auto-formação de todos aqueles que não tiveram a oportunidade de participar do curso. Além dos textos, foram incluídos nesta edição mapas da organização política de todos os continentes, um mapa-múndi e duas listas com livros e filmes indicados, que destacam obras de ficção e abordam, de forma geral, os temas do curso. Trabalharemos para que, ao longo dos próximos anos, possamos realizar novos cursos de formação (inclusive a distância), bem como produzir novas publicações (livros e vídeos) acerca dos grandes temas mundiais, da política externa do Brasil e da política de relações internacionais da esquerda. Ricardo de Azevedo, presidente da Fundação Perseu Abramo Valter Pomar, secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores 6 Curso de Formação em Política Internacional.p65 6 5/6/2007, 12:39 Curso de formação em política internacional 7 Curso de Formação em Política Internacional.p65 7 5/6/2007, 12:39 DO SUL Curso de formação em políticaAMÉRICA internacional AMÉRICA CENTRAL Caracas Georgetown Paramaribo Caiena SURINAME Guiana Francesa (FRA) VENEZUELA GUIANA Bogotá COLÔMBIA Equador Quito EQUADOR PERU BRASIL Lima La Paz Brasília BOLÍVIA Sucre d Trópico e C a p ri c ó PARAGUAI Assunção r nio CHILE OCEANO ATLÂNTICO OCEANO PACÍFICO Santiago Buenos Aires ARGENTINA URUGUAI Montevidéu Ilhas Falkland (Ilhas Malvinas) (RU) Port Stanley RU - REINO UNIDO FRA - FRANÇA 0 ANTÁRTIDA km 8 Curso de Formação em Política Internacional.p65 8 410 5/6/2007, 12:40 820 Curso de Formação em Política Internacional.p65 9 AMÉRICA DO NORTE E AMÉRICA CENTRAL C í rc ÁSIA ulo OCEANO GLACIAL ÁRTICO EUROPA Po lar Groenlândia (DIN) Á rt i co Alasca (EUA) ÁFRICA B ESTADOS UNIDOS A H A G R A N Havana S Trópico de Cânce r D E CUBA S A CANADÁ AMÉRICA DO NORTE Ilhas Cayman (RU) GUATEMALA Guatemala Ottawa ESTADOS UNIDOS L H Aruba (HOL) NICARÁGUA Manágua Lago de Nicarágua Port of Spain TRINIDAD E TOBAGO COSTA RICA Panamá 0 465 km 5/6/2007, 12:40 OCEANO ATLÂNTICO Cidade do México AMÉRICA CENTRAL 9 0 635 km 1270 AMÉRICA DO SUL ANTÍGUA E BARBUDA St. John’s Guadalupe Basseterre (FRA) Montserrat (RU) DOMINICA Martinica Roseau (FRA) PEQUENAS SANTA LÚCIA Castries ANTILHAS BARBADOS Bridgetown Antilhas SÃO VICENTE Holandesas E GRANADINAS Kingstown (HOL) St. George’s GRANADA SÃO CRISTÓVÃO E NÉVIS MAR DAS ANTILHAS (MAR DO CARIBE) PANAMÁ MÉXICO S Porto Rico (EUA) Santo Domingo San Juan San José OCEANO PACÍFICO Washington A REPÚBLICA DOMINICANA Kingston HONDURAS Tegucigalpa San Salvador EL SALVADOR Porto Príncipe Curso de formação em política internacional Belmopan BELIZE Ilhas Virgens Americanas Ilhas Virgens Britânicas Anguilla (RU) Ilhas Turks e Caicos (RU) N T I HAITI JAMAICA AMÉRICA DO NORTE M Nassau OCEANO PACÍFICO OCEANO ATLÂNTICO A Golfo do México RU - REINO UNIDO EUA - ESTADOS UNIDOS FRA - FRANÇA DIN - DINAMARCA HOL - HOLANDA Curso de formação em política internacional ÁFRICA EUROPA Argel TUNÍSIA MARROCOS Ilhas Canárias (ESP) MA Túnis Rabat Madeira (POR) RM ED IT A R R ÂNEO Trípoli Cairo El Aaiun ARGÉLIA SAARA ÁSIA LÍBIA Trópico de Câncer OCIDENTAL EGITO R MA RM VE MAURITÂNIA MALI NÍGER CHADE Bissau GUINÉ-BISSAU GUINÉ Conacri SERRA LEOA Freetown BURKINA Niamei FASSO Uagadugu COSTA DO MARFIM Monróvia LIBÉRIA Yamoussoukro GANA Bamaco TOGO BENIN Praia Dacar SENEGAL Banjul GÂMBIA HO Nuakchott EL CABO VERDE ERITRÉIA Djibuti NIGÉRIA Adis-Abeba Abuja Porto Novo Malabo GUINÉ EQUATORIAL Equador DJIBUTI SUDÃO Ndjamena Lomé Acra Asmará Cartum São Tomé SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE REPÚBLICA CENTRO- CAMARÕES ETIÓPIA SOMÁLIA Bangui AFRICANA Iaundé UGANDA GABÃO CONGO Brazzaville REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO Mogadíscio QUÊNIA Campala Libreville Nairóbi Kigali RUANDA OCEANO ÍNDICO Bujumbura BURUNDI Kinshasa OCEANO ATLÂNTICO TANZÂNIA Daar es Salaam Luanda Moroni ANGOLA Lilongüe MALAUÍ ZÂMBIA COMORES Lusaka Ilha Sta. Helena (RUN) Harare MOÇAMBIQUE ZIMBÁBUE Antananarivo NAMÍBIA Windhoek Trópico de Vitória ILHAS SEICHELES Capricórnio MADAGÁSCAR BOTSUANA Gaborone Pretória Maputo Mbabane SUAZILÂNDIA Maseru LESOTO Port Louis MAURÍCIO St. Denis Ilha da Reunião (FRA) Bloemfontein ÁFRICA DO SUL Cidade do Cabo 0 625 1250 POR - PORTUGAL ESP - ESPANHA km 10 Curso de Formação em Política Internacional.p65 10 5/6/2007, 12:40 Curso de formação em política internacional ÁSIA d e B e ri n g Estreito C í r c u l o P o l a r Á r ti c OCEANO ATLÂNTICO OCEANO GLACIAL ÁRTICO MAR DA SIBÉRIA o MAR DE BARENTS MAR DE BERING MAR DE LAPTEV MAR DE KARA MAR DE OKHOTSK FEDERAÇÃO RUSSA (parte asiática) EUROPA E DI M AR M MA RN EG Astana  TURQUIA R CÁSPIO RR NE (parte asiática) Nicósia CHIPRE LÍBANO Beirute SÍRIA Telaviv Damasco ISRAEL Amã IRAQUE EGITO ico de M AR Tró p JORDÂNIA Câ er KUWAIT UZBEQUISTÃO Ashkhabad Bagdá VERMELHO Riad MONGÓLIA Pequim TURCOMENISTÃO Tashkent Teerã Basra nc CORÉIA DO NORTE Pyongyang Seul CORÉIA DO SUL Ulan Bator CAZAQUISTÃO MAR DE ARAL MA O (parte asiática) MAR DO JAPÃO (MAR DO LESTE) R O TE Ancara Cidade de Kuwait IRà BAREIN Bishkek QUIRGUISTÃO Dushanbe TADJIQUISTÃO IÊMEN CHINA OCEANO PACÍFICO Taipé NEPAL Nova Délhi TAIWAN BUTÃO Timfu Katmandu Macau Hong Kong BANGLADESH Daca ÍNDIA MAR DO SUL DA CHINA LAOS Vientiane Baía de Bengala Ilhas Socotra (IEM) Hanói MIANMAR Golfo de Áden ÁFRICA Tóquio MAR AMARELO Cabul AFEGANISTÃO Islamabad Manama CATAR Doha PAQUISTÃO Abu Dhabi ARÁBIA EMIRADOS SAUDITA ÁRABES Mascate UNIDOS MAR DA OMà ARÁBIA Sanaa JAPÃO Yangun TAILÂNDIA FILIPINAS Manila VIETNà Bangcoc CAMBOJA Phnom Penh Equ ado r Bandar MALDIVAS I M A L Á S I A Kuala Lumpur S Cingapura CINGAPURA 0 815 1630 km OCEANO ÍNDICO A BRUNEI Seri Begawan SRI LANKA Colombo Male I IEM - IÊMEN N D O Jacarta N É TIMOR LESTE Dili OCEANIA 11 Curso de Formação em Política Internacional.p65 11 5/6/2007, 12:40 Curso de formação em política internacional OCEANIA MAR DO JAPÃO (MAR DA CHINA) OCEANO ÁSIA PA C Í F I C O Ilhas Ogasawara (JAP) MAR DO SUL DA CHINA Guam (EUA) Trópico de Câncer Ilhas Marianas do Norte (EUA) Saipan Hagatna Ilhas Marshall DalapUliga-Darret Koror Palikir PALAU Havaí (EUA) Ilhas Wake (EUA) Honolulu M I C R O N É S I A Bairiki Equador Yaren NAURU PAPUA NOVA GUINÉ K I R I B A T I TUVALU Port Moresby MAR DE CORAL Toquelau (NZL) Samoa Ilhas Wallis SAMOA Americana (EUA) e Futuna Ápia (FRA) Pago Pago I l h a s VANUATU Cook Suva Porto-Vila TONGA Niue (NZL) (NZL) Nova Caledônia Alofi (FRA) FIJI Avarua Nukualofa Nouméa Honiara Ilhas Salomão Fongafale Polinésia Francesa (FRA) Papeete Trópico de Capricórnio Ilhas Pitcairn (RU) Adamstown AUSTRÁLIA Canberra MAR DA TASMÂNIA Wellington OCEANO ÍNDICO NOVA ZELÂNDIA RU - REINO UNIDO EUA - ESTADOS UNIDOS FRA - FRANÇA DIN - DINAMARCA HOL - HOLANDA JAP - JAPÃO NZL - NOVA ZELÂNDIA 12 Curso de Formação em Política Internacional.p65 12 5/6/2007, 12:40 0 700 km 1400 Curso de formação em política internacional EUROPA Cí rc ul o Po la r Ár tic OCEANO GLACIAL ÁRTICO o MAR DE BARENTS Reykjavik MO ISLÂNDIA E NT S ÁSIA AIS UR MAR DA NORUEGA SUÉCIA FINLÂNDIA NORUEGA OCEANO ATLÂNTICO Helsinque Oslo O Estocolmo ÁL TIC MAR DO NORTE RU REINO IRLANDA Dublin UNIDO Copenhague MA DINAMARCA R ESTÔNIA Riga C an a l a da M nc ha POLÔNIA Berlim Bruxelas Kiev Praga LUXEMBURGO Luxemburgo FRANÇA UCRÂNIA RTC ESL Bratislava Viena Berna LCH ÁUSTRIA Liubliana ESV HUNGRIA ITÁLIA ANDORRA PORTUGAL SAN MARINO San Marino Cidade de Mônaco Andorra la Vella Zagreb Vaticano Sardenha M A R M E D I T MAR TIRRENO MAR JÔNICO R 770 R ÁFRICA 385 SÉRVIA GEÓRGIA Bucareste MAR NEGRO BULGÁRIA DR MONTENEGRO Sófia Podgorica IÁ T ICO Tirana Skopje MACEDÔNIA ALBÂNIA GRÉCIA N AZERBAIJÃO ARMÊNIA Yerevan AZERB. ÁSIA M Nicósia MALTA Valletta  Baku Tbilisi TURQUIA (parte européia) Atenas Sicília E ROMÊNIA Belgrado EU EG AR d Estreito e Gibraltar Chisinau A Córsega VATICANO Cidade do Roma ESPANHA BHE Sarajevo R Lisboa 0 CRO MA Madri MÔNACO M AR MOLDÁVIA Budapeste IO SP CÁ SUÍÇA BELARUS Varsóvia ALEMANHA BÉLGICA Paris Minsk HOLANDA Amsterdã Moscou LETÔNIA LITUÂNIA B KALININGRADO Vilnius (FR) Londres FEDERAÇÃO RUSSA (FR) (parte européia) Tallinn CHIPRE Creta E O km BHE - BÓSNIA-HERZEGÓVINA CRO - CROÁCIA ESL - ESLOVÁQUIA ESV - ESLOVÊNIA FR - FEDERAÇÃO RUSSA LCH - LIECHTENSTEIN RTC - REPÚBLICA TCHECA RU - REINO UNIDO 13 Curso de Formação em Política Internacional.p65 13 5/6/2007, 12:40 Curso de formação em política internacional 14 Curso de Formação em Política Internacional.p65 14 5/6/2007, 12:40 Kjeld Jakobsen A teoria, as instituições e os grandes temas das relações internacionais Kjeld Jakobsen1 1. INTRODUÇÃO Diariamente quando lemos os jornais ou assistimos aos noticiários na TV, tomamos conhecimento dos fatos ocorridos em outros países, dos conflitos entre países ou de medidas adotadas por determinadas instituições internacionais. Esses fatos freqüentemente se transformam em políticas que podem ter repercussão para nós, diretamente ou não. A disciplina que trata das relações entre as “nações” chama-se relações internacionais. Como afirmou o professor francês Marcel Merle, “as relações internacionais padecem do fato de designar ao mesmo tempo um campo de investigação e a disciplina que serve para investigá-lo” (Merle, apud Rodrigues, 1994, p. 12). O estudo de relações internacionais considerado mais antigo é a obra de Tucídides (471-400 a.C.) intitulada Guerra do Peloponeso, que analisa as relações entre as cidades-Estado da Grécia antiga, particularmente a guerra entre Esparta e Atenas, os interesses envolvidos e as alianças constituídas para defendê-los. Esta disciplina constitui um campo científico independente das ciências sociais e deriva principalmente da ciência política, mantendo estreita relação com o direito, a história, a economia e a sociologia, entre outras disciplinas. O presente texto, além deste comentário inicial, apresenta quatro outras partes: as principais teorias de relações internacionais; os grandes temas 1 Ex-secretário de Relações Internacionais da CUT (Central Única dos Trabalhadores) e da prefeitura do município de São Paulo, atualmente é consultor em relações internacionais. 15 Curso de Formação em Política Internacional.p65 15 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional internacionais da atualidade; as principais organizações internacionais; a bibliografia e as recomendações de leitura. 2. AS PRINCIPAIS TEORIAS Neste tópico serão apresentadas apenas as três principais teorias positivistas das relações internacionais, das quais derivam outras, inclusive as chamadas teorias pós-positivistas, apresentadas no Mapa teórico das relações internacionais (p. 18). 2.1 REALISMO O principal expoente do realismo clássico foi Thomas Hobbes (15881679). Sua concepção de Estado provinha do fato de considerar o estado de natureza do homem como o de liberdade para fazer o que quisesse, inclusive cobiçar o mesmo que outros homens. Tal disputa seria resolvida em favor do mais forte. Assim, o estado de natureza real seria um estado de guerra entre os homens e somente poderia ser regulamentado por meio de um poder absoluto, o Estado. Essa concepção, traduzida para as relações internacionais, significa que o mundo apresenta uma estrutura anárquica devida à ausência de um poder central mundial, e o estado de natureza do mundo é a guerra, na qual os Estados nacionais são os atores principais, que definem seus interesses em termos de poder e de força. Desse modo, as principais preocupações na relação entre os Estados são o poder e a segurança que eles administram com uma avaliação coerente dos custos e benefícios de suas ações. Há ainda outros teóricos clássicos do realismo, como o próprio Tucídides, já mencionado, e Maquiavel. Este também considerava o Estado capaz de impor a ordem e discutia a forma como o “príncipe” deveria assegurar a sua segurança. Esses conceitos foram atualizados no século XX. Primeiro por Edward H. Carr, que na década de 1930 criticou o idealismo que regera algumas das iniciativas internacionais após a Primeira Guerra Mundial, e depois por Hans Morgenthau, autor do livro A política entre as nações: a luta pelo poder e pela paz (1948), cuja teoria tornou-se o paradigma das relações internacionais, ao menos até a década de 1970, e ainda hoje influencia a política externa de muitos países, a exemplo da política de George W. Bush. 16 Curso de Formação em Política Internacional.p65 16 5/6/2007, 12:41 Kjeld Jakobsen Ele identificou como seria a política externa dos Estados Unidos, potência hegemônica após o término da Segunda Guerra Mundial, apontando que teria como base um contexto de substituição do multipolarismo pelo bipolarismo, com centros fora da Europa Ocidental, disputa entre dois sistemas antagônicos (capitalismo versus socialismo real) e desenvolvimento da tecnologia nuclear, que poderia levar à destruição da humanidade (Sarfati, 2005, p. 91). Morgenthau também discutia o poder dos Estados, que não se limita necessariamente à capacidade militar, mas também envolve população, geografia, recursos naturais, capacidade industrial, legitimidade de governo, entre outros aspectos. Para obter a segurança internacional, ele aceitava a idéia de um “Estado mundial” com estrutura única, que fosse capaz de atender às necessidades dos diferentes agrupamentos humanos e de intervir nos conflitos entre Estados-nações, por meio, inclusive, de força militar própria. 2.2 LIBERALISMO, NEOLIBERALISMO E INTERDEPENDÊNCIA COMPLEXA A teoria liberal das relações internacionais está associada a uma série de idéias de pensadores que desde o começo da Idade Moderna lidaram com os temas da democracia, das leis e da paz, emanados da vontade do povo de controlar o Estado – e não o inverso, que é uma das características importantes do realismo. O neoliberalismo é a retomada dessas idéias numa visão sistêmica das relações internacionais e contemporâneas na conjuntura dos últimos 30 anos. Para os liberais e neoliberais, as instituições internacionais são fundamentais para ordenar o sistema internacional anárquico, e os atores não são apenas os Estados. Os teóricos neoliberais reconhecem que a possibilidade de os Estados cooperarem mutuamente depende da construção de organizações internacionais que serão mais ou menos fortes a depender do assunto e do momento histórico. Os atores devem perceber que têm algo a ganhar com a cooperação e, quanto maior a institucionalização, maior será a influência no comportamento dos Estados (Sarfatti, ibidem, p. 156). Keohane é um desses teóricos. Ele define as organizações internacionais (OIs) como grupos que podem tomar diversos formatos – organismos internacionais estabelecidos pelos Estados, ONGs (Organizações não-gover17 Curso de Formação em Política Internacional.p65 17 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional namentais) internacionais, regimes internacionais e convenções –, dos quais advirão regras formais e informais (apud ibidem, p. 157). Esta classificação das instituições admite que a sociedade influencia as OIs não somente por intermédio dos Estados e das relações transgovernamentais, mas também por meio das ONGs internacionais. A isso se chama relações transnacionais, que, de acordo com Keohane e Nye, podem afetar as relações internacionais de várias maneiras: mudar percepções e atitudes, ampliar a dependência, a interdependência e a capacidade de influência dos Estados e possibilitar a emergência de atores autônomos (ibidem, p. 161-162). O último aspecto das relações transnacionais a ser considerado é o da interdependência complexa. Ainda de acordo com Keohane e Nye “interdependência é uma situação caracterizada por efeitos recíprocos entre os países ou entre os atores de diferentes países ou simplesmente o estado de mútua dependência” (Keohane e Nye, apud Sarfatti, 2005, p. 164). 2.3 MARXISMO Quando Marx elaborou a tese do materialismo histórico, não tinha qualquer preocupação em teorizar sobre relações internacionais. Porém, vários Mapa teórico das relações internacionais Fonte: Sarfatti, 2005, p. 364. 18 Curso de Formação em Política Internacional.p65 18 5/6/2007, 12:41 Kjeld Jakobsen dos conceitos que elaborou acabaram por fortalecer uma visão “internacionalista”, pois os trabalhadores são explorados no mundo todo pela burguesia. A fase de implantação do socialismo por meio da “ditadura do proletariado” até a extinção do Estado pressupunha que isso viesse a ocorrer em todo o planeta, de modo que toda a sociedade mundial passasse a viver sob o sistema comunista. Para ele, a guerra era a conseqüência natural do modelo burguês de acumulação de capital, que levaria a conflitos por novas terras e novos mercados. A paz mundial somente seria alcançada com a ascensão do comunismo e o desaparecimento das classes sociais e do Estado. O marxismo tornou-se uma teoria importante para explicar as relações internacionais, primeiro a partir das discussões de Vladimir Lenin e Nikolai Bukharin sobre o imperialismo e, posteriormente, com a teoria da dependência dos “cepalinos”2. As formulações de Lenin sobre o imperialismo incluem a avaliação de diversos temas: a criação de monopólios; a relação do capital financeiro com o capital industrial; a formação dos monopólios internacionais que dominam a economia mundial; a consolidação da divisão territorial entre as grandes potências capitalistas; e a diferenciação entre a exportação de produtos manufaturados e a de commodities. Bukharin desenvolve também o conceito sobre a divisão internacional do trabalho favorável aos países industrializados. Estes conceitos forneceram a base para a elaboração da teoria da dependência, que identificava o desequilíbrio entre o desenvolvimento econômico dos países industrializados e o dos países em desenvolvimento. Um dos fatores era a relação comercial entre eles, em que os países industrializados se especializaram em exportar produtos de alto valor agregado, enquanto os países em desenvolvimento exportavam produtos primários cujo valor não competia com os primeiros e que tendiam a se desvalorizar à medida que aumentava o volume de produção. Assim, os países subdesenvolvidos não 2 Técnicos que trabalhavam na CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe), responsáveis pelo desenvolvimento da proposta do modelo de substituição de importações como política para a região a fim de romper a dependência em relação aos países centrais. Alguns nomes importantes entre eles foram Raul Prebisch e Teotônio dos Santos. 19 Curso de Formação em Política Internacional.p65 19 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional conseguiam financiar sua industrialização por meio do comércio, mesmo aumentando a produção de commodities, mas apenas adquirir os bens industrializados dos países em desenvolvimento. Para superar essa relação, surgiu a proposta do modelo de substituição de importações, que vigorou particularmente na América Latina e em determinados países asiáticos, promovido pela ação do Estado voltada para financiar o desenvolvimento. Para os “dependentistas” (defensores da teoria da dependência), o Estado é um ator fundamental. No campo internacional, as instituições mais importantes são as organizações internacionais, o direito internacional e as empresas multinacionais, entre outras. 3. OS GRANDES TEMAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ATUAIS As várias teorias internacionais explicam ou embasam as medidas tomadas pelos diferentes atores, estatais ou não, diante dos grandes temas internacionais. Embora os temas apresentados a seguir sejam mais amplos do que os que fundamentaram a elaboração realista e neo-realista, isso não significa que as medidas adotadas não possam ser explicadas por essas duas teorias ou outras. 3.1 COMÉRCIO INTERNACIONAL As principais relações entre as nações, desde a Antiguidade, têm se dado por intermédio do comércio. No início da Idade Moderna, sob os regimes absolutistas e, particularmente, a partir das grandes navegações e das descobertas de novas terras e rotas marítimas, desenvolveu-se um conceito de comércio internacional chamado mercantilismo, cuja principal característica era a venda de produtos para acumular reservas em metais preciosos. Os países que tinham a capacidade de produzir algum bem para o comércio com outros o protegiam contra a concorrência externa. Com o advento do liberalismo econômico, adotou-se um novo conceito de comércio baseado nas “vantagens comparativas”. Esse conceito – desenvolvido inicialmente pelo economista inglês David Ricardo –, que vigora até hoje entre os liberais, pressupunha ser mais eficaz para o desenvolvimento da economia dos países que cada um deles exportasse os produtos 20 Curso de Formação em Política Internacional.p65 20 5/6/2007, 12:41 Kjeld Jakobsen nos quais eram mais especializados e importasse aquilo que outros países eram mais especializados em produzir. Isto significava, por exemplo, que Portugal e França venderiam vinho, os Estados Unidos exportariam trigo e a Inglaterra, produtos manufaturados. Para outros estudiosos, a teoria das vantagens comparativas e o livre comércio eram apenas uma forma de proteger a indústria inglesa de possíveis concorrentes. Para eles, os países atrasados em seu processo de industrialização, como a Alemanha e os Estados Unidos, deveriam ter o direito de proteger sua indústria até que ela também se consolidasse. De fato, se considerarmos a história do comércio mundial, perceberemos que a liberalização comercial ocorreu em poucos momentos desde o final do século XVIII até o fim da Segunda Guerra Mundial, e que a política comercial proposta pelos países desenvolvidos para os demais nunca foi por eles adotada da mesma forma. Em 1948 foi criado o Acordo Geral de Comércio e Tarifas (GATT – General Agreement on Tarifs and Trade) para negociar e coordenar a política comercial internacional, principalmente a liberalização das tarifas externas de bens industriais dos países-membros. Porém, tais reduções ocorreram como se todos os países estivessem no mesmo patamar de desenvolvimento, tomando como parâmetro os produtos que os países mais desenvolvidos eram capazes de produzir em condições vantajosas com relação a outras nações mais pobres. Bens como os produtos têxteis ficaram excluídos da liberalização comercial até 2004, e os mercados agrícolas dos países desenvolvidos continuam protegidos. A partir do final dos anos 1970, começaram a ser discutidos outros temas no GATT, como comércio de serviços, de propriedade intelectual, de investimentos, entre outros, e em 1995 teve início o funcionamento de uma nova instituição em substituição ao GATT, a Organização Mundial do Comércio (OMC), uma organização internacional estruturada com diretores e funcionários, que assumiu a coordenação das negociações comerciais e também da resolução de controvérsias. Durante sua vigência, o GATT realizou oito rodadas de negociações, sendo a última delas – e a mais abrangente do ponto de vista liberal – a Rodada Uruguai, que perdurou de 1986 a 1994. Hoje a OMC coordena a Rodada de Doha, iniciada em 2001 e sem acordo até o momento. 21 Curso de Formação em Política Internacional.p65 21 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional 3.2 DEMOCRACIA Este tema se agregou às relações internacionais à medida que valores políticos liberais foram se consolidando e sendo adotados por um número crescente de países. Estes valores incluem a divisão de poderes e a idéia da soberania popular como legitimadora do poder político – idéias defendidas já no século XVIII por Montesquieu e Rousseau, respectivamente – e outros conceitos posteriores. A democracia foi se aperfeiçoando ao longo do século XX e ainda está em evolução. Em muitos países, as mulheres só conquistaram o direito de votar a partir dos anos 1920. Se consideradas as limitações ao exercício do voto, menos de dez países no mundo poderiam ser considerados democráticos no início do século XX. Os regimes derrotados na Segunda Guerra Mundial pela coalizão aliada eram francamente ditatoriais, o que serviu como mote na disputa ideológica da Guerra Fria, para contrapor não apenas capitalismo e socialismo, mas também democracia ocidental versus autoritarismo do regime de partido único soviético. Assim, a democracia tornou-se um tema sempre presente nas relações internacionais, mesmo quando utilizado hipocritamente, como no caso do apoio norte-americano a ditaduras de direita na América Latina durante a Guerra Fria para “defender a democracia ameaçada pelo comunismo”. Porém, as relações internacionais também contribuíram para a disseminação e o fortalecimento da democracia, como mostram os casos de Espanha, Grécia e Portugal, que somente foram aceitos na Comunidade Européia após a sua redemocratização. Hoje se discute muito a possibilidade de aprofundar a democracia pela adoção de mecanismos de democracia participativa, com a criação de conselhos populares, a convocação de referendos, a criação da figura do ombudsman, orçamentos participativos etc. 3.3 GUERRAS E PAZ A guerra é outro elemento tradicional nas relações entre as nações, com um agravante: fracassar numa negociação comercial pode ser negativo para um país, mas fracassar na guerra pode ser o seu fim. A ascensão e a queda de nações e de impérios sempre estiveram de alguma maneira ligadas à guerra. 22 Curso de Formação em Política Internacional.p65 22 5/6/2007, 12:41 Kjeld Jakobsen No entanto, esse tema assumiu uma dimensão diferente após a Segunda Guerra Mundial e o bombardeio atômico sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Durante a Guerra Fria e o período de bipolarismo, perdurou o chamado “equilíbrio do terror”, pois cada lado tinha a capacidade de destruir o outro várias vezes e ninguém sobreviveria a uma catástrofe nuclear generalizada. Houve muitas negociações internacionais nesse período visando a redução de armas nucleares, bem como, mais recentemente, o controle sobre armas químicas e biológicas. Embora a discussão sobre desarmamento e desmilitarização prossiga, há na verdade um comércio vigoroso de armamentos convencionais, e ainda hoje as encomendas militares do governo dos Estados Unidos são um fator importante de indução de sua economia. De 2001 até hoje, o governo George W. Bush já gastou mais de US$ 500 bilhões somente nas operações de guerra do Afeganistão e do Iraque. Atualmente, os conflitos armados têm caráter regional e com freqüência decorrem ou são justificados com base em razões étnicas, nacionalistas e religiosas. Parte deles decorre da forma como determinados países da África, do Oriente Médio e da Ásia foram descolonizados, sem qualquer consideração à autodeterminação dos povos e com a constituição de fronteiras irrealistas para, propositalmente, manter áreas de tensão, como entre a Índia e o Paquistão e no Oriente Médio. Outra parte dos confrontos decorre da maneira como a convivência entre certas nacionalidades num mesmo território foi imposta, como nos casos da ex-Iugoslávia e da ex-URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), que explodiram em conflito após a queda dos regimes do socialismo real, gerando um dos maiores genocídios do pós-Segunda Guerra Mundial. A questão da intolerância religiosa mescla conflitos étnicos e nacionalistas pelo fato de muitos Estados terem forte relação com a religião e com instituições religiosas. Os casos mais expressivos são Israel, com o judaísmo, e os países árabes, com o islamismo. Diante dos conflitos desenvolvem-se uma série de mecanismos e especialistas voltados para a diplomacia da paz, seja a partir da ONU (Organização das Nações Unidas) e de suas organizações regionais, seja a partir de determinados países e personalidades. 23 Curso de Formação em Política Internacional.p65 23 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional 3.4 DIREITOS HUMANOS Este tema começou a ser normatizado internacionalmente após a Segunda Guerra Mundial, como decorrência do trauma advindo do genocídio e da violência praticados pelo regime nazista. A primeira norma com valores universais foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela ONU, em 1948. Posteriormente, neste mesmo âmbito, foi aprovada a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, em 1965, e em 1966 foram aprovados o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o Protocolo facultativo a ele e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. A convenção e os pactos somente alcançaram as ratificações necessárias para vigorar em 1969 e em 1976, respectivamente. Na Europa foi aprovado em 1950 o Convênio Europeu dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais. No continente americano, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem data de 1948, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que ficou mais conhecida como o Pacto de San José da Costa Rica, de 1969. No âmbito mundial, a política de direitos humanos foi coordenada desde 1993 por um Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, substituído em 2006 pelo Conselho de Direitos Humanos. Na Europa, quem decide sobre questões relativas às violações é o Tribunal de Justiça da União Européia, com sede em Estrasburgo, na França. Nas Américas, quem trata dos direitos humanos é a OEA (Organização dos Estados Americanos), por meio de sua Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sedes, respectivamente, em Washington e San José da Costa Rica. Para marcar o aniversário de 20 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a primeira conferência da ONU realizada especificamente para tratar do tema ocorreu em Teerã, a capital do Irã, em 1968. Essa conferência pouco avançou, pois ocorreu no auge da Guerra Fria, quando não se permitia adotar resoluções sobre qualquer país e nem que a Comissão de Direitos Humanos, então existente, tomasse medidas diante das denúncias que recebia, sob a justificativa da soberania nacional e do princípio da não-intervenção em assuntos internos garantido na Carta das Nações Unidas. Além disso, as organizações da sociedade civil ainda não buscavam incidir sobre este tipo de conferência. 24 Curso de Formação em Política Internacional.p65 24 5/6/2007, 12:41 Kjeld Jakobsen A primeira vez que a ONU ditou uma norma que se tornou obrigatória para os Estados-membros foi em 1977 contra o regime do apartheid na África do Sul, considerado um crime de lesa-humanidade. Na ocasião, o Conselho de Segurança aprovou um embargo de armas àquele país. Os princípios sobre a defesa dos direitos humanos estabelecidos até então foram sendo incorporados também em resoluções, convenções e recomendações de outras organizações e agências especializadas do sistema ONU que tratam de trabalho, educação, saúde, alimentação, infância e desenvolvimento. Em 1993 realizou-se a segunda Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos em Viena, na Áustria, numa conjuntura muito diferente da anterior e com a participação de mais de mil ONGs, entre elas algumas que haviam se tornado conhecidas e influentes, como Anistia Internacional e American Watch, entre outras. As resoluções desta conferência conseguiram romper algumas das barreiras mencionadas anteriormente. 3.5 INTEGRAÇÃO ECONÔMICA A imprensa costuma tratar qualquer acordo de liberalização comercial bilateral entre países ou acordados regionais como sendo integração econômica. É uma versão parcial e denota muito mais uma defesa do livre comércio do que uma avaliação real do significado e das perspectivas de uma integração. De fato, o primeiro passo da integração econômica é a eliminação das barreiras comerciais entre seus participantes, as tarifárias e as não-tarifárias. No caso da União Européia (UE), estas últimas somente foram removidas na década de 1990. O derradeiro instrumento econômico que poderia afetar o comércio a favor de um país ou de outro seria o câmbio, o que se resolveu na Europa com a adoção da moeda comum. Muitas críticas podem ser feitas quanto ao desenvolvimento da estratégia européia, mas não há dúvida de que os objetivos de estabelecer a paz e o desenvolvimento após a Segunda Guerra Mundial, que destruiu o continente, foram alcançados. A UE é o maior espaço econômico do mundo graças a uma política de “Keynes em casa e Adam Smith fora dela”, pois aplicou políticas estatais para regular a integração e proteger os mercados de seus integrantes contra 25 Curso de Formação em Política Internacional.p65 25 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional a concorrência de terceiros, ao mesmo tempo em que propunha o livre acesso aos mercados dos outros. Salvo os conflitos nos Bálcãs, com a dissolução da Iugoslávia, o continente vive um período inédito de paz. Poderíamos descrever o processo de integração econômica da seguinte forma: começa com a área de livre comércio e em seguida vêm a união aduaneira, o mercado comum, a convergência macroeconômica e a união monetária. O Mercosul (Mercado Comum do Sul), por exemplo, que pretende se tornar um mercado comum, ainda não ultrapassou a fase de união aduaneira incompleta, uma vez que a tarifa externa dos países-membros é comum, isto é, a mesma em todos eles, com exceção de alguns produtos de cada país que têm tarifas diferenciadas. O debate sobre a integração da América do Sul é crucial neste momento. O modelo de substituição de importações adotado por vários de seus países buscou o desenvolvimento a partir do Estado Nacional e não conseguiu se sustentar dessa forma. A pergunta é: não seria mais viável retomá-lo a partir de um processo de integração entre vários Estados? Para que uma integração neste formato avance é necessário haver cessão de soberania entre os participantes. Considerando a herança da teoria da dependência e da baixa institucionalidade do Mercosul, ainda há muito para avançar. Além dos casos mencionados, há mais de uma centena de acordos de livre comércio e áreas de livre comércio, porém a maioria sem proposta de ir além das relações comerciais; pode-se mencionar, por exemplo: o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA – North American Free Trade Agreement); o Acordo Econômico do Sudeste Asiático (ASEAN – Association of South East Asian Nations); a Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico (APEC – Asia-Pacific Economic Cooperation); a Cooperação para o Desenvolvimento Econômico da África do Sul (SADEC – South African Development and Economic Cooperation) e o Sistema de Integração Centro Americano (SICA), entre outros. 3.6 ENERGIA Atualmente, falar de energia significa cada vez mais avaliar a vulnerabilidade das economias dos países que não dispõem de autonomia diante de suas demandas de energia, seja para gerar eletricidade na ilumi26 Curso de Formação em Política Internacional.p65 26 5/6/2007, 12:41 Kjeld Jakobsen nação de suas cidades e movimentar suas indústrias, seja para que seus meios de transporte funcionem. A matriz energética mundial atual ainda é composta principalmente por hidrocarbonetos e carvão mineral, e em menor dimensão por energia hidráulica, nuclear, eólica, solar e biomassa. Além do efeito estufa e das transformações climáticas que provoca, a dependência de hidrocarbonetos tem dimensão política internacional. Quando o transporte e a indústria movidos a combustíveis derivados do petróleo se tornaram irreversíveis no início do século XX, o domínio sobre a exploração de petróleo se tornou uma questão geopolítica, pois as fontes a ser exploradas concentram-se em apenas alguns lugares do mundo. A mais importante naquela época era o Oriente Médio, o que explica a relutância das potências européias, como Inglaterra e França, em conceder independência aos países daquela região ao fim da Primeira Guerra Mundial, o que somente ocorreria após o fim da Segunda Guerra, quando asseguraram a concessão da exploração de petróleo naqueles países para suas empresas multinacionais. O petróleo foi primeiro explorado comercialmente nos Estados Unidos, levando à criação de empresas como Standard Oil, Exxon, Texaco, que junto com outras empresas européias formaram o cartel das “Sete Irmãs”, que teve a concessão da produção e distribuição de petróleo no mundo durante quase um século. Embora as Sete Irmãs monopolizassem a exploração de petróleo, os países produtores se articularam em 1960 por meio da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) a fim de tentar regular a produção e os preços em seu favor. A OPEP tem hoje 12 membros, entre os quais apenas um é latino-americano – a Venezuela –, pois o Equador retirou-se em 1992. Estes países possuem dois terços das reservas mundiais de petróleo e um terço das de gás natural, mas apesar desse poder a maioria deles nunca conseguiu diversificar suas economias e são dependentes da exportação desta commodity. Atualmente há um esforço de outros países fora do circuito da OPEP para buscar a auto-suficiência em petróleo e gás, bem como para definir regras próprias para explorá-los e utilizá-los politicamente nas relações internacionais. É o que ocorre principalmente na América Latina, no Irã e na Rússia, embora com características diferentes. 27 Curso de Formação em Política Internacional.p65 27 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional 3.7 COMBATE À POBREZA Este tema tornou-se também relevante nas relações internacionais, principalmente a partir da Conferência Social de Copenhague, realizada em 1995, e da Declaração do Milênio, aprovada pela ONU na virada do século XXI, na qual foram incluídos os oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs) a ser perseguidos pelos governos do planeta: erradicar a pobreza extrema e a fome; alcançar o ensino primário universal; promover a igualdade de gênero e a autonomização da mulher; reduzir a mortalidade infantil; melhorar a saúde materna; combater o HIV/AIDS, a malária e outras doenças; garantir a sustentabilidade ambiental e criar uma parceria global para o desenvolvimento. Existem 18 metas e 48 indicadores para monitorar o progresso dos objetivos. O prazo final para atingi-los é 2015, e normalmente a formulação indica determinadas metas, como a redução de dois terços da mortalidade infantil com até 5 anos de idade ou a redução pela metade do número de pessoas que vivem com menos de US$ 1 por dia – uma referência adotada pelo Banco Mundial, pela OIT (Organização Internacional do Trabalho), pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e outros para definir a “linha da indigência”. Uma vantagem dos ODMs é que traçam um patamar de objetivos iguais para todos os países e regiões, o que facilita a cooperação técnica nessa área. Os seus indicadores permitem o monitoramento da situação social e do combate à pobreza em qualquer nível administrativo. O governo Lula tem o mérito de ter agregado a essas iniciativas a discussão sobre o programa Fome Zero internacional, bem como a busca de fontes alternativas de financiamento para o combate à pobreza, envolvendo inclusive governos de outros países, como Chile, França e Espanha. 3.8 MEIO AMBIENTE Esta questão é a que mais tem sido utilizada para discutir e exemplificar a teoria da interdependência complexa, pois não há como pensar em soluções para os problemas ambientais exclusivamente no marco dos Estados nacionais, pois o que acontece com a atmosfera, o clima, os mares e os rios afeta a todos. O tema ambiental é também o que mais mobiliza as organizações da sociedade civil devido aos impactos concretos causados pelos problemas relacionados ao meio ambiente, por exemplo, no caso do vazamento de gás 28 Curso de Formação em Política Internacional.p65 28 5/6/2007, 12:41 Kjeld Jakobsen tóxico provocado pela fábrica da Union Carbide em Bhopal, na Índia, que em três dias matou mais de 8 mil pessoas no ano de 1984. A primeira conferência sobre meio ambiente organizada pela ONU em Estocolmo, na Suécia, em 1972, foi também a primeira que teve a participação de ONGs (Organizações não-governamentais) que, por meio de reuniões paralelas, promoviam a discussão acerca do meio ambiente a partir de seu ponto de vista e em seguida encaminhavam suas propostas para as delegações governamentais. Uma das razões para o despertar desse interesse foi o enorme derramamento de petróleo no Canal da Mancha, poucos anos antes, que danificou sobremaneira a fauna e a flora marinha, bem como o litoral de diversos países europeus. A segunda, a Eco-92, realizada no Rio de Janeiro em 1992, foi a conferência sobre temas sociais que obteve maior participação da sociedade civil até hoje e além disso produziu uma série de resoluções que vêm sendo tratadas internacionalmente, por exemplo a Agenda 213. Nesse ínterim também foi aprovada uma série de tratados específicos, como os Acordos Multilaterais Ambientais (AMAs), entre os quais figuram o Protocolo de Kyoto sobre emissão de gases e o combate ao buraco na camada de ozônio. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC – Intergovernmental Panel on Climate Change) divulgou no início de fevereiro de 2007 o quarto relatório das avaliações conduzidas pelo grupo sobre o aquecimento global desde que foi instaurado, em 1998, pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), em parceria com a Organização Meteorológica Mundial (WMO – World Meteorological Organization), também parte da ONU. Este informe chamou a atenção pelo teor mais alarmante utilizado para tratar do tema das mudanças climáticas e do papel do homem na ampliação do efeito estufa, bem como do conseqüente aumento da temperatura do planeta, que, segundo o documento, deverá aumentar em até quatro graus centígrados até o final do século. Espera-se que a divulgação do documento sirva para que os países formulem políticas públicas para enfrentar o aumento do uso de combustíveis fósseis, o maior responsável pelas emissões de gás que resultam no aquecimento global. 3 Aprovada na Eco 92, a Agenda 21 continha uma série de temas a ser negociados durante as reuniões da ONU (Organização das Nações Unidas) posteriores à conferência; entre eles estava o da emissão de CO2, que levou à criação do Protocolo de Kyoto. 29 Curso de Formação em Política Internacional.p65 29 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional O presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, apesar de ser extremamente ligado à indústria petroleira, afirmou que seu país deverá diminuir em 20% o consumo de gasolina nos próximos dez anos, investindo na produção de biocombustíveis, a exemplo dos programas já desenvolvidos com sucesso pelo governo brasileiro. 3.9 MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS O tema das migrações internacionais se apresenta em função da globalização, da concentração de renda, do progresso dos meios de comunicação e dos meios de transporte. Refugiados em função de conflitos ou de perseguições políticas e/ou religiosas sempre houve. Hoje, porém, a migração internacional decorre principalmente por motivos econômicos. Na Europa dos anos 1960 e 1970, havia uma intensa migração dos países do sul do continente para os do norte em busca de trabalho. A partir dos anos 1980, destacaram-se os migrantes da África, que se fixavam principalmente nos países europeus em torno do Mediterrâneo. Depois do fim da Guerra Fria, passou a haver um fluxo importante também do Leste europeu em direção aos países da União Européia. Os migrantes latino-americanos de língua espanhola têm procurado principalmente a Espanha e os Estados Unidos para viver, e no caso dos brasileiros observamos fluxos importantes para Portugal e Japão, além dos Estados Unidos. Os migrantes asiáticos procuram majoritariamente o Japão, a Coréia do Sul, o Oriente Médio, os Estados Unidos e a Europa. As remessas de dinheiro dos imigrantes a seus países de origem tornaram-se também um fator econômico relevante. Atualmente, os emigrantes em geral remetem aproximadamente US$ 170 bilhões por ano de volta aos seus países de origem – no caso da América Latina, esse montante alcança aproximadamente US$ 50 bilhões anuais. Em relação aos refugiados devido a conflitos, destacam-se hoje os de Darfur, Afeganistão, Iraque e Colômbia. 3.10 PARADIPLOMACIA Atualmente, algumas esferas não-centrais de governo, como estados, municípios e parlamentos, realizam atividades internacionais em seus respectivos âmbitos, o que tem sido denominado por alguns “paradiplomacia”. 30 Curso de Formação em Política Internacional.p65 30 5/6/2007, 12:41 Kjeld Jakobsen Os termos de referência para as relações internacionais dessas esferas de Estado subnacionais são obviamente diferentes das políticas sob responsabilidade dos governos centrais, pois não lidam diretamente com temas como defesa ou acordos comerciais. Mesmo assim, podem complementar determinadas políticas centrais dos governos, inclusive no que tange às relações internacionais, bem como ao desenvolvimento da cooperação técnica internacional conhecida como cooperação descentralizada. Seu reconhecimento como atores pelas organizações internacionais também é limitado. Um governo estadual ou municipal tem o mesmo status de uma ONG junto à ONU, apesar de já existirem organizações de municípios e regiões com representação mundial, como a rede Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU), fundada em 2004, com sede em Barcelona. Existem outras redes municipais organizadas em torno de temas específicos, como meio ambiente, educação, promoção da paz, projetos de integração – como o Mercosul e a Comunidade Andina de Nações –, metrópoles, entre outras iniciativas. A população mundial, que hoje já é majoritariamente urbana (pouco mais de 50%), exige a aceleração do processo de descentralização políticaadministrativa para atender à demanda por melhor atendimento das suas necessidades de proteção social e de políticas públicas. Este processo, para ser mais eficaz, deveria ser acompanhado por relações internacionais paradiplomáticas, uma vez que muitos problemas são semelhantes e a troca de experiências pode ser muito útil para racionalizar esforços. Além disso, a cooperação descentralizada pode aportar recursos, e um conjunto importante de cidades ou estados com as mesmas visões podem incidir positivamente sobre as políticas de algumas instituições internacionais que normalmente destinam recursos para a gestão dos governos subcentrais. 4. AS INSTITUIÇÕES E AS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS As primeiras organizações internacionais com caráter eminentemente técnico datam do século XIX. A Comissão Fluvial para tratar da navegação do rio Reno surgiu em 1815, e a Comissão do Danúbio em 1856. A União Telegráfica foi fundada em 1865, a União Postal Universal em 1874, a União 31 Curso de Formação em Política Internacional.p65 31 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional para Proteção da Propriedade Intelectual em 1883, e a União das Ferrovias em 1890 (Seitenfus, 2000, p. 35). A OIT é de 1919 e nasceu da negociação do tratado para definir os termos de paz com a Alemanha, que havia sido derrotada na Primeira Guerra Mundial. Essa negociação também levou à criação da Sociedade das Nações (SDN), proposta na época pelo presidente norte-americano Woodrow Wilson para cuidar de segurança, cooperação econômica, social e humanitária e executar alguns dos dispositivos do Tratado de Versalhes. A visão “idealista” de Wilson pressupunha que a organização não necessitaria de mecanismos coercitivos para funcionar, uma vez que apenas países democráticos poderiam se tornar membros, e se todos eram democráticos todos respeitariam as decisões tomadas e não haveria necessidade de coerção. Como sabemos, não funcionou assim, e o início da Segunda Guerra Mundial jogou uma pá de cal nessa primeira experiência de criação de uma organização internacional para promover a cooperação entre as nações. Em meio ao novo conflito, quando a vitória começava a despontar para os aliados, os principais governantes da época, Franklin Delano Roosevelt, Winston Churchill e Joseph Stálin, começaram a discutir como seria a regulação do mundo no período posterior de paz. Dessas conversações surgiram as Instituições de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial-BIRD), a ONU e o GATT. Posteriormente surgiram novos organismos mais especializados, alguns incorporados ao sistema das Nações Unidas e outros como organizações autônomas. Também foram criadas organizações específicas como a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), além de organizações regionais. A Carta de São Francisco marcou a criação da ONU, em 1945, e atribuiu a ela a seguinte estrutura decisória: a Assembléia Geral, instância maior, em que todos os membros têm direito de voz e voto; o Conselho de Segurança, composto por 15 integrantes, dos quais cinco têm assento permanente e direito de veto e dez são rotativos, com mandatos de dois anos cada e escolhidos pela Assembléia Geral; o Secretariado, composto por todo o staff da organização e das diferentes funções da ONU, coordenado por um secretário geral também eleito pela Assembléia; e, finalmente, a Corte Internacional de Justiça. 32 Curso de Formação em Política Internacional.p65 32 5/6/2007, 12:41 Kjeld Jakobsen Organograma das Nações Unidas Fonte: Seitenfus, 2000, p. 123. 33 Curso de Formação em Política Internacional.p65 33 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Esta última, apesar da denominação, não possui poder coercitivo para obrigar um membro a cumprir alguma resolução. Somente o Conselho de Segurança possui tal poder, desde que se trate de questões que violem a paz, que a maioria dos seus membros esteja de acordo e que nenhum dos países com assento permanente aplique seu poder de veto à decisão. O sistema ONU tem a configuração apresentada no Organograma da página anterior. BIBLIOGRAFIA KEOHANE, Robert e NYE, J. S. Transnational Relations and World Politics. Cambridge, Cambridge University Press, 1971. MORGENTHAU, Hans (1948). A política entre as nações: a luta pelo poder e pela paz. Brasília, UnB, 2000. RODRIGUES, Gilberto Marcos Antonio. O que são relações internacionais. São Paulo, Brasiliense, 1994. SARFATTI, Gilberto. Teorias das relações internacionais. São Paulo, Saraiva, 2005. SEITENFUS, Ricardo. Manual das Organizações Internacionais. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2000. BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA GARCIA, Eugênio Vargas. O Brasil e a Liga das Nações (1919-1926): vencer ou não perder. Porto Alger/Brasília, Editora da Universidade/UFRGS/ FUNAG, 2000. GUIMARÃES, Samuel P. Quinhentos anos de periferia: uma contribuição ao estudo da política internacional. Porto Alegre/Rio de Janeiro, Universidade UFRGS/Contraponto, 2000. PECEQUILO, Cristina S. Introdução às relações internacionais: temas, atores e visões. Petrópolis, Vozes, 2004. REVISTA Política Externa. São Paulo, Paz e Terra, vol. 15, n. 3, dez.-jan.fev. 2006. VIGEVANI, Tullo e WANDERLEY, Luís Eduardo V. (orgs.). A dimensão subnacional e as relações internacionais. São Paulo/Bauru, EUC/Unesp/ EDUSC, 2004. 34 Curso de Formação em Política Internacional.p65 34 5/6/2007, 12:41 Kjeld Jakobsen Retalhos para uma história dos movimentos contra a globalização neoliberal1 Gustavo Codas2 1. INTRODUÇÃO O tema proposto para a exposição – “Um olhar sobre o mundo; a situação atual da luta dos trabalhadores em suas várias dimensões; os partidos políticos, as organizações internacionais, os movimentos sociais e as centrais sindicais; o Fórum Social Mundial; os governos de esquerda e progressistas” – precisaria de uma boa equipe de pesquisadores dedicada por longos meses para conseguir chegar a um resultado aceitável3. Nas condições em que realizamos este trabalho, no entanto, nosso objetivo está aquém do anunciado no tema do curso. Falamos em um estudo em “retalhos” porque nos aproximaremos aqui apenas de alguns aspectos do tema que nos foi proposto. Em nossa opinião, são capítulos importantes dos movimentos que têm se desenvolvido nos anos recentes contra a globalização neoliberal, mas não dão conta do “todo”. Por outro lado, são retalhos porque no estágio em que se encontra nossa elaboração falta ainda explorar conexões 1 Este artigo resulta da fusão e da reelaboração de outros já publicados pelo autor: “¿Cuál es el papel del Foro Social Mundial?”. Alternativas. Revista de análisis y reflexión teológica, ano 10, n. 25, Manágua, Editorial Lascasiana, jan.-jun. 2003; “De volta a Seattle: anotações sobre o futuro do ‘processo FSM’”. Proposta. Revista Trimestral de Debate da FASE, ano 28, n. 102, Rio de Janeiro, FASE, set.-nov. 2004; “América Latina: integração e lutas de emancipação”. Contexto Latinoamericano. Revista de Análisis Político, n. 1, Bogotá, Ocean Sur, set.-dez., 2006; Trajetória, estrutura e funcionamento da Aliança Social Continental, documento para debate no Conselho Hemisférico da ASC em Havana, 3-6 de maio de 2007. 2 Economista e jornalista paraguaio, reside no Brasil desde 1983; é assessor da Secretaria de Relações Internacionais da Central Única dos Trabalhadores (CUT), e tem participado como representante da CUT em diversos momentos e instâncias do Fórum Social Mundial, da Assembléia de Movimentos Sociais e da Aliança Social Continental (ASC). Escreve aqui a título pessoal. 3 O único esforço sério feito nesse sentido foi o livro de Amin e Houtart (2002), publicado no Brasil pela editora Cortez, em 2004, com a data do título alterada para “2003”. O livro foi o resultado de uma iniciativa da rede Forum Mondial des Alternatives que lamentavelmente não teve continuidade. 35 Curso de Formação em Política Internacional.p65 35 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional entre os diversos aspectos aqui abordados e buscar chegar a conclusões mais abrangentes sobre o conjunto dos problemas. Em suma, trata-se de um material de estudo e trabalho, antes que de um produto acabado. O conteúdo a seguir está dividido em tópicos dedicados ao Fórum Social Mundial (FSM), à Assembléia de Movimentos Sociais e à Aliança Social Continental (ASC) como casos e momentos-chave do amplo processo de reorganização da sociedade civil mundial no cenário da globalização neoliberal. Desse estudo deriva uma série de desafios ainda não respondidos e que encontram em nossa região uma conjuntura toda especial. Por isso, finalizaremos com um tópico dedicado à aproximação dos processos políticos latino-americanos, suas potencialidades e seus desafios. 2. O FÓRUM SOCIAL MUNDIAL (FSM): UMA RECOMPOSIÇÃO DEMORADA Entre o final dos anos 1980 e o início da década de 1990, um conjunto de fatos pôs em evidência a profunda derrota política das esquerdas no mundo. Vista desde nossa região, essa é a fase em que, ao lado do impacto da queda do muro de Berlim (1989) e da dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) (1991), os sandinistas foram derrotados eleitoralmente (1990), os processos de insurgência popular em El Salvador e na Guatemala foram detidos, Cuba iniciou a travessia no deserto do “período especial”4 e o neoliberalismo tornou-se programa de governo de dezenas de países em nosso continente. Ao mesmo tempo, ocorreu a primeira guerra contra o Iraque, quando o governo dos Estados Unidos estreou o “mundo unipolar” sob sua supremacia militar. O neoliberalismo alterou as bases materiais de nossas sociedades produzindo altas taxas de desemprego e precarização que acompanhavam o ritmo de uma onda ideológica consumista e individualista. O socialismo saiu do horizonte do debate, as organizações populares viram suas bases sociais tradicionais se deteriorarem, a idéia de solidariedade 4 Período especial é a denominação com que ficou conhecida a década de 1990 em Cuba, quando esse país sofreu os brutais impactos econômicos (“uma das mais duras crises de sua história”) da derrubada do bloco socialista. Cuba respondeu com “um forte processo de redesenho da política econômica, de reconversão industrial e de transformação estrutural da gestão produtiva” que lhe permitiu voltar a “crescer e se desenvolver” (ver: “La Economía Cubana en el Período Especial”, disponível em <www.bc.gov.cu/Espanol/economia_cubana.asp>). 36 Curso de Formação em Política Internacional.p65 36 5/6/2007, 12:41 Gustavo Codas foi posta em questão, em suma, os valores e as referências que tínhamos construído na fase anterior estavam sob intenso ataque. Houve ao longo do período de ascenso do neoliberalismo inúmeras lutas sociais de resistência, mas num contexto de isolamento político. Em nossa região, esse quadro teve sua mais clara expressão no Caracazo, em 1989, a sublevação popular na cidade de Caracas contra um pacote de medidas impostas pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) e pelo governo recémeleito de Carlos Andrés Perez, que foi reprimida com violência, resultando em centenas de mortos. Na década seguinte houve o clarão de uma nova conjuntura quando o levante indígena zapatista em Chiapas, no México, em janeiro de 1994, despertou grande simpatia internacional e nacional. Mas teríamos de esperar até o final da década para que processos mais amplos de contestação surgissem, já num marco de visíveis dificuldades mundiais do neoliberalismo desde a eclosão da crise do sudeste asiático em 1997. Essa história começou internacionalmente com a repercussão que tiveram as manifestações de novembro de 1999 em Seattle (Estados Unidos). O Fórum Social Mundial surgiu em 2001 nesse caldeirão5. Ao rastrear seus antecedentes internacionais vamos encontrar o I Encontro Intergaláctico pela Humanidade e contra o Neoliberalismo (27 de julho a 3 de agosto de 1996), organizado pelo EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional), em Chiapas. Convocado por uma organização político-militar, no entanto, foi um momento de uma inédita convergência de setores sociais e políticos de esquerda muito plurais (o que voltaria a se repetir no FSM). A campanha contra o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) em 19971998 e sua repercussão na opinião pública mundial mostraram que era possível deter o avanço das medidas neoliberais que estavam em negociação em instituições multilaterais6. Em janeiro de 1999, na Suíça, um conjunto 5 O livro de Aguiton (2002) traz um amplo panorama do surgimento dos movimentos altermundialistas no final dos anos 1990 e início da presente década que desembocaram no processo do FSM e brinda com informação sobre uma série de encontros que precederam a Porto Alegre 2001 e serviram para construir o ambiente mundial favorável a essa ampla convergência no espaço Fórum. 6 Pelo papel que teve nessa campanha e na criação (em boa medida impulsionada pelo seu êxito) da ATTAC (Associação pela Taxação dos Capitais em Apoio aos Cidadãos) em finais de 1998, o jornal Le Monde Diplomatique ganhou ares de porta-voz do altermundialismo, ainda que nunca tenha perdido seu sotaque político francês. O slogan “Outro mundo é possível”, popularizado depois pelo FSM, foi utilizado em um encontro internacional realizado em 1999, iniciativa dessa e de outras redes. 37 Curso de Formação em Política Internacional.p65 37 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional de redes internacionais realizou o encontro denominado O Outro Davos7, em contraposição ao Fórum Econômico Mundial que as grandes corporações multinacionais realizam nessa cidade anualmente desde 1973 (idéia que depois seria assumida como mote pelo FSM). Se analisarmos nossa região, veremos que o FSM veio precedido de uma intensa atividade dos movimentos sociais. Entre os antecedentes mais importantes esteve a campanha continental contra os 500 anos de colonialismo em 1992. Nela, uma convergência entre movimentos indígenas, camponeses, de bairros, de mulheres, da cultura e comunicadores populares, entre outros, apontava a conformação de novos atores políticos. Articulações continentais surgiram ou se fortaleceram nesse processo na nova conjuntura que se delineava em nossa região nos anos 1990: a Via Campesina e a Coordenação Latino-americana de Organizações do Campo (CLOC); os encontros de povos indígenas que resultaram em coordenações (amazônica, andina etc., e que em março de 2007, na Guatemala, constituíram uma coordenação de nível continental); o Jubileu Sul Américas e os “50 anos (de FMI/ Banco Mundial) bastam”; a Marcha Mundial das Mulheres e a Rede Mulheres Transformando a Economia (REMTE); a Frente Continental de Organizações Comunitárias (FCOC); o Grito Continental dos/as Excluídos/ as; a Aliança Social Continental; a Campanha Continental contra a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) e os Encontros Hemisféricos de Luta contra a ALCA; a Convergência de Movimentos Populares (COMPA); a Assembléia dos Povos do Caribe (APC). O mesmo processo encontramos no Brasil na constituição e no importante papel que cumpriu o Fórum Nacional de Lutas na década de 1990 e início da atual ao unificar todos os setores sociais e partidários contrários às medidas neoliberais dos dois mandatos de FHC (Fernando Henrique Cardoso). A força do evento de Porto Alegre em 2001 proveio de uma peculiar convergência de fatores. As primeiras organizações sociais brasileiras convocadoras sintetizavam a convergência de sensibilidades políticas diversas, ajudando a reproduzir essa pluralidade em nível internacional. Essa 7 Sobre esse evento ver o livro publicado por Houtart e Polet (2002). Houtart, padre católico belga, expoente da teologia da libertação, foi um dos animadores do encontro. 38 Curso de Formação em Política Internacional.p65 38 5/6/2007, 12:41 Gustavo Codas convergência brasileira foi facilitada porque em 2000 todas tinham em maior ou menor medida uma referência política no Partido dos Trabalhadores (PT) e várias vinham de um trabalho conjunto no Fórum Nacional de Lutas. Porto Alegre foi escolhida pela forte presença de movimentos sociais e das esquerdas partidárias e pelas experiências dos governos do PT de ampliação da democracia a formas participativas e diretas (o “orçamento participativo” na prefeitura e no governo estadual). Esses governos (Olívio Dutra no estado do Rio Grande do Sul; Raul Pont até 2000 e Tarso Genro em 2001, na prefeitura de Porto Alegre) não somente deram grande apoio financeiro e de infra-estrutura, sem nenhuma exigência de contrapartidas políticas, como introduziram a perspectiva de ir além de um mero encontro e transformá-lo em um evento de massas – como efetivamente veio a ser. 3. DUAS DINÂMICAS E UM MÉTODO Já se passaram sete anos. Houve Fóruns Mundiais no Brasil (2001, 2002, 2003, 2005), na Índia (2004) e no Quênia (2007), em 2006 houve um Mundial Policêntrico (Venezuela, Mali, Paquistão), têm havido fóruns continentais e regionais, além de nacionais e temáticos, subregionais e locais em muitas partes do mundo. Se os Estados Unidos eram uma referência importante pela mobilização de 1999 em Seattle, somente em junho de 2007 realizarão seu primeiro Fórum Social nacional. Enquanto algumas partes do mundo têm vivido o processo FSM de uma maneira mais intensa, em outras apenas têm chegado ecos – é o caso de quase toda a ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e do Leste Europeu, boa parte do Extremo Oriente e do mundo árabe e muçulmano. Tal heterogeneidade dentro do processo FSM dificulta fazer afirmações gerais de balanço e perspectivas. Mas a importância de Seattle e das manifestações que lhe seguiram não pode ser desprezada. O FSM precisou desde o início tentar ser um espelho delas para se legitimar. Foram essas ações de rua que gestaram o que depois o Fórum tentaria sistematizar como “método”. A marca do FSM como espaço aberto vem do fato de que tais iniciativas buscavam a convergência de setores muito diversos (cultural, organizativa e ideologicamente), ainda que unidos pela rejeição da ordem mundial imposta (a tentativa de acordo na 39 Curso de Formação em Política Internacional.p65 39 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional OMC – Organização Mundial do Comércio – em 1999, no caso de Seattle)8. Novas formas de fazer política (organizações comunitárias de juventude, grupos culturais, experiências em redes horizontais etc.) convergiam com antigas organizações (como as centrais sindicais e as ONGs ligadas à conferências da ONU – Organização das Nações Unidas)9. Organizações de ação direta caminhavam ao lado de manifestantes de organizações de tipo institucionalista. A crise político-ideológica que se abateu sobre a esquerda no início dos anos 1990 debilitou os principais aparatos do movimento operário antes dominantes (as diversas correntes socialdemocráticas e as oriundas do stalinismo), dificultando qualquer tentação hegemonista. A desorganização programática10 da esquerda no início dos anos 1990 abriu condições para que uma década depois houvesse maior abertura para a busca de novas convergências programáticas entre os movimentos (e entre partidos políticos). Assim como em Seattle, no FSM convergiram o que podemos esquematicamente caracterizar como dois setores diferentes. Estavam lá organizações (boa parte das centrais sindicais, em geral as ONGs e as organizações feministas institucionalistas) que diante da ofensiva neoliberal dos anos anteriores tinham ensaiado estratégias de incidência, lobby e advocacy11 sobre organismos multilaterais, tentando diminuir os impactos negativos do neoliberalismo. Foi uma cultura política reforçada pelo ciclo das Confe- 8 Essa característica do FSM como “espaço aberto” (“que não adota campanhas enquanto tal”) foi sendo construída. Ainda na segunda reunião do Conselho Internacional do FSM, realizada em 30 de outubro a 1o de novembro de 2001 em Dakar (Senegal), representantes de duas organizações do Comitê Organizador brasileiro (Cives – Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania – e Comissão Brasileira Justiça e Paz – CBJP) propuseram que se assumisse uma campanha mundial para erradicar a fome do mundo em um curto prazo como forma de desafiar os organismos multilaterais. A proposta foi polêmica e não prosperou. 9 Que as formas organizativas sejam novas não significa automaticamente que superem problemas das antigas organizações e culturas políticas. Por exemplo, uma das experiências-símbolo da nova cultura política e do FSM como um todo, a ATTAC França, recentemente entrou em profunda crise após um setor que dominava sua direção ter fraudado as eleições internas (nada mais tradicional em política que fraudar uma eleição!) para evitar perder a presidência da organização. Do mesmo modo, nada é tão típico da cultura política tradicional quanto o personalismo exibido pelos três autores – pessoas representativas do processo FSM – nos livros citados na nota 14 (página 44), em que tentam contar a história do Fórum na primeira pessoa do singular; a esse respeito ver a crítica de Kjeld Jakobsen na seção de resenha de livros da revista Teoria e Debate, n. 62, abr.-maio 2005. 10 A expressão foi cunhada pelo espanhol Miguel Romero (hoje editor da revista Viento Sur) no início dos anos 1990 para descrever a crise que se abateu sobre as esquerdas no mundo. 11 Advocacy é a denominação de um conjunto de estratégias para influenciar, desde a sociedade civil, na elaboração e na implementação de políticas públicas definidas pelos poderes do Estado. 40 Curso de Formação em Política Internacional.p65 40 5/6/2007, 12:41 Gustavo Codas rências da ONU (ambiental, social, hábitat, mulheres etc.) ao longo da década. Sem que existisse uma fronteira nítida, no entanto, foi crescendo ao mesmo tempo outra cultura política e outra orientação estratégica que questionavam a validade de meros lobbies naqueles espaços multilaterais, privilegiavam as ações diretas e de rua e buscavam uma contraposição global à nova ordem através de campanhas. Havia evidentemente toda uma zona cinzenta de experiências e organizações que transitavam entre esses “dois pólos”. O que viria a ser o FSM foi “fundado” em 1999 em Seattle, pois lá, pela primeira vez e de forma muito ampla e internacional, essas duas culturas e todas as suas nuanças se unificaram na rua, mostrando as potencialidades das mobilizações comuns ou, pelo menos, articuladas. Teve um efeito demonstração instantâneo sobre inúmeras outras mobilizações que viriam a ocorrer na seqüência. Feita essa proeza por milhares de militantes anônimos, bastou depois às entidades organizadoras do “evento FSM” tentar transpor a um “método” o que as multidões tinham produzido na luta política. 4. GOVERNOS, PARTIDOS E DILEMAS DO FSM Há uma “crise da política” e de seus atores tradicionais (partidos, instituições do Estado etc.). Entre as várias críticas que lhe podem ser feitas, há duas que têm forte repercussão nos movimentos sociais: o sentimento de que mudam governos mas não mudam – ou pouco mudam – as políticas implementadas, e a percepção de que a lógica da construção dos partidos progressistas (sejam mais à esquerda ou mais moderados) é necessariamente burocrática, excludente, centralizadora etc. Na sua versão mais recente, o discurso crítico afirma que a tentativa de tomar o poder construído pela burguesia nos faria assumir características similares às que afirmamos combater – daí a hipótese de “mudar o mundo sem tomar o poder”. As primeiras respostas a essa crise vieram, no início dos anos 1990, na forma da volta ao espaço local e a formas de vida comunitária. Mas essa resposta era ambígua em relação ao desafio colocado pela hegemonia neoliberal. Em alguns casos, víamos surgir fortes processos de resistência local, com vocação até mesmo de se expandir para além de seu espaço inicial. Porém, em outros, o localismo era apenas o verniz que a adaptação às políticas neoliberais assumia junto à comunidade. Dessa matriz surgiram 41 Curso de Formação em Política Internacional.p65 41 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional tanto visões e práticas de enfrentamento com a ordem conservadora como de submissão a ela. Para dizê-lo um pouco caricaturalmente, com a mesma lógica se podia construir uma comunidade indígena zapatista autônoma no México ou uma parceria com o programa Comunidade Solidária no Brasil sob o governo FHC. No FSM a questão da política e a questão dos partidos são matérias pendentes. Há que se esclarecer que a “exclusão” de partidos na organização do FSM aconteceu num segundo momento. Qualquer um(a) que revisar as primeiras atas do que viria a ser o primeiro Comitê Organizador do FSM de 2001 verá que havia a presença de uma representante da direção nacional do PT. Nossa interpretação é de que a “separação formal”, que aconteceu a seguir, foi mais por comodidade do que por formulação política. Malgrado muitas identidades, seria difícil conciliar as prioridades da sociedade civil (elaborar agendas alternativas) com as dos partidos políticos de maior peso (como construir a governabilidade ao chegar ao poder). Assim, o FSM se firmou como “espaço da sociedade civil” no qual os partidos políticos são observadores ou parceiros em atividades realizadas por organizações sociais, mas não são eles mesmos “organizadores”12. Essa “solução” foi necessária em certo estágio de construção da contestação à ordem neoliberal. Mas não ajudará a sair do impasse estratégico. Serão necessárias novas formulações para “politizar a sociedade civil”, mas também para “desoligarquizar a política”. O diálogo entre essas esferas, seu mútuo questionamento, a busca de novas sínteses são tarefas que o próprio êxito do FSM pôs em pauta13. A questão agora (2007) assume feições próprias na América Latina pelo avan- 12 Essa fórmula foi implementada primeiro pelo Fórum Social Europeu e depois assumida pelo conjunto do FSM. A verdade é que nas primeiras edições do FSM o Comitê Organizador brasileiro foi amplamente tolerante e aceitou a realização de atividades de partidos desde que formalmente estivessem inscritas por alguma organização social. Atividades de governos (a começar pelas dos dois governos locais que apoiavam o evento) sempre foram aceitas, desde que em parceria com organizações sociais. 13 Contraditoriamente, em suas origens o FSM expressava talvez de maneira mais clara essa necessidade; não foi por outro motivo senão pela experiência do orçamento participativo iniciada em Porto Alegre, como embrião de uma “nova política”, que, quando se pensou em convocar o primeiro FSM para janeiro de 2001, o consenso entre entidades brasileiras e estrangeiras foi que deveria acontecer naquela cidade, um lugar onde o “outro mundo possível” já tinha começado a ser construído. Esse quadro regrediu com as derrotas eleitorais do PT no Rio Grande do Sul (2004) e em Porto Alegre (2006), mas, em compensação, se disseminou em várias experiências nacionais na América Latina. 42 Curso de Formação em Política Internacional.p65 42 5/6/2007, 12:41 Gustavo Codas ço de forças políticas progressistas e de esquerda no plano institucional, com cerca de uma dezena de países em que os governos têm projetos variados que afirmam querer superar a fase neoliberal e/ou a dependência em relação ao imperialismo norte-americano. Voltaremos a esse ponto quando tratarmos da conjuntura regional ao final deste texto. 5. A ASSEMBLÉIA DE MOVIMENTOS SOCIAIS Em outubro de 2000, isto é, quase quatro meses antes do primeiro FSM, reuniram-se representantes da CUT (Central Única dos Trabalhadores) e do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) em São Paulo para discutir a proposta que estava circulando entre várias redes internacionais de realizar dentro do FSM uma atividade que já em Porto Alegre seria conhecida como a Assembléia de Movimentos Sociais, e que foi finalmente convocada e organizada por um conjunto de organizações e redes nacionais, continentais e mundiais. Em diversas modalidades, assembléias similares aconteceram também nas edições regionais ou mundiais seguintes do FSM, sempre convocadas por um amplo leque de movimentos sociais. Sem negar as diferenças políticas entre seus participantes, essas assembléias buscavam identificar as visões políticas comuns sobre o período e em relação a uma agenda de mobilizações mundialmente articuladas. Sua novidade residia em sua realização dentro do FSM, buscando construir identidades no amplo espaço plural desse processo, sem se sobrepor a outras dinâmicas de convergência já existentes (sobretudo redes temáticas mundiais), mas fazendo com que dialogassem entre si e ajudando a que suas agendas fossem assumidas por novos segmentos. O momento de maior ressonância desses esforços foi quando a Assembléia de Movimentos Sociais do FS Europeu de 2002 e a do FSM de 2003 convocaram uma manifestação global contra a invasão militar do Iraque pelos Estados Unidos. Esse 15 de fevereiro de 2003 catalisou uma mobilização mundial sem precedentes. Porém, tão importante quanto esse momento, as assembléias foram construindo uma confiança política mútua entre as organizações participantes. Na terceira assembléia em Porto Alegre, em 2003, foi lançada a proposta de constituir uma rede como vínculo permanente entre os movimentos 43 Curso de Formação em Política Internacional.p65 43 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional participantes. Buscava-se promover as convergências para além dos momentos em que se realizavam os eventos. Assim, estamos hoje em um momento intermediário, tentando decifrar os caminhos possíveis de construção da rede colada com o cotidiano dos movimentos e evitar a constituição de mais uma “estrutura” – o que não desejamos nem é nosso objetivo construir. Outros setores também fizeram suas experiências de encontro e articulação dentro do FSM. Essa autogestão das convergências é uma dimensão ainda pouco analisada nos balanços até agora escritos. Houve ainda quem abordasse a realização das assembléias com desconfiança – como se as convergências autogeridas fossem antagônicas no que diz respeito à diversidade dentro do espaço FSM14. Porém, apesar de todas essas deficiências e dos mal-entendidos, o fato é que o FSM 2005 colocou como um dos pontos centrais de sua metodologia a tarefa de estimular experiências de convergências sobre plataformas, estratégias e ações. E a questão foi retomada no FSM de Nairóbi, em 2007, com um “quarto dia” dedicado a trabalhar articulações e o lançamento de campanhas, na expectativa de que em janeiro de 2008 se expressem em uma Jornada Mundial a ser realizada em todos os países/regiões/continentes no mesmo período do Fórum Econômico Mundial de Davos. Como em Seattle, serão os debates que tenham como objetivo construir lutas concretas que permitirão fazer todas as discussões estratégicas anteriormente referidas num ambiente que signifique um salto de qualidade para os movimentos de altermundialização. 6. A ALIANÇA SOCIAL CONTINENTAL Não temos escrita uma história da Aliança Social Continental, mas, sem dúvida, esta experiência se enquadra naquele contexto dos anos 199015. Seu antecedente mais remoto, provavelmente, foram os esforços de articulação realizados por organizações mexicanas, estadunidenses e canadenses para 14 Para essas críticas à assembléia ver os livros de Bernard Cassen (2003) – representante da ATTAC França – e de Chico Whitaker (2005) – representante da CBJP – com prefácio de Oded Grajew – por sua vez, representante da Cives. 15 Entre as referências disponíveis, ver o texto do mexicano Cueva (2000). 44 Curso de Formação em Política Internacional.p65 44 5/6/2007, 12:41 Gustavo Codas resistir ao NAFTA (North American Free Trade Agreement – Tratado de Livre Comércio da América do Norte). Essa experiência nos ensinou, primeiro, o que significava essa nova geração de acordos comerciais, mas também que era necessária e se podia fazer uma aliança entre movimentos do Sul e do Norte com objetivos comuns. Assim, quando retomou a proposta da Iniciativa para as Américas (1991) apresentada pelo governo do “primeiro” Bush, o presidente Clinton lançou em 1994 o desafio da ALCA, como uma extensão a todo o continente (exceto Cuba) do NAFTA, e não demorou para que movimentos da região se articulassem para entender o alcance dessa iniciativa, adotar posições comuns e responder ao desafio. Das primeiras escaramuças de 1997-1998, entre os encontros de Belo Horizonte (Minas Gerais) e de Santiago do Chile, surgiu a Aliança Social Continental. Houve uma primeira fase de sua construção que teve conteúdo político estratégico: conformar uma posição política comum entre movimentos sociais, centrais sindicais e ONGs nacionais e redes regionais muito diversas. O monitoramento dos temas em negociação, a educação popular de base para socializar as análises sobre o acordo proposto, os materiais de divulgação, a discussão e elaboração de uma “Alternativa para as Américas” (de contraposição ponto por ponto à agenda intergovernamental a partir da visão da sociedade civil) etc. foram fundamentais para que, em contraposição à Cúpula de Presidentes de Quebec, Canadá, em abril de 2001, organizada para impulsionar o capítulo final das negociações, a Cúpula dos Povos convocada pela ASC avançasse em dois pontos fundamentais. Por um lado, a Cúpula dos Povos em Quebec consolidou uma visão comum de que a ALCA não era “reformável”, de que não seria uma cláusula ambiental, trabalhista ou de gênero que tornaria o acordo aceitável, de que o problema com esse tipo de acordos era “o todo” e não apenas este ou aquele item. Isso era muito importante, já que segmentos de peso da sociedade civil vinham da experiência de ter-se oposto à avassaladora ofensiva neoliberal dos anos 1980-1990 apenas com estratégias de lobby ou “incidência” buscando “diminuir impactos negativos” sobre este ou aquele setor etc. Em Quebec houve um posicionamento majoritário por outro rumo estratégico. Isso se concretizou em outra decisão tomada naquele momento: diante da falta de transparência e da ausência de espaços democráticos de partici45 Curso de Formação em Política Internacional.p65 45 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional pação nas negociações e nas discussões sobre a ALCA, lançou-se o desafio de se fazer uma “consulta popular” continental. Isto é, já que os governos não discutiam com a população (nem com seus congressos nacionais!), os próprios movimentos fariam a consulta por meio de plebiscitos e de outras formas. Esse segundo componente da decisão da ASC em Quebec é que deu base para o lançamento da Campanha Continental de Luta contra a ALCA. Mas, não esqueçamos, sua gestação não foi simples nem linear. Houve dois momentos-chave de debates e de construção dessa política: a reunião do Conselho Hemisférico da ASC em setembro de 2001, em Florianópolis (Santa Catarina), e a primeira reunião da Campanha em janeiro de 2002, em Porto Alegre (imediatamente após o II Fórum Social Mundial). Em uma decidiu-se transformar a proposta de Quebec em um calendário imediato de mobilização pela consulta continental. Na segunda, deu-se prosseguimento ao anterior, ao se convocar todos aqueles setores que, estando ou não na ASC, estivessem dispostos, na linha aprovada em Quebec (“Não à ALCA”), a desenvolver a campanha nos diversos países do continente. A realização do primeiro Encontro Hemisférico de Luta contra a ALCA em abril de 2002 em Havana, Cuba, consagrou essa combinação de duas dinâmicas: a de uma campanha continental unitária (integrada por campanhas nacionais unitárias) que funcionasse como um “espaço aberto” porém militante (isto é, numa confluência daqueles e daquelas que querem deter e derrotar a ALCA). Por isso, podemos afirmar que em Quebec entramos em uma “segunda fase” da ASC, a da Campanha Continental de Luta contra a ALCA. Nela somaram-se naturalmente temas que os movimentos vinham tratando separadamente: a campanha contra a militarização e as bases militares norteamericanas na América Latina (da qual surgiu a rede CADA – Campanha pela Desmilitarização das Américas), a campanha pela anulação da dívida externa (liderada pelo Jubileu Sul Américas), a campanha pela soberania alimentar (impulsionada pela Via Campesina) etc. Podemos considerar que essa (segunda) fase terminou em novembro de 2005 em Mar del Plata, Argentina, quando ficou claro que a ALCA (tal como proposta pelo governo dos Estados Unidos) estava paralisada. Não somente tinha a rejeição da opinião pública de vários países da região e gerara importantes mobilizações populares contra o acordo e alguns dos pontos que estavam implicados nas negociações, como países de peso 46 Curso de Formação em Política Internacional.p65 46 5/6/2007, 12:41 Gustavo Codas (Mercosul + Venezuela) defenderam o abandono dessa agenda continental, e o governo Bush e seus aliados regionais (a começar por Vicente Fox, do México) não conseguiram recolocar o tema. A luta contra a ALCA produziu em nosso continente um dos processos de convergência política mais amplo e de maior peso que já ocorreram em nível mundial. Trata-se de uma acumulação política importante, porém insuficiente para a nova fase em que nos encontramos hoje. 7. DESAFIOS MUNDIAIS, POTENCIALIDADES LATINO-AMERICANAS, DILEMAS ALTERMUNDIALISTAS A América Latina entrou em um novo período político, com grandes potencialidades emancipadoras, cujos contornos e desenvolvimento ainda estão em construção e disputa. As dificuldades são imensas, mas trata-se de uma oportunidade histórica única para conquistar a nossa segunda e verdadeira independência. Nesse contexto, a questão da integração é decisiva para definir o rumo político a ser tomado pela região16. É inegável que esse processo de rearticulação das esquerdas tem tido um balanço globalmente positivo – ainda que com grandes heterogeneidades. A resistência deu seus frutos, como demonstra o fato de a negociação da ALCA estar paralisada e de terem surgido em diversos países forças políticas críticas do neoliberalismo e do imperialismo norte-americano com capacidade hegemônica (e que são governos nacionais em uma dezena de casos). Um processo de emancipação não depende, porém, apenas da construção de forças sociais e políticas com capacidade hegemônica; depende também de que haja uma base material que o possibilite. Até 1991, as revoluções ocorridas no século XX, posteriormente à soviética – independentemente do maior ou menor entusiasmo em relação a esta –, contavam com a retaguarda estratégica da URSS, ou seja, dispunham, fora do circuito eco- 16 Para o aprofundamento do debate sobre integração regional latino-americana recomendamos: Lander (2005); Mariátegui (1991); Bandeira (2006); Guimarães (2005); os resultados dos Encontros Hemisféricos em Havana e outros documentos dos movimentos sociais da região estão disponíveis no site da Aliança Social Continental, <www.asc-hsa.org>, e no portal <www.movimientos.org>. 47 Curso de Formação em Política Internacional.p65 47 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional nômico dominado pelo imperialismo, de um mercado para suas exportações, de uma fonte de aprovisionamento dos produtos que faltassem, de uma plataforma de tecnologias de ponta à qual podiam ter acesso etc. E como o mundo estava dividido pela confrontação URSS–Estados Unidos havia interesse por parte do governo soviético de ampliar suas áreas de influência. Mas, diante do fato de que a URSS tinha alcançado essa condição no quadro da tragédia da opção stalinista nas décadas de 1920-1930, era necessário se equilibrar entre utilizar essa retaguarda estratégica e não perder o caráter do processo revolucionário – dura prova pela qual passaria a experiência cubana. A questão é: desaparecida a URSS, qual seria a atual retaguarda estratégica? Se o processo emancipatório tivesse lugar num país periférico, haveria condições de manter e aprofundar seu rumo revolucionário estando ele inserido num mercado mundial dominado pelo imperialismo? Nem o pensamento revolucionário (desde Marx e Engels até meados do século XIX) nem o pensamento e a ação estratégica do imperialismo (desde 1917) admitiram jamais tal hipótese. No caso de nossa região, porém, há uma brecha que poderia ser utilizada. Produto da combinação da existência de amplas reservas de recursos naturais de todo tipo e do esforço de industrialização nas fases anteriores ao neoliberalismo, a América Latina tem um potencial regional para construir capacidades autônomas diante da pressão do capital imperialista. Mas não há nenhum país que possa fazê-lo isoladamente, devendo tal projeto constituir um objetivo comum a vários países. A integração regional é, pois, uma necessidade para os projetos emancipatórios, mas é também uma possibilidade concreta, graças ao surgimento, à consolidação e ao crescimento das forças que mencionamos anteriormente. As dificuldades residem, não obstante, no caráter inédito de um processo assim. Até agora, a integração regional sempre foi focalizada e entendida dentro da área de influência – e como parte da influência – de uma potência hegemônica. Mesmo o processo que resultou na União Européia deve ser entendido como parte da estratégia dos Estados Unidos de contenção da URSS. Já um processo de integração regional sem a liderança de uma potência hegemônica e, pior ainda, contra as pretensões hegemônicas da única atual 48 Curso de Formação em Política Internacional.p65 48 5/6/2007, 12:41 Gustavo Codas superpotência (Estados Unidos) não conta com uma doutrina que lhe proporcione antecedentes e consistência programática: será necessário elaborá-la à medida que se for avançando. Essa é a tarefa dramática que se impõe às esquerdas latino-americanas como resultado dos êxitos colhidos na fase anterior. 8. AGENDAS 1. Neste momento inédito da longa marcha pela emancipação indo-americana, será importante sistematizar as propostas e as lições dos esforços realizados em fases anteriores. Isso incluirá, certamente, o resgate crítico dos debates propostos por Simón Bolívar (a cujas iniciativas os Estados Unidos responderam com a Doutrina Monroe), José Carlos Mariátegui (em diálogo e polêmica com Haya de la Torre), por pensadores da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe-Cepal (Comissão Econômica para a América Latina) (como Raúl Prebish, Celso Furtado, Aníbal Pinto e Maria C. Tavares), por Ernesto Che Guevara e teóricos da dependência (como Rui Mauro Marini), entre outros. 2. Qual deverá ser a identidade política desse amplo processo? Identidade ou identidades? O nacionalismo nos países periféricos ou dependentes tem um caráter revolucionário quando é antiimperialismo17. Mas, quando se orienta a disputas entre países da periferia, torna-se um patrioterismo da pior espécie, facilmente manipulado por interesses imperialistas. Existem na região conflitos latentes entre países que, se guiados por essa dinâmica, levariam à desagregação política e ao fracasso da idéia de que há alternativas à hegemonia imperialista na América Latina. Para superar essa dificuldade, o presidente Hugo Chávez tem proposto o “bolivarianismo” e, de fato, o legado de Bolívar se mostra de grande atualidade para as tarefas que estão hoje colocadas. No entanto, é necessário se perguntar – partindo inclusive das experiências do século passado – sobre a pertinência da busca de uma só 17 Mas quando o nacionalismo é uma ideologia dos Estados imperialistas trata-se de uma ideologia reacionária. 49 Curso de Formação em Política Internacional.p65 49 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional identidade política, mesmo que ideologicamente ampla. Parece que o mais correto será buscar a convergência a partir de diversas identidades, desde que orientadas pelo objetivo estratégico comum de uma construção contrahegemônica na região. 3. Quais devem ser os conteúdos desse processo? Ou seja, qual seria o seu “programa”? Como se afirma anteriormente, ele não está pronto: é e será um processo. E, se admitirmos uma pluralidade de identidades convergentes, deveremos considerar inclusive uma pluralidade de programas. Não obstante, há algumas diretrizes que podem se afirmar desde já. É lógico e compreensível que cada governo inicie o processo utilizando os meios que sua economia nacional possui no momento. Entretanto, se ficarem apenas nisso, será uma mera reiteração do momento atual (de dependência e subdesenvolvimento), que justamente se pretende superar. Por isso, é fundamental vincular os debates sobre a superação do neoliberalismo dentro de nossos países ao processo de integração regional. Por outro lado, nossas economias foram construídas historicamente para servir às metrópoles, possuem inclusive características de unidades competidoras entre si por mercados do capitalismo central e por capitais imperialistas nos mesmos ramos. Um projeto de integração deveria, assim, significar um amplo processo de redefinição de nossas estruturas produtivas, das infra-estruturas de transporte e comunicação, das matrizes energéticas etc., para fazer da região uma unidade econômica comum voltada para as necessidades de seus povos. Por último, não há entre nossos países um único que seja capaz de liderar os demais, porque nenhum tem capacidades hegemônicas regionais; isso significa que, nesse processo, ou se constitui uma liderança compartilhada entre vários países, ou não haverá processo regional. (Este último é um desafio particularmente importante e estimulante, já que o pensamento estratégico convencional não prevê esta hipótese: deverá ser uma criação heróica de nossos povos.) 4. Como fica claro neste artigo, esse processo não começou agora, nem caiu do céu. É resultado de lentos e persistentes esforços de construção de atores políticos e sociais, em nossos países e em nível regional. Por isso, como método, é fundamental partir daquilo que vem sendo construído em 50 Curso de Formação em Política Internacional.p65 50 5/6/2007, 12:41 Gustavo Codas termos de espaços de convergência e de capacidade de mobilização. Nessa trajetória, a Cúpula dos Povos das Américas, reunida de 6 a 9 de dezembro de 2006 em Cochabamba, Bolívia, convocada pela ASC e pelo Movimento Boliviano pela Soberania e Integração dos Povos, concomitantemente à Cúpula de Presidentes da América do Sul, significou um salto de qualidade: houve um forte diálogo com os governos presentes – com a facilitação do presidente Evo Morales e sua equipe –, mesmo que preservada a autonomia dos movimentos sociais participantes. Porém, faltaram ou tiveram fraca participação alguns atores-chave do cenário político regional, como os partidos políticos de esquerda e progressistas. O êxito do processo de lenta recomposição das esquerdas de que são parte os Fóruns Sociais (Mundial e Regional), a Assembléia de Movimentos Sociais e a Aliança Social Continental colocou com redobrada força o desafio de, finalmente, superar os impasses nas relações entre governos progressistas, forças partidárias de esquerda e movimentos altermundialistas. O ponto em que ficou a elaboração do “método do FSM” (de mero “espaço aberto” e de negação do debate aberto e da negociação programática e alianças com governos e partidos) é insuficiente para dar conta desse recado. É por isso que o filipino Walden Bello, um dos principais animadores asiáticos do FSM desde seu início, escreveu recentemente que, após Nairóbi, “muitos antigos participantes no Fórum se perguntam: é o FSM o melhor veículo para a nova etapa da luta do movimento altermundialista? Ou, tendo cumprido sua função histórica de somar e vincular os diversos movimentos de oposição provocados pelo capitalismo global, será hora de que o FSM levante seu acampamento e deixe espaço para novas formas de organização global da resistência e da transformação?” (Bello, 2007). De nossa parte, afirmamos que na América Latina o próprio Fórum tem condições de ir mais além daquele estágio e que esse será o grande desafio do FS das Américas que deve acontecer na Guatemala em outubro de 2008. 51 Curso de Formação em Política Internacional.p65 51 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Por outro lado, a elaboração programática da ASC, fruto fundamentalmente da fase de resistência à ALCA, também não está à altura do desafio da integração regional. Cochabamba abriu um novo caminho, mas não respondeu satisfatoriamente à necessária articulação de todos os atores políticos relevantes no cenário latino-americano. É necessário escrever um novo capítulo na história da emancipação política e social dos povos indo-americanos. E, diferentemente de em outros momentos, essa emancipação não é somente um desejo, mas também uma possibilidade concreta! BIBLIOGRAFIA AGUITON, Christophe. O mundo nos pertence. São Paulo, Viramundo, 2002. 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Um modo de ver. Prefácio de Oded Grajew. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo/ Edições Loyola, 2005. 52 Curso de Formação em Política Internacional.p65 52 5/6/2007, 12:41 Gustavo Codas TEXTOS DISPONÍVEIS NA INTERNET BANCO CENTRAL DE CUBA. “La Economía Cubana en el Período Especial”. Disponível em: <www.bc.gov.cu/Espanol/economia_cubana.asp>. BANDEIRA, Luiz A. Moniz. “¿Qué quiere Brasil con Sudamérica?” (entrevista). La onda digital. Montevidéu, 29 maio 2006. Disponível em: <www.uruguay2030.com/LaOnda/LaOnda/>. BELLO, Walden. “The World Social Forum at the Crossroads”, 8 de maio de 2007. Disponível em: <www.zmag.org/content/showarticle.cfm? SectionID=1&ItemID=12772>. 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Este texto aborda algumas dessas questões, bem como sugere leituras (principalmente aquelas disponíveis em língua portuguesa) que permitem uma abordagem acessível a militantes interessados em ter uma visão geral sobre o assunto. Comecemos pelas origens do capitalismo. Embora pareça algo banal, reconhecer o capitalismo como um fenômeno histórico é algo de enorme significado político, pois aceitar que ele teve uma origem reforça a idéia de que ele poderá ter um fim. Entre os inúmeros autores que trataram do assunto, citaremos o professor inglês Maurice Dobb. Professor de economia e um dos “fundadores” da escola de marxistas ingleses integrada por Eric Hobsbawn, E. P. Thompson, Cristopher Hill e Rodney Hilton, Dobb é autor do livro A evolução do capitalismo, publicado em 1946. 1 Secretário de relações internacionais do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores. Graduado, mestre e doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. É co-autor (com Reinaldo Gonçalves) de A armadilha da dívida e de O Brasil endividado (com Marco Aurélio Garcia e Juarez Guimarães), e de Socialismo no século XXI, livros publicados pela Editora Fundação Perseu Abramo. 54 Curso de Formação em Política Internacional.p65 54 5/6/2007, 12:41 Valter Pomar O primeiro capítulo da obra de Dobb dedica-se exatamente a definir o significado de “capitalismo”, entre outros motivos porque, “se o capitalismo não existe como entidade histórica, os críticos da ordem econômica atual que reclamam uma mudança do sistema estão lutando contra moinhos de vento”. Dobb (1973) afirma que, “por terem exercido uma influência sobre a pesquisa e a interpretação históricas, três significados separados e atribuídos ao capitalismo surgem com destaque. Embora em alguns aspectos os mesmos se sobreponham, cada um deles se associa a uma visão distinta da natureza do desenvolvimento histórico, cada qual acarreta um tratado de fronteiras cronológicas bem diferentes para o sistema, e cada qual resulta num relato causal diferente quanto à origem do capitalismo e o crescimento do mundo moderno”. A primeira abordagem é a que busca “a essência do capitalismo” não “em qualquer dos aspectos de sua anatomia econômica ou sua fisiologia”, mas no “espírito” predominante na época: o espírito de empresa, de empreendimento, de aventura, de cálculo, de racionalidade. Ou, nas palavras recentes de um filósofo menor, o “espírito animal” do empresário. Uma obra clássica partidária desta primeira abordagem é A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber (2004), para quem o capitalismo está presente “onde quer que a provisão industrial para as necessidades de um grupo humano seja executada pelo método de empresa”. A segunda abordagem identifica o capitalismo com o comércio, ou ainda com a “produção voltada para a troca”. Essa abordagem é extremamente influente e está na base das correntes teóricas (como o “utilitarismo” e o “marginalismo”) que buscam o “segredo” do capitalismo não no processo de produção, mas sim no processo de circulação de mercadorias. Uma compreensão panorâmica dessas correntes teóricas é apresentada no livro História do pensamento econômico, de E. K. Hunt (1989). A terceira abordagem é a que considera o capitalismo um “modo de produção” específico, distinto de outros existentes na história da humanidade. 55 Curso de Formação em Política Internacional.p65 55 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional O conceito de “modo de produção” é adotado, aqui, no sentido mais amplo do termo, ou seja, “as relações que os seres humanos estabelecem entre si e com a natureza, no processo de produção e reprodução de sua vida social”. A obra clássica daqueles que defendem essa abordagem é O capital, de Karl Marx (2006), que veio à luz em 1867. Anos antes, em 1859, Marx resumira assim seu método: “(...) na produção social da sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral. Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência. Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de produção existentes, ou, o que não é senão a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram até ali. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se convertem em obstáculos a elas. E se abre, assim, uma época de revolução social. Ao mudar a base econômica, revoluciona-se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura erigida sobre ela. Quando se estudam essas revoluções, é preciso distinguir sempre entre as mudanças materiais ocorridas nas condições econômicas de produção, e que podem ser apreciadas com a exatidão própria das ciências naturais, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, numa 56 Curso de Formação em Política Internacional.p65 56 5/6/2007, 12:41 Valter Pomar palavra, as formas ideológicas em que os homens adquirem consciência desse conflito e lutam para resolvê-lo. E, do mesmo modo que não podemos julgar um indivíduo pelo que ele pensa de si mesmo, não podemos tampouco julgar estas épocas de revolução pela sua consciência, mas, pelo contrário, é necessário explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção” (Marx, 2003). Uma visão de conjunto sobre as idéias de Marx pode ser encontrada no livro do economista belga Ernest Mandel (1980) A formação do pensamento econômico de Karl Marx. Para uma visão sobre a evolução das diferentes correntes marxistas, recomenda-se a leitura de Considerações sobre o marxismo ocidental, de Perry Anderson (2004). É importante dizer que a metodologia histórica formulada por Marx e Friedrich Engels tem sido parcialmente adotada, nas últimas décadas e particularmente nos últimos anos, por pessoas que não são comunistas, socialistas, revolucionárias ou tampouco se consideram marxistas. Nessa linha, recomenda-se a leitura de A dinâmica do capitalismo, de Fernand Braudel (1987). Segundo as abordagens do “espírito” e do “comércio”, o capitalismo já estaria presente desde a Antiguidade clássica, pelo menos. Para a abordagem inspirada em Marx, o capitalismo seria um fenômeno histórico relativamente recente, produto da desagregação do feudalismo na Europa ocidental. Para conhecer a visão de Marx sobre as Formações econômicas pré-capitalistas (1977), sugere-se a leitura da obra de mesmo nome, precedida por uma introdução de Eric Hobsbawn, e também do texto “Modo de producción asiático y los esquemas marxistas de evolución de las sociedades”, de Maurice Godelier (1969), no livro Sobre el modo de produccion asiático. Em A evolução do capitalismo, Maurice Dobb propõe uma interpretação do processo de transição do feudalismo ao capitalismo. O tema gerou intensa polêmica, como pode ser visto na coletânea intitulada A transição do feudalismo para o capitalismo (Sweezy et alii, 1983). Obra mais recente sobre aspectos daquela transição é Linhagens do Estado absolutista, de Perry Anderson (2004). Embora haja opiniões distintas sobre o surgimento do capitalismo, há enorme consenso sobre a importância da chamada “revolução industrial”, bem 57 Curso de Formação em Política Internacional.p65 57 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional como das chamadas “revoluções burguesas” (a inglesa do século XVII, a norte-americana e a francesa do século XVIII, as várias revoluções ocorridas em diferentes países da Europa no século XIX) na sua evolução posterior. Estes temas são tratados de maneira bastante didática por Eric Hobsbawn em dois livros: Da revolução industrial inglesa ao imperialismo (1979) e A era das revoluções (1977). Do mesmo autor, A era do capital (1988) descreve a analisa a evolução do capitalismo entre 1848 e 1875. Entre o final do século XIX e o início do século XX, o capitalismo passou a apresentar características muito diferentes daquele que havia sido estudado por Marx em O capital. Essas características foram analisadas, na época, por cinco obras que hoje são consideradas clássicas: a) Imperialismo, de John Hobson, de 1902 (1985); b) O capital financeiro, de Rudolf Hilferding, de 1910 (1985); c) A acumulação do capital, de Rosa Luxemburgo, de 1912 (1976); d) A economia mundial e o imperialismo, de Nikolai Bukharin, de 1915 (1984); e) Imperialismo: etapa superior do capitalismo, de Vladimir Lenin, de 1916 (1979). Embora tenham pontos em comum, essas cinco obras chegam a conclusões distintas. Delas, a que obteve maior repercussão política foi a de Lenin, adotada “oficialmente” pelo movimento comunista. A partir de então e até hoje, há uma enorme controvérsia sobre o “imperialismo”. Até porque, como disse Emir Sader em Século XX. Uma biografia não autorizada (2000), quem quiser se calar sobre o fenômeno do imperialismo deverá calar-se sobre o século XX. Uma introdução ao período 1875-1914 é fornecida por Eric Hobsbawn em A era dos impérios (1988). A revista Margem Esquerda (2005) organizou um dossiê inteiramente dedicado ao tema. A definição proposta por Lenin, no sétimo capítulo de seu “ensaio popular” sobre o imperialismo, é a seguinte: “O imperialismo surgiu como desenvolvimento e continuação direta das características fundamentais do capitalismo em geral. Mas o capitalismo só se transformou em imperia58 Curso de Formação em Política Internacional.p65 58 5/6/2007, 12:41 Valter Pomar lismo capitalista quando chegou a um determinado grau, muito elevado, do seu desenvolvimento, quando algumas das características fundamentais do capitalismo começaram a transformar-se na sua antítese, quando ganharam corpo e se manifestaram em toda a linha os traços da época de transição do capitalismo para uma estrutura econômica e social mais elevada. O que há de fundamental neste processo, do ponto de vista econômico, é a substituição da livre concorrência capitalista pelos monopólios capitalistas. A livre concorrência é a característica fundamental do capitalismo e da produção mercantil em geral; o monopólio é precisamente o contrário da livre concorrência, mas esta começou a transformar-se diante dos nossos olhos em monopólio, criando a grande produção, eliminando a pequena, substituindo a grande produção por outra ainda maior, e concentrando a produção e o capital a tal ponto que do seu seio surgiu e surge o monopólio: os cartéis, os sindicatos, os trustes e, fundindo-se com eles, o capital de uma escassa dezena de bancos que manipulam milhares de milhões. Ao mesmo tempo, os monopólios, que derivam da livre concorrência, não a eliminam, mas existem acima e ao lado dela, engendrando assim contradições, fricções e conflitos particularmente agudos e intensos. O monopólio é a transição do capitalismo para um regime superior. Se fosse necessário dar uma definição o mais breve possível do imperialismo, dever-se-ia dizer que o imperialismo é a fase monopolista do capitalismo. Essa definição compreenderia o principal, pois, por um lado, o capital financeiro é o capital bancário de alguns grandes bancos monopolistas, fundido com o capital das associações monopolistas de industriais, e, por outro lado, a partilha do mundo é a transição da política colonial que se estende sem obstáculos às regiões ainda não apropriadas por nenhuma potência capitalista para a política colonial de posse monopolista dos territórios do globo já inteiramente repartido. 59 Curso de Formação em Política Internacional.p65 59 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Mas as definições excessivamente breves, se bem que cômodas, pois contêm o principal, são insuficientes, já que é necessário extrair delas especialmente traços muito importantes do que é preciso definir. Por isso, sem esquecer o caráter condicional e relativo de todas as definições em geral, que nunca podem abranger, em todos os seus aspectos, as múltiplas relações de um fenômeno no seu completo desenvolvimento, convém dar uma definição do imperialismo que inclua os cinco traços fundamentais seguintes: 1) a concentração da produção e do capital levada a um grau tão elevado de desenvolvimento, que criou os monopólios, os quais desempenham um papel decisivo na vida econômica; 2) a fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, baseada nesse ‘capital financeiro’, da oligarquia financeira; 3) a exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, adquire uma importância particularmente grande; 4) a formação de associações internacionais monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre si, e 5) o término da partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes. O imperialismo é o capitalismo na fase de desenvolvimento em que ganhou corpo a dominação dos monopólios e do capital financeiro, adquiriu marcada importância a exportação de capitais, começou a partilha do mundo pelos trustes internacionais e terminou a partilha de toda a terra entre os países capitalistas mais importantes. Mais adiante veremos como se pode e deve definir de outro modo o imperialismo, se tivermos em conta não só os conceitos fundamentais puramente econômicos (aos quais se limita a definição que demos), mas também o lugar histórico que esta fase do capitalismo ocupa relativamente ao capitalismo em geral, ou a relação entre o imperialismo e as duas tendências fundamentais do movimento operário. O que agora há a considerar é que, interpretado no sentido referido, o imperialismo representa em si, indubitavelmente, 60 Curso de Formação em Política Internacional.p65 60 5/6/2007, 12:41 Valter Pomar uma fase particular de desenvolvimento do capitalismo. (...) evidentemente que na natureza e na sociedade todos os limites são convencionais e mutáveis, que seria absurdo discutir, por exemplo, sobre o ano ou a década precisos em que se instaurou definitivamente o imperialismo” (Lenin, 1979). A análise de Lenin acerca do imperialismo contém, além desta discussão sobre seu lugar no processo de evolução do capitalismo, uma análise de suas implicações políticas (no sentido nacional e internacional). Lenin apresenta seu ponto de vista em O imperialismo, etapa superior do capitalismo, muitas vezes por meio de críticas a Karl Kautsky, então o principal teórico do Partido Socialdemocrata alemão. Uma boa introdução ao pensamento de Kautsky está na coletânea Karl Kautsky e o marxismo (Mattick et alii, 1988). Seus principais oponentes na socialdemocracia alemã foram Eduardo Bernstein, autor de Socialismo evolucionário (1997), e Rosa Luxemburgo, autora de Reforma ou revolução (1975). Segundo Kautsky (1988), o imperialismo seria “um produto do capitalismo industrial altamente desenvolvido. Consiste na tendência de toda nação capitalista industrial a submeter ou anexar cada vez mais regiões agrárias, quaisquer que sejam as nações que as povoam”. Lenin dizia que esta definição “destaca de um modo unilateral (...) apenas o problema nacional (se bem que seja da maior importância, tanto em si como na sua relação com o imperialismo), relacionandoo arbitrária e erradamente só com o capital industrial dos países que anexam outras nações, e colocando em primeiro plano, da mesma forma arbitrária e errada, a anexação das regiões agrárias”. Para Lenin, o que é característico do imperialismo “não é precisamente o capital industrial, mas o capital financeiro (...) o que é característico do imperialismo é pre61 Curso de Formação em Política Internacional.p65 61 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional cisamente a tendência para a anexação não só das regiões agrárias, mas também das mais industriais (...) pois, em primeiro lugar, estando já concluída a divisão do globo, isso obriga, para fazer uma nova partilha, a estender a mão sobre todo o tipo de territórios; em segundo lugar, faz parte da própria essência do imperialismo a rivalidade de várias grandes potências nas suas aspirações à hegemonia, isto é, a apoderarem-se de territórios não tanto diretamente para si, como para enfraquecer o adversário e minar a sua hegemonia (...)” (Lenin, 1979). Kautsky (1988) considerava que “do ponto de vista puramente econômico não está excluído que o capitalismo passe ainda por uma nova fase: a aplicação da política dos cartéis à política externa, a fase do ultra-imperialismo (...) o superimperialismo, a união dos imperialismos de todo o mundo, e não a luta entre eles, a fase da cessação das guerras sob o capitalismo (...) a fase da exploração geral do mundo pelo capital financeiro, unido internacionalmente”. Lenin, falando em tese, considera indiscutível que se pode dizer que “o desenvolvimento vai na direção do monopólio; portanto vai na direção do monopólio mundial único, de um truste mundial único”. Mas, ao mesmo tempo, considera esta afirmação uma abstração vazia e acusa as “divagações de Kautsky sobre o ultra-imperialismo” de estimularem “a idéia profundamente errada (...) de que a dominação do capital financeiro atenua a desigualdade e as contradições da economia mundial, quando, na realidade, o que faz é acentuá-las”. Para Lenin, “as alianças ‘interimperialistas’ ou ultra-imperialistas (...) seja qual for a sua forma: uma coligação imperialista contra outra coligação imperialista, ou uma aliança geral de todas as potências imperialistas, só podem ser, inevitavel62 Curso de Formação em Política Internacional.p65 62 5/6/2007, 12:41 Valter Pomar mente, ‘tréguas’ entre guerras. As alianças pacíficas preparam as guerras e por sua vez surgem das guerras, conciliando-se mutuamente, gerando uma sucessão de formas de luta pacífica e não-pacífica sobre uma mesma base de vínculos imperialistas e de relações recíprocas entre a economia e a política mundiais” (Lenin, 1979). No décimo capítulo de seu “ensaio popular”, capítulo intitulado “O lugar do imperialismo na história”, Lenin afirma o seguinte: “(...) o imperialismo é, pela sua essência econômica, o capitalismo monopolista. Isto determina já o lugar histórico do imperialismo, pois o monopólio, que nasce única e precisamente da livre concorrência, é a transição do capitalismo para uma estrutura econômica e social mais elevada. Há que assinalar particularmente quatro variedades essenciais do monopólio, ou manifestações principais do capitalismo monopolista, características do período que nos ocupa. Primeiro: o monopólio é um produto da concentração da produção num grau muito elevado do seu desenvolvimento. Formam-no as associações monopolistas dos capitalistas, os cartéis, os sindicatos e os trustes. Vimos o seu enorme papel na vida econômica contemporânea. Nos princípios do século XX atingiram completo predomínio nos países avançados (...) Segundo: os monopólios vieram agudizar a luta pela conquista das mais importantes fontes de matérias-primas, particularmente para a indústria fundamental e mais cartelizada da sociedade capitalista: carvão e aço. A posse monopolista das fontes mais importantes de matériasprimas aumentou enormemente o poderio do grande capital e agudizou as contradições entre a indústria cartelizada e a não-cartelizada. Terceiro: o monopólio surgiu dos bancos, os quais, de modestas empresas intermediárias que eram antes, se transfor63 Curso de Formação em Política Internacional.p65 63 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional maram em monopolistas do capital financeiro. Três ou cinco grandes bancos de cada uma das nações capitalistas mais avançadas realizaram a ‘união pessoal’ do capital industrial e bancário, e concentraram nas suas mãos somas de milhares e milhares de milhões, que constituem a maior parte dos capitais e dos rendimentos em dinheiro de todo o país. A oligarquia financeira, que tece uma densa rede de relações de dependência entre todas as instituições econômicas e políticas da sociedade burguesa contemporânea sem exceção: tal é a manifestação mais evidente deste monopólio. Quarto: o monopólio nasceu da política colonial. Aos numerosos ‘velhos’ motivos da política colonial, o capital financeiro acrescentou a luta pelas fontes de matérias-primas, pela exportação de capitais, pelas ‘esferas de influência’, isto é, as esferas de transações lucrativas, de concessões, de lucros monopolistas, etc., e, finalmente, pelo território econômico em geral. (...) É geralmente conhecido até que ponto o capitalismo monopolista agudizou todas as contradições do capitalismo. (...) Esta agudização das contradições é a força motriz mais poderosa do período histórico de transição iniciado com a vitória definitiva do capital financeiro mundial. Os monopólios, a oligarquia, a tendência para a dominação em vez da tendência para a liberdade, a exploração de um número cada vez maior de nações pequenas ou fracas por um punhado de nações riquíssimas ou muito fortes: tudo isto originou os traços distintivos do imperialismo, que obrigam a qualificá-lo de capitalismo parasitário, ou em estado de decomposição. (...) No seu conjunto, o capitalismo cresce com uma rapidez incomparavelmente maior do que antes, mas este crescimento não só é cada vez mais desigual como a desigualdade se manifesta também, de modo particular, na decomposição dos países mais ricos em capital (Inglaterra) (...) De tudo o que dissemos sobre a essência econômica do imperialismo, deduz-se que se deve 64 Curso de Formação em Política Internacional.p65 64 5/6/2007, 12:41 Valter Pomar qualificá-lo de capitalismo de transição ou, mais propriamente, de capitalismo agonizante” (Lenin, 1979). As conclusões de Lenin foram criticadas, recentemente, pelo conhecido historiador brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira, que na “Introdução” de Formação do Império americano afirma o seguinte: “A prática, entendida como o curso da história, não confirmou a teoria de Lenin, segundo a qual o imperialismo representava a fase superior do capitalismo, o capitalismo em ‘decomposição’, o ‘capitalismo de transição, capitalismo agonizante’, o ‘prelúdio da revolução social do proletariado’, pois estava ‘às portas de sua ruína, maduro até o ponto de ceder o posto ao socialismo’. O critério da verdade não pode consistir em comparar as diferentes teorias, mas em compará-las com a realidade. E o que a realidade comprovou foi que a política imperialista, conforme Kautsky previra, foi desalojada por outra nova, ultraimperialista, em que a exploração de todo o mundo pelo capital financeiro, unido internacionalmente, globalizado, substituiu a luta entre si dos capitais financeiros nacionais, competição que se desdobrava por meio das armas no mercado mundial. A guerra de 1914-1918 permitiu que os Estados Unidos conquistassem a preeminência no sistema capitalista, embora contestada durante algum tempo pela Alemanha nazista. Todavia, a partir da Segunda Guerra Mundial, derrotado o nazifascismo, ninguém mais podia imaginar uma guerra entre as grandes potências capitalistas, não obstante as contradições que subsistissem ou pudessem ocorrer. A política imperialista fora realmente substituída por uma nova, ultra-imperialista, implementada pelos Estados Unidos, como potência hegemônica, capaz de modelar a vontade de outros Estados e de conduzir a política internacional, de conformidade com seus interesses, através de um 65 Curso de Formação em Política Internacional.p65 65 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional sistema de alianças e de pactos, que passaram a construir a partir de 1945” (Bandeira, 2005). A crítica de Moniz Bandeira mostra como o debate sobre o imperialismo segue atual e tem implicações práticas na análise e na prática das relações internacionais. Curiosamente, o mesmo Moniz Bandeira que critica Lenin afirma que a formação do Império americano é o epílogo “da globalização do sistema capitalista, iniciada com as viagens de circunavegação, nos séculos XV e XVI”. Nada mais humano do que a tentação de qualificar a época em que se vive como a etapa “superior”, o “epílogo”, a “última” do capitalismo. Neste particular, é essencial distinguir conclusões teóricas de datação de processos históricos. É óbvio que o imperialismo contemporâneo de Lenin não foi o último momento da vida do capitalismo, que sobrevive até os dias de hoje. Da mesma forma, o atual “epílogo” identificado por Moniz Bandeira pode durar vários séculos. Outra questão é saber se o estágio monopolista constitui ou não o ponto mais alto do desenvolvimento capitalista, diante do qual só haveria três desenlaces possíveis: a barbárie, o socialismo e o recomeço cíclico. O que ocorreu logo após a publicação de Imperialismo, etapa superior do capitalismo foram três décadas de crises econômicas, sociais e políticas, inclusive duas guerras mundiais e diversas revoluções que levaram partidos de esquerda ao poder. Após a Segunda Guerra, tivemos um processo de descolonização (especialmente na Ásia e na África), desenvolvimentismo (especialmente na América Latina), bem-estar social (basicamente na Europa) e expansão do chamado campo socialista. Este período da história (de 1914 a 1991) foi descrito por Eric Hosbawn em Era dos extremos (1995). Bem pesados os fatos, parece que Lenin estava certo (e não Kaustky) ao perceber o imenso potencial destrutivo (e criativo) inaugurado pela etapa imperialista do capitalismo. Ocorre que o capitalismo não sucumbiu a essa crise geral. E, paradoxalmente, a existência de um “campo socialista” (articulado, de diferentes maneiras, com a descolonização, o desenvolvimentismo e o bem-estar social) ajudou a criar as condições para o surgimento de mecanismos de cooperação intercapitalista, tanto no terreno político quanto no econômico, que recordam a aliança “interimperialista” vislumbrada por Kautsky. 66 Curso de Formação em Política Internacional.p65 66 5/6/2007, 12:41 Valter Pomar Mas a condição fundamental para essa aliança interimperialista era a existência da ameaça socialista. E a “paz” proporcionada pela disputa entre “campo socialista” e “campo capitalista” era, em boa medida, assegurada pelas possibilidades de destruição mútua e acompanhada por violentos conflitos militares, especialmente na Ásia e na África. O período que se estende do final da Segunda Guerra Mundial até o final dos anos 1960 foi, de toda forma, bastante atípico, provocando inclusive o surgimento de novas interpretações acerca do capitalismo, do imperialismo e do próprio socialismo (vejam-se as “teorias” dos “três mundos”, do “socialimperialismo”, do “socialismo real” e dos “Estados operários burocraticamente degenerados”). Os volumes 11 e 12 da História do marxismo (1989), de Hobsbawn, proporcionam um sobrevôo sobre as questões enfrentadas pela esquerda naquele período, inclusive nos países do chamado campo socialista. Cinqüenta anos de pensamento na CEPAL, de Ricardo Bielschowsky (2007), traz textos fundamentais, ilustrativos das teorias da dependência e do desenvolvimentismo na América Latina. Um mapa da esquerda na Europa ocidental (Anderson, 2006) reúne informações básicas sobre a socialdemocracia e o Estado de bem-estar social. O intenso desenvolvimento capitalista ocorrido depois da Segunda Guerra Mundial preparou o terreno tanto para a crise dos anos 1970 como para o que está ocorrendo hoje. A era neoliberal, neste sentido, é filha inesperada do casamento entre o imenso desenvolvimento estimulado pelas políticas inspiradas em Keynes (Skideslky, 1999) e a incapacidade da esquerda de aproveitar aquele período e aquela crise para iniciar um novo ciclo de transformações socialistas. A crise do capital, de Ernest Mandel (1990), traz uma descrição da “primeira recessão generalizada” da economia capitalista internacional desde a Segunda Guerra Mundial. E Balanço do neoliberalismo, de Perry Anderson (2003), mostra os caminhos políticos e ideológicos trilhados pelas forças capitalistas para sobreviver com sucesso a essa crise. Entre 1970 e 1990, o capitalismo dos países centrais venceu a batalha contra o “campo socialista”, contra os “desenvolvimentistas”, contra a “socialdemocracia” e contra os “nacionalismos revolucionários”. Os anos 1990 começaram, portanto, assistindo ao triunfo do neoliberalismo, da “financeirização” e da hegemonia dos Estados Unidos. 67 Curso de Formação em Política Internacional.p65 67 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Do ponto de vista ideológico, a palavra-chave era “globalização”. Segundo José Luís Fiori e Maria da Conceição Tavares: “Não há dúvida de que a palavra globalização foi cunhada no campo próprio das ideologias, transformando-se, nesta última década, num lugar-comum de enorme conotação positiva, apesar de sua visível imprecisão conceitual. É provável, inclusive, que esta palavra passe à história dos modismos sem jamais adquirir um estatuto teórico, mantendo-se como um conceito inacabado. Mas também não há dúvida de que, apesar de tudo isto, poucas palavras possuem tamanha força política neste final de século XX, o que já seria razão suficiente para submetê-la a um exame rigoroso e crítico” (Tavares e Fiori, 1993). A Guerra do Golfo (1991) foi um sinal de que a aliança interimperialista encabeçada pelos Estados Unidos, sob pretexto de combater o campo socialista liderado pela URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), parecia estar se transformando numa hegemonia unilateral dos Estados Unidos sobre todo o mundo, inclusive sobre os demais Estados capitalistas centrais. Mas, em algum ponto entre o levante zapatista de 1º de janeiro de 1994 e os atentados de 11 de setembro de 2001, ficou claro que a instabilidade seria uma das principais características da nova fase da história mundial. Como era de se esperar, a crise do socialismo foi acompanhada de uma profunda “desordem mundial”, em todos os terrenos: ambiental, social, político, ideológico, militar. Não há como negar a relação entre isso e o aprofundamento da hegemonia capitalista, após a “queda do Muro”. Essa constatação é compartilhada, hoje, tanto por quem deseja “organizar” o capitalismo como por quem deseja construir outro modo de produção e organização da vida social. Mas no início dos anos 1990 o pensamento crítico foi turvado pelos efeitos da crise geral do socialismo, que, embora viesse de antes, atingiu seu ápice exatamente com o fim da União Soviética. Aquela crise gerou uma imensa euforia na intelectualidade pró-capitalista, bem como uma confusão generalizada entre os pensadores socialistas. 68 Curso de Formação em Política Internacional.p65 68 5/6/2007, 12:41 Valter Pomar Na direita, um exemplo dessa euforia é o muito citado mas pouco lido artigo “O fim da história”, de Francis Fukuyama, analisado longamente por Perry Anderson (1992) no livro O fim da história, de Hegel a Fukuyama. Mas a direita não foi acometida pela ingenuidade tão comum em certos meios de esquerda: a suposta derrota final do socialismo não implicaria, em nenhum caso, o fim dos conflitos, como foi reconhecido em 1996, por exemplo, pelo superconservador Samuel Huntington em O choque das civilizações e a recomposição da ordem mundial (1996). Na intelectualidade socialista predominaram num primeiro momento a revisão de “paradigmas”, o rebaixamento de horizontes e o abandono de premissas teóricas fundamentais do marxismo, até então amplamente hegemônico na esquerda. No balanço das tentativas de construção do socialismo, que ocuparam um lapso temporal muito curto e tiveram curso em países de baixo desenvolvimento capitalista, muitos chegaram à conclusão de que seria impossível construir uma sociedade sem classes e sem Estado, baseada na propriedade social dos meios de produção (Pomar, 1994). Na discussão sobre a estratégia da esquerda partidária e social, cuja luta arrancou direitos que tornam mais suportável a vida sob o capitalismo, muitos concluíram que uma política eficaz não deveria ser fundada na existência das classes sociais e da luta de classes, muito menos na adequada combinação entre luta por reformas e revolução. Na análise das mudanças ocorridas no capitalismo, apesar de a vida ter deixado ainda mais claro os papéis do mercado e do Estado, muitos aderiram a teorias que em última análise desconhecem o caráter contraditório e histórico desse modo de produção. No início do século XXI, passado o momento inicial de confusão, o pensamento crítico (socialista ou não) dá sinais cada vez mais fortes de que está saindo da defensiva. Isso se traduz, por exemplo, no surgimento de várias tentativas de síntese acerca do atual estágio do desenvolvimento capitalista e sobre suas tendências futuras. É o caso das várias obras do veterano economista François Chesnais (A mundialização do capital, 1996; A mundialização financeira, 1999; A finança mundializada, 2005). É o caso, também, de O boom e a bolha, de Robert Brenner (2003). E, finalmente, do extenso tratado Para além do 69 Curso de Formação em Política Internacional.p65 69 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional capital, de Istvan Meszáros (2002), autor também de O século XXI: socialismo ou barbárie? (2003). Numa outra matriz de análise, devemos citar ainda as obras de Giovanni Arrighi (O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo, 1996) e Immanuell Wallerstein (Após o liberalismo, 2002). Como ocorreu no início do século XX, estamos diante de análises contraditórias entre si, mas que nos permitem tirar pelo menos duas conclusões fundamentais. Primeiro, que o unilateralismo norte-americano se mostrou muito poderoso, mas incapaz tanto de controlar o planeta como de eliminar a competição intercapitalista e interimperialista. Pelo contrário, como demonstra José Luís Fiori, a instabilidade e a competição são provocadas pela ação dos próprios Estados Unidos: “Hoje se pode ver melhor a contribuição dos Estados Unidos, também no sucesso do antigo projeto russo de construção de uma Grande Potência durante o século XX, ao colocar a União Soviética na condição de seu principal inimigo, na sua estratégia de Guerra Fria. A potência expansiva e ganhadora pode prever, com base na experiência da história passada, que o crescimento econômico e militar de seus competidores mais próximos produzirá, no médio prazo, uma redistribuição territorial da riqueza e um deslocamento dos seus centros de acumulação mundial. E, muito provavelmente, acabará provocando, no longo prazo, uma redistribuição do próprio poder mundial. Mas a potência expansiva não tem como evitar esta conseqüência e por isto se pode dizer, em última instância, que é o seu próprio comportamento que cria seus principais obstáculos e adversários. É ela mesma que alimenta a contratendência ‘nacionalizante’ dos demais Estados que bloqueiam sua marcha em direção ao poder global e ao império mundial. Mas atenção, porque este comportamento não se restringe apenas ao campo econômico. Por mais paradoxal que possa parecer, ele também 70 Curso de Formação em Política Internacional.p65 70 5/6/2007, 12:41 Valter Pomar acontece no campo militar porque, em última instância, são as potências ganhadoras que também armam os seus futuros e eventuais adversários, pelo menos até o momento em que eles adquiram autonomia tecnológico-militar” (Fiori, 2004). A segunda conclusão é que o método de análise inaugurado por Marx e Engels, em meados do século XIX, continua a ser uma ferramenta indispensável para compreender tanto o capitalismo atual como as dificuldades experimentadas pelas tentativas de construir o socialismo, inclusive na China (Pomar, 1987). Pois, como dizia o velho mouro, “Nenhuma formação social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém, e jamais aparecem relações de produção novas e mais altas antes de amadurecerem no seio da própria sociedade antiga as condições materiais para a sua existência. Por isso, a humanidade se propõe sempre apenas os objetivos que pode alcançar, pois, bem vistas as coisas, vemos sempre que esses objetivos só brotam quando já existem ou, pelo menos, estão em gestação as condições materiais para a sua realização. A grandes traços podemos designar como outras tantas épocas de progresso, na formação econômica da sociedade, o modo de produção asiático, o antigo, o feudal e o moderno burguês. As relações burguesas de produção são a última forma antagônica do processo social de produção, antagônica não no sentido de um antagonismo individual, mas de um antagonismo que provém das condições sociais de vida dos indivíduos. As forças produtivas, porém, que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa criam, ao mesmo tempo, as condições materiais para a solução desse antagonismo. Com esta formação social se encerra, portanto, a pré-história da sociedade humana” (Marx, 2003). 71 Curso de Formação em Política Internacional.p65 71 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional BIBLIOGRAFIA ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. Porto, Afrontamento, 1984. (Ed. bras.: São Paulo, Brasiliense, 1985.) ______. O fim da história, de Hegel a Fukuyama. 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Os grandes ciclos do capitalismo permearam essa evolução, assim como a ascensão e a queda de impérios como o dos Habsburgo, da Holanda, da França, da Alemanha, da Inglaterra e da União Soviética, e as transformações políticas que levaram, em particular, a diferentes concepções de Estado. O ponto de partida da história moderna da Europa é o Renascimento, abordado na introdução. Em seguida, há três seções que respectivamente englobam: a Guerra dos 30 Anos, a Conferência de Westfália e as revoluções burguesas; as Guerras Napoleônicas, o Concerto Europeu, a ascensão do liberalismo e a Primeira Guerra Mundial; e, por fim, a Segunda Guerra Mundial e a construção da União Européia. 1. INTRODUÇÃO O Renascimento trouxe consigo uma série de transformações nas artes, na economia, na política e na religião. Seu centro principal era a península italiana. 1 Ex-secretário de Relações Internacionais da CUT (Central Única dos Trabalhadores) e da prefeitura de São Paulo, atualmente é consultor em relações internacionais. 75 Curso de Formação em Política Internacional.p65 75 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Dogmas da Igreja católica foram criticados e surgiu um movimento de reforma religiosa que posteriormente levaria ao protestantismo. A influência da cristandade sobre as práticas de governo, comum na Idade Média, também passou a ser questionada, embora a separação entre Igreja e Estado somente viesse a ser formalizada alguns séculos depois. Particularmente, o Renascimento italiano fez avançar a constituição de cidades-Estado, a república e a concentração de poder nas mãos do príncipe, influenciando a formação de Estados territoriais e o fortalecimento do absolutismo monárquico no restante da Europa (Cervo, 2001, p. 60). Entre os séculos XIV e XVI, a “economia mundial” estava sob domínio da cidade-Estado de Gênova. Esta controlava o principal fluxo de comércio com a Europa Ocidental, distribuindo os produtos provindos do Oriente, como tecidos e especiarias. Os comerciantes e banqueiros genoveses ampliaram sua riqueza e sua influência em outras áreas européias ao emprestar recursos excedentes do comércio para governantes de outros países e cidades-Estado. Conseguiam que suas mercadorias chegassem até o norte da Europa, e seu entreposto principal era a cidade de Bruges, localizada numa das províncias espanholas dos Países Baixos. Para que seus clientes não precisassem transportar altas somas em moedas ou metais preciosos, criaram a “carta de câmbio”, que podia ser trocada com os agentes genoveses mediante o pagamento de uma diferença sobre esta, que se tornou o primeiro título financeiro da história. A Península Ibérica tornou-se uma área de operações estratégica para os genoveses, não apenas como consumidores de seus produtos, mas também pela proteção militar que oferecia a seus negócios. Seus entrepostos em Portugal e na Espanha facilitavam o acesso aos mercados do norte da Europa e do norte da África. 2. A FORMAÇÃO DOS ESTADOS-NAÇÃO EUROPEUS E O EQUILÍBRIO INICIAL Ao longo do século XVI, por meio de uma série de heranças, casamentos de conveniência, alianças e conquistas, o domínio da Casa dos Habsburgo consolidou-se sobre a Hungria, a Boêmia, regiões do norte da Itália, o Sacro Império Romano (Alemanha) e a Espanha, além da Áustria, de onde a dinastia se originou. A Espanha, por sua vez, já dominava os Países Baixos, 76 Curso de Formação em Política Internacional.p65 76 5/6/2007, 12:41 Kjeld Jakobsen a Sardenha, a Sicília, Gênova e outras áreas da península itálica, e em 1580 o rei Filipe II assumiu também a Coroa de Portugal. Este império se expandiu e se manteve até meados do século XVII graças aos recursos dos banqueiros genoveses, aos lucros do comércio dos portugueses com a Ásia e aos metais preciosos trazidos pelos espanhóis e portugueses de suas colônias nas Américas. Era também uma potência militar devido ao poderio da Espanha, que detinha uma forte esquadra e havia introduzido novas técnicas militares nas guerras. Além de consolidar sua expansão, os Habsburgo tiveram que enfrentar várias tentativas do Império Otomano e dos berberes do norte da África de se estabelecerem no mar Mediterrâneo. Derrotaram-nos, finalmente, na Batalha de Lepanto, em 1571. Porém, a intolerância religiosa dos reis católicos da Espanha e da dinastia dos Habsburgo em geral, somada a constantes aumentos de impostos nos territórios dominados, provocou inúmeras insatisfações, a começar pelas províncias dos Países Baixos, que iniciaram uma campanha por sua independência a partir de 1560. Essa luta levou quase cinqüenta anos para assegurar uma trégua e a autonomia na prática de algumas das províncias localizadas mais ao norte da Holanda. Entretanto, essa guerra transformou-se num conflito muito mais amplo devido às preocupações dos demais governantes europeus com a expansão do Império dos Habsburgo e às divisões religiosas que estavam ocorrendo em alguns países, como na França. A Inglaterra apoiava a Holanda, e seus corsários atacavam a frota espanhola que trazia metais preciosos da América Latina e que já era assediada pelos navios de guerra holandeses. Aliás, a frota comercial holandesa já era, praticamente, a maior do mundo a esta altura, embora os holandeses ainda estivessem lutando por sua independência. No início do século XVII houve uma trégua entre Espanha e Holanda, a grande armada espanhola não conseguira invadir a Inglaterra e os conflitos entre católicos e protestantes na França também haviam amainado. Parecia que haveria um período de estabilidade no continente. No entanto, em 1618 irrompeu um conflito entre católicos e protestantes pela sucessão do trono da Boêmia, que rapidamente envolveu o conjunto dos principados alemães e levou à intervenção do imperador da Áustria a 77 Curso de Formação em Política Internacional.p65 77 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional favor dos príncipes católicos, com o apoio dos “primos” Habsburgo da Espanha. O conflito rapidamente se espalhou. A Holanda rompeu a trégua e invadiu a Renânia; a Dinamarca atacou o Império pelo norte; posteriormente, os suecos também intervieram, todos com o intuito de neutralizar os Habsburgo, que, em caso de conquista da hegemonia total no Sacro Império Romano, representariam uma ameaça séria ao conjunto dos países europeus não submetidos à sua influência. Foi o início da Guerra dos 30 Anos, um dos conflitos mais terríveis que afligiram a Europa, terminada em 1648 sem que houvesse uma vitória militar definitiva de qualquer dos lados. Porém, na prática, o Império Habsburgo estava semifalido e não tinha mais recursos para manter a guerra. Além da aliança de todas as forças protestantes e laicas contra os Habsburgo, o fator determinante para sua derrota foi a França, cujo primeiro-ministro era o cardeal Richelieu. Embora fosse católico, não teve dúvidas em apoiar desde o início os protestantes, inimigos do Império, e até intervir diretamente na guerra, sob a alegação da Raison d’Etat (Razão de Estado). Se observarmos o Mapa 1, a seguir, veremos que em caso de domínio Habsburgo total sobre o Sacro Império Romano a França ficaria praticamente cercada por eles. A sobreposição das razões de Estado em relação às questões religiosas e o Tratado de Westfália – que acomodou a situação nos principados alemães, afastando o Império Austro-Húngaro do conflito e deixando a continuidade da guerra somente entre a França e a Espanha – constituíram um marco ao reconhecer a existência dos Estados nacionais independentes e, na medida do possível, laicos, estabelecer o equilíbrio político entre eles e inaugurar relações diplomáticas regulares. A Guerra dos 30 Anos foi também o primeiro conflito com caráter mundial, uma vez que os holandeses e seus aliados levaram a guerra às possessões espanholas e portuguesas fora da Europa, como o Nordeste brasileiro, o Ceilão e Angola. A paz entre a Espanha e a França somente se estabeleceu em 1659, com o Tratado dos Pireneus. A Holanda tornou-se totalmente independente e a nova potência econômica mundial, pois, além de conseguir sua independência, possuía a maior frota naval do mundo e dominava o comércio internacional. Os capitalistas 78 Curso de Formação em Política Internacional.p65 78 5/6/2007, 12:41 Kjeld Jakobsen holandeses também instituíram a prática da armazenagem de commodities, comprando-as a preços baixos e vendendo-as no momento mais apropriado. Reprodução autorizada pela Editora Campus. Mapa 1 – O legado de Carlos V (1519) Fonte: Kennedy, 1989, p. 42. 79 Curso de Formação em Política Internacional.p65 79 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional No entanto, tiveram que conviver com outros Estados ascendentes na política e na economia mundial, a saber, França, Inglaterra e Rússia, sendo que esta última não se envolvera nos conflitos anteriores. Embora o equilíbrio europeu não se modificasse muito ao longo das décadas seguintes, mesmo com as disputas entre uns e outros com o intuito de acumular poder, era a França que mais ostensivamente buscava ampliar sua influência. Porém, ela estava dividida entre sua política voltada para a Europa Continental e a busca de espaço internacional (já possuía colônias na América), enquanto a Inglaterra, que tinha colônias mais consolidadas no Novo Continente, disputava o controle do comércio mundial com a Holanda, embora sempre atenta ao que ocorria no continente europeu. Assim, a Holanda enfrentava a pressão dos franceses no continente e precisava mobilizar exércitos e recursos para se defender, ao mesmo tempo em que os ingleses disputavam seus mercados externos e atacavam sua frota mercantil. Um fator crucial foi a lei inglesa que determinava que todos os bens de exportação produzidos na Inglaterra deveriam ser transportados em navios ingleses. Enfrentar os conflitos com os vizinhos sem a mesma fonte de recursos de antes significou o fim do ciclo econômico holandês, mas houve ainda um período de disputas entre Inglaterra e França, antes de a primeira se estabelecer como a nova potência hegemônica. A primeira revolução burguesa da história foi a holandesa, no século XVI, em meio à luta pela independência, motivada pelos interesses econômicos dos produtores locais constrangidos pela dominação espanhola. A revolução inglesa ocorreu em vários momentos no século XVII, normalmente explicitada pelos conflitos entre o Parlamento e a monarquia, e representou a ascensão da burguesia industrial, que por sua vez buscava influência política. Embora a Revolução Francesa, iniciada em 1789, também visasse a participação dos setores sociais excluídos das decisões políticas do país, o que implicava uma aceitação maior, por parte do rei, das decisões do Parlamento – que teve sua representação ampliada –, a revolução burguesa na França se diferenciou das anteriores porque a participação popular foi maior, a monarquia foi abolida e os monarcas, executados. Todas elas levaram décadas para se consolidar, mas a francesa foi a que mais repercutiu na Europa pela profundidade das transformações que provocou nas estruturas agrárias, sociais e políticas da França. 80 Curso de Formação em Política Internacional.p65 80 5/6/2007, 12:41 Kjeld Jakobsen Os mesmos costumes do Ancien Régime francês (Antigo Regime) estavam presentes em outras monarquias, como a estrutura agrária semifeudal, a monarquia absolutista e a economia mercantilista. Foram, principalmente, os fundamentos da Revolução Francesa que depois inspiraram mudanças nas estruturas de outras monarquias e abriram caminho para a ascensão do liberalismo – primeiro o econômico, depois o político. Paralelamente aos altos e baixos do equilíbrio europeu, consolidavamse duas outras potências na periferia da Europa: a Rússia, cujos domínios chegavam ao Extremo Oriente, e os Estados Unidos da América, do outro lado do oceano Atlântico. Estes últimos foram a primeira colônia a se tornar independente de uma metrópole européia, embora isso tenha sido facilitado pelos conflitos entre Inglaterra e França, já que esta última, ainda antes da revolução, apoiou diretamente os rebeldes norte-americanos contra a Inglaterra. 3. O EQUILÍBRIO SE ROMPE, SE RECOMPÕE, SE ROMPE... As disputas entre os diferentes setores políticos revolucionários na França, a crise econômica e a guerra de quase dez anos com praticamente todos os seus vizinhos levaram à ascensão da chamada República Termidoriana2, e posteriormente ao golpe do 18 Brumário, que abriram caminho para o general Napoleão Bonaparte assumir o poder, inicialmente como cônsul, depois como cônsul vitalício e, finalmente, entre 1804 e 1814, como imperador. Ele consolidou seu poder ao derrotar e/ou promover acordos de paz com os inimigos externos da revolução e colocar a economia em ordem. Entretanto, pouco a pouco começou a estender seu controle sobre a maior parte da Europa por meio de guerras ou alianças. A Inglaterra se opôs a essa tentativa hegemonista e entrou em guerra aberta com a França. O Mapa 2, a seguir, apresenta a situação européia no auge do poder napoleônico. Napoleão manteve a ofensiva por vários anos e até firmou uma aliança com a Rússia para enfrentar os austríacos. Porém, em 1813, ele atacou o 2 República Termidoriana foi a última composição entre os partidos na Assembléia Nacional Francesa após a revolução e antes de Napoleão assumir o poder. 81 Curso de Formação em Política Internacional.p65 81 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional aliado. Os franceses chegaram às portas de Moscou, mas recuaram devido à falta de abastecimento e ao rigoroso inverno russo, perdendo a maior parte do exército devido à fome, ao frio e aos ataques russos. Reprodução autorizada pela Editora Campus. Mapa 2 – A Europa no auge do poderio de Napoleão (1810) Fonte: Kennedy, 1989, p. 130. Foi o fim. Uma coalizão inglesa, prussiana e austríaca obrigou Napoleão a recuar e em 1814, com os inimigos às portas de Paris, o senado francês o destituiu do poder. Porém, após curto exílio na ilha de Elba, no mar Medi82 Curso de Formação em Política Internacional.p65 82 5/6/2007, 12:41 Kjeld Jakobsen terrâneo, ele reassumiu o poder por alguns meses, em 1815, mas foi novamente derrotado, na batalha de Waterloo. Neste ano realizou-se a Conferência de Viena, com o objetivo de restabelecer o equilíbrio europeu rompido e criar um mecanismo que evitasse novos conflitos, afinal de contas prejudiciais à economia e ao progresso. Tal objetivo ficou conhecido como o Concerto Europeu e assumiu um caráter conservador. Áustria, Rússia e Prússia estabeleceram a Santa Aliança com base em suas afinidades cristãs e resgataram a idéia dos direitos divinos dos monarcas. A Inglaterra e, depois, a França também aderiram para influenciar as articulações políticas do continente e abrir espaço para fortalecer as respectivas economias sob a égide do liberalismo. Até 1848 foi a Aliança que decidiu quais alterações aceitaria no cenário político, europeu e mundial. Entre elas, que a Espanha não restabeleceria suas colônias nas Américas; que a Bélgica poderia se separar dos Países Baixos e constituir um reino autônomo; que a Grécia poderia se tornar independente sem implicar o desmantelamento do Império Otomano, apesar dos interesses russos nesse sentido; que a Áustria poderia reprimir as tentativas de independência de seus domínios no norte da Itália, e da mesma forma a Prússia em relação a alguns principados alemães. Foi um período de exercício coletivo de poder (Cervo, 2001, p. 71). Entre 1840 e 1848 ocorreu uma onda revolucionária na Europa, inclusive na França, que aparentemente provocaria profundas transformações. No entanto, ela foi derrotada, e a segunda metade do século XIX caracterizou-se pela ocorrência de problemas no interior da Aliança, pelo fortalecimento do nacionalismo europeu e pela ascensão do liberalismo econômico. A Rússia tentou uma vez mais se expandir para o sul e ter acesso ao mar Mediterrâneo à custa do Império Otomano. Isso levou à Guerra da Criméia, em que Inglaterra e França, e posteriormente Áustria e Itália, opuseram-se à Rússia e forçaram um acordo que a fez recuar de suas intenções. A erupção do nacionalismo europeu levou, principalmente, às unificações alemã e italiana, e ao fim de uma série de pequenos países. O processo de expansão da Alemanha, já unificada em torno da Prússia, foi dirigido pelo chanceler Otto von Bismarck e teve início pela anexação de dois ducados ao norte, tomados da Dinamarca, por meio de guerra com o apoio da Áustria. Em seguida, continuou com uma guerra contra esta para quebrar sua resis83 Curso de Formação em Política Internacional.p65 83 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional tência à expansão alemã. A incorporação das províncias do sul levou à guerra contra a França em 1871, que foi rapidamente derrotada, e a Alemanha estabeleceu-se como a segunda potência econômica e militar da Europa. Esse processo representou o fim do Sistema de Viena3 e recolocou o equilíbrio europeu em novos termos. A adesão de todos ao liberalismo econômico estimulou a busca de novos mercados, inclusive por meio da expansão colonial na África e na Ásia. A Inglaterra e a França saíram na frente, mas Alemanha, Itália, Rússia, Estados Unidos e Japão buscaram também ocupar alguns espaços. A Inglaterra era a potência militar e econômica hegemônica no mundo do final do século XIX. Dizia-se que “o sol nunca se punha no Império Britânico”. Sua característica geográfica de ilha sempre a poupara de invasões estrangeiras na idade moderna. Ali se deu o berço da industrialização. Suas colônias e os acordos de livre comércio que impunha a outros países proporcionaram um mercado prontamente atendido por sua indústria e por sua frota naval, a maior do mundo. O fato é que o liberalismo gerou forte competição entre os grandes países da época. Nações que haviam sido importantes no passado, como Espanha, Portugal e Holanda, ficaram muito enfraquecidas e algumas até mesmo perderam parte de suas colônias para as novas potências. A competição e os diferentes interesses levaram à constituição de alianças e diferentes acordos mútuos de defesa em substituição ao Concerto Europeu4. Formaram-se dois blocos: a Tríplice Aliança (Alemanha, Áustria-Hungria e Itália) e a Tríplice Entente (Inglaterra, França e Rússia). Era também um momento em que o nacionalismo despontava em diferentes lugares. Foi um fato com esta origem que provocou a deflagração da Primeira Guerra Mundial: o assassinato do arquiduque Franz Ferdinand, herdeiro do trono Austro-Húngaro, e de sua esposa por um estudante bósnio nacionalista em Sarajevo, capital da Bósnia, anexada pela Áustria em 1908. O atentado havia sido planejado por uma organização terrorista sérvia e a reação austríaca foi dar um ultimato à Sérvia, para o qual teve endosso alemão. A Sérvia não respondeu satisfatoriamente ao ultimato e houve a declaração 3 Sistema de Viena foi a articulação entre os países surgida a partir da Conferência de Viena, em 1815, e que pressupunha a manutenção do status quo europeu sem aceitar novas transformações na sua geografia. 4 Concerto Europeu era o instrumento de conciliação e de pressões para manter o Sistema de Viena. 84 Curso de Formação em Política Internacional.p65 84 5/6/2007, 12:41 Kjeld Jakobsen formal de guerra. Um dia depois a Áustria iniciou o bombardeio de Belgrado. Com isso a Rússia deu apoio à Sérvia, a Alemanha declarou guerra à Rússia e todos foram arrastados para o conflito devido às alianças. A Entente recebeu a adesão da Itália, do Japão, de Portugal, da Romênia e, em 1917, dos Estados Unidos. A Alemanha e a Áustria-Hungria receberam apoio da Bulgária e da Turquia. O Mapa 3 apresenta os movimentos iniciais da guerra. Reprodução autorizada pela Editora Campus. Mapa 3 – As potências européias e seus planos de guerra em 1914 Fonte: Kennedy, 1989, p. 247. A guerra teve início com vários movimentos em 1914, porém, quando o inverno chegou, as posições estagnaram-se e iniciou-se uma guerra de trincheiras por três anos, do canal da Mancha até a Suíça, sem que houvesse uma definição do conflito, apesar de algumas grandes batalhas que cobraram milhares de vidas de ambos os lados. Os russos saíram do conflito após a Revolução de 1917, embora aceitando duras condições para a paz. Com a entrada dos norte-americanos na questão, a maré mudou a favor da Entente. Com o pedido de cessar-fogo de Bulgária, Turquia e Áustria-Hungria, a tentativa de revolução em Berlim e a abdicação do imperador Guilherme II, a Alemanha também se rendeu. 85 Curso de Formação em Política Internacional.p65 85 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional O fim da guerra e as negociações de paz levadas a termo com cada um dos derrotados transformaram profundamente o mapa europeu, conforme pode se verificar no Mapa 4. Reprodução autorizada pela Editora Campus. Mapa 4 – A Europa depois da Primeira Guerra Mundial Fonte: Kennedy, 1989, p. 268. 4. A ÚLTIMA GUERRA E A CONSTRUÇÃO DA UNIÃO EUROPÉIA As negociações de paz com a Alemanha ocorreram por intermédio do Tratado de Versalhes, e foram coordenadas por Inglaterra, França e Estados 86 Curso de Formação em Política Internacional.p65 86 5/6/2007, 12:41 Kjeld Jakobsen Unidos pelo lado vencedor, mas a agenda dos três não era necessariamente a mesma. À França interessava neutralizar a Alemanha definitivamente e vingar-se; à Inglaterra interessava que a França não se tornasse a potência hegemônica no continente; aos Estados Unidos interessavam a paz na Europa e regras que favorecessem o livre comércio para expandir sua economia. O presidente norte-americano Woodrow Wilson introduziu uma inflexão na política externa de seu país ao substituir a política imperialista de busca de influência pela promoção do livre comércio e pela disseminação da democracia. O objetivo era fortalecer o comércio de produtos norte-americanos e ampliar a influência dos Estados Unidos não mais por intermédio da política do Big Stick5 e da Diplomacia do Dólar de seus antecessores, mas pela disseminação dos “valores americanos”, particularmente o liberalismo econômico e a democracia representativa. Os 14 pontos defendidos por Wilson, em Versalhes, como base para o acordo de paz propunham nova divisão geográfica e política para a Europa, uma política de desarmamento, o início da descolonização, a evacuação das tropas estrangeiras da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), a liberdade de navegação nos mares com ou sem guerra, a eliminação de barreiras comerciais e a criação da Liga das Nações (LDN). Os Estados Unidos também se opunham às retaliações aos países derrotados. Nem todos os pontos foram contemplados. Por exemplo, França e Inglaterra transformaram parte do Império Otomano em novas colônias; a indenização exigida da Alemanha foi imensa e as novas fronteiras na Europa não seguiram exatamente a proposta norte-americana. Embora os Estados Unidos não viessem a participar dela, a ldn foi criada e funcionaria com base em sua proposta de não possuir instrumentos coercitivos. No entanto, as condições do tratado, na prática, transformaram-se nos motivos para o início da Segunda Guerra Mundial, ainda mais mortífera e destruidora do que a primeira. Quase no final da década de 1920, ocorreram a crise da bolsa de Nova York e a grande depressão americana, que repercutiu no mundo todo, com 5 Big Stick (cuja tradução é ‘grande porrete’) era a política externa para impor a vontade dos Estados Unidos por meio da força militar. A frase é do presidente Theodore Roosevelt: “fale suavemente, mas carregue um grande porrete” (big stick). 87 Curso de Formação em Política Internacional.p65 87 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional exceção da União Soviética, que havia inaugurado um novo sistema econômico em 1917. O liberalismo já havia demonstrado sua incapacidade de assegurar a paz e agora mostrava também sua incapacidade de garantir um desenvolvimento econômico estável. Isto fortaleceu a visão do papel do Estado para garantir a recuperação econômica após a Primeira Guerra Mundial, que estava em execução na URSS, na Itália e na Alemanha, porém com viés autoritário, e nos casos dos regimes fascista e nazista também com viés nacionalista, armamentista e expansionista. A ideologia fascista viria a se tornar política de governo em vários outros países, entre eles Japão, Polônia, Países Bálticos, Romênia, Hungria, Bulgária, Áustria, Espanha, Portugal, Grécia e até o Brasil. Alemanha, Itália e Japão conformariam uma aliança chamada de Eixo. Os regimes liberais mantiveram-se apenas na América do Norte e no norte e noroeste da Europa. A segunda metade da década de 1930 foi o momento de uma série de expansões e vitórias fascistas, inicialmente com a cumplicidade das potências liberais para debilitar a URSS e os partidos comunistas, mas quando estes acumularam demasiado poder a guerra teve início. A Itália de Mussolini ocupou a Abissínia (Etiópia), em 1935, e a Albânia, em 1939. A Alemanha, governada por Adolf Hitler, recuperou as regiões do Sarre e a Renânia, ocupadas pela França após a Primeira Guerra Mundial, respectivamente, em 1935 e 1936. Em 1938 anexou a Áustria e, até 1939, também várias regiões da Tchecoslováquia. Nesse mesmo ano, a Lituânia lhe cedeu a região do Memel. Entre 1936 e 1939 ocorreu a Guerra Civil espanhola, opondo de um lado os fascistas liderados pelo general Francisco Franco e apoiados por Alemanha e Itália, com a cumplicidade das potências liberais, e de outro os republicanos apoiados pela URSS e pelo Comintern. O golpe franquista foi vitorioso, e o terreno espanhol serviu para testar várias armas que seriam utilizadas em seguida na Segunda Guerra Mundial. Concluídos esses avanços, Hitler deu um ultimato à Polônia para que permitisse o acesso à cidade portuária de Dantzig (Gdansk), o que foi recusado, dando início à invasão alemã e, conseqüentemente, à declaração de guerra da Inglaterra e da França contra a Alemanha. 88 Curso de Formação em Política Internacional.p65 88 5/6/2007, 12:41 Kjeld Jakobsen Até 1942 a ofensiva das forças do Eixo foi bem-sucedida, à exceção da Itália, que sofreu várias derrotas para os ingleses no norte da África e no Mediterrâneo, bem como para os gregos quando tentaram ocupar este país. Toda a Europa, exceto a Inglaterra, as neutras Suécia e Suíça, bem como os regimes fascistas aliados, Espanha e Portugal, estava ocupada. Porém os alemães, após um período de pacto de não-agressão, atacaram a URSS em 1941, mas foram derrotados em Stalingrado após cercá-la por quase seiscentos dias. No início de 1943, os Estados Unidos também estavam envolvidos na guerra a partir do bombardeio japonês à base naval de Pearl Harbour, no Havaí. Com o revés alemão na URSS, teve início a conta-ofensiva aliada até a rendição dos italianos, em setembro daquele mesmo ano, dos nazistas em maio de 1945 e dos japoneses em agosto. Nesse meio-tempo ocorreu uma série de negociações entre os governos dos Estados Unidos, da URSS e da Inglaterra para criar instituições responsáveis pela gestão da nova ordem mundial após a guerra, como a ONU (Organização das Nações Unidas), o FMI (Fundo Monetário Internacional), o Banco Mundial e o GATT (General Agreement on Tariffs and Trade – Acordo Geral de Tarifas e Comércio), bem como o desenho das esferas de influência na nova geografia mundial, em particular na Europa. Cabe registrar que os Estados Unidos, na prática, já eram a potência econômica hegemônica após a Primeira Guerra Mundial, mas, em função do extensivo império britânico e da crise de 1929, isso somente se tornaria definitivo após a Segunda Guerra, quando assumiriam também a condição de principal potência militar. As conferências de Yalta, de fevereiro de 1945, e de Potsdam, em julho e agosto do mesmo ano, definiram, entre outras questões, o novo desenho da Europa, dividida entre o lado oriental sob influência soviética e a Europa Ocidental. Do lado oriental ficariam os Estados Bálticos, a Alemanha Oriental, a Polônia, a Tchecoslováquia, a Hungria, a Romênia, a Bulgária, a Albânia e a Iugoslávia. Embora estes dois últimos adotassem regimes socialistas, se afastaram da influência soviética, até porque não dependeram do Exército Vermelho para expulsar os alemães e sim de sua guerrilha dirigida pelos respectivos partidos comunistas. Do lado ocidental ficariam Grécia, após uma intervenção do exército inglês contra a guerrilha comunista, Itália, Áustria, República Federal Alemã, Fran89 Curso de Formação em Política Internacional.p65 89 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional ça, Luxemburgo, Holanda, Bélgica, Inglaterra e os países escandinavos, embora a Finlândia tivesse que efetuar uma política de equilíbrio entre sua vizinha URSS e os países ocidentais com os quais se alinhava. Foi neste quadro que se iniciou a conformação do que se tornaria a atual União Européia (UE). A discussão reinante, ainda antes do fim da guerra, era sobre a reconstrução da economia e do equilíbrio europeu. Uma grande preocupação era como envolver a Alemanha de forma diferente da de 1919, que não dera certo. A formação da UE pode ser analisada à luz de várias teorias econômicas e de relações internacionais. Os economistas neoclássicos destacarão a economia de escala e a reestruturação do mercado, e os keynesianos mencionarão o papel dos Estados europeus para a definição da política econômica e social. O bloco, do ponto de vista das relações internacionais, poderá ser analisado como um processo neo-realista, liberal ou funcionalista. Neste texto, nos limitaremos a mencionar as etapas principais do processo. A primeira delas, não necessariamente dirigida ao objetivo de fundar a UE, foi a criação da zona de livre comércio entre Bélgica, Holanda e Luxemburgo, o Benelux, em 1948. Em 1950, o ministro francês de Relações Exteriores, Robert Schuman, propôs a administração da produção de carvão e aço sob uma autoridade comum. Esta foi uma proposta estratégica, pois as regiões produtoras destes bens se localizavam nas fronteiras entre Alemanha e França, e a busca de seu controle foi o motivo econômico histórico das várias guerras entre os dois países. A iniciativa francesa levou à assinatura do tratado que fundou a Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA), em 1951, entre estes dois países, o Benelux e a Itália. A inclusão indireta da discussão sobre segurança por meio do tratado que estabeleceu a Comunidade Européia de Energia Atômica (Euratom) possibilitou a criação da Comunidade Econômica Européia (CEE), por intermédio do Tratado de Roma, de 1957, com o propósito de estabelecer um mercado comum. Este tratado foi a base que possibilitou uma série de iniciativas, desde a liberalização comercial, de serviços, de capitais e de livre circulação de pessoas até a ampliação do número de países-membros da comunidade. Estas decisões foram gradativamente regulamentadas. Por exemplo, a união aduaneira entrou em vigor em 1968. 90 Curso de Formação em Política Internacional.p65 90 5/6/2007, 12:41 Kjeld Jakobsen Além da liberalização, também foram estabelecidas políticas comuns, por exemplo de competitividade, transportes, agrícola, entre outras, além de instituições para coordenar a integração com o Conselho Europeu – instância superior, o Parlamento, o Tribunal de Justiça, o Conselho Consultivo Econômico e Social e a Comissão Européia – órgão executivo. Posteriormente foi criado o Sistema Monetário Europeu, e em 1992 entrou em vigor a eliminação de uma série de barreiras não-tarifárias definidas pelo Ato Único Europeu. Novos tratados foram fortalecendo a integração européia até chegar à moeda única e aos atuais 27 países membros. Os principais foram os tratados Maastricht, que definiu as regras macroeconômicas para criar a moeda comum européia, o euro, em 1993, de Amsterdã, em 1999, e de Nice, que discutiu a ampliação da União Européia, em 2000. A CEE começou a se ampliar durante os anos 1970 com a adesão de Inglaterra, Dinamarca e Irlanda. Depois, entraram Grécia, Espanha e Portugal e, mais tarde, Áustria, Suécia e Finlândia, conformando a Europa dos 15 que se manteria assim até o início do século XXI. Os principais debates de hoje sobre os rumos da União Européia estão relacionados com a aprovação ou não de uma Constituição Européia, a adesão de novos países que se dividem entre o Ocidente e o Oriente – como a Turquia, os países da ex-Iugoslávia que estiveram em guerra entre si ao longo da década de 1990 e a Ucrânia –, o sistema de defesa comum e a dimensão social da integração. BIBLIOGRAFIA KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes potências. Rio de Janeiro, Campus, 1989. CERVO, Luis Amado. “Hegemonia coletiva e equilíbrio: a construção do mundo liberal (1815-1871)”. In SARAIVA, José Flávio S. Relações Internacionais: dois séculos de história. vol I. Brasília: IPRI, 2001, p. 59-104. SARAIVA, José Flávio Sombra (org). Relações internacionais: dois séculos de história. Brasília, IBRI, 2001. 91 Curso de Formação em Política Internacional.p65 91 5/6/2007, 12:41 Apresentação Curso de formação em política internacional Um olhar sobre a Ásia Wladimir Pomar 1 1. UMA LONGA HISTÓRIA 1. A Ásia, considerada em geral um continente à parte, mas parcela oriental do continente Eurasiano, é o berço das mais antigas civilizações humanas. Entre elas se destacam as civilizações indiana e chinesa. Esta última é a mais antiga de todas, com cerca de 6 mil anos de história, 4 mil dos quais de história escrita. A região asiática é também o berço de povos que, em ondas sucessivas, se dirigiram ao oeste, conformando os povos que hoje vivem no subcontinente europeu. Assírios, godos, visigodos, hunos e mongóis chegaram até as praias ocidentais e deixaram suas marcas étnicas e culturais nessas regiões. 2. A cultura milenar dos povos asiáticos, especialmente a filosofia, a religião, a arte militar e as diferentes invenções técnicas, permanece ainda hoje influenciando a cultura mundial. A filosofia clássica chinesa, surgida no mesmo período da filosofia grega clássica, entre os séculos VI e IV a.C., tem como expoentes Confúcio, Mêncio e Lao-tsé. Relegada durante muito tempo como cultura apenas exótica, ainda é uma referência mundial importante. Por outro lado, o budismo, o hinduísmo e o taoísmo, através de suas diferentes seitas, têm ganhado terreno entre as religiões ocidentais. Sun Zu (século V a.C.), mestre militar e político cujos textos estão em parte reunidos em A arte da guerra, é estudado com atenção em diferentes países. Mahatma Gandhi, Mao Tsé-tung, Ho Chi Min (líder revolucionário vietnamita) e outros líderes asiáticos são referências mundiais. E hoje não se pode mais desconhecer que a 1 Jornalista e escritor, é membro do conselho de redação da revista Teoria & Debate, autor, entre outros, de Araguaia, o partido e a guerrilha, O enigma chinês – capitalismo ou socialismo, Lula lá – o susto das elites, A ilusão dos inocentes, Pedro Pomar – uma vida em vermelho e A revolução chinesa. 92 Curso de Formação em Política Internacional.p65 92 5/6/2007, 12:41 Wladimir Pomar pólvora, a bússola, os tipos de impressão, o relógio mecânico, o leme, as velas triangulares e diversos outros inventos humanos vieram do Oriente. 3. No século VI a.C., algumas regiões da Ásia alcançaram o apogeu do escravismo e ingressaram no feudalismo. E no século XV d.C., quando os feudais venceram sua disputa contra a classe dos mercadores na China, o feudalismo tornou-se a formação econômico-social predominante na maior parte dos reinos asiáticos, embora fosse possível encontrar populações vivendo no escravismo (a exemplo do Tibete e de vários reinos indianos), ou mesmo no comunismo primitivo (a exemplo de Papua Nova Guiné). Na China, no Vietnã e na Tailândia constituíram-se monarquias centralizadas já antes de nossa era. Porém, na Índia, no Japão, na Birmânia, no Camboja e em outras regiões essa centralização foi tardia ou não chegou a ocorrer antes da chegada das naus européias do mercantilismo. 4. De qualquer modo, a riqueza desses reinos, e a organização e a suntuosidade de suas monarquias, era de tal ordem, muitas vezes deixando conviver feudalismo e escravismo, que Hegel supôs que a Ásia estava estagnada no tempo, e Marx acreditou na existência de um modo de produção asiático, diferente do escravismo e do feudalismo. 5. Essa complexidade começou a ser desvendada, embora ainda de maneira enviesada e sob forte viés racista, no início da segunda onda de colonização européia, nos séculos XVIII e XIX. O império britânico, o mais forte e o maior, havia submetido a Índia, a Birmânia, o Ceilão, a Malásia e alguns territórios chineses (Hong Kong e concessões continentais). O império francês tentou concessões na Índia, mas, derrotado pelos ingleses, conformou-se com a Indochina e concessões na China. O império alemão dominava várias ilhas na Micronésia e tinha como concessão a cidade de Qingdao, na China. O império norteamericano possuía o Havaí e as Filipinas, enquanto o império russo se estendera pela Sibéria, pela Mongólia e em concessões no nordeste chinês. O império holandês dominava a Indonésia. Portugal mantinha suas antigas feitorias em Timor (ilhas do sudeste), Goa e Diu (Índia), e Macau (China). O emergente império nipônico dominava a Coréia e concessões na Manchúria (China). 2. O SISTEMA DE DOMÍNIO COLONIAL CAPITALISTA DA ÁSIA 6. O sistema de exploração colonial das potências capitalistas européias, a partir do final do século XVIII e durante o século XIX, quando se conso93 Curso de Formação em Política Internacional.p65 93 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional lidou, compreendia a extração de recursos minerais e agrícolas necessários às indústrias metropolitanas, a exploração de direitos alfandegários e concessões ferroviárias e portuárias, e a transformação dos territórios dominados em mercados para os produtos industriais das metrópoles. 7. Nesse período, a Índia tornou-se grande produtora de algodão, ópio, especiarias diversas e minérios; a Malásia e a Indochina passaram a produzir borracha; a China produzia algodão, especiarias e minérios; e o Japão, carente dessas riquezas, teve que abrir seus portos para o ingresso dos produtos industriais. Além disso, todos esses países ofereciam mão-de-obra imensa e barata para as grandes construções que as potências industriais realizavam no mundo. Suas alfândegas passaram a ser administradas pelos dominadores, assim como as ferrovias e os portos internacionais. Inglaterra, França e Estados Unidos exportavam grandes volumes de tecidos e bens de consumo cotidiano para as regiões dominadas, a preços mais baratos do que os produtos artesanais locais. 8. Em todos os países dominados, as potências capitalistas associaram-se às elites locais, em geral monarquias, como na Birmânia, na Malásia, na Indochina e na China. No Japão, associaram-se aos mercadores e a algumas famílias feudais. Na Índia, os dominadores britânicos associaram-se aos marajás e às castas superiores, ao mesmo tempo em que incentivaram as disputas entre eles. 9. Esse sistema de domínio teve conseqüências de diferentes tipos. Em alguns países, desorganizou setores produtivos inteiros, como aconteceu com a agricultura comunitária, na Índia, e com o artesanato em praticamente todos eles. Em outros, introduziu elementos do modo de produção capitalista de forma mais intensa, como ocorreu principalmente no Japão e, em certa escala, na China. Em todos, aumentou as cargas sobre os camponeses, intensificou a exploração sobre os trabalhadores e fez surgirem revoltas e movimentos nacionalistas espontâneos. 10. No Japão, a pressão imperialista fez surgir um movimento de modernização conservadora, conhecido como Reforma Meiji, que transformou o país numa potência industrial, sem que fosse necessário destruir o feudalismo. Da mesma forma que a organização feudal dividia a propriedade rural e o poder político e militar entre algumas famílias, o mesmo ocorreu com a propriedade industrial. Em todos os demais países asiáticos, as classes dominantes foram 94 Curso de Formação em Política Internacional.p65 94 5/6/2007, 12:41 Wladimir Pomar incapazes de realizar algo idêntico ao Japão, conformando-se com sua manutenção como monarquias auxiliares dos colonizadores estrangeiros. 11. Assim, ao explodir a Primeira Guerra Mundial, a Ásia encontrava-se dividida entre um grupo reduzido de grandes potências industriais e algumas potências de segunda classe. Com exceção do Japão, primeira potência asiática a vencer uma guerra contra um país europeu (a Rússia, em 1905) e, aliada dos ingleses, em 1914, a enviar uma esquadra para auxiliar as operações navais contra alemães, austro-húngaros e otomanos no mar Negro, todos os demais tinham seu futuro atrelado aos resultados dessa guerra global. 12. A Primeira Guerra Mundial resultou numa nova configuração de poderes mundiais. Os impérios austro-húngaro, alemão e otomano foram destroçados. Os impérios britânico e francês tiveram perdas enormes e saíram enfraquecidos. Os impérios norte-americano e japonês se fortaleceram e se firmaram como impérios emergentes. E o império russo naufragou numa revolução de novo tipo, que implantou uma união de repúblicas socialistas. 13. Essa nova configuração causou uma redivisão no domínio colonial sobre a Ásia. Os impérios britânico e francês expandiram-se para a Mesopotâmia e o Oriente Médio, o império nipônico ocupou as antigas possessões alemãs e os domínios holandês, português e norte-americano mantiveram-se inalterados. 14. Por outro lado, emergiram os primeiros grandes movimentos anticolonialistas. Na Índia e na China, em 1919; na Indonésia, em 1926. Sua bandeira principal era o nacionalismo. Em alguns casos, isso surgiu associado à democratização da propriedade agrária, com o fim do sistema feudal, ou semifeudal, e da opressão sobre o campesinato. Em outros também se associou à reivindicação de democracia política e a movimentos anticapitalistas. 15. Nos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, à nova redivisão colonial e à eclosão dos movimentos nacionalistas e de outros tipos na Ásia, também ocorreram nos países capitalistas centrais movimentos importantes, entre os setores imperialistas dominantes. 16. A Alemanha debatia-se em crise profunda, não suportando as indenizações e reparações impostas pelo Tratado de Versalhes, assinado em 1919. A república implantada não conseguiu consolidar-se, em virtude de as forças militares, que serviram ao império e aos grupos econômicos, terem se conservado intactas, e no comando da situação, principalmente após have95 Curso de Formação em Política Internacional.p65 95 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional rem derrotado a insurreição de 1919. No início dos anos 1930, o Partido Nacional-Socialista (nazista), com o apoio da grande burguesia, obteve maioria no Parlamento e assumiu o poder. Para resolver a crise, os nazistas implantaram uma política econômica que tinha como carro-chefe o rearmamento, subordinado a uma estratégia de ampliação do espaço vital alemão no rumo leste, ou seja, da União Soviética. Sob uma retórica estritamente antibolchevista, a Alemanha proclamava sua disposição de realizar uma nova divisão global. 17. Os Estados Unidos, potência mais jovem, embora houvessem colonizado o Havaí e as Filipinas, propunham uma política de divisão do mundo de natureza econômica, tendo como base o livre comércio e a competição comercial. Assim, defendiam portas abertas na China, na Índia e em outras regiões, e se esforçavam por manter o status quo em relação ao Japão. À medida que as pretensões nazistas e nipônicas ficavam claras, formaram-se dois grandes blocos internos, um defendendo o não-alinhamento a qualquer dos lados em disputa, outro defendendo que os Estados Unidos teriam que tomar partido contra o nazismo e o Japão. Em vários círculos firmarase, além disso, a suposição de que o Japão avançaria sobre as zonas de influência dos Estados Unidos, o que obrigaria estes a confrontá-lo. 18. O Japão, que também havia chegado tardiamente à industrialização e à divisão mundial capitalista, desenvolvera-se rapidamente após a Primeira Guerra Mundial. Seus círculos dirigentes concluíram, em 1927, que o desenvolvimento do país só seria possível se, ao mesmo tempo, se espraiasse por outros países, garantindo as matérias-primas e as rotas de abastecimento para suas indústrias. O Memorando Tanaka, desse mesmo ano, delineou os planos de expansão japonesa na Ásia, estipulando a meta da hegemonia nessa região, começando pela ocupação da Manchúria e pela instalação de um governo títere, o que ocorreu em 1931. Os preparativos para a expansão japonesa continuaram nos anos seguintes, com o abandono da Liga das Nações, em 1933, a adesão ao Pacto Anti-Comintern, em 1936, e a ofensiva geral para a ocupação da China, em 1937. 19. Esses movimentos imperialistas, por uma nova redivisão do mundo, polarizaram todas as ações, conduzindo a humanidade a uma guerra de proporções mundiais ainda mais vasta e profunda do que a guerra de 1914-1918. Em 1939 já havia se conformado uma estreita aliança entre a Alemanha nazista, a 96 Curso de Formação em Política Internacional.p65 96 5/6/2007, 12:41 Wladimir Pomar Itália fascista e o Japão, o chamado Eixo anti-Comintern, ou anticomunista. Porém, embora teoricamente o movimento dessas potências tivesse como objetivo a liquidação da União Soviética, sua expansão territorial real ocorria às expensas das potências ocidentais. Essa dicotomia agravou-se com a assinatura do Pacto de Não-Agressão entre a Alemanha e a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), e chegou a um ponto crítico com a invasão da Polônia, em 1939, levando a Inglaterra e a França a declararem guerra à Alemanha. 20. A URSS, por seu lado, esforçava-se para impedir um ataque pelos dois flancos extremos de seu território (da Alemanha, através da Ucrânia, no oeste; e do Japão, através da Sibéria, no oriente), ao mesmo tempo em que procurava ganhar tempo para reforçar-se militarmente. Suas negociações com a França e a Inglaterra haviam fracassado até então. Para impedir que a Finlândia pró-fascista servisse de base de operações das forças alemãs pelo flanco noroeste, a URSS envolveu-se numa guerra de desgaste com aquele país, conseguindo em parte sua neutralidade. Quando a Alemanha atacou a Polônia, a URSS também movimentou suas tropas sobre os antigos territórios ucranianos cedidos à Polônia no tratado de paz de 1918, avançando suas linhas de defesa mais para o oeste. 21. Na Ásia, os movimentos anticolonialistas ainda se encontravam divididos sobre quem seria o inimigo principal. Embora o Japão houvesse invadido a Manchúria, havia aqueles que o enxergavam como aliado contra os colonialistas. Talvez por isso tenha sido na Ásia que o movimento imperialista em direção a uma nova guerra mundial se expandiu primeiro. A partir de 1936, o Japão acelerou a execução do plano Tanaka, aderiu ao Pacto Anti-Comintern, denunciou o Pacto de Washington, que limitava sua capacidade naval, e realizou sua ofensiva geral contra a China. Em 1938, decretou a mobilização geral para a guerra e expandiu as operações de suas tropas, tanto no sentido sul-sudoeste (Xangai, Hong Kong, Macau, Indochina) como no sentido leste (ilhas da Micronésia). 3. A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL NA ÁSIA 22. Em 1940, tanto a Europa quanto a Ásia estavam envolvidas na Segunda Guerra Mundial. Na Ásia, o Japão mantinha seu empuxo nas direções sul-sudoeste (Indochina, Birmânia e Tailândia) e sul-sudeste (Malásia, 97 Curso de Formação em Política Internacional.p65 97 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Indonésia, Timor, Filipinas, Ceilão, Bornéu, Papua, ilhas Molucas). Ao mesmo tempo, em 1941, reforçava sua aliança com a Alemanha e a Itália, mas assinava um Pacto de Não-Agressão com a URSS, apontando que iria dirigir seu ataque principal não a oeste, mas a leste, contra os Estados Unidos. O ataque à base norte-americana de Pearl Harbour ocorreu em dezembro de 1941. 23. Paralelamente, o Japão empreendeu uma série de ações políticas com o intuito de superar suas fraquezas em recursos humanos, ampliar seus apoios nos países conquistados, dividir os movimentos de resistência e concentrar suas forças na luta contra o inimigo principal, os Estados Unidos. Procurou incentivar os movimentos anticolonialistas contra as potências ocidentais, implantou governos pró-Japão na Manchúria, na China e nas Filipinas, e prometeu reconhecer a independência da Birmânia (o que aconteceu em 1943), da Indochina e da Indonésia (o que ocorreu em 1945). 24. A Grã-Bretanha reagiu mal à ofensiva japonesa. Parte de suas tropas capitulou em vários pontos (Hong Kong, Birmânia etc.) e as demais retiraram-se para a Índia. Após esse recuo geral, os britânicos passaram à ação política, prometendo aos indianos autonomia e independência depois do conflito. Nas outras colônias, então ocupadas pelos japoneses, os britânicos apoiaram os movimentos guerrilheiros de resistência, fornecendo-lhes armas e outros tipos de recursos materiais. 25. A França, por seu turno, capitulou duplamente. Na Europa, diante das tropas nazistas, vendo-se dividida em duas: ao norte, incluindo Paris, sob ocupação das tropas nazistas, e, ao sul, com capital em Vichy, sob um governo títere. Na Indochina, suas tropas também capitularam e, em função da colaboração com a Alemanha, colaboraram com o Japão. 26. Em virtude do ataque japonês a Pearl Harbour, os Estados Unidos decidiram romper sua posição de neutralidade e entrar na guerra. Embora o palco principal de suas operações fosse o Pacífico e a guerra contra o Japão, os Estados Unidos passaram a fornecer recursos militares para a guerra contra a Alemanha na Europa, participando da aliança formada por URSS, Inglaterra e França. Na Ásia, somente em 1942 os Estados Unidos conseguiram iniciar uma contra-ofensiva ao Japão, em três frentes. 27. A resistência à invasão e à ocupação japonesas variou. Organizaramse movimentos guerrilheiros, tanto de ideologia nacionalista quanto comu98 Curso de Formação em Política Internacional.p65 98 5/6/2007, 12:41 Wladimir Pomar nista, às vezes constituindo frentes únicas (como no Vietnã), outras vezes não (como na Tailândia). Na China, o movimento de resistência tomou o caráter de uma frente única nacional. Na Índia, não atacada pelas tropas nipônicas, chegou a ser formado um exército pró-japonês, que foi desbaratado. As tropas indianas participaram das operações militares da Inglaterra no norte da África e na Europa, mas não na Ásia. 4. ÁSIA: SITUAÇÃO IMEDIATA NO PÓS-GUERRA – 1945-1950 28. O surgimento de movimentos guerrilheiros nacionais relativamente fortes, a participação da URSS na guerra contra a Alemanha e, no final, também contra o Japão, a necessidade das potências coloniais de empunhar a bandeira da liberdade e da democracia para conquistar o apoio dos povos contra o Eixo, a derrota militar da Itália, da Alemanha e do Japão; tudo isso contribuiu para profundas mudanças na correlação de forças em cada país ou região da Ásia e tornou insustentável a continuidade do colonialismo. 29. O Japão tornou-se um país ocupado por forças norte-americanas, que lançaram duas bombas atômicas sobre cidades japonesas (Hiroshima e Nagasaki) para apressar o final da guerra e evitar que as tropas soviéticas também participassem de sua tomada. Os Estados Unidos deram início aos processos contra os criminosos de guerra nipônicos, elaboraram uma nova Constituição para o país, realizaram a reforma agrária e iniciaram uma forte política de reconstrução econômica, já sob os ventos da Guerra Fria contra a União Soviética. 30. A China, que resistira ao Japão com um exército unificado, incluindo as tropas comunistas, mergulhou num duro processo de negociações de paz, entre 1945 e 1947. Porém, ao mesmo tempo em que essas negociações ocorriam, as forças militares norte-americanas supriam apoio logístico aos 8 milhões de homens das tropas do Guomindang2, para que se posicionassem estrategicamente com o fim de derrotar os 3 milhões das tropas comunistas, numa nova guerra civil. Ao mesmo tempo, a União Soviética pressionava os comunistas a aceitar o 2 Tropas do Guomindang: tropas do Exército Nacional chinês, sob a direção do Guomindang, o Partido Nacionalista da China. 99 Curso de Formação em Política Internacional.p65 99 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional acordo proposto pelo Guomindang e pelos Estados Unidos, de modo a evitar o acirramento de suas disputas com os norte-americanos. 31. O fracasso dessas negociações foi acompanhado, em 1947, pela ofensiva das tropas do Guomindang. As tropas comunistas, rebatizadas Exército Popular de Libertação (EPL), realizaram retiradas, mas passaram paulatinamente à contra-ofensiva, sendo engrossadas por corpos de exército do Guomindang, que trocaram de lado. Em 1949, o EPL passou à ofensiva geral. As principais tropas remanescentes do Guomindang fugiram para Taiwan, sob proteção da 7a Frota da Armada dos Estados Unidos, enquanto outras se embrenharam pelo Vietnã e pela Tailândia. A República Popular foi proclamada em 1o de outubro de 1949. 32. Na Índia, em 1946, foram instalados a Assembléia Constituinte e um governo de transição. Ao mesmo tempo, em parte por pressão da Liga Muçulmana, os britânicos dividiram o antigo território imperial em Índia (de maioria hinduísta), Paquistão (Ocidental e Oriental, de maioria islâmica) e Birmânia. Essa divisão conduziu a migrações em massa e a choques sangrentos entre hinduístas e muçulmanos. Na Caxemira, os indianos estimularam uma insurreição contra o principado feudal da região, em 1947. E, a pretexto dela, realizaram uma intervenção militar na região, promovendo a primeira guerra contra o Paquistão. Apesar da condenação da onu (Organização das Nações Unidas) e do cessar-fogo de 1948, a Índia manteve sua ocupação de uma parte da região, que se tornou um dos principais pontos de atrito entre os dois países. Em meio a esses conflitos, em 1948, Mahatma Gandhi foi assassinado, e a Índia fez a anexação do principado muçulmano de Hiderabad. Em 1950, o Parlamento indiano proclamou a Constituição da República da União Índia (Bharat). 33. O Paquistão Ocidental, tendo como capital Islamabad, ficou a noroeste da Índia, na antiga região do vale do Indo. As migrações populacionais impuseram ao novo país uma série de crises e tensões, tanto de caráter religioso quanto econômico e social. As disputas da população com os proprietários feudais tomaram muitas vezes a forma de rebeliões armadas, agravadas em grande medida pelas disputas com a Índia. 34. O Paquistão Oriental ficou situado a 1.700 quilômetros do Paquistão Ocidental, na foz do rio Ganges. Enfrentou os mesmos problemas de crises e tensões, agravados pelas condições naturais mais adversas e pela maior 100 Curso de Formação em Política Internacional.p65 100 5/6/2007, 12:41 Wladimir Pomar pobreza de sua população. Algum tempo depois, proclamou sua própria independência e passou a chamar-se Bangladesh. 35. Pelo Acordo de Potsdam, a antiga colônia japonesa da Coréia foi dividida, em 1945, em duas zonas, uma ocupada pelos soviéticos e outra pelos norte-americanos, tendo como linha fronteiriça o paralelo 38. A reunificação deveria ocorrer por meio de eleições gerais realizadas em ambos os lados. Ao norte, com base nas forças guerrilheiras que resistiram à ocupação japonesa, foram formados comitês de frente popular, que assumiram o governo de transição logo após o final da guerra. No sul, os norteamericanos mantiveram o governo militar até 1948, quando as tropas de ocupação da URSS e dos Estados Unidos foram retiradas. As eleições foram adiadas e formaram-se duas repúblicas. Em 1950, conflitos de fronteira levaram o norte a invadir o sul, dando ensejo à intervenção da ONU e dos Estados Unidos. 36. Na Indochina, a virada dos ventos da guerra mundial levou os japoneses a desarmar as tropas francesas, em 1945. Tendo construído grandes forças guerrilheiras antijaponesas, os vietnamitas e os cambojanos proclamaram a independência. No Camboja foi restabelecida a monarquia constitucional, e no Vietnã foi proclamada a república popular democrática. Logo depois, porém, tropas britânicas ocuparam Saigon e o sul do Vietnã, entregando a administração desses territórios às autoridades coloniais francesas. Numa ação para evitar a guerra, o Vietminh (Frente de Libertação Nacional do Vietnã) aceitou integrar a União Francesa, proposta repelida pela França, que pretendia retomar a Indochina como colônia. Em 1946, tropas francesas ocuparam o delta do rio Vermelho, dando início à primeira guerra da Indochina. 37. Embora ainda permanecesse forte a tentação de manter a situação colonial na Ásia, principalmente por parte dos franceses, o fim do colonialismo era patente. Além dos acontecimentos de independência na Índia, no Paquistão, na China, no Camboja e no Vietnã, as Filipinas tiveram a independência em 1946, a Indonésia em 1950, a Malásia foi transformada em protetorado em 1948, a Tailândia teve seus territórios devolvidos, a Birmânia proclamou a independência em 1947 (seguida de uma guerra civil que se prolongou até 1954) e o Ceilão conquistou o estatuto de domínio em 1948. 101 Curso de Formação em Política Internacional.p65 101 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional 5. CONTEXTO MUNDIAL PÓS-SEGUNDA GUERRA MUNDIAL E INFLUÊNCIA NA ÁSIA 38. A eclosão da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética, logo após a Segunda Guerra Mundial, acirrada pela disputa em torno de Berlim, teve desdobramentos em todo o mundo. As duas maiores potências mundiais passaram a influir decisivamente nas ações dos demais países, procurando criar um ambiente no qual quem não estava de um lado estava do outro. 39. A política norte-americana baseou-se na doutrina de quatro pontos do presidente Harry S. Truman, tornada pública em 1947. Ele proclamou a responsabilidade mundial dos Estados Unidos de salvaguardar todos os países contra o comunismo, prestar a eles ajuda econômica – e onde fosse necessário –, militar ou intervir com suas próprias tropas. Com base nessa política, os Estados Unidos estabeleceram bases militares em várias partes do globo, impuseram o bloqueio econômico, político e militar à China, intervieram em todas as regiões onde se desenvolviam guerrilhas de inspiração comunista, socialista ou nacionalista, elaboraram e executaram os Planos Marshall (para a Europa) e Colombo (para a Ásia), e impuseram a vários países asiáticos a realização de reformas agrárias para tirar a base social de qualquer projeto de transformação social. 40. A União Soviética, por seu turno, mais preocupada em curar as feridas da guerra e recuperar sua economia, estimulou os movimentos pacifistas, procurou também prestar ajuda econômica aos novos países independentes, praticou ajuda militar a alguns movimentos de guerrilha e procurou exercer seu poder de veto, na ONU, para refrear em parte as ações militares dos Estados Unidos. 41. Essa nova situação global influiu, em grande medida, no desenvolvimento da situação em cada um dos países asiáticos, mesmo naqueles que procuravam uma posição de neutralidade entre os dois campos. 42. O Japão assinou um tratado militar com os Estados Unidos, em flagrante quebra dos acordos entre os aliados, no final da Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, os Estados Unidos investiram pesadamente na recuperação industrial e comercial desse país, possibilitando a seu ex-inimigo transformar-se em potência econômica, num curto espaço de tempo. 102 Curso de Formação em Política Internacional.p65 102 5/6/2007, 12:41 Wladimir Pomar Aliando-se aos antigos grupos dirigentes do Japão, os Estados Unidos facilitaram que o Partido Liberal Democrático se tornasse o principal partido japonês, exercendo quase o monopólio da vida política daquele país. Desse modo, o Japão transformou-se num forte aliado dos Estados Unidos para conter a expansão do comunismo, em especial da China, na Ásia. 43. A China sofreu, por parte dos Estados Unidos e da maioria das potências ocidentais, forte bloqueio econômico, comercial, diplomático e político. Recebeu pouco apoio material da União Soviética, ainda exausta pela Segunda Guerra Mundial. E foi obrigada a enviar cerca de 1 milhão de voluntários à Coréia, para impedir o avanço norte-americano sobre suas fronteiras no rio Yalu. Mesmo assim, conseguiu reconstruir sua economia. Em 1953, alcançou os níveis de pré-guerra. Até 1956, implantou a reforma agrária em quase todo o país. Entre 1953 e 1957, executou seu primeiro plano qüinqüenal de industrialização. E promulgou a Constituição da Nova Democracia em 1954. 44. Na Índia pós-independência, o Partido do Congresso conquistou forte hegemonia, apesar da persistência de sérios conflitos religiosos e sociais. Numa dúplice política de manter neutralidade dinâmica entre os campos em disputa global e aproveitar-se dela, a Índia adotou o modelo soviético de planejamento, apresentando o seu primeiro plano qüinqüenal de industrialização em 1951. E, ao mesmo tempo em que estimulava a propriedade privada e os projetos capitalistas, interferiu na economia, inclusive nacionalizando ou estatizando pequenas unidades produtivas, através das quais era possível reduzir as dificuldades populares. 45. A primeira guerra indochinesa, opondo o Vietminh aos franceses, prolongou-se de 1948 a 1954. Apesar dos reforços militares e do apoio militar dos Estados Unidos, a França não conseguiu derrotar o sistema de guerra popular desenvolvido pelo Vietminh, sendo finalmente derrotada na batalha de Dien Bien Phu. Teve que aceitar, a contragosto, participar da Conferência de Paz em Genebra, onde foi selada a paz, resultando na divisão da Indochina em três países independentes: Laos, Camboja e Vietnã. Por esse acordo, o Vietnã ficaria provisoriamente dividido em duas zonas, separadas pelo paralelo 13, com previsão de eleições para a reunificação do país em 1956. Antes desse prazo, porém, generais vietnamitas cooptados pelos Estados Unidos derrubaram o rei Bao Daí, mediante um golpe mili103 Curso de Formação em Política Internacional.p65 103 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional tar, e instauraram um governo ditatorial. As duas zonas tomaram, então, caminhos diferentes. 46. No Vietnã do Norte foi instalada uma república popular democrática. Ela buscou ingressar na industrialização, principalmente com a ajuda da União Soviética e, secundariamente, da China. O modelo de construção econômica foi o soviético, com planejamento centralizado e investimentos em indústria pesada. Porém, as limitações do país impuseram atenção à agricultura e à produção de bens de consumo popular. 47. No Vietnã do Sul, a instauração da ditadura militar e a repressão que se seguiu contra os antigos combatentes que se opunham à dominação japonesa e francesa rompendo com os acordos da Conferência de Genebra conduziram à formação da Frente Popular de Libertação do Vietnã do Sul (Vietcongue). Esta adotou os métodos de guerrilha e guerra popular aplicados na resistência contra o Japão e a França. Os vietcongues combinavam, ainda, a luta guerrilheira com movimentos de massa nas cidades. 48. A ausência de apoio político causava às tropas ditatoriais constantes derrotas militares diante das guerrilhas, inferiores em homens e armamentos. Isso teve como conseqüência uma sucessão de golpes militares, inclusive sangrentos, entre as próprias forças ditatoriais, na suposição de que as derrotas se deviam à incompetência ou a erros militares. Esses golpes também eram estimulados pelos vultosos recursos militares e financeiros carreados pelos Estados Unidos para o Vietnã do Sul, dando ensejo a uma imensa corrupção e ao enriquecimento rápido dos generais em comando. 49. Após mais de seis anos, e milhões de dólares jogados na fogueira da guerra civil do Vietnã do Sul, os Estados Unidos decidiram intervir, sob a justificativa de que o Vietnã do Norte era o responsável pela situação. A marinha norte-americana montou um falso combate na baía de Tonquim, em 1964, seguido do desembarque de grandes contingentes de tropas de combate no Vietnã do Sul e de bombardeios ao Vietnã do Norte, assim como ao Camboja e ao Laos, acusados de permitir o trânsito do apoio logístico do Norte para os guerrilheiros do Sul. 50. Os norte-americanos colocaram mais de 500 mil soldados para combater os vietcongues e entraram num atoleiro. Em 1970, a derrota norteamericana transformou-se numa certeza e numa questão de tempo, mesmo para uma parte do alto-comando dos Estados Unidos. Isso levou o país a 104 Curso de Formação em Política Internacional.p65 104 5/6/2007, 12:41 Wladimir Pomar aceitar a diplomacia do pingue-pongue, ofertada pela China, para que esta intermediasse negociações de paz e uma saída relativamente honrosa dos derrotados norte-americanos. As tropas dos Estados Unidos retiraram-se em 1974, levando à debandada geral das tropas títeres e à ocupação de Saigon e de todo o país pelas tropas vietcongues. A reunificação ocorreu em 1975, com o Vietnã tornando-se República Socialista do Vietnã. Por outro lado, a China, mesmo envolta nas dificuldades de sua Revolução Cultural, aproveitou essa situação para realizar uma forte abertura diplomática e política ao exterior, rompendo o bloqueio dos Estados Unidos, impondo sua política de uma só China, reatando relações com a maioria dos países ocidentais e reassumindo seu lugar na ONU e no Conselho de Segurança. 51. Durante todo esse período, os Estados Unidos fizeram um imenso esforço, através do Plano Colombo, para o desenvolvimento capitalista dos países asiáticos e a criação de um cinturão “sanitário” contra a expansão comunista. Os recursos investidos pelos norte-americanos na Ásia foram superiores aos investidos na recuperação da economia européia no pós-Segunda Guerra Mundial. Os resultados desse esforço foram a transformação do Japão em potência econômica e o surgimento dos Tigres Asiáticos. Coréia do Sul, Cingapura, Hong Kong e Taiwan, pequenas nações e regiões asiáticas, tornaram-se economicamente fortes e, mais tarde, passaram a concorrer com os próprios Estados Unidos no mercado mundial. 52. A Coréia do Sul, arrasada pela guerra com o Norte, aproveitou adequadamente os recursos para reconstruir o país, industrializar-se em áreas de mercado que estavam sendo abandonadas pelos países industrialmente desenvolvidos (bens de consumo corrente), usufruir das novas técnicas produtivas desenvolvidas pelos japoneses, investir pesadamente na educação de sua mão-de-obra e disputar agressivamente o mercado internacional. Com isso, cresceu de forma sustentada por vários anos e tornou-se um player do mercado mundial. E Cingapura, uma cidade-Estado que se tornara independente da Malásia, aproveitou as condições favoráveis dos fluxos de capitais enviados pelos Estados Unidos para transformar-se num centro financeiro e entreposto de troca de mercadorias entre a Ásia meridional e a Ásia do Pacífico. 53. Hong Kong, então uma colônia sem voz nem voto da coroa britânica, era uma porta encravada no sul da China. Por causa disso, tornara-se escoadouro de migrações da China continental, porta de entrada clandestina para 105 Curso de Formação em Política Internacional.p65 105 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional ações de sabotagens na China e, paradoxalmente, janela de intercâmbio utilizada pela China para comerciar com os países ocidentais e furar o bloqueio imposto pelos Estados Unidos. Nessas condições, Hong Kong pareceu o lugar ideal para plantar uma próspera vitrine capitalista que atraísse os olhares e o desejo da população chinesa. Foi desse modo que essa colônia britânica tornou-se o maior centro financeiro e comercial do Sudeste da Ásia e, aos poucos, passou a concorrer fortemente com os próprios Estados Unidos e a Inglaterra. Taiwan, ilha separada da província chinesa de Fujian por um estreito marítimo e refúgio das tropas nacionalistas derrotadas na guerra civil chinesa, também se transformou em importante vitrine capitalista. Seguindo o mesmo caminho da Coréia do Sul, tornou-se um pólo industrial de primeira ordem para produtos de consumo de massa, também paulatinamente concorrendo vantajosamente com os produtos norte-americanos e europeus. 54. O surgimento dos NIC (Newly Industrializing Countries – Novos Países Industrializados), durante os anos 1970, representou a segunda onda promovida pelos investimentos norte-americanos na Ásia, no contexto da Guerra Fria. Esses países foram Indonésia, Tailândia e Malásia. Embora seguissem os mesmos passos dos Tigres Asiáticos, eles entraram atrasados no processo de desenvolvimento, confrontaram-se com o ambiente descendente das demandas dos Estados Unidos no Vietnã e não conseguiram alcançar o mesmo patamar de desenvolvimento dos Tigres. Além disso, no caso específico da Indonésia, os problemas de corrupção agravaram sua situação social e política. 6. SITUAÇÃO NA ENTRADA DO SÉCULO XXI 55. A partir de 1978, a China realizou uma série de reajustamentos internos e aprovou um plano de longo prazo de reformas em seu socialismo, incluindo a abertura econômica para o exterior. Nos anos seguintes, apesar de o Japão haver ingressado numa prolongada crise de estagnação, o rápido desenvolvimento chinês e a manutenção de altas taxas de crescimento da Índia, dos Tigres e dos NIC contribuíram para transformar a Ásia do Pacífico na região de maior dinamismo econômico mundial, deslocando o eixo de desenvolvimento dos Estados Unidos e da Europa para a Ásia. 56. A Ásia continua enfrentando inúmeros problemas estruturais do passado. Grandes populações, persistência de áreas de grande miséria, problemas 106 Curso de Formação em Política Internacional.p65 106 5/6/2007, 12:41 Wladimir Pomar fronteiriços ainda não solucionados (Caxemira), reunificações não resolvidas (Coréias, Taiwan), coexistência religiosa difícil (hinduístas, muçulmanos e cristãos) e interferências externas permanecem como focos persistentes de instabilidade. Apesar disso, a maior parte dos conflitos latentes tem sido de baixa intensidade, havendo esforços consistentes para superá-los através de mecanismos de consulta e diálogo. O que não quer dizer que isso dure eternamente. BIBLIOGRAFIA INDICADA BARRACLOUGH, Geoffrey. O imperialismo e a reação nacionalista. In História do Século XX. vol. 1. São Paulo, Abril Cultural. CHESNEAUX, Jean. A Ásia Oriental nos séculos XIX e XX. São Paulo, Pioneira, 1976. FLAMARION, Ciro. O modo de produção asiático. Rio de Janeiro, Campus, 1990. HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2002. MESGRAVIS, Laima. A colonização da Ásia e da África. São Paulo, Atual, 1994. PANIKKAR, K. M. A dominação ocidental na Ásia. São Paulo, Paz e Terra, 1977. POMAR, Wladimir. O enigma chinês. São Paulo, Alfa-Ômega, 1987. _____. A Revolução chinesa. São Paulo, Unesp, 2003. SPENCE, Jonathan D. Em busca da China moderna. São Paulo, Cia. das Letras, 2000. FILMOGRAFIA SOBRE A ÁSIA Ana e o rei do Sião (Anna and the King of Siam, Estados Unidos, 1946, direção: John Cromwell) Ana e o rei (Anna and the King, Estados Unidos, 1999, direção: Andy Tennant) Passagem para a Índia (A Passage to India, 1984, Inglaterra, direção: David Lean) Tai-Pan – A conquista de um Império (Tai-Pan, Estados Unidos, 1986, direção: Daryl Duke) O homem que queria ser rei (The Man Who Would Be King, Estados Unidos/ Reino Unido, 1975, direção: John Huston) O canhoneiro do Yang-tsé (The Sand Pebbles, Estados Unidos, 1966, direção: Robert Wise) 107 Curso de Formação em Política Internacional.p65 107 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Um olhar sobre a Índia Wladimir Pomar 1 1. PRELIMINARES 1. Os antigos territórios indianos incluíam, além da atual Índia, com 3,2 milhões de km2, o Paquistão, com 796 mil km2, a noroeste, Bangladesh, com 144 mil km2, a nordeste, e Sri Lanka, com 66 mil km2, ao sul. Nesses territórios, há vestígios de povoamento humano desde o período Paleolítico (há 100 mil anos). Mas datam de 5 mil anos (3000 a.C.) as primeiras povoações conhecidas, no vale do Indo, que tinham por base a agricultura de cereais. 2. Nos 1.500 anos posteriores, essas aglomerações se transformaram em cidades-Estado, comandadas por reis (rajás2) ou grandes reis (marajás), configurando-se como culturas ou civilizações próprias. Suas características comuns eram as edificações de ladrilhos, os trabalhos com metais (exceto o ferro), as canalizações urbanas e rurais (estas para irrigação), as embarcações e o comércio fluvial, a escrita e as representações religiosas antropomórficas (shiva) e animistas (fauna local). A história conhece essas populações do vale do Indo, dispersas por suas cidades-Estado, como drávidas. 3. Por volta de 1.500 a.C. teve início a penetração de populações arianas, em migração da Ásia Central. Eram tribos de língua indo-européia, dotadas de carros de guerra puxados por cavalos e armadas com arco-e-flecha, armadura e escudo. Com essa superioridade militar, impuseram-se aos drávidas, 1 Jornalista e escritor, é membro do conselho de redação da revista Teoria & Debate, autor, entre outros, de Araguaia, o partido e a guerrilha, O enigma chinês – capitalismo ou socialismo, Lula lá – o susto das elites, A ilusão dos inocentes, Pedro Pomar – uma vida em vermelho e A revolução chinesa. 2 Neste artigo, as palavras de origem híndi foram grafadas de duas formas: em itálico, quando não existe o termo dicionarizado em português, sem itálico, quando o termo em questão está dicionarizado. (N.E.) 108 Curso de Formação em Política Internacional.p65 108 5/6/2007, 12:41 Wladimir Pomar no vale do Indo, e estenderam-se para leste, pelo vale do Ganges. Por volta de 600 a.C., haviam se estabelecido em quase todo o vale do Indo, restando apenas algumas cidades-Estado sob domínio dravídico no golfo de Cambaia. 4. Os arianos impuseram sua estrutura econômica, social e política, assim como sua religião védica. As terras foram repartidas entre os guerreiros (chatrias), os sacerdotes (brâmanes) e os camponeses arianos livres (vaisia) para cultivo e para criação dos rebanhos bovinos e ovinos. Os camponeses servos e mestiços (sudras) trabalhavam as terras para os guerreiros e os brâmanes. Ao mesmo tempo, permitiram a existência de pessoas totalmente desprovidas de meios de trabalho (os párias). 5. Essa estrutura foi consolidada no Código de Manu, entre 600 a.C. e 250 a.C., ao mesmo tempo em que era sancionada pela religião Veda como regime de castas, que impedia qualquer deslocamento social entre elas. Mas foi nesse período (540 a.C. a 468 a.C.) que a religião Veda sofreu seu primeiro choque, com o surgimento de duas novas vertentes religiosas, o budismo e o jainismo, o que a obrigou a uma profunda revisão, que se consolidou, mais tarde, no hinduísmo. Ao mesmo tempo, os territórios arianos foram invadidos por povos ocidentais. 6. A Índia ariana era formada por diversas cidades-Estado ou reinos, que travavam guerras entre si. Não conseguiram, pois, impedir que os persas, comandados por Ciro, penetrassem fundo no noroeste da Índia, em 312 a.C. Dario I ampliou as conquistas de Ciro, transformando essa região (que hoje faz parte do norte do Paquistão) em satrapias. Entre 327 a.C. e 325 a.C., o macedônio Alexandre, o Grande, derrotou os persas, transformou suas satrapias em satrapias gregas e tentou atravessar a Índia, rumo ao Pacífico, mas foi impedido pela forte resistência dos reinos arianos restantes. 7. Em 321 a.C. ocorreu a primeira tentativa de unificação monárquica, feita pelo rei Chandragupta, de Magadha, no nordeste. Ele rechaçou as tentativas de Seleuco I (antigo general de Alexandre), fundou a dinastia Maurya, mas não chegou a dominar todo o território. Isso quase será realizado por Asoka, seu neto, entre 272 e 231 a.C., com capital em Pataliputra. Apenas Pandia, Cola e Kerala, ao sul, onde os romanos haviam estabelecido os portos de Produke, Kolxoi e Muziris, permaneceram fora de seus domínios. A conquista de Kalinga, área litorânea ao sul de Maghada, foi realizada ao custo de 100 mil mortos e 150 mil deportados, levando Asoka a converter-se ao budismo e pregar a tolerância religiosa. 109 Curso de Formação em Política Internacional.p65 109 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional 8. À morte de Asoka, em 231 a.C., seguiu-se nova divisão, a sucessão da dinastia Maurya pela Sunga, o estabelecimento de pequenos reinos gregos no Punjab (noroeste) e as invasões escitas (sakas, povo originário da Ásia Central) e dos yue chi (nômades indo-europeus), a fundação do reino de Kusana em toda a região noroeste, da dinastia Satavahana na região central (Decão) e do Estado Ksatrapa na região ocidental (foz do Indo e vale do Narbada). 9. O estabelecimento da dinastia Gupta, em 320 d.C., com sede em Pataliputra, procurou reaver a hegemonia perdida com a morte de Asoka, mas não conseguiu deter as constantes invasões pelas fronteiras noroeste (atual Caxemira). Hunos brancos, sassânidas e mercenários turcos e árabes (muçulmanos) sucederam-se entre os anos 400 e 1030 d.C. Os muçulmanos penetraram profundamente no território, fundaram o sultanato de Délhi, em 1206, e mantiveram seu domínio sobre a maior parte da Índia. 10. Os muçulmanos implantaram um despotismo teocrático-militar, com base no islamismo. Aniquilaram o budismo, destruindo templos, mosteiros e manuscritos. E exigiram que os hinduístas pagassem tributos para praticar sua religião. Como sua principal preocupação era a extração dos tributos, estipularam um sistema fiscal que aumentava a riqueza mediante a expansão da produção (tecidos, especiarias, açúcar), mas garantia que parte dessa riqueza fosse transferida para a sede do império árabe. Com isso, incrementaram o comércio com o mundo islâmico ocidental, mas aumentaram os problemas financeiros do sultanato. 11. Os muçulmanos doavam, temporariamente, os domínios feudais a altos funcionários ou guerreiros turcos, árabes, indianos e mongóis, não se importando em constituir uma nobreza feudal hereditária. Apesar das constantes disputas pelo trono, o sultanato de Délhi conseguiu estender seu domínio ao Decão e rechaçar as invasões mongóis, que se mantiveram no reino Bahmani por quase 180 anos (1347 a 1527). 12. A extensão do domínio muçulmano ao Decão coincidiu com grave crise financeira do sultanato e com o início de sua decadência. Em 1340, os indianos fundaram o reino de Vijayanagar (cidade da vitória), ao sul do Decão, convertendo-o no principal centro de resistência ao domínio islâmico, ao estender-se às custas do reino Bahamani e dos desmembramentos do Decão. Em 1388, o imperador mongol Timur Lenk (Tamerlão) invadiu o norte da Índia e destruiu Délhi, anexando o Punjab a seu domínio. 110 Curso de Formação em Política Internacional.p65 110 5/6/2007, 12:41 Wladimir Pomar 13. Em 1504, os mongóis criaram o Império do Grão-Mogol, conquistando Agra, os rajputs de Khanua e o norte da Índia. Em 1601, haviam ocupado toda a Índia. Durante seu domínio, incentivaram o casamento dos nobres mongóis com princesas indianas, suprimiram o regime fiscal dos árabes, implantaram uma burocracia centralizada, com a participação dos hindus, proibiram os suicídios rituais e publicaram um édito de tolerância religiosa, mesmo tendo implantado o culto ao deus Sol. O luxo cortesão desmedido, os altos tributos exigidos dos camponeses, os conflitos em relação ao trono e a chegada da primeira onda colonial européia aceleraram o declínio do império mongol. 14. Em 1498, Vasco da Gama chegou a Calcutá, na costa sudoeste. Entre 1505 e 1515 Portugal criou os primeiros elos do império português, estabelecendo feitorias em Goa, Ceilão e Diu. Retiravam ouro, diamantes, salitre, corantes, café, açúcar, pimenta, canela, algodão, lã, tecidos e ópio, através de suas companhias mercantis. Em 1612, a Inglaterra também definiu sua política colonial, participando na expansão marítima, na pilhagem dos novos territórios, na guerra contra seus concorrentes e no comércio mundial, através da Companhia das Índias Orientais. Derrotou os portugueses na batalha de Surat, em 1614, e ocupou Madras, em 1639, Bombaim (atual Mumbai), em 1661, e Calcutá, em 1696. A França, por sua vez, também organizou uma Companhia das Índias Orientais, em 1644, e fundou feitorias em Chandernagore e Pondicherry, no litoral oriental da Índia. 15. O Império Grão-Mogol alcançou o auge de sua expansão territorial em 1691, em meio a disputas internas, emolduradas por conflitos religiosos. Aurengzeb, o último grão-mogol importante, tentou impor os rituais islâmicos sunitas e restaurar a jizya, os impostos discriminatórios. Perseguiu xiitas e hinduístas e destruiu seus templos, levando à revolta sikh e dos Estados vassalos do Rajput, e à organização militar dos maratas, para defender o hinduísmo. Em 1765, a Índia se livrou dos imperadores mongóis, mas permaneceu um mosaico de pequenos e grandes reinos, comandados por príncipes (rajás e marajás), além de parcelas do território ocupadas por europeus. A sociedade de castas continuava intocada, enquanto os príncipes hindus permaneciam em conflito, sob o manto do hinduísmo e do islamismo. 16. A Companhia das Índias Orientais inglesa interveio nas disputas entre os príncipes hindus, com o apoio militar da metrópole, para assegurar 111 Curso de Formação em Política Internacional.p65 111 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional o domínio comercial, obter privilégios tributários e o controle político e implantar o domínio britânico. Entre 1757 e 1803, conquistou Bengala, Audh, Bihar e Ceilão, desbaratou a Liga dos Maratas, desarmou o nizan (alta autoridade) de Heiderabad e avassalou o reino de Mysore, seus três principais inimigos. Finalmente, conquistou Délhi, Agra e Bengala meridional e, em 1814, tornou o Nepal parte do Império Britânico, transformando os gurkas em guerreiros auxiliares para o domínio sobre a Índia e para as guerras em outras partes do mundo. 17. A partir de 1817, em nova guerra contra os maratas e os rajputs, a Inglaterra anexou a seu domínio os principados carentes de herdeiros e os territórios limítrofes. O Tenasserin, o Arakan e o Assam, pertencentes à Birmânia, foram incorporados em 1826. A guerra para conquistar o Afeganistão, entre 1839 e 1842, fracassou. O Punjab foi anexado em 1849, a Baixa Birmânia em 1852, o Butão em 1865, o Beluquistão em 1876, o restante do território birmanês em 1886 e o Sikim em 1890. Em 1904, após uma sangrenta expedição militar a Lhasa, a Inglaterra garantiu privilégios comerciais no Tibete. 18. Desde 1858, após a vitória inglesa sobre os cipaios (tropas indianas), com a ajuda de tropas gurkas e sikhs, e a dissolução da Companhia das Índias Orientais, a Índia foi convertida em Domínio Britânico, sob um vice-rei. Em 1876, a rainha Vitória incorporou a seu título o de imperatriz da Índia. 2. AS CORRENTES RELIGIOSAS INDIANAS 19. Os Veda, conjunto de livros sagrados (sânscritos), constituem o primeiro escrito em língua indo-européia. O Rigveda, constituído de 1.028 hinos, é do ano 1000 a.C. Eles codificam os deuses, a doutrina, os ritos, os sacrifícios, a estrutura de castas e a exegese védica. 20. Veda significa saber ou sabedoria sagrada. Seu núcleo doutrinário é a ioga, ou o desejo de libertação mediante a fusão com a realidade suprema. Entre as deusas védicas encontram-se Rita (a verdade, força universal de caráter impessoal), Varuna (deusa dos juramentos), Mitra (deusa dos contratos), Ushas (deusa da aurora), Agni (deusa do fogo), Surya (deusa do Sol), Indra (deusa da guerra). A exegese dos Veda é exclusividade dos sacerdotes (brâmanes). 112 Curso de Formação em Política Internacional.p65 112 5/6/2007, 12:41 Wladimir Pomar 21. Hinduísmo foi uma denominação imposta pelos muçulmanos aos védicos. Mas estes, após o surgimento do budismo e do jainismo, fizeram uma revisão. Aceitaram o hinduísmo, apresentando-o como continuidade da Sanâtama Daarma, lei cósmica universal, equilíbrio instável entre deuses e demônios, e acrescentaram a transmigração budista à doutrina, rituais e sacrifícios védicos, tornando o hinduísmo a religião e a cultura predominantes. 22. A doutrina da transmigração, ou da renúncia, justifica a ordem existente em função dos méritos e dos erros das vidas anteriores. A partir dessa visão, para alcançar a libertação (mocsa), como renunciantes (sannyasin), os hindus devem pagar suas dívidas aos deuses e ancestrais, primeiro como estudantes (brhmacarya) e depois como senhores da casa (grihastha). 23. O budismo surgiu em 600 a.C. como reação ao bramanismo védico. Gautama Buda (o Iluminado), um chatria, pregava a libertação das reencarnações mediante o auto-aperfeiçoamento. Os aspectos essenciais do budismo consistem no reconhecimento da existência humana como sofrimento, do desejo como a causa (carma) desse sofrimento, e da necessidade de suprimir o carma para ser libertado, através do caminho, ou iluminação, que leva ao nirvana (extinção), como propósito da vida. 24. Após a morte de Buda, o budismo dividiu-se em seitas e escolas. Durante o reinado de Asoka, tornou-se uma religião com vocação universal, expandindo-se por meio de missionários. Porém, em vez de unificar-se em torno de uma doutrina e uma igreja comuns, transformou-se num agregado ainda maior de seitas, que se distinguem pelas interpretações em torno do pequeno veículo tradicional (hinaiana), do grande veículo reformado (mahayana) e de outros pontos doutrinários. Após um apogeu, por volta de 4 d.C. e 5 d.C., o budismo sofreu na Índia o ataque conjugado do hinduísmo reformado e do islamismo dominador, mediante perseguições e destruição de seus templos. 25. Vardhamana, ou Mahavira (Alma Grande), ou Jaina (o Vitorioso), também surgido em 600 a.C., pregava que o sofrimento terreno é conseqüência da fusão do espírito (jiva) com a matéria (ajiva). Como o budismo, colocava-se contra o bramanismo e buscava libertar o ser humano dos sofrimentos inerentes à existência. Tal libertação só seria possível com a separação de espírito e matéria, através da mortificação. Isto inclui o ascetismo, a maceração e o jejum, até a morte. Seu núcleo doutrinário consiste na nega113 Curso de Formação em Política Internacional.p65 113 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional ção de himsa (a violência) e na ahimsa (não fazer mal a criatura alguma). O jainismo seguiu uma trajetória idêntica à do budismo, dividindo-se em ramos (os shvetambara, ou vestidos de branco, e os digambara, ou vestidos de espaço, ou nus) e seitas diversas. 26. O Islã penetrou na Índia através das invasões turcas, árabes, persas, afegãs e mongóis, iniciadas em 711 d.C. Seu dogma principal é a existência de Deus (Alá) como criador do universo, ser supremo único, perfeito, e juiz de todos os homens. Reitera o monoteísmo judaico e cristão. Mas, ao contrário destes, coloca o crente em relação direta com Deus, mediante os cinco atos essenciais que cada um deve praticar: a profissão de fé (Chahada), as abluções diárias na direção de Meca (Salat), o jejum durante o Ramadã, a peregrinação a Meca (hadjdj), pelo menos uma vez na vida, e o pagamento da esmola legal (zakat). 27. Embora não exista um clero para colocar os crentes em relação com Alá, o Islã possui os homens da lei (mufti, ou intérpretes das questões jurídicas), e os juízes (qadis ou cádis, que velam pela interpretação e pela aplicação do Corão). Formaram-se, assim, Estados muçulmanos, dirigidos por imãs ou califas, que administram o governo e aplicam a lei corânica. A guerra santa (jihad) foi a base da expansão muçulmana na Índia, primeiro comandada pelos árabes, depois pelos omíadas, abássidas, turcos-otomanos e, finalmente, pelos mongóis. 28. Nessas condições, o islamismo na Índia sempre esteve associado a uma forma de Estado, fosse sultanato (Délhi), reino (Bengala, Malva e Gujerat) ou império (Grão-Mogol), através do qual tentou destruir o hinduísmo e o budismo. Durante a dominação britânica, privados de Estado próprio, os muçulmanos voltaram a reivindicá-lo, no processo da independência, o que levou à criação do Paquistão e, depois, de Bangladesh. 3. A POLÍTICA IMPERIALISTA BRITÂNICA 29. A transformação da Índia em colônia britânica está inserida na onda de expansão colonial da Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX. As emergentes potências industriais buscavam novas fontes de matérias-primas minerais e agrícolas para sua produção e novos mercados para seus produtos. Já não se tratava mais de descobrir novos territórios. 114 Curso de Formação em Política Internacional.p65 114 5/6/2007, 12:41 Wladimir Pomar Tratava-se de realizar uma nova divisão territorial, tendo por base as demandas das indústrias. 30. A Inglaterra perdera os Estados Unidos, em 1776, e seus privilégios comerciais na América Latina eram contestados. Nas “colônias brancas”, como Nova Zelândia e Austrália, surgiam movimentos autonomistas. De traficante negreira, a Inglaterra transformara-se em defensora do fim do tráfico e da escravidão. Pressionada pelo incremento populacional, pela expansão urbana, pelo êxodo rural e pela concorrência industrial de franceses, alemães, japoneses e norte-americanos, era levada a encontrar novos mercados para os quais direcionar seus migrantes e seus produtos, e de onde arrancar suas matérias-primas, assegurando ainda as vias de tráfego marítimo para seu comércio internacional. 31. Com base em sua nova política colonial, de 1812, a Inglaterra lançou-se à conquista de territórios: Colônia do Cabo em 1814, Cingapura em 1819, ilhas Malvinas em 1833, Áden em 1839, Hong Kong em 1841, Natal e Estado de Orange entre 1848 e 1954, Transvaal em 1852, Canal de Suez em 1875, Chipre em 1878, Egito em 1882. Em 1880, a GrãBretanha controlava 46% do comércio mundial. E em 1914, início de sua decadência, a população de suas colônias era oito vezes superior à população da metrópole, enquanto a superfície desta era 94 vezes inferior ao império colonial. O Império Britânico conseguira reunir sob sua coroa 23% da população mundial e 20% da superfície do planeta. 32. Empreendimento desse vulto necessitava de justificação ideológica que revestisse os interesses imperialistas com uma roupagem menos vulgar. O dever puritanista de fomentar a civilização transformou-se em missão. O escritor inglês Thomas Carlyle estabeleceu as bases ideológicas da Inglaterra como nação predestinada a cumprir tal missão em escala universal. O ministro Charles Dilk criou a imagem de um “mundo cada vez mais inglês”. E Rudyard Kipling exprimiu literariamente o “dever do homem branco” e a missão britânica. 33. À medida que a Inglaterra colonizava a Índia, firmava posição na China e ocupava outros territórios, viu-se às voltas com as potências industriais, inclusive no continente europeu. Os movimentos de poder na Europa a sacudiram durante todo o século XIX. As guerras napoleônicas se estenderam até 1815. As restaurações da contra-reforma, as revoluções libe115 Curso de Formação em Política Internacional.p65 115 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional rais e as insurreições operárias foram de 1815 a 1872. A proclamação do Segundo Reich e a política de Otto von Bismarck intensificaram a perspectiva de uma nova guerra européia. No início do século XX, dois blocos de potências estavam em oposição: de um lado, Alemanha e Áustria-Hungria; de outro, Inglaterra, França e Rússia (a Entente Cordial, uma aliança entre nações européias). 34. A Inglaterra sempre procurou a hegemonia sobre as demais potências imperialistas. Primeiro, expandindo-se sobre áreas ainda “livres” ou “abertas”. Segundo, com uma política armamentista que assegurasse sua supremacia naval. Terceiro, consolidando-se como império. Para tanto, abandonou a política de câmbio livre e criou uma confederação imperial das “colônias brancas”, unidas pela língua, pelos privilégios econômicos e pela Coroa. Austrália, Nova Zelândia, Terranova e União Sul-Africana ganharam status de domínio. Em 1914, quando estourou a Primeira Guerra Mundial, o império britânico era constituído pela metrópole (Inglaterra) e por domínios, protetorados e colônias. 4. O DOMÍNIO BRITÂNICO NA ÍNDIA 35. O domínio sobre a Índia combinou administração direta de certas regiões com protetorado de outras. Na administração direta, não era admitida qualquer participação dos hindus. O Serviço Civil era totalmente ocupado por ingleses. Nos protetorados, como Nepal, Butão e Sikim, a administração era realizada pelos nativos, embora devessem solicitar autorização aos ingleses para qualquer passo. 36. Os ingleses inundaram a Índia com seus produtos industriais, causando a liquidação da economia rural autárquica, até então predominante. Por outro lado, a introdução de grandes plantations de algodão, chá, juta, índigo e papoula, com capitais britânicos, desapropriou das atividades agrícolas parte importante dos camponeses, obrigando-os a migrar para as cidades em busca de trabalho. Isso agravou os problemas da superpopulação e da urbanização, gerando um imenso e miserável processo de favelização. 37. Ao mesmo tempo, para a comercialização dos produtos importados da metrópole e a exportação dos produtos agrícolas e minerais produzidos na colônia, os britânicos instalaram uma rede ferroviária, até então inexistente, 116 Curso de Formação em Política Internacional.p65 116 5/6/2007, 12:41 Wladimir Pomar e modernizaram os portos. Também introduziram novos sistemas de irrigação nas plantations, embora deixando abandonados os sistemas de irrigação das zonas de predomínio de culturas de pouco interesse comercial. 38. Os britânicos também implantaram seu sistema de ensino, marginalizando a cultura e as línguas indianas. Ao mesmo tempo, porém, estimularam a formação de uma elite cultural indiana em seus colégios e universidades. Pretendiam que essa elite se europeizasse e colaborasse com o “processo civilizatório” inglês. Mas o domínio britânico produziu um contínuo descontentamento. Além da resistência dos maratas e rajputs, com insurreições e ataques aos britânicos, a elite cultural que os ingleses pensavam europeizar seguiu outro caminho. Entrou em contato com as idéias nacionalistas, liberais e socialistas em ebulição na Europa e foi incentivada a participar da resistência e da luta contra o domínio britânico. Surgiram núcleos nacionalistas conspirativos em Londres, Paris e outras cidades da Europa. 39. Em 1885 foi fundado o Congresso Nacional Indiano (Partido do Congresso), que lutava pela participação na administração do país, pela outorga de direitos eleitorais e pela admissão de hindus no Serviço Civil. O êxodo de camponeses sem posses para as cidades, as epidemias de 18961897 e a vitória do Japão sobre a Rússia em 1905 reforçaram o Partido do Congresso e incentivaram os boicotes aos produtos têxteis britânicos, a realização de atentados terroristas por nacionalistas extremados e a fundação da Liga Muçulmana como porta-voz da minoria islâmica. 40. A eclosão da Primeira Guerra Mundial não envolveu diretamente a Índia, mas repercutiu profundamente nela. O fracasso da Sociedade das Nações (um tipo de Organização das Nações Unidas daquele período), o fortalecimento da consciência nacional e do princípio de autodeterminação dos povos, as controvérsias sobre os tratados de paz, as dificuldades para a recuperação econômica européia e mundial, a crise da democracia liberal, a revolução russa e a emergência do primeiro Estado socialista, a emergência de movimentos operários e de partidos comunistas em grande número de países, inclusive coloniais, colocaram em crise a supremacia européia no mundo – e portanto a inglesa. 41. Em 1916, hindus e muçulmanos assinaram o Pacto de Lucknow, exigindo a autonomia do país. Contínuos levantes populares culminaram, em abril de 1919, no massacre de Amritsar. Tropas britânicas chaci117 Curso de Formação em Política Internacional.p65 117 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional naram mais de mil indianos desarmados. Os protestos posteriores levaram os ingleses a realizar, em dezembro, a reforma Montagu-Chelmsford, prevendo a divisão de poderes entre o governo central e as províncias (diarquia), que deveria conferir a hindus os ministérios da agricultura, da indústria, da educação e da saúde, enquanto os ingleses manteriam sob seu controle a polícia, os impostos diretos e a defesa. 42. Foi neste momento que a pregação de Mohandas Gandhi, o mahatma (magnânimo), com sua luta pela independência (swaraj), baseada na verdade ideal (satya), na não-violência (ahimtsa) e na purificação pelo amor ao próximo (brahmajarya), alguns dos preceitos da tradição religiosa hindu, mobilizou grandes contingentes da população. Boicotaram a compra do sal e alastraram a resistência passiva (satyagraja), ou desobediência civil. Os britânicos condenaram Gandhi a seis anos de prisão, em 1920, e implantaram um governo ditatorial. Não conseguiram, porém, deter a mobilização popular. Viram-se obrigados a indultar Gandhi em 1924, ao mesmo tempo em que o Partido do Congresso, influenciado pelo movimento de Gandhi, avançava em suas reivindicações, exigindo o status de domínio. 43. Diante da não-concretização da diarquia, em 1926 o Partido do Congresso aceitou a proposta de Constituição de Motilal Nehru e deu um ultimato para que a Grã-Bretanha concedesse o status de domínio em um ano. Mas Gandhi avançava suas reivindicações. Exigia independência, reformas econômicas contra os monopólios britânicos e melhoria das condições de vida dos 60 milhões de párias (intocáveis). Em 1930, na segunda Campanha de Resistência Passiva, Gandhi e 60 mil nacionalistas foram presos, mas os ingleses tiveram que fazer um acordo, comprometendo-se a liberar os presos e iniciar, em Londres, as mesas-redondas para discutir a independência. Em troca, a desobediência civil seria paralisada. 44. Nas mesas-redondas, porém, os ingleses não fizeram concessões. Em razão disso, a desobediência civil foi retomada em 1932, levando os ingleses a instaurar a diarquia, em 1935, mantendo sob seu controle apenas os ministérios do Exterior e o da Guerra. Os demais deveriam ser indicados pela Assembléia Legislativa. As províncias ganharam autonomia, mas o vice-rei e os governadores mantiveram o poder de decretar medidas extraordinárias. Durante as eleições de 1937, o Partido do Congresso obteve a maioria 118 Curso de Formação em Política Internacional.p65 118 5/6/2007, 12:41 Wladimir Pomar em 6 das 11 províncias, entrando em vigor a nova Constituição. A Birmânia foi separada da Índia e recebeu o status de colônia. 45. A essa altura, os ares de uma nova guerra escureciam os céus mundiais. O Japão se armava aceleradamente e não escondia as pretensões de tomar para si todas as colônias situadas na Ásia. Desde 1931 praticava uma política de agressão e de expansão na China. Em 1936, aderiu ao Pacto Anti-Comintern, voltado para o ataque à União Soviética, e denunciou o Pacto de Washington, que limitava sua marinha de guerra. E, em 1937, tomando como pretexto um incidente entre tropas chinesas e japonesas na ponte Marco Pólo, em Pequim (Beijing), deu início à ofensiva para ocupar toda a China. 46. A Inglaterra viu-se obrigada a fazer novas concessões aos indianos, tendo em conta o contexto internacional de uma nova conflagração mundial. Ao mesmo tempo em que, junto com a França, declarava guerra à Alemanha, em virtude da invasão da Polônia, na Índia o Azad Hind (Índia Livre) e seu ina (Indian National Army), dirigidos por Subhas Chandra Bose, defendiam a unidade com o Japão, contra os ingleses, Gandhi lançava sua terceira satyagraja, com o apoio de Jawaharlal Nehru, do Partido do Congresso, e a Liga Muçulmana, dirigida por Mohamed Ali Jinnah, apresentava seu Plano Paquistão, propugnando a criação de um Estado islâmico independente, separado da federação indiana. 47. Além disso, a ofensiva japonesa dirigia-se em três direções. A primeira, para o sul, visando as Filipinas e as ilhas Holandesas (Indonésia). A segunda, para o oeste, visando Hong Kong, Indochina, Tailândia, Malásia e Birmânia, colocando-se portanto em condições de invadir a Índia. A terceira, para o leste, a fim de ocupar as ilhas da Oceania. O Japão chegou a exercer o domínio sobre 450 milhões de habitantes, contando com importantes fontes de matérias-primas asiáticas para suas indústrias. 48. Diante disso, os ingleses negociaram a independência indiana e conseguiram que a Índia participasse de seu esforço de guerra. Tropas indianas realizaram operações bélicas junto com tropas inglesas e australianas, e as matérias-primas agrícolas e minerais indianas contribuíram para a produção das armas inglesas e norte-americanas. Em 1946, seguindo os acordos realizados, o governo inglês acertou a criação de uma Assembléia Constituinte e de um governo indiano de transição para a independência, proclamada em 1947. 119 Curso de Formação em Política Internacional.p65 119 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional 5. A ÍNDIA INDEPENDENTE 49. A independência da Índia, em vez de dar lugar a festejos generalizados, desembocou em graves conflitos entre hinduístas e muçulmanos. A formação do Paquistão, pelas províncias de maioria muçulmana, levou a um massivo movimento migratório, a rebeliões raciais e religiosas e ao marasmo econômico. Sind e Beluquistão constituíram o Paquistão Ocidental. Já Bengala Oriental, a 1.700 km daquelas, formou o Paquistão Oriental. Os principados muçulmanos de Hiderabad e Caxemira questionaram a partição e foram anexados pela Índia. Em meio a esses conflitos, Gandhi foi assassinado, em 1948, por um hinduísta. 50. Logo após a independência, o governo interino do primeiro-ministro e ministro do Exterior Jawaharlal Nehru elaborou a Constituição Republicana da União Hindu (Bharat). Esta dava uma nova organização políticoadministrativa para o país, com 27 estados federados (com governos e parlamentos próprios), seis territórios e um protetorado (Sikim). Nas eleições de 1951, o Partido do Congresso foi sufragado com 75% dos votos e manteve Nehru como primeiro-ministro. 51. Os problemas mais graves da Índia eram a superpopulação, a fome e a pobreza. O governo do Partido do Congresso adotou os planos qüinqüenais. Procurou fazer uma reforma agrária com doações voluntárias de terras. Nacionalizou os bancos, as companhias de seguros e a aviação. Procurou criar uma indústria pesada, com investimentos estrangeiros (siderúrgicas de Rourkela e Bhilai), e desenvolver a exploração de suas matérias-primas, ao mesmo tempo em que se esforçou para ampliar a educação e a cultura. No entanto, a renda nacional caiu e o aumento anual da população beirou 15 milhões de pessoas. 52. O governo também procurou superar os tabus religiosos, como o das vacas sagradas e das castas, reduzir a ignorância e avançar no rumo de um Estado democrático. No entanto, quando os comunistas conquistaram eleitoralmente o governo do estado de Kerala, em 1958, o governo indiano não titubeou em dissolvê-lo à força. E foi impotente para controlar a natalidade excessiva, evitar as lutas religiosas e lingüísticas e prevenir-se contra as catástrofes naturais. 53. Nesse período de polarização entre os Estados Unidos e a União Soviética (Guerra Fria), Nehru instituiu uma política exterior de “neutralidade 120 Curso de Formação em Política Internacional.p65 120 5/6/2007, 12:41 Wladimir Pomar dinâmica”, desempenhando papel de mediador nas crises mundiais. Em 1954, durante a visita do primeiro-ministro chinês, Zhu Enlai, à Índia, ambos proclamaram os Cinco Princípios de Coexistência Pacífica – soberania, igualdade de direitos, não-interferência nos assuntos internos, aspirações pacíficas e aversão a qualquer agressão e intervenção externa –, mais tarde aceitos na Conferência dos Países Não-Alinhados, em Bandung, Indonésia. 54. Apesar disso, a política da Índia em relação à Caxemira acirrou suas contradições com o Paquistão. Em 1947, tropas hindus participaram da insurreição contra o principado feudal e ocuparam quase toda a região, com exceção de Gilgit. Apesar de ser uma região de maioria muçulmana, foi anexada à Índia. O armistício proposto pela onu apenas confirmou a divisão da Caxemira, mantendo uma situação instável. 55. A Índia também não reconhecia os reclamos da China contra a linha Mac Mahon, imposta pelos ingleses para demarcar as fronteiras setentrionais de seu Império, que avançara no território tibetano, sob a proteção da China desde o século XII. Em 1959, durante a insurreição de lamas tibetanos contra a reforma agrária e a proibição da servidão, a Índia permitiu a entrada de agentes estrangeiros na região, e deu guarida aos que seguiram o Dalai Lama, após a derrota. As tropas indianas foram empurradas para trás das antigas fronteiras, e os conflitos com a China prolongaram-se até 1962. 56. Nesse mesmo período, a Índia anexou os territórios ocupados por Portugal (Goa e Diu) e as feitorias francesas (Pondicherry e Chandernagore). Nehru morreu em 1964, mas o Partido do Congresso continuou no poder até 1977. A antiga hegemonia do Partido do Congresso fora sendo corroída pelas dificuldades econômicas, pelo aumento dos antigos problemas que avassalavam o país (superpopulação, fome e pobreza) e pela multiplicação de conflitos regionais, étnicos e religiosos. Em 1984, a primeira-ministra Indira Gandhi, do Partido do Congresso, foi assassinada por um sikh de sua guarda pessoal. 57. Em 1989, o Partido do Congresso foi derrotado pelo Partido Nacional, que agrupou em torno de si diversos partidos da oposição. Mas o governo do Partido Nacional não conseguiu se livrar de graves conflitos na Caxemira, nem de violentas demonstrações contra a permissão do acesso das castas inferiores aos cargos públicos. Apesar da troca do primeiro-ministro, em fins de 1990, os distúrbios étnicos se alastraram a Assam, Hydebarad, Aligarth e Agra, e as negociações com os sikhs não tiveram sucesso. 121 Curso de Formação em Política Internacional.p65 121 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional 58. O ambiente conflituoso continuou nas eleições gerais de 1991. O principal dirigente do Partido do Congresso, Rajiv Gandhi, foi assassinado num atentado, que matou outras 16 pessoas. Vitorioso, o Partido do Congresso esforçou-se em continuar as reformas que vinha tentando implantar desde o governo de Indira, especialmente a abertura da economia ao capital estrangeiro e a privatização de empresas estatais. Mas isso o enfraqueceu e, em 1996, o levou à sua maior derrota desde que fora fundado. 59. A vitória coube ao Partido Baratya Jamata, caracterizado como hinduísta e hostil aos muçulmanos e às demais religiões. Entretanto, o Jamata não conseguiu coligar-se a outros partidos para obter maioria, sendo substituído pela Frente Unida, uma coalizão de 14 pequenos partidos de esquerda e de centro-esquerda. A continuidade dos problemas sociais e políticos, assim como o envolvimento de um pequeno partido integrante da Frente Unida no assassinato de Rajiv Gandhi, conduziu a uma nova crise política e à convocação de eleições gerais, que marcaram o ressurgimento do Partido do Congresso, agora sob a direção de Sonia Gandhi, viúva de Rajiv. 6. A LITERATURA INDIANA 60. A literatura indiana, embora possua um fundo cultural comum, tem sua expressão nos quatro grandes grupos ou famílias lingüísticas do país: o indo-ariano, o dravídico, o sino-tibetano e o austro-asiático. As principais línguas indo-arianas são o híndi, o bengali e o urdu, que agrupam cerca de 70% da população. O grupo dravídico inclui o tâmil, o malaiala, o canará e o teéugo, abrangendo mais de 20% da população. O grupo sino-tibetano e o grupo austro-asiático (munda) abrangem menos de 3%. 61. As mais antigas obras literárias foram escritas em sânscrito. Elas remontam ao período védico, a elas ligando-se, mais tarde, os Brahmana, os Aranyaka e os Upanishads, de transição entre Veda e o hinduísmo (século VI a.C. a IV a.C.). A literatura hinduísta consolidou-se até o século X d.C., com o Mahabharata, o Ramayana, o Pancatranta, o Kama-Sutra, o Panini, o Bharata e uma grande diversidade de textos épicos, históricos, religiosos, poéticos, gramaticais, de dramaturgia e técnicos. O budismo e o paninismo também produziram obras em sânscrito. Ainda hoje são produzidas em sânscrito pequenas epopéias, dramas teatrais e novelas. 122 Curso de Formação em Política Internacional.p65 122 5/6/2007, 12:41 Wladimir Pomar 62. Os textos bengali mais antigos, os cantos carya, essencialmente religiosos, são posteriores ao século X d.C. Somente a partir do século XV surgiram obras de vulto, tanto biográficas como romances e poesias. A partir do século XVIII, já sob o domínio inglês, assistiu-se a um renascimento bengali, que teve em Rabindranath Tagore a sua expressão máxima. 63. A literatura híndi também é posterior ao século X d.C. Durante seu desenvolvimento histórico, ela produziu as narrativas de guerra, a poesia bhakti, o sufismo muçulmano, a retórica e a adaptação em prosa de obras sânscritas. A prosa híndi moderna apareceu no século XIX, estimulada pelo nacionalismo e pelas correntes filosóficas e literárias ocidentais, como o marxismo, o existencialismo e outras. 64. A literatura malaiala é uma das mais difundidas na Índia, por sua variedade em prosa e verso. Ela surgiu entre os séculos XII e XIII, com o Ramacaritan, unindo o sânscrito e o malaiala e introduzindo na literatura de Kerala todas as figuras retóricas do Kavya. Atualmente é internacionalmente reconhecida, através de vários escritores contemporâneos. 65. A literatura tâmil surgiu no início da era cristã, tendo sofrido a influência do sânscrito, da poesia da devoção (bhakit), dos poetas medievais profanos, do canto devoto popular (kisttanai), do islamismo e do catolicismo. 66. A literatura télugo desenvolveu-se, a partir da música e do sânscrito, desde o século XI. As narrativas télugos em verso e prosa tiveram seu apogeu no século XVI, ao mesmo tempo em que as gramáticas e os dicionários consolidavam o idioma, no século XVIII. No século XIX, a literatura télugo firmou-se como expressão moderna. 7. A ÍNDIA ATUAL 67. A Índia atual, ou Bharat no idioma híndi, tem seu território limitado pelo mar de Omã, a oeste; pelo Paquistão, a noroeste; por China, Nepal e Butão, ao norte; por Bangladesh e Miamar, a nordeste; pelo Golfo de Bengala, a leste; e pelo Oceano Índico, a sul e sudoeste. Sua capital é Nova Délhi e suas línguas oficiais são o híndi e o inglês. Sua divisão políticoadministrativa inclui 24 estados e sete territórios. A forma de governo é a república federativa, e suas principais cidades são Mumbai (antiga Bombaim), Calcutá, Madras e Bangalore. 123 Curso de Formação em Política Internacional.p65 123 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional 68. A Índia é o segundo país mais populoso do mundo, com 1,1 bilhão de pessoas em 2003, devendo ultrapassar a China em poucos anos, apesar de possuir menos da metade do território daquela (3,2 milhões de km2 contra 9,5 milhões de km2). Cerca de 25% dessa população concentram-se em pouco mais de uma dezena de centros urbanos com mais de 1 milhão de habitantes, enquanto os 75% restantes espalham-se por mais de 700 mil aldeias. 69. Sua agricultura ocupa 60% da população, utilizando 160 milhões de hectares, ou 50% da superfície total. Oitenta por cento dos agricultores, em áreas inferiores a dois hectares, produzem trigo, no vale do Ganges, e arroz, também no vale do Ganges, em Bengala e nas costas do Decão, como alimentos básicos da população. A produção anual desses cereais – cerca de 60 milhões de toneladas de trigo e 110 milhões de toneladas de arroz – não supriria as necessidades da população se esta tivesse um padrão alimentar superior ao atual. 70. A agricultura comercial, herdada das plantations coloniais, inclui amendoim, algodão, juta, tabaco e chá, mas sua produção tem sido limitada pela fraca mecanização e pelo pouco uso de fertilizantes. A Índia é o maior produtor mundial de chá. O país também possui o maior rebanho bovino do mundo (200 milhões de cabeças), mas a proteína animal é proveniente da pesca (3 milhões de toneladas por ano), porque o hinduísmo proíbe o consumo de carne bovina. 71. A Índia também é rica em recursos naturais. Carvão, petróleo, bauxita, manganês, ferro e pedras são relativamente abundantes. O potencial hidrelétrico para a geração de eletricidade é complementado por centrais nucleares. Aproveitando-se de seu domínio da energia nuclear, a Índia tornou-se uma das poucas potências mundiais a construir um arsenal nuclear e uma indústria de fabricação de mísseis. 72. A indústria siderúrgica indiana produz cerca de 80 milhões de toneladas por ano, complementada pelas indústrias metalúrgica, têxtil e química, além de por uma diversificada indústria de bens de consumo cotidiano e uma florescente indústria eletrônica em alguns pontos do território. A indústria indiana emprega cerca de 25% da população ativa, mas não tem sido capaz de absorver a crescente migração da população rural para as grandes cidades. 73. O comércio externo indiano é relativamente pequeno (apenas 10% do PIB – Produto Interno Bruto), orientado especialmente para Estados Unidos, União Européia e Japão, tendo por base produtos primários (chá, juta, algodão) ou secundários de baixo valor agregado (tecidos). Suas importações abrangem 124 Curso de Formação em Política Internacional.p65 124 5/6/2007, 12:41 Wladimir Pomar matérias-primas, alimentos, semimanufaturados, manufaturados e bens de capital. Sua balança comercial inclui recursos provenientes do turismo externo e as remessas dos indianos emigrados. 74. Parte dos emigrados indianos, com formação escolar superior, constituindo uma mão-de-obra altamente qualificada, representa uma das contradições da Índia moderna. Sua enorme população inclui uma elite relativamente numerosa (cerca de 15% da população, ou 150 milhões), que tem condições de estudar no exterior e obter altas qualificações culturais, científicas e técnicas. No entanto, parte dessa elite não encontra lugar no desenvolvimento da economia e da sociedade indianas, tornando-se mão-de-obra relativamente barata para as indústrias de altas tecnologias e de informática dos Estados Unidos e da Europa. 75. A adoção do programa Perspectiva 2020 levou a Índia, durante os anos 1990, a abrir-se aos capitais estrangeiros, realizar uma série de reformas econômicas (privatizações, redução dos investimentos públicos, flutuação do câmbio etc.) e adotar uma macroeconomia caracterizada por crescimento rápido, inflação baixa, reservas cambiais adequadas, baixo déficit fiscal e baixas taxas de juros. Suas taxas de crescimento chegaram aos 8% anuais, devendo manter-se entre 7% e 8% nos próximos anos. Em 2005, seu PIB atingiu US$ 750 bilhões e suas reservas em moeda estrangeira chegaram a US$ 140 bilhões. Mas alguns problemas-chave para o desenvolvimento, como infra-estrutura deficiente, principalmente nos setores de energia, finanças e transportes, permanecem como obstáculo. 76. A estratificação social, religiosa e regional indiana continua: 80,3% da população é hinduísta, 11% islâmica, 3,8% cristã, 2% sikh, 0,7% budista, 0,5% jainista, havendo ainda outras religiões menores. Persistem, na prática, as diferenças de castas. Metade da população indiana vive num estado crônico de má nutrição. As taxas de mortalidade infantil e analfabetismo permanecem elevadas, e a renda per capita e a expectativa de vida ainda são baixas, colocando o país entre as vinte nações mais pobres do mundo. Cerca de 300 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza. BIBLIOGRAFIA Para a bibliografia deste artigo, ver “Bibliografia Indicada” do artigo “Um olhar sobre a Ásia”, do mesmo autor, na página 107. 125 Curso de Formação em Política Internacional.p65 125 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional A santa Rússia: modernização e atraso1 Daniel Aarão Reis Filho 2 No alvorecer do século XX, embora ainda fundamentalmente imerso no universo rural, o Império Russo já não se resumia ao mundo agrário. Em um outro movimento, que faria estremecer as estruturas arcaicas, o processo de modernização capitalista da Rússia dera significativo salto para a frente, apesar das resistências, das contradições e, muitas vezes, da própria vontade manifestada pelos tsares3. Com efeito, os dois últimos imperadores, por ocasião dos respectivos coroamentos, reafirmariam solenes compromissos com as tradições de autocracia. O problema é que, para se manter, e para se defender de inimigos externos e internos, o tsarismo precisava das tecnologias e dos meios de produção desenvolvidos pelo capitalismo ocidental. Assim, principalmente a partir dos anos 1890, o crescimento capitalista registrou uma notável aceleração de ritmo: metalurgia, siderurgia, petróleo, carvão, prioritários numa perspectiva estratégica. Entre 1888 e 1913, o Império alcançou um crescimento médio de 5% ao ano. Na raiz dos sucessos, uma política estatal continuada, desde os anos 1880, definida pelos chefes de governo Sergei Witte (1892-1903) e Piotr Stolypin (1906-1911). 1 Textos extraídos da obra de Daniel Aarão Reis Filho, Uma revolução perdida. A história do socialismo soviético (São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1997). 2 Professor titular de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Publicou, entre outros: As revoluções russas e o socialismo soviético, A revolução faltou ao encontro e Uma revolução perdida. História do socialismo soviético. 3 As palavras de origem russa foram grafadas de duas maneiras: em itálico, quando não existe o termo dicionarizado em português; sem itálico, quando o termo em questão está dicionarizado. (N.E.) 126 Curso de Formação em Política Internacional.p65 126 5/6/2007, 12:41 Daniel Aarão Reis Filho O capitalismo russo assumiu feição própria, acentuando algumas características já presentes na história do Império: Estado hiperdimensionado, rede bancária altamente monopolizada (seis bancos, todos sediados em São Petersburgo, detinham mais de 50% dos depósitos à vista), presença maciça do capital estrangeiro, sobretudo nos setores de ponta (42% e 50% de participação nas indústrias metalúrgica e química) e uma burguesia nativa ainda pouco expressiva, mas bastante ávida, apoiada pelo Estado e ganhando terreno (Lyashchenko, 1949). Havia contradições e desníveis no processo, e um ponto fraco em meio àquela prosperidade: a agricultura. Desde 1906, Stolypin tentou uma política agressiva no sentido de liberar os demônios do apetite individual. Pretendeu criar uma camada de pequenos proprietários privados, destinada a configurar uma base agrária de sustentação do regime, enfraquecendo simultaneamente as tradições igualitaristas da comuna rural e os controles dos grandes proprietários, muitas vezes acusados de absenteísmo e ineficiência. Os atingidos acusaram o golpe e ofereceram resistência tenaz. Por cima, os grandes proprietários tinham medo de perder mão-de-obra. Por baixo, a comuna rural receava um processo de completa desagregação. Não conseguiram impedir de todo o processo de privatização: as explorações particulares passaram de 2,8 milhões, em 1905, para 5,5 milhões, em 1914, desenvolvendo-se, além disso, um forte movimento cooperativo no campo. Mas fizeram de tudo para se opor a ele. Em grande medida, o conseguiram. Ou seja, apesar dos resultados alcançados, a política stolypiniana não alterou o panorama qualitativo da economia agrícola. Como um conjunto, salvo alguns setores, como o do açúcar, o campo continuou caracterizado por baixíssimos índices de produtividade e consumo. Assim, se o império já começava a ser periodicamente atacado por crises típicas do capitalismo avançado, o que indicava uma crescente interdependência com o mercado internacional, ainda continuava vítima de crises de abastecimento, expressão clara da força e da fraqueza do Antigo Regime (regime anterior à revolução, o Império tsarista). Observado no contexto internacional, o crescimento capitalista russo evidenciava graves limitações, apesar do progresso alcançado e de resultados mais lisonjeiros, mascarando as realidades contrastadas de um imenso país de grande população, na aparência uma potência, na realidade um gigante de pés de barro. 127 Curso de Formação em Política Internacional.p65 127 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Na verdade, a combinação de estágios diferenciados de desenvolvimento podia reunir, em espaços contíguos, o que havia de mais avançado e mais atrasado no mundo de então, dos pontos de vista econômico e tecnológico. Progresso e atraso alimentando-se mutuamente, em um processo de desenvolvimento “desigual e combinado” (Leon Trotski), uma perigosa mistura. Segundo as circunstâncias, a combinação poderia se transformar em nitroglicerina pura. 1. A REVOLUÇÃO DE OUTUBRO: GOLPE OU REVOLUÇÃO? No processo de ascensão ao poder, os bolcheviques4 procuraram estabelecer com os movimentos sociais uma sintonia fina. Sempre, no entanto, resguardando sua “autonomia” em relação à sociedade. No universo de referências por eles cultivados, os bolcheviques viam-se menos como expressão da sociedade em movimento do que como intérpretes de uma teoria revolucionária. Somente nesta medida é que é possível compreender as complexas evoluções dos bolcheviques em relação aos sovietes5. O mesmo se pode dizer a respeito da insurreição de outubro. Parece evidente que foi realizada sem prévia e formal consulta democrática. Entretanto, se estivesse em jogo apenas um golpe bem executado, os bolcheviques, mesmo vitoriosos em Petrogrado, acabariam sendo rapidamente derrotados. Conseguiram manter-se nos controles da máquina estatal porque souberam formular decretos e leis que correspondiam fundamentalmente aos interesses dos amplos movimentos sociais. Em outras palavras: a insurreição de outubro foi um golpe vitorioso, mas não vitorioso porque golpista, mas porque se combinou com o atendimento a reivindicações sentidas por amplas maiorias. Neste sentido, em larga medida, realizava-se a democracia, enquanto prevalência da vontade das maiorias. Paradoxalmente, os críticos “democráticos” dos bolcheviques naquele momento, libe- 4 Bolcheviques: ala do partido operário socialdemocrata russo/POSDR, constituída a partir de 1903, e liderada por Vladimir Lenin. Em 1918, adotou o nome de Partido Comunista (bolchevique) Russo. O termo vem da palavra russa bol’che, que significa “maior/maioria”. 5 Soviete: a palavra russa quer dizer “conselho”. Designa organizações populares autônomas, em relação ao Estado e aos partidos políticos que delas, porém, podiam participar. Surgiram pela primeira vez na revolução de 1905 e foram retomadas em 1917. 128 Curso de Formação em Política Internacional.p65 128 5/6/2007, 12:41 Daniel Aarão Reis Filho rais e socialistas, recusavam-se a realizar as exigências majoritárias, daí por que suas denúncias não tiveram credibilidade, embora formalmente pertinentes. Numa fase seguinte, e sempre que o imaginaram possível, os bolcheviques tenderam a exercitar a margem de autonomia auto-atribuída pela teoria, comportando-se, segundo a correlação de forças, real ou imaginada, com maior ou menor desenvoltura em relação à dinâmica da sociedade. Foram assumindo, nessa lógica, atitudes e políticas cada vez mais ditatoriais, embora comprometidas com a mudança da ordem e a transformação do antigo regime. No pólo oposto, os brancos6 nunca ofereceram senão ditadura. E reação. E nenhuma proposta de mudança. Numa vertente que se quis intermediária em certo momento, apresentaram-se liberais e socialistas moderados. O problema desse campo, muito nuançado, é que não teve tempo histórico para afirmar um perfil diferenciado. E o mais grave é que não soube, ou não quis, ou não foi capaz, de empreender as mudanças exigidas pela sociedade quando as circunstâncias foram propícias. Quando quiseram agir, só restava espaço para a denúncia e o protesto. Nas condições russas que então passaram a prevalecer, um exercício possível apenas no exílio. Fios partidos. Evoluções contraditórias. Contrastes entre intenções e gestos. Resultados inesperados. Interação difícil entre concepção e realização. Dois fenômenos seriam apontados, desde o início, como determinantes para as metamorfoses imprevistas. Primo: a revolução internacional não acontecera. Um prenúncio nesse sentido fora já registrado com a assinatura da paz de Brest-Litowski, em março de 1918. Em fins de 1918, porém, com a vitória da revolução alemã e a fuga do cáiser, a história pareceu recobrar coerência, e entrar nos eixos das previsões de Lenin e Trotski. O tratado de Brest foi devidamente rasgado (uma tira de papel) e os horizontes, aparentemente, se abriram para a revolução internacional, que teve um esboço de confirmação com as insurreições em Budapeste, na Baviera e com os movimentos sociais no norte da Itália e em outras partes da Europa Ocidental. No fogo da guerra civil, criou-se a Internacional 6 Brancos: termo corrente nos entrechoques das revoluções russas para designar a cor da contrarevolução e, por extensão, todos aqueles que se identificavam com ela. O nome provém da cor branca, assumida pelas monarquias reacionárias da Europa, em oposição à cor vermelha, bandeira das lutas populares e democráticas (século XIX). 129 Curso de Formação em Política Internacional.p65 129 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Comunista7, em março de 1919. Os bolcheviques estavam então numa situação desesperada, e o congresso teve um valor apenas simbólico, mas nem por isso deixou de fixar uma perspectiva, um compromisso. Depois de 1921, o Estado soviético, minimamente consolidado, começou a se inserir e a participar do jogo das relações internacionais. Sem abandonar a perspectiva – e a esperança – de uma revolução internacional, passou a assinar tratados comerciais e diplomáticos, num jogo tão complexo e diversificado de contatos e compromissos que, às vezes, já não se sabia se estavam merecendo preferência os interesses da revolução internacional ou os do Estado soviético. E a revolução russa, que seria apenas o prólogo de uma revolução mundial, ficou isolada num mundo hostil. Secundo: a guerra civil radicalizou o atraso. Retrocesso econômico, exposto num terrível declínio de todos os índices. E mais importante do que qualquer e todos os índices: as epidemias, as mortes inúteis, a desmoralização, o cansaço, o desgaste, e, por sobre tudo isso, o sombrio fenômeno do entrecruzamento do terror vermelho e do terror branco8, atrocidades maciças. A brutalização das relações sociais. A patologia social. Como estimá-la? (Werth, 1993). No quadro desse desespero e dessa desesperança, surgiu a bizarra formulação do comunismo de guerra. Instituiu o mais absoluto igualitarismo. Decretou a proibição de qualquer empreendimento privado, na produção ou no comércio, de resto inexistentes, ao menos em termos legais. Expropriou os camponeses de todos os excedentes. Liquidou com a moeda, que, de qualquer forma, já se transformara em mero “papel pintado”. Alguns chegaram a falar na militarização do trabalho e de toda a vida. O conceito que, na formulação de Marx, figurava a sociedade do futuro e da abundância subitamente transmudava-se, instalava-se no presente e passava a nomear a escassez. Ainda uma vez, da necessidade, virtude. 7 Organização criada em março de 1919, proposta pelos bolcheviques, com o objetivo de reunir as alas revolucionárias dos movimentos e dos partidos socialistas, como alternativa à Internacional Socialista socialdemocrata, fundada em 1889, considerada “falida” pelos revolucionários, por suas políticas reformistas e, sobretudo, pela conciliação com a guerra imperialista de 1914-1918. A Internacional Comunista autodissolveu-se (ou, em outras versões, foi dissolvida por Stalin) em 1943. 8 Terror vermelho e terror branco: políticas de represálias mútuas adotadas por vermelhos e por brancos no quadro da guerra civil (1918-1921), concretizadas em julgamentos e execuções sumárias de militantes políticos e/ou de reféns. 130 Curso de Formação em Política Internacional.p65 130 5/6/2007, 12:41 Daniel Aarão Reis Filho De sorte que, entre 1917 e 1921, acontecimentos vertiginosos tinham virado pelo avesso as intenções e modificado profundamente os projetos. Uma revolução em nome do internacionalismo nacionalizara-se. O prólogo se transformara em epílogo. Destinada a avançar no rumo de um mundo de abundância, a sociedade estava agora arrasada, brutalizada. Um processo “mil vezes mais democrático do que a mais democrática das democracias burguesas”, como gostava Lenin de se referir aos sovietes, evoluíra para uma ditadura política de partido único, um espécime até então ignorado, mas que se tornaria conhecido. A classe operária, considerada pelos bolcheviques a base social principal da revolução, minguara nos infortúnios da guerra civil. O camponês, um colossal aliado, emergiu como os simples emergem nas lutas que arrasam as sociedades complexas: fortalecido. O mujique (camponês russo) realizara o velho sonho: tinha o controle da terra e podia distribuí-la sem a interferência do Estado. A comuna rural, a antiga obchina, surgiu como grande vitoriosa. A vingança histórica do “populismo” russo. Contudo, estranhamente, o partido que encarnara este projeto, em suas várias vertentes, estava marginalizado, perseguido, banido da vida legal, e só podia manifestar-se como espectro, através dos próprios bolcheviques. Os bolcheviques, ali estavam eles. Figuravam-se ainda como vanguarda da revolução mundial, mas eram apenas sobreviventes. Sob o comando de Lenin, a nau não soçobrara, mas mudara de rumo, e já ninguém mais sabia o destino daquela viagem. Os bolcheviques, com seus casacos de couro, ingênuos e ainda confiantes, terríveis em seu poder e sua aura de invencíveis. Cercados na Rússia, e, na Rússia, cercados9, em seus castelos, meditavam sobre as ironias e as astúcias da História. 2. A REVOLUÇÃO PELO ALTO E O SOCIALISMO SOVIÉTICO A “grande virada” instaurou, de forma hesitante, no início, um processo de mobilização e de estatização da sociedade, uma economia comandada, ou mobilizada (Sapir, 1990), diretamente controlada e impulsionada pelo 9 A fórmula, referida à esquerda armada brasileira dos anos 1960, é do professor Carlos Vainer. 131 Curso de Formação em Política Internacional.p65 131 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional poder político, uma revolução pelo alto. A ofensiva teve duas direções principais: a coletivização do campo e a industrialização acelerada. 2.1 A COLETIVIZAÇÃO DO CAMPO E AS COLHEITAS DO DESESPERO As sucessivas “medidas emergenciais”, tomadas desde o início de 1928, surgem, em perspectiva, como as primeiras escaramuças de uma guerra declarada apenas em fins de 1929, quando o estado-maior bolchevique tomou decisões que mudaram a qualidade do enfrentamento: da política de requisições, outra maneira de nomear impostos extraordinários, passou-se à coletivização da terra, na forma de cooperativas (colcozes) e fazendas estatais (sovcozes), e à liquidação dos chamados kulaks. Duas comissões, no Comissariado do Povo para a Agricultura e no Bureau Político, atuando de forma conjunta, fixaram o calendário da coletivização e da caça aos kulaks, especificando metas e proporções para cada área, e visando especialmente os celeiros do país: o baixo e o médio Volga, o norte do Cáucaso, a Ucrânia e a Sibéria Ocidental. Tais decisões, é interessante observar, apesar de notória importância, não foram ratificadas, nem sequer formalmente, por um congresso do partido ou dos sovietes. Nesse sentido, representaram um marco simbólico de transferência de poder, do partido para as altas instâncias do Estado. Não mais a vigilância desconfiada, mas a ofensiva aberta. Desfez-se o esboço de aliança, rompeu-se a trégua. Das alturas, os bolcheviques partiram para o assalto das planícies. Ao longo do ano de 1929, apesar do concurso da propaganda e dos incentivos de toda ordem, o progresso da coletivização alcançara patamares modestos: apenas 7,3% das explorações agrícolas estavam coletivizadas em 1o de outubro daquele ano. A partir daí, o ritmo acelerou-se, tornou-se frenético: 13,2% em 1o de dezembro; 20,1% em 1o de janeiro de 1930; 34,7% em 1o de fevereiro; 50% em 20 de fevereiro; 58,6% em 1º de março (Werth, 1992). Em cerca de cinco meses, do início de outubro de 1929 ao fim de fevereiro de 1930, quase 60% dos mujiques foram agrupados em organizações coletivas de produção. Cumprira-se a resolução do comitê central do partido bolchevique, de novembro de 1929, segundo a qual “a construção do socialismo, sob direção do proletariado, pode ser realizada a uma velocidade ainda desconhecida na História”. 132 Curso de Formação em Política Internacional.p65 132 5/6/2007, 12:41 Daniel Aarão Reis Filho Ao mesmo tempo, e em conseqüência, começou a deportação maciça de algumas centenas de milhares de camponeses, com as respectivas famílias, para as regiões inóspitas da Ásia Central e do Grande Norte. Cartas e relatórios de autoridades soviéticas, locais e regionais, então confidenciais, e só recentemente publicadas, atestaram com minúcia e eloqüência as arbitrariedades, as injustiças e o verdadeiro caos que se abateram sobre as aldeias russas. A imposição e a resistência. Um furacão de morte e de destruição. Uma orgia de sangue e de sofrimento. O próprio Joseph Stalin vacilou. Falou em vertigem. Em 2 de março de 1930, um dia apenas depois da publicação das alucinantes estatísticas dando conta de que 60% dos camponeses já se encontravam coletivizados, o jornal Pravda divulgou um artigo de sua autoria no qual se deplorava a “vertigem do sucesso”. A coletivização tinha ido longe demais. Os camponeses chacinavam o gado e se recusavam a empreender as semeaduras de primavera. Um desastre. Fez-se então a crítica aos dirigentes locais por terem cometido arbitrariedades. Haviam interpretado mal ou mal aplicado as diretrizes do Centro. Ninguém poderia ou deveria ser obrigado a ingressar nas organizações coletivas de produção. Os “excessos”. Entre os dirigentes de baixo escalão e os destacamentos policiais, a desorientação, o atordoamento. As metas tinham sido transmitidas por escrito. Como acusá-los, agora, por tê-las realizado? Entre os mujiques, nas organizações coletivas de produção, a debandada. Nos quatro meses seguintes, a proporção das explorações “coletivizadas” já caíra para 21%, menos de um terço das metas alcançadas no início do mês de março. Foi preciso então retornar aos “excessos”. O emprego alternado e combinado de pressões políticas, fiscais e a repressão pura e simples fizeram a curva “coletivizante” retomar o sentido ascendente. Um ano depois, já se haviam recuperado os patamares mais altos de 1930. Em seguida, sempre apertando as cravelhas, de modo continuado e sistemático, chegou-se, em fins de 1935, ao percentual de 98% de mujiques trabalhando em formas coletivas de produção. Um processo demencial pela grandiosidade das transformações operadas, a “ausência de limites” como política (Lewin, 1985). É possível encontrar alguma lógica em toda essa loucura? 133 Curso de Formação em Política Internacional.p65 133 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Os resultados econômicos apontavam, aparentemente, em sentido contrário. Com efeito, o nível alcançado pelo setor estratégico da produção de cereais em 1928, último ano em que, mal ou bem, prevaleceram as orientações da NEP (Novaya Ekonomiceskaya Politika – Nova Política Econômica), não seria mais superado, até 1939. A produtividade, no melhor dos casos, permaneceu estagnada. As próprias fontes soviéticas, consultadas, revelam os impasses de uma política desastrosa. Em 1928, a colheita de cereais atingiu a cifra de 73,3 milhões de toneladas. Em 1929, ligeira queda, para 71,7 milhões. No ano seguinte, um crescimento de cerca de 10% levou a colheita para 77,1 milhões de toneladas. Queda brusca em 1931, para 69,4 milhões. Estagnação, na prática, em 1932: 69,8 milhões. Ainda uma ligeira queda em 1933: 68,4 milhões. Outra diminuição, em 1934: 67,6 milhões. Poço sem fundo, em 1935: 62,4 milhões de toneladas, um resultado mais de 15% inferior ao de 1928. Para o ano de 1936, não há estatísticas disponíveis. Em 1937, houve um ano excepcional do ponto de vista climático, foi possível colher 87 milhões de toneladas. Chegara, afinal, a bonança, como anunciaram as agências de propaganda do Estado soviético? Os frutos doces da semeadura amarga? Os dois anos seguintes, 1938 e 1939, com resultados em torno de 67 milhões de toneladas, evidenciaram o contrário. Dez anos depois de iniciada a coletivização, a agricultura soviética continuava produzindo bem menos do que no ponto de partida. Em outro procedimento, um autor construiu médias qüinqüenais desde o período anterior à Primeira Guerra Mundial, no intuito de oferecer um quadro que escapasse das variações sazonais, permitindo uma avaliação mais equilibrada. Assim, para o período de 1909-1913, encontrou a média de 72,5 milhões de toneladas. O qüinqüênio 1928-1933, que corresponde ao período do I Plano Qüinqüenal, projetou um resultado de 73,6 milhões de toneladas. Entre 1933-1937, o mesmo resultado praticamente: 72,9 milhões de toneladas (Lewin, 1985). Aparentemente, a montanha, depois de medonhos estremecimentos, havia parido um rato. No capítulo da produção de origem animal, a catástrofe foi ainda maior. Mikhaïl Cholokhov descreveria, em obra-prima, as sinistras festas báquicas em que a matança indiscriminada de animais assinalou a recusa do mujique em entregar os animais à regência coletiva (estatal) dos colcozes. Todos os rebanhos sofreram pesadas perdas. E, no entanto, a criação de animais, em 134 Curso de Formação em Política Internacional.p65 134 5/6/2007, 12:41 Daniel Aarão Reis Filho geral, apresentava, em 1928, uma notável recuperação: índice 137, para uma base = 100, em 1913. A partir daí, teve início o declínio: 129, em 1929; 100, em 1930; 93, em 1931; 75, em 1932; 65, em 1933. Ou seja, no período do I Plano Qüinqüenal, os rebanhos decresceram em mais de 50%. Um cataclisma. A partir de então, uma lenta recuperação. Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, em 1940, o índice era de 114, ainda inferior em cerca de 17% ao de 1928, o último ano da NEP. A desorganização da economia agrícola, por mais impressionante que fosse, empalidecia de importância diante do processo de deportação de milhares de camponeses, apontados como kulaks, subkulaks, pró-kulaks ou ainda kulakizantes. Uma engrenagem infernal agravada pelo fato de que eram bastante fluídos os contornos do que se desejava efetivamente caracterizar como kulak. Mas o que era efetivamente um kulak? O termo designava um personagem social específico: os camponeses ligeiramente abastados. Chamá-los de ricos é quase uma liberdade de expressão, na fronteira do abuso. Na verdade, porém, diferenciavam-se no quadro da aldeia russa, marcada pela miséria e pelo atraso. Tinham um ou dois animais, pequenos excedentes, regulares, comercializados no mercado, estoques de sementes, alguma poupança, às vezes, o que lhes permitia emprestar aos demais e exercer sobre eles pressão, quando não violência, para cobrar o devido (kulak = punho). Possuíam, além disso, algumas letras, ou as tinham através dos filhos, o que lhes acrescentava prestígio. A massa dos camponeses votava ao kulak sentimentos ambíguos: freqüentemente inveja (pela posição), ódio (pelos juros cobrados e pelas exações praticadas), mas também gratidão (pelos eventuais socorros prestados em situações de emergência). Por outro lado, é importante não esquecer que, diante dos “homens da cidade”, a aldeia e a comuna rural, a obchina, não raramente apresentavam-se como um bloco, sem falhas, um universo (o mir), ou, num ângulo pejorativo, o patriotismo de aldeia. Como categoria específica, os kulaks ganharam força no período anterior à Primeira Guerra Mundial, sobretudo devido aos incentivos das políticas agrárias reformistas stolypinianas, implementadas entre 1906 e 1911. No entanto, com a vitória da revolução camponesa de 1917, sua importância social e econômica tendeu a diminuir, o que foi acentuado pelo processo arrasador de nivelamento por baixo provocado pela guerra civil, entre 1918 e 1920. Ascenderam maciçamente, então, bafejados pela nacionaliza135 Curso de Formação em Política Internacional.p65 135 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional ção e pela redistribuição da terra, os camponeses pobres (bedniaks) e os camponeses médios (seredniaks). O triunfo do igualitarismo tradicional no quadro da comuna rural reforçada. É verdade que os anos da NEP haviam relançado as desigualdades. Mas ainda era muito difícil, sob qualquer ângulo (contratação de assalariados, propriedade de animais ou de máquinas e implementos agrícolas), falar de uma camada de camponeses ricos na União Soviética em fins dos anos 1920. Mais uma vez, as decisões políticas precederam e condicionaram as análises da estrutura social. Em Moscou, determinava-se o nível de coletivização a ser alcançado em cada região, em cada distrito. Metas mensais, devidamente quantificadas, eram fixadas, avaliadas, cobradas. As autoridades locais, ou os destacamento de ferro, enviados das cidades, tinham a obrigação de deskulakizar, sem incorrer em excessos, naturalmente. Em último caso, e não eram poucos estes últimos casos, a mera resistência à coletivização já era suficiente para um camponês ser rotulado como kulak. Caso não fosse possível enquadrá-lo nos parâmetros econômicos típicos do kulak, sempre era possível estabelecer uma associação qualquer, o que explica em larga medida o súbito aparecimento de uma profusão de termos aparentados: subkulak, pró-kulak, semikulak, kulak na prática, kulakizante etc. Na verdade, estava sendo apanhada na rede da expropriação a multidão dos camponeses médios, os seredniaks, cujos minúsculos excedentes faziam falta às agências atacadistas do Estado. Assim, a repressão e a deportação acabaram atingindo proporções gigantescas. Fontes russas, em avaliações formuladas no início dos anos 1990, admitiam a hipótese de 1 milhão de famílias deportadas, cerca de 5 milhões de pessoas. E o trauma das prisões, da privação dos direitos civis, da marginalização (inimigos do povo), da separação das famílias, da maldição do exílio, fenômenos não sujeitos à quantificação. Embora muito reais, nunca puderam entrar nos quadros estatísticos. Tanto sofrimento, e dispêndio de energia, violência e subversão de tradições, para tão magros resultados econômicos. Puro desencadear de paixões irracionais? Ou seria possível apontar o que o Estado pescou nessa tempestade? Um resultado qualitativo: a erradicação da propriedade privada no campo. Os pequenos camponeses não estariam mais, em cada microoperação econômica, engendrando o abominável regime capitalista. A “solução final” da 136 Curso de Formação em Política Internacional.p65 136 5/6/2007, 12:41 Daniel Aarão Reis Filho maldita questão, a morte, afinal, do pequeno camponês, esse sujeito histórico essencialmente reacionário, o fim da velha comuna rural (obchina), a liquidação para sempre dos incômodos aliados, o horizonte aberto para a construção do socialismo num só país. Em conseqüência, ampliação exponencial da capacidade do controle do Estado. Em cada unidade coletivizada, a possibilidade de saber “quanto, o que, como e quando” vão produzir. Se os resultados não aparecerem, ai dos camponeses, porque as cotas obrigatórias e os impostos serão computados segundo as estimativas oficiais e não de acordo com os resultados efetivamente alcançados. Em qualquer caso, quando e se as metas não eram atingidas, os responsáveis já estavam definidos: kulaks, ou cúmplices pró-kulaks, sabotadores, ainda travestidos, camuflados, ocultos, seria preciso desnichálos, sob pena de toda a comunidade correr o risco da deskulakização, porque a responsabilidade, nestes tempos febris, tornou-se novamente coletiva, como nos tempos do tsarismo. Além disso, resultados econômicos. Eles seriam alcançados. O agrupamento de milhões de pessoas em algumas dezenas de milhares de unidades coletivas de produção, permitindo um controle preciso, viabilizou o processo por meio do qual foi possível “espremer” os camponeses, extraindo deles cotas anuais fixas, às vezes ascendentes, mesmo que a produção estivesse estagnada ou em declínio. As chamadas entregas obrigatórias para o Estado (cotas mínimas, fixas, contra pagamento também fixado antecipadamente) registraram curva ascendente ao longo dos anos 1930. Em 1928, ainda no quadro das “medidas emergenciais” então formuladas, atingiram 10,8 milhões de toneladas. No ano seguinte, num aumento abrupto, de mais de 50%, chegaram a 16,1 milhões. Em 1930, novo salto, para 22,1 milhões; em 1931, 22,8 milhões. Em 1932, 18,5 milhões. Entre 1933 e 1937, a média foi comparativamente alta, de 27,5 milhões de toneladas. Em percentuais, em relação ao total das colheitas, a proporção saltou de 14,7%, em 1928, para 22,4% em 1929; mais de 25% em 1930; 32,9% em 1931; 26,9%; 34,1%, em 1933; 38,1% em 1934; 37,8% em 1935, chegando a 38% em 1940 (Lewin, 1985). Ao mesmo tempo, voltavam-se a abrir as “hastes da tesoura”: enquanto os preços agrícolas permaneceram inalterados entre 1928 e 1953, o rublo desvalorizou-se cerca de dez vezes. Assim, segundo os registros oficiais, entre 137 Curso de Formação em Política Internacional.p65 137 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional 1933 e 1938, o custo real médio, por quintal (cerca de 60 quilos) de grão, estava em torno de 27 rublos. Mas as instituições estatais pagavam aos colcozes apenas 6 rublos pelo quintal de centeio, 9-10 rublos pelo de trigo e 4-5,5 pelo de aveia. Depois da guerra, já em 1953, as autoridades reconheceram que os preços oficiais pagavam somente dois quintos do custo da produção dos cereais e um quarto do custo dos produtos de origem animal. Apenas essa disparidade, repetida ao longo de tantos anos, já teria significado um formidável “tributo”. Impostos, normais e extraordinários, cotas obrigatórias, multas, aluguéis de máquinas e pagamentos dos serviços prestados pelas Estações de Máquinas e Serviços (MST), equipadas e controladas pelo Estado, deterioração dos termos de intercâmbio entre produtos manufaturados e agrícolas, um arsenal completo de medidas para quebrar a espinha do mujique russo, reduzindo-o definitivamente à condição de “servo” das unidades de produção. Na melhor das hipóteses, um cidadão de segunda classe. Estavam asseguradas as bases da “acumulação socialista primitiva”. Permitindo o abastecimento de cidades e parques industriais em expansão. Viabilizando exportações crescentes para pagar, no mercado internacional, as compras de matérias-primas industriais, máquinas e equipamentos, técnicos e engenheiros, de modo a cumprir as metas “nobres” do planos qüinqüenais. A resistência foi feroz. Individuais, desesperadas. Emboscadas, em grupo, articuladas. Recusas suicidas ao enquadramento. Manifestações cegas. Matança do gado. Assassinatos de autoridades. Fugas. Sabotagens às instalações dos colcozes e às máquinas impostas. Furto de cereais. E, quando a resistência ativa foi abatida, os recursos últimos, a inação, o descaso, o desperdício, a apatia, o desinteresse. O campo e o camponês pagaram caro pela rebeldia. A escassez endêmica combinava-se com surtos brutais de total carência, a fome. A de 19321933, na Ucrânia, vitimou milhões de pessoas, sobretudo as mais vulneráveis, velhos e crianças. Numa estranha simbiose, combinavam-se a construção do futuro, o socialismo, com as crises típicas do antigo regime, materializadas na fome. As pressões, afinal, tiveram que ser relaxadas. Impôs-se a alternativa de conceder a cada mujique um pequeníssimo pedaço de terra para cultivo próprio. O Estatuto dos Colcozes, em 1935, admitiu a atribuição de lotes, 138 Curso de Formação em Política Internacional.p65 138 5/6/2007, 12:41 Daniel Aarão Reis Filho não maiores do que um quarto e meio hectare por família. Também foi reconhecido, a cada família, o direito a uma vaca e a um número especificado de bezerros, porcos e ovelhas, assim como a uma quantidade ilimitada de aves (sic). Daí o camponês retiraria parte substancial da sua efetiva remuneração (sobrevivência). Por outro lado, a partir das brechas dos mercados livres, eventualmente autorizados, depois de pagas as cotas e os impostos, proviria uma fração considerável do abastecimento da sociedade. Assim, em 1938, embora os pequenos lotes correspondessem a apenas 3,9% da terra arada, garantiram, além da sobrevivência dos camponeses, quase metade da produção total de víveres (45%), 52,1% da produção de batatas, a maior parte dos legumes e frutas, quase metade do gado, 71,4% do leite, 70,9% da carne, 43% da lã... O aparente paradoxo da disparidade entre a produtividade da grande unidade coletivizada (na verdade, estatizada) e do pequeno lote privado oferecia a evidência econômica do caráter forçado do processo de coletivização. No mesmo movimento, mostrava o desapego pelo colcoz e a defesa tenaz do interesse privado, considerado liquidado pelo discurso oficial da coletivização. A permanência da mentalidade particularista, individual, descompromissada com os rumos e os interesses gerais da sociedade. Como Jonas, sobrevivendo nas entranhas da baleia. Milhões de Jonas, esses camponeses agarrados aos pequenos lotes concedidos, estranhos no ninho dessas milhares de baleias, os colcozes e os sovcozes criados pelo Estado. Uma outra função econômica da coletivização e da formidável pressão que a envolveu desde o início foi a expulsão dos camponeses da terra. O movimento tomou tal amplitude que as autoridades foram obrigadas a tomar providências enérgicas: restabeleceram a tradição abominada dos “passaportes internos”, outra invenção do regime tsarista, caída em desuso. Assim, os camponeses somente podiam deixar o colcoz com autorização, por escrito, da direção da unidade, nomeada pelo Estado. Os camponeses a chamavam, maliciosamente, de carta de emancipação, querendo com isso significar que encaravam a implantação do sistema coletivo de produção como equivalente à restauração do regime da servidão, juridicamente abolido desde 1861. Ainda assim, havia aqueles que escapavam das formas de produção coletiva. Em certa medida, desde que não ultrapassassem certos limites, tratava-se de algo desejado pelo Estado, pois o surto industrializante programa139 Curso de Formação em Política Internacional.p65 139 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional do exigia braços, muitos braços. Nas cidades e nos inumeráveis canteiros de obras, os mujiques tangidos de suas terras representariam mão-de-obra resistente e pouco exigente, embora nada eficaz para efetivar operações minimamente sofisticadas, pelo menos em toda uma primeira fase. Muitos outros não teriam essa sorte. Supreendidos em situação ilegal, sem a devida carta de emancipação fornecida pela autoridade competente, caídos nas malhas dos controles sem fim, iriam juntar-se aos deportados e aos presos (zeks) de toda espécie, que formigavam nos trabalhos forçados de abertura de canais, construção de estradas de ferro, exploração de madeiras nobres e de minas de ouro, enfrentando condições insalubres e duríssimas de trabalho em regiões de clima gelado, inóspitas. A importância econômica dos trabalhos forçados, reconhecida mais tarde pelo próprio governo soviético, é até hoje de difícil mensuração. Com o tempo, mesmo os mais inocentes não puderam continuar ignorando sua existência, sobretudo depois dos relatos minuciosos e insuportáveis dos anos 1970 (Soljenitsyn, 1975a; 1975b; Chalamov, 1986). A denúncia do inenarrável. Nas fábricas, nas obras de infra-estrutura, nos grandes canteiros, construindo o socialismo soviético, apesar deles mesmos, ali estariam os mujiques, desenraizados, expropriados, “tributados”. Transformando a natureza e a sociedade, transformando-se, transformados. 2.2 A INDUSTRIALIZAÇÃO ESTATIZADA: O GRANDE SALTO PARA A FRENTE Quando Evgeni Preobrazhensky esgrimia com Nikolai Bukharin, nos anos 1920, defendendo a necessidade de um planejamento mais centralizado e sistemático da economia, e um investimento prioritário e mais considerável no setor industrial, talvez nunca tenha imaginado a natureza que o processo assumiu, os ritmos. Um golpe brusco, logo no início, determinou a sorte das pequenas indústrias e dos serviços privados, empurrados para a órbita do Estado. A combinação de pressões fiscais e políticas liquidou os correlatos do kulak nas cidades: os pequenos empresários, o vespeiro de atravessadores e especuladores e a nuvem de clientes e parasitas que viviam ao redor. Simultaneamente, o vendaval, num crescendo, desde 1929, quando foi aprovada a proposta da variante “ótima” para o I Plano Qüinqüenal (1928-1933). 140 Curso de Formação em Política Internacional.p65 140 5/6/2007, 12:41 Daniel Aarão Reis Filho Energia, indústria pesada e infra-estrutura de transportes receberam a máxima prioridade, 78% dos investimentos totais (Nove, 1990). E esta alternativa, por sua vez, ainda foi emendada, novamente para cima, em 1932, quando prevaleceu a proposta de realizar o Plano Qüinqüenal em quatro anos. O voluntarismo em estado puro, ignorando todos os limites, os da natureza e os da condição humana. Entretanto, a onipotência da vontade recaiu quase exclusivamente sobre alguns setores, bem determinados: as indústrias de construção mecânica, as que trabalhavam para a defesa, a metalurgia pesada, os transportes – estradas de ferro e canais –, a produção de energia elétrica (barragens), a extração de carvão e petróleo, em suma, os dinossauros comedores de ferro e aço. No centro das atenções, os chamadas grandes projetos. Por eles, era preciso tudo fazer: os complexos metalúrgicos de Kuznetsk e de Magnitogorsk, as fábricas de tratores de Kharkov e Tcheliabinsk, as de automóveis de Moscou e de Nijni-Novgorod, a usina hidrelétrica de Dnieprprogress, a estrada de ferro estabelecendo a ligação entre o Turquestão e a Sibéria, o Turksib, o canal Volga–mar Branco. E, como vitrine, a “pirâmide” de Stalin: o metrô de Moscou, inaugurado em 1935, de imponentes e marmóreas estações. Era preciso realizá-los a qualquer custo. No mais breve prazo. “A técnica decide tudo, os ritmos tudo decidem”, slogans da época, todo um programa. Num plano secundário, quando não francamente negligenciados, ficaram os setores da chamada indústria leve e da construção civil, encarregada de prover, entre outras prioridades, as moradias e a infra-estrutura urbana para uma população que se concentrava nas cidades a taxas de crescimento geométricas. Com efeito, enquanto a população total evoluía de 147 para 170 milhões de habitantes (mais cerca de 15%), entre 1926 e 1939, a população urbana, no mesmo período, deu um salto de 112%, saindo de 26 para 56 milhões de habitantes. Para essas atividades econômicas voltadas para o consumo imediato da população, no entanto, a versão “ótima” do I Plano Qüinqüenal não havia reservado prognósticos promissores. O que não quer dizer que a indústria de bens de consumo não tenha progredido, mas os aumentos nesta área foram amplamente insuficientes em relação à demanda. Assim, em 1936, apenas 6% de “urbanóides” dispunham de mais de um quarto para viver, 40% de apenas um quarto, 24% de parte de um quarto, 141 Curso de Formação em Política Internacional.p65 141 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional 5% viviam em cozinhas e corredores e 25% alojavam-se em dormitórios: barracas, barracos, tendas etc. Um estado lamentável, é verdade, mas seria um anacronismo compará-lo com o dos trabalhadores da Europa Ocidental ou dos Estados Unidos. No exercício de qualquer comparação, é preciso considerar os índices e o estado existente na Rússia tsarista, antes de 1914, ou de países em situação análoga, como a Índia ou a Turquia. Entretanto, apesar desses senões, tomara a imaginação da sociedade, e não gratuitamente, a idéia de que houvera um grande salto para a frente. Algo em torno de 8 mil indústrias tinham surgido ao longo dos anos 1930. Não apenas um crescimento quantitativo, mas qualitativo, com o surgimento de novos setores: química, eletrotécnica, aeronáutica, automóveis, construção de máquinas. Um tremendo esforço, uma economia “sob comando”, tensa, “mobilizada”, quase militarizada (Sapir, 1990). Enquanto isso, na base da sociedade, quem eram estes, os trabalhadores anônimos que construíam o socialismo num só país? Um turbilhão dominou a trajetória do homo sovieticus nos anos 1930. Mobilidade espacial: do campo para a cidade, das áreas tradicionais de ocupação para as áreas novas, de toda parte para os campos de concentração da Ásia Central e do Grande Norte. Uma sociedade em movimento, em fluxo contínuo. O desenraizamento. O exílio. Mobilidade social, nas cidades. “Horizontal”, traduzida nas constantes mudanças de emprego, da pequena para a grande indústria, e entre as indústrias, com altas taxas de turn-over (tekuchka – circulação de assalariados por postos de trabalho). Da produção para os serviços e vice-versa. “Vertical”, do aprendizado à chefia, também expressa numa constante evolução, da produção e dos serviços para a administração, para o partido, para o poder. Assim, em fins dos anos 1920, ainda em vigor a NEP, quase 60% dos trabalhadores encontravam-se empregados em pequenas indústrias. Dez anos depois, 76,5% estavam em empresas de mais de 500 empregados, um terço em fábricas de mais de 10 mil empregados. Por outro lado, nesse período, foi extraordinária a margem de ascensão para os chamados praktiki, formados no batente, e que assumiram freqüentemente, por absoluta falta de opções, a direção de serviços e mesmo de fábricas. Cerca de 650 mil operários deixaram as fábricas para se tornar empregados, funcionários ou para seguir diferentes tipos de estágios ou cursos. Encetando a progressão dos escalões inferiores 142 Curso de Formação em Política Internacional.p65 142 5/6/2007, 12:41 Daniel Aarão Reis Filho para os superiores, da periferia para o centro, da base para o topo na escala do poder. Eram praktiki 89% dos chefes imediatos, 60% dos técnicos de todas as categorias, 41% dos engenheiros e até mesmo 27% dos engenheiros chefes das fábricas. Em meados dos anos 1930, os praktiki formavam cerca de 50% dos quadros dirigentes nas indústrias (Lewin, 1985). Mobilidade, enfim, nas hierarquias da sociedade. No âmbito da família, hierarquia mais tradicional e nuclear, o despedaçamento da figura maior do patriarca com a migração maciça das mulheres para o mercado de trabalho. Em 1936, constituíam 40% da força de trabalho, um ano depois representavam 82% dos novos assalariados. Sobrecarregadas de tarefas no quadro da dupla jornada de trabalho (doméstica e profissional), estariam longe do retrato da mulher “emancipada e feliz” da propaganda oficial, mas só o fato de terem escapado do controle estrito e estreito de pais e maridos já assumia um significado histórico. Os jovens também se beneficiaram da explosão da rigidez da família tradicional. Na época, 45% da população da URSS tinham menos de 20 anos. Incorporados nas brigadas de construção das cidades novas, nas campanhas de alfabetização e de instrução, acorreram em massa para as organizações comunistas de jovens (Konsomol), generosos e entusiasmados, voluntários. Imaginavam construir um mundo novo. Na prática, pelo menos, emancipavam-se da sufocante tutela da família autoritária, na qual predominava de forma incontrastável a autoridade do páter-famílias. Um outro movimento ampliaria as oportunidades: o fantástico desenvolvimento do sistema educacional, combinado com a criação acelerada de novos postos de trabalho. Novos horizontes para aqueles que desejavam adquirir conhecimentos. Entre 1928 e 1941, o total de diplomados universitários nos vários ramos da educação nacional saltou de 233 mil para 908 mil graduandos. Entre os formandos no nível secundário, os dados registraram igualmente expressivo crescimento: de 288 mil para 1,492 milhão. Sem contar os milhares que estudavam nos sistemas de educação a distância e nos cursos de extensão, escolas noturnas e faculdades operárias (rabfaks). O número de matrículas nesta última modalidade de ensino pulou de 50 mil para 285 mil em apenas quatro anos, entre 1928 e 1932. Neste processo, a massa de trabalhadores cindiu-se em diferenciações internas, desintegrada em camadas: os novos recrutas, recém-chegados, em ondas 143 Curso de Formação em Política Internacional.p65 143 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional sucessivas, tangidos pela coletivização forçada; os incorporados no processo de recuperação de meados dos anos 1920; os mais velhos, que sobraram da devastação da guerra civil e da sucção do aparelho administrativo, civil e militar. Sem falar nas diferenças geracionais e de gênero, ampliando as nuanças. E nos privados de direitos (lichentsy), elementos “estranhos, inimigos do povo”, incorporados compulsoriamente. Cada uma destas cisões era uma brecha, tornando vulneráveis as linhas que os operários poderiam erguer em defesa de seus interesses. A situação foi agravada com a adoção do salário por peça e dos estímulos materiais às performances extraordinárias. Novas divisões. Em 1933, 75% dos trabalhadores eram pagos de acordo com normas de produção freqüentemente fixadas de forma arbitrária, fora do alcance da grande maioria. Em 1938, 60% não conseguiram cumprir as normas. O resultado foi a queda do salário médio real: em 1937 correspondia a pouco mais de metade do de 1928. Enquanto isso, beneficiando os trabalhadores de choque (udarniks), salários diferenciados, rações especiais e outras benesses extraordinárias, fundamentais em sociedades regidas pela escassez: alojamentos e escolas especiais, colônias de férias etc. A partir do verão de 1935, a tendência pareceu consolidar-se com o lançamento do movimento stakhanovista, do nome do mineiro Aleksei Stakhanov, emérito quebrador de recordes e das normas de produção nas minas de carvão. Os grandes beneficiários estavam na cúpula da pirâmide social: funcionários graduados da máquina estatal e do aparelho partidário, dirigentes de empresas, engenheiros, administradores, pesquisadores, planejadores, oficiais das forças armadas, professores, médicos e técnicos qualificados. Compreendiam, segundo diferentes cálculos, de 7 milhões a 13 milhões de pessoas, ou seja, entre 4 a 7,5% da população total. Molotov, em 1939, falou de 9,5 milhões. Quadros do partido, do exército e da polícia (1,5 milhão), chefes de empresas rurais e urbanas (1,7 milhão), engenheiros e técnicos qualificados (1 milhão), aí estava o núcleo dos novos gestores, dos que decidiam. Os novos gestores correspondiam a 21% dos delegados ao XVII Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1934. Cinco anos mais tarde, em 1938, quando se reuniu o XVIII Congresso, já seriam 54% dos delegados. Também neste ano, 70% dos novos recrutas originavam-se desse setor, enquanto os operários, ligados diretamente à produção, não passavam de 15% do total de filiados. Nas altas esferas, o partido estimulava o recrutamento. O inverso também era verdadeiro: tornou-se difícil aceder a um alto cargo se o 144 Curso de Formação em Política Internacional.p65 144 5/6/2007, 12:41 Daniel Aarão Reis Filho candidato não possuísse a carteira de filiado. Assim, em fins dos anos 1930, 97% dos diretores de fábricas, 82% dos chefes na construção civil, 40% dos engenheiros do país pertenciam aos quadros do partido. Enquanto isso, em 1941, às vésperas do início da Segunda Guerra Mundial, apenas 6% dos filiados estariam diretamente vinculados à produção. Observe-se, fato notável, que quase metade desses que ocupavam posições de prestígio e de poder era originária de famílias operárias ou camponesas. Alguns falariam em “plebeização” do poder. Outros, na emergência de uma “suboficialidade” de intelectuais (Malia, 1994). Em busca do futuro, o salto para a frente promoveu a interpenetração de épocas, o entrecruzamento de estágios de desenvolvimento. O mujique é apresentado ao trator norte-americano, cujo desenho e cuja concepção foram adquiridos e adotados, nem sempre com sucesso, considerando-se a diferença de circunstâncias. O trabalho compulsório combinava-se com a técnica mais refinada, importada na pessoa de engenheiros e técnicos estrangeiros. Os praktiki e os engenheiros. A marreta tradicional e as máquinas mais modernas, importadas da Alemanha e dos Estados Unidos. Uma sociedade em movimento, “areias movediças”. Como dar um sentido a esse moto contínuo? A esse redemoinho permanente? BIBLIOGRAFIA CHALAMOV, V. Récits de la Kolima. Paris/Fayard, La Découverte, 1986. LEWIN, Mosh. “Para uma conceituação do stalinismo”. In HOBSBAWM, E. (org.). História do marxismo. vol. 7. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985. 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O controle dessas reservas tem lugar de destaque na estratégia do governo de George W. Bush para a consolidação da hegemonia mundial dos Estados Unidos. A meta prioritária da política de energia de Washington, formulada em 2001 por um grupo de trabalho sob a coordenação do vice-presidente Dick Cheney, é aumentar a oferta mundial de combustíveis por meio de medidas destinadas a fazer com que os países produtores intensifiquem a exploração das reservas de petróleo e de gás natural, passando a exportar esses recursos de acordo com a máxima capacidade possível. Os Estados Unidos estão dispostos a fazer uso de sua influência para obter a abertura dos recursos energéticos desses países aos investimentos das empresas transnacionais. Para o governo Bush, mais do que para qualquer um de seus antecessores, energia e segurança são dois conceitos estreitamente associados. Nesse contexto, a invasão do Iraque faz sentido a partir do objetivo – viável ou não – de substituir um regime hostil por outro, sob influência norte-americana, no país que possui a segunda maior reserva de petróleo do mundo. 1 Este trabalho foi elaborado a partir da dissertação de mestrado O petróleo e o envolvimento militar dos Estados Unidos no Golfo Pérsico (1945-2000), de autoria de Igor Fuser, defendida e aprovada no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais Santiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP) em dezembro de 2005, com orientação do professor Luís Fernando Ayerbe. 2 Mestre em Relações Internacionais e doutorando em ciência política na Universidade de São Paulo. É professor de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e autor dos livros México em transe (São Paulo, Scritta, 1995) e Geopolítica – O mundo em conflito (São Paulo, Salesiana, 2006). 147 Curso de Formação em Política Internacional.p65 147 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional 1. BUSH E OS NEOCONSERVADORES O governo republicano iniciado em 2001 adotou um conjunto de proposições que têm como espinha dorsal o uso da força militar para impedir o surgimento de qualquer desafio ao exercício absoluto da supremacia dos Estados Unidos. Na nova política externa de Washington, a coerção passa a ser encarada, de forma cada vez mais explícita, como o caminho para resolver as mais diversas questões. Nas palavras do vice-presidente Dick Cheney, mentor do presidente em assuntos exteriores, “a força faz a diplomacia avançar de um modo mais eficaz”. As linhas essenciais da política externa de George W. Bush tinham sido lançadas uma década antes, quando Cheney, secretário da Defesa no governo de Bush pai, formou um grupo de trabalho, sob a coordenação do então subsecretário Paul Wolfowitz, para repensar a posição dos Estados Unidos no cenário mundial após a dissolução da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) e a vitória norte-americana na Guerra do Golfo. A versão original do documento ainda circulava reservadamente entre funcionários graduados do Pentágono quando uma cópia foi parar em poder do The New York Times, que a publicou, provocando uma grande polêmica. Em sua passagem mais importante, o texto definia a prioridade da estratégia norte-americana: “Nosso primeiro objetivo é prevenir o ressurgimento de um novo rival. Essa é uma consideração dominante que permeia a nova estratégia de defesa regional e requer um esforço para impedir que alguma potência hostil venha a dominar alguma região cujos recursos sejam suficientes para, uma vez consolidado esse controle, gerar um poderio global” (USA Today e Los Angeles Times, 2004). O documento afirma, enfaticamente, que os Estados Unidos devem evitar que os demais países industrializados venham a desafiar a liderança norte-americana. Para isso, defende a criação de mecanismos destinados a dissuadir “os potenciais competidores de sequer aspirar a um papel mais importante em escala regional ou global”. A ameaça de “rivais europeus” é mencionada explicitamente, assim como a da Rússia e a da China. O esbo148 Curso de Formação em Política Internacional.p65 148 5/6/2007, 12:41 Igor Fuser ço elaborado por Wolfowitz também declara que os Estados Unidos devem estar preparados para agir unilateralmente em defesa de seus interesses, quando necessário, recorrendo até mesmo a ataques preventivos contra seus adversários. O rascunho, divulgado sem permissão, provocou protestos dentro e fora dos Estados Unidos. Os críticos, na maioria europeus, mostraram indignação com o papel auto-atribuído pelos Estados Unidos de “polícia do mundo” e com a subordinação dos aliados a uma posição de segunda classe numa ordem mundial dominada pelos norte-americanos. A celeuma levou o Pentágono a abrandar a versão final do texto, eliminando o apelo ostensivo à dominação global. O assunto desapareceu com a vitória eleitoral de Bill Clinton, mas voltou à tona no final de seu governo. Durante a campanha eleitoral para a escolha de seu sucessor, um centro de estudos pouco conhecido lançou, em setembro de 2000, o documento Reconstruindo as defesas da América, que retoma as propostas do esboço do Pentágono de 1992: “Os Estados Unidos são a única superpotência no mundo. A grande estratégia da América deve ter como meta preservar e ampliar essa posição vantajosa pelo maior tempo possível no futuro”. O texto foi preparado por um influente grupo de estrategistas republicanos que adotou a denominação de Projeto por um Novo Século Americano (Project for the New American Century – PNAC). Entre os integrantes do PNAC estavam futuros integrantes do governo de George W. Bush, como Dick Cheney (vice-presidente), Paul Wolfowitz (subsecretário da Defesa e, no segundo mandato, presidente do Banco Mundial) e Donald Rumsfeld (secretário da Defesa). O presidente do PNAC era William Kristol, o editor da revista Weekly Standard, o principal reduto das posições políticas neoconservadoras. Essas propostas se tornaram diretrizes políticas oficiais após os atentados de 11 de setembro de 2001, quando Bush, deixando para trás o período inicial de relativa indefinição, adotou uma linha de conduta agressiva e declaradamente unilateral. A nova estratégia de segurança dos Estados Unidos foi anunciada por Bush em julho de 2002 e ganhou formato oficial, dois meses depois, no documento intitulado Estratégia de segurança nacional dos Estados Unidos da América. A Doutrina Bush, aí anunciada, relega a segundo plano todo o sistema internacional de tratados (como o Protocolo de Kyoto sobre o meio ambiente, que Bush renegou logo depois da posse) e de organizações multilaterais que constituem a espinha 149 Curso de Formação em Política Internacional.p65 149 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional dorsal da ordem mundial estabelecida após a Segunda Guerra Mundial sob a liderança dos próprios Estados Unidos. Agora, a soberania dos Estados Unidos se torna mais absoluta do que nunca, ao passo que a dos demais países, sobretudo daqueles que desafiem os padrões de conduta traçados em Washington, é condicionada aos critérios dos Estados Unidos, que podem revogar esse direito por conta própria (Ikenberry, 2002/2003). O governo norte-americano reivindica também o direito de lançar ataques preemptivos3 contra qualquer país hostil que possua “armas de destruição em massa”. No plano econômico, a nova estratégia de segurança nacional também advoga a maior liberdade para os negócios norte-americanos, nos marcos de uma globalização capitalista acelerada: os Estados Unidos vão “usar este momento de oportunidade” para estender os “mercados livres e o livre comércio para cada canto do mundo” e promover a “alocação eficiente de recursos e a integração regional”. 2. O PETRÓLEO DO GOLFO PÉRSICO, PRIORIDADE ESTRATÉGICA A redefinição da estratégia norte-americana trouxe fortes implicações para o componente energético da política de segurança nacional, na medida em que as necessidades de segurança e energia estão vinculadas entre si. A securitização do acesso dos Estados Unidos às fontes de energia explica a ênfase destinada ao Golfo Pérsico nos documentos de política externa a partir da promulgação da Doutrina Carter, no início de 1980. Em resposta à Revolução Islâmica, que derrubou o regime pró-americano do xá Reza Pahlevi e o substituiu por uma teocracia xiita fortemente hostil aos Estados Unidos, o presidente Jimmy Carter anunciou naquela ocasião que os Estados Unidos consideravam o Golfo Pérsico uma região de seu “interesse vital” e que estariam dispostos a defendê-la por “todos os meios necessários, inclusive a força militar” (Carter, 1980). 3 O ataque preemptivo é a resposta a uma ameaça iminente e que pode ser claramente demonstrada, tal como a concentração de tropas numa fronteira ou o posicionamento de mísseis voltados para determinada direção. Já a prevenção é uma resposta a uma ameaça que não se manifesta claramente e que pode, na melhor das hipóteses, ser apenas presumida. A invasão do Iraque pelos Estados Unidos e outros países, em 2003, foi tipicamente um ataque preventivo, e não preemptivo. 150 Curso de Formação em Política Internacional.p65 150 5/6/2007, 12:41 Igor Fuser Sucessivos documentos oficiais das gestões de George Bush (pai) e de Bill Clinton reafirmam os termos da Doutrina Carter – uma diretriz de política externa que já foi classificada como uma Doutrina Monroe específica para o Oriente Médio. Em agosto de 1991, um relatório encaminhado pelo presidente Bush (pai) ao Congresso comenta o sucesso dos Estados Unidos em reverter a agressão iraquiana ao Kuwait e salienta a “poderosa continuidade” da política norte-americana para a região, que inclui entre as suas preocupações estratégicas “a manutenção de um livre fluxo de petróleo” (National Security Strategy Report, 1991). A política externa do governo Clinton reafirmou a prioridade estratégica para o controle das fontes externas de petróleo. Nesse terreno, praticamente não há diferença entre as concepções dos governantes democratas e republicanos. Os partidos e as correntes ideológicas que passaram pela Casa Branca nas últimas décadas atribuíram importância central ao Golfo Pérsico e a seus recursos petrolíferos. A diferença reside na ênfase que os neoconservadores depositam no petróleo como ingrediente da hegemonia mundial. Bush filho atribui mais importância ao controle dos suprimentos de petróleo do que seus antecessores. O documento oficial da Doutrina Bush inclui entre as tarefas da política externa norte-americana a de “realçar a segurança energética”: “Vamos fortalecer nossa própria segurança energética e a prosperidade compartilhada da economia global trabalhando com nossos aliados, parceiros comerciais e produtores de energia para expandir as fontes e os tipos de energia disponíveis em escala global, especialmente no Hemisfério Ocidental, na África, na Ásia Central e na região do Mar Cáspio” (The National Security Strategy of the United States of America, 2002). A segurança, portanto, só pode ser obtida a partir de iniciativas estratégicas. Esse é o ponto central da política norte-americana de energia. Na avaliação do cientista político Michael Klare, as decisões do governo Bush (filho) relacionadas com instalações militares e com operações bélicas no exterior revelam a prioridade ostensiva para as regiões periféricas que abrigam reservas significativas de petróleo, como o Golfo Pérsico e a Ásia Central. 151 Curso de Formação em Política Internacional.p65 151 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional “Na prática, está se tornando cada vez mais difícil distinguir as operações militares dos Estados Unidos concebidas para combater o terrorismo daquelas concebidas para proteger os recursos de energia”, escreveu Klare (2004, p. 73). Para Andrew Bacevich, um crítico das intervenções militares norteamericanas no exterior, “o uso do poder das armas para garantir o predomínio norte-americano no Oriente Médio, especialmente no Golfo Pérsico, rico em petróleo, permanece como a essência da política dos Estados Unidos para a região” (Bacevich, 2005, p. 201). Avaliação semelhante foi publicada na revista Foreign Affairs por Kenneth Pollack, um estrategista de posições opostas às de Bacevich. Pollack se destacou nos meses que precederam a invasão do Iraque como um dos mais entusiasmados defensores da ação militar. Em 2003, logo depois da ocupação daquele país, ele escreveu: “O interesse principal dos Estados Unidos no Golfo Pérsico reside em garantir um fluxo livre e estável do petróleo da região para o mundo como um todo. [...] O motivo pelo qual os Estados Unidos têm um interesse legítimo e crítico em ver que o petróleo do Golfo Pérsico continue a fluir copiosamente e por um preço relativamente barato é simplesmente que a economia global construída nos últimos 50 anos repousa sobre a fundação de um petróleo barato e abundante. Se essa fundação for removida, a economia global desmoronará” (Pollack, 2003). Como é possível encaixar essa situação vulnerável na imagem que as autoridades dos Estados Unidos tentam construir de seu país como um poderoso hegemon – uma “hiperpotência”, no neologismo do ex-chanceler francês Hubert Védrine – capaz de usar a força militar para impor suas preferências em qualquer lugar do planeta? Para Klare, a dependência do combustível importado é o “calcanhar-de-aquiles” do império norte-americano. É significativo, nesse sentido, que o cientista político Michael Ignatieff, no ensaio em que saúda o surgimento de um “imperialismo” norte-americano como algo ao mesmo tempo inevitável e positivo no cenário mundial pós-Guerra Fria, aponte o Golfo Pérsico, devido a suas imensas reservas de petróleo, como “o centro de gravidade do império” (Ignatieff, 2003). Em resumo, o 152 Curso de Formação em Política Internacional.p65 152 5/6/2007, 12:41 Igor Fuser petróleo do Golfo Pérsico é um instrumento fundamental na conquista e no exercício da hegemonia – justamente o ponto central da chamada Doutrina Bush. 3. A BUSCA DA “MÁXIMA EXTRAÇÃO” A primeira missão de Cheney como vice-presidente foi empreender uma revisão abrangente da política energética dos Estados Unidos. Para tanto, ele pediu ajuda a James Baker, secretário de Estado na gestão de Bush pai. Na década de 1990, após o deixar o governo, Baker montou um centro de estudos, o James Baker III Institute for Public Policy, em Houston. Esse instituto reuniu um grupo de especialistas que apresentou, em abril de 2001, um relatório intitulado Política estratégica de energia – Desafios para o século XXI (Strategic Energy Policy..., 2001). O texto, conhecido como Relatório Baker, serviu de base para a elaboração da política para o setor. O relatório nota que a capacidade ociosa da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), equivalente em 1985 a 25% da demanda global, tinha caído em 1990 para 8%, chegando a 2001 com apenas 2% desse total. Nessas condições, “a escassez é endêmica”. Sem uma margem adequada de capacidade disponível, afirma o estudo, episódios de aperto nos suprimentos e de alta abrupta de preços continuarão a ocorrer: “O mundo atual está precariamente próximo de utilizar toda sua capacidade global disponível de produção de petróleo, aumentando os riscos de uma crise de suprimento com conseqüências mais graves do que há três décadas”. A situação no Iraque merece especial atenção no Relatório Baker. As sanções econômicas ao Iraque, em vigor desde a invasão do Kuwait em 1990, foram avaliadas como prejudiciais aos interesses dos Estados Unidos. Por um lado, essas sanções foram apontadas como ineficazes, na medida em que o regime de Saddam Hussein se mostrava capaz de contornar as restrições por meio do contrabando, obtendo assim uma receita extra que lhe permitiria, segundo o relatório, intimidar os países vizinhos e adquirir ou desenvolver “armas de destruição em massa”. Por outro lado, o documento identifica como problema as restrições ao ingresso do petróleo iraquiano no mercado internacional e à exploração das imensas reservas existentes naque153 Curso de Formação em Política Internacional.p65 153 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional le país, no contexto de uma oferta de combustível cada vez mais escassa. Em resumo, os Estados Unidos precisariam do petróleo iraquiano por motivos de segurança econômica, mas, por uma questão de segurança política e militar, não poderiam permitir que Saddam desenvolvesse sua produção. Sem chegar a propor explicitamente o uso da força militar para promover uma “mudança de regime” no Iraque, o relatório esboça um cenário que deixa pouco espaço para outra opção. O Relatório Baker serviu de base para as discussões de outro grupo de especialistas, que se reuniu, sob a coordenação do próprio Cheney, para elaborar uma nova política de energia para os Estados Unidos. Essa forçatarefa produziu um relatório que foi adotado pela Casa Branca como orientação oficial em maio de 2001 (Reliable, Affordable, and Environmentally Sound Energy..., 2001). Em lugar das ações conservacionistas, encaradas como fúteis ou utópicas, o governo norte-americano adotou na busca da segurança energética uma política que Michael Klare definiu, em seu livro Blood and Oil, como “a estratégia da máxima extração”. Trata-se, em síntese, de garantir uma oferta de combustíveis cada vez maior, dentro e fora dos Estados Unidos, para evitar o duplo risco da escassez e da disparada dos preços. Escreve Klare: “A estratégia da máxima extração requer que as autoridades norte-americanas exortem os regimes amigos a abrir seus setores de energia aos investimentos de companhias estrangeiras que irão viabilizar o acesso a tecnologias avançadas de perfuração e exploração. [...] Embora essas empresas possam desempenhar certas funções, outras tarefas – incluindo o esforço crítico de persuadir os principais produtores do Golfo Pérsico a abrir seus setores de energia ao investimento de fora – teriam de caber ao corpo diplomático e a outras altas autoridades dos Estados Unidos” (Klare, 2004, p. 83). A Política Nacional de Energia, anunciada por Bush no documento que ficaria conhecido como Relatório Cheney, admite sem rodeios que a economia norte-americana continuará a consumir uma parcela altamente despro154 Curso de Formação em Política Internacional.p65 154 5/6/2007, 12:41 Igor Fuser porcional dos recursos naturais do planeta: “Nossa prosperidade e nosso modo de vida são sustentados pelo uso de energia”, afirma. Em vez de uma redução no consumo de combustíveis, o Relatório Cheney defende, em primeiro lugar, a redução do crescimento da dependência norte-americana do petróleo importado por meio do aumento da produção doméstica4. Em segundo lugar, depois de constatar que mesmo a exploração de áreas atualmente protegidas por leis ambientais não será suficiente para reduzir essa dependência, o documento apresenta sua meta mais importante – a busca de fontes adicionais de combustível em outros lugares do mundo. O Relatório Cheney não deixa dúvidas sobre o fato de que a produção doméstica de petróleo nos Estados Unidos não chegará nem perto de alcançar o consumo. O mesmo vale para o gás natural. Portanto, o país terá de importar quantidades cada vez maiores desses dois combustíveis essenciais para a sua economia. Adverte o relatório: “Nos próximos 20 anos o consumo de petróleo dos Estados Unidos vai crescer 33%, o consumo de gás natural mais de 50% e a demanda por eletricidade crescerá 45%. Se a produção de energia dos Estados Unidos aumentar na mesma taxa que nos anos 1990, enfrentaremos uma defasagem cada vez maior” (Reliable, Affordable, and Environmentally Sound Energy..., 2001). O texto conclui que, se as tendências atuais forem mantidas, os Estados Unidos importarão dois terços do seu petróleo em vinte anos. Descarta-se, aí, a busca da auto-suficiência norte-americana em energia, já tentada, sem sucesso, por Nixon e Carter na década de 1970. Na visão das autoridades norte-americanas, os múltiplos laços que ligam os Estados Unidos à economia mundial tornam irrelevante a idéia de garantir os suprimentos de ener- 4 O Relatório Cheney toca num tema altamente polêmico, ao defender a exploração das grandes reservas de petróleo existentes na Área Nacional de Proteção Ambiental no Ártico, uma imensa reserva ecológica no Alasca. O movimento ambientalista luta para impedir a instalação de empresas petrolíferas nessa região. 155 Curso de Formação em Política Internacional.p65 155 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional gia para o mercado interno sem levar em conta o conjunto do sistema capitalista mundial. A solução proposta pelo Relatório Cheney é ganhar acesso, influência e controle das fontes de energia no mundo inteiro. “A segurança energética nacional depende de suprimentos de energia suficiente para dar suporte ao crescimento econômico norte-americano e global”, afirma (ibidem). A principal recomendação é um maior envolvimento do governo no esforço para ampliar a oferta global de suprimentos de petróleo e de gás natural por meio da “abertura de novas áreas para a exploração e o desenvolvimento ao redor do globo”. O documento dá prioridade à busca do acesso norte-americano às fontes de petróleo no exterior e sugere que o governo dos Estados Unidos pressione os países produtores de combustíveis a revogar parcial ou totalmente as leis adotadas no período da nacionalização das concessões petrolíferas, que estabelecem o monopólio de seus respectivos Estados nacionais na exploração das reservas de petróleo. Na essência, o cenário petroleiro internacional – que tem no seu centro os países produtores do Golfo Pérsico – se tornou o terreno para o qual confluem objetivos fundamentais dos Estados Unidos em três campos diferentes: a segurança energética, a consolidação da hegemonia internacional e os interesses econômicos das empresas norte-americanas. 4. A INVASÃO DO IRAQUE Os documentos sobre política energética elaborados no início do governo de George W. Bush ressaltam o vínculo entre a energia e a estratégia militar. À medida que se aprofunda a dependência dos Estados Unidos – e da economia capitalista mundial – em relação ao petróleo importado, aumenta a importância da força militar para garantir os suprimentos de combustível em quantidades e preços adequados. É nesse contexto que deve ser entendida a invasão do Iraque. A idéia de usar a força militar para promover uma “mudança de regime” no Iraque já vinha sendo acalentada muito antes dos atentados de 11 de setembro de 2001 pelos políticos e estrategistas neoconservadores agrupados no PNAC. Logo após sua formação, em 1997, o PNAC começou a pressionar a Casa Branca por uma ação militar contra o Iraque. Uma carta enviada por integrantes desse 156 Curso de Formação em Política Internacional.p65 156 5/6/2007, 12:41 Igor Fuser grupo ao presidente Clinton em janeiro de 1998 pede a “remoção do regime de Saddam Hussein do poder”, argumentando que as sanções não são suficientes para impedir o regime iraquiano de produzir “armas de destruição em massa”, o que teria “um efeito gravemente desestabilizador em todo o Oriente Médio”. A carta adverte que, se os Estados Unidos não adotarem uma atitude mais agressiva em relação ao Iraque, “uma porção significativa dos suprimentos mundiais de petróleo correrá perigo”. A ascensão de grande parte dos signatários desse texto a altos postos na administração Bush leva a crer que a guerra dos Estados Unidos contra o Iraque já estava em gestação muito antes dos atentados de 11 de setembro. Entre as muitas informações já disponíveis sobre os antecedentes dessa decisão, destaca-se o depoimento de Paul O’Neill, secretário do Tesouro durante os dois primeiros anos do governo. Em relato publicado em sua biografia, The Prince of Loyalty (2004), O’Neill revela que, menos de um mês depois da posse na Casa Branca, o presidente e seus principais auxiliares já discutiam o uso das armas para depor Saddam. Em outro livro revelador, Contra todos os inimigos... (2004), Richard Clarke, o principal assessor da Casa Branca para o combate ao terrorismo no primeiro governo de Bush (filho), conta que, no início de 2001, alertou diversas vezes seus superiores sobre o perigo representado pela Al Qaeda, mas eles não deram importância, pois tinham uma “idéia fixa” em relação ao Iraque. Clarke relata sua participação numa reunião na Casa Branca, horas depois dos atentados de 11 de setembro, em que Rumsfeld propunha que se bombardeasse o Iraque, apesar de saber que a Al Qaeda – já apontada como o principal suspeito pelo ataque terrorista – estava instalada no Afeganistão. Quatro anos após a tomada de Bagdá, nenhuma evidência foi encontrada para dar fundamento às alegações de que o regime iraquiano teria ligações com a Al Qaeda ou com alguma outra organização terrorista internacional ou, ainda, que mantivesse em seu poder ou estivesse desenvolvendo armas proibidas. Ao contrário: as revelações que vieram a público a partir de então sugerem, isso sim, um esforço deliberado dos governos de Washington e de Londres para manipular informações, ocultando dados relevantes ou veiculando versões falsas, a fim de obter apoio político e diplomático à guerra e de influenciar a opinião pública. 157 Curso de Formação em Política Internacional.p65 157 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional 5. UMA DISPUTA GLOBAL POR ENERGIA A questão do acesso e do controle das principais reservas de petróleo do mundo envolve uma questão que transcende a importância puramente econômica do petróleo como commodity – envolve a disputa pelo poder em escala internacional. Se os Estados Unidos pretendem manter, como propõe a Doutrina Bush, uma posição de hegemonia mundial incontrastável, uma peça fundamental nesse projeto é sua capacidade de influenciar a distribuição dos suprimentos de energia, cada vez mais escassos, aos demais países do mundo – e, ao mesmo tempo, a de impedir que esses recursos caiam em mãos de potências rivais. Em 1990, quando os Estados Unidos se preparavam para reverter a invasão do Kuwait na primeira Guerra do Golfo, Cheney afirmou que o controle sobre o petróleo do Oriente Médio proporciona a quem o exerce uma “posição de força” sobre a economia global. Michael Klare, ao discutir a dimensão estratégica sobre o controle desses recursos, ressalta a importância não só do Golfo Pérsico, mas das reservas petrolíferas das antigas repúblicas soviéticas do mar Cáspio: “Ao permanecer como a potência dominante nessas áreas, os Estados Unidos podem conseguir mais do que simplesmente a garantia de seu abastecimento futuro. Eles também podem exercer um certo grau de controle sobre os suprimentos de energia de outros países importadores de petróleo. Na medida em que esses países dependem da macrorregião do Golfo–Cáspio para satisfazer suas necessidades de petróleo e de gás natural, sua segurança energética ficará vinculada à presença de poderosas forças norte-americanas nesses locais” (Klare, 2004, p. 152). A perspectiva de aumento da demanda mundial por energia, sem que as regiões produtoras sejam capazes de ampliar sua oferta no mesmo ritmo, faz prever o aumento da competição pelo acesso e pelo controle das fontes de suprimento. Nesse panorama, o Golfo Pérsico desempenha papel estratégico. Essa região forneceu 75% do petróleo consumido no Japão em 2000. As exportações para a Europa Ocidental respondem por uma parcela menor 158 Curso de Formação em Política Internacional.p65 158 5/6/2007, 12:41 Igor Fuser do consumo – 45% em 2000 –, mas a dependência européia do Golfo Pérsico deve crescer na medida em que se esgotem suas próprias reservas no mar do Norte, atualmente em declínio. Um ator-chave nesse cenário é a China. A rápida expansão de sua economia demandará suprimentos de petróleo e de gás natural que ultrapassam largamente a capacidade de suas reservas domésticas. A China se tornou um importador bruto de petróleo em 1993 e, de acordo as projeções da Agência Internacional de Energia, até 2030 as importações representarão 74% de sua demanda. Para se abastecer, a China terá de recorrer aos mesmos fornecedores da Europa Ocidental, do Japão e, numa escala cada vez maior, dos próprios Estados Unidos – o Golfo Pérsico, a bacia do mar Cáspio e a África. Diante dessa dimensão internacional, a invasão do Iraque em 2003 pode ser interpretada como parte de um movimento de grande envergadura dos Estados Unidos para fortalecer sua posição energética global nas próximas décadas. Na improvável hipótese de que os Estados Unidos consigam estabilizar o Iraque e implantar nesse país um regime sob sua influência, os norte-americanos ampliarão seu controle político e militar sobre o Golfo Pérsico e a Ásia Central e dificultarão o ingresso de potências rivais nessa região. Nesse caso, o reforço de sua posição hegemônica facilitaria o esforço de convencer os países produtores da região a ampliar as exportações até o limite de sua capacidade – tal como preconiza a política da “máxima extração” estabelecida no Relatório Cheney – e abrir suas reservas petrolíferas aos investimentos estrangeiros e, até mesmo, à privatização. 6. A RESISTÊNCIA NACIONALISTA Mas essa não é uma tarefa fácil. Em seu esforço para garantir o acesso aos recursos energéticos do Golfo Pérsico – e de outras regiões do planeta – por meio do emprego crescente da força militar, os Estados Unidos deparam com obstáculos de diferentes tipos. Alguns deles são de natureza estratégica e política. Outras barreiras têm a ver com o fato de que o petróleo é um recurso natural não-renovável, cuja extração obedece a limites de natureza física. Conforme a amarga experiência da ocupação do Iraque tem demonstrado, a supremacia militar dos Estados Unidos é insuficiente para habilitar esse país a atingir seus objetivos de política externa. Em quatro anos de 159 Curso de Formação em Política Internacional.p65 159 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional ocupação, os Estados Unidos perderam mais de 3 mil soldados, gastaram bilhões de dólares e viram seu prestígio aos olhos do mundo e, em especial, dos habitantes dos países muçulmanos cair para o patamar mais baixo em todos os tempos. Mas não conseguiram estabilizar o Iraque nem fazer com que a produção de petróleo iraquiana alcançasse ao menos os níveis anteriores à invasão. A inclinação das autoridades norte-americanas a superestimar as possibilidades do poderio militar – um traço permanente na trajetória dos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial – tem sido apontada por muitos autores influentes dentro do próprio establishment norte-americano. Um dos críticos mais destacados é o cientista político Joseph Nye, que integrou o governo de Bill Clinton como subsecretário de Defesa. Criador do conceito de soft power (o “poder brando”), Nye adverte contra o risco de que a orientação neoconservadora do governo Bush, ao atribuir ênfase exagerada ao hard power (o “poder duro”), venha a minar as fontes da influência ideológica dos Estados Unidos, dificultando a obtenção do apoio de governos e de povos estrangeiros às metas da política externa norte-americana. O que liberais como Nye têm dificuldade de admitir é que nem sempre existe uma coincidência entre os objetivos dos Estados Unidos e os interesses nacionais dos países sobre os quais eles exercem ou tentam exercer influência. Na questão do petróleo, esse conflito é evidente. É verdade que, como em toda relação comercial duradoura, existe um vasto leque de interesses comuns entre países produtores e consumidores. É do interesse mútuo a estabilidade do mercado petroleiro em torno de preços que representem um equilíbrio entre as necessidades dos dois lados. Os exportadores não têm o menor interesse em arruinar as economias de seus clientes. Ao mesmo tempo, por que motivo eles deveriam renunciar às vantagens que a posse de uma matéria-prima tão preciosa pode proporcionar? Sua lógica, que a OPEP procura traduzir em políticas específicas, rege-se pela busca de obter o máximo lucro sem prejudicar sua posição no mercado. Já os países consumidores têm interesse em manter os preços do petróleo elevados apenas num nível suficiente para estimular os novos empreendimentos de pesquisa, prospecção e exploração de reservas. A perspectiva de uma defasagem crescente entre a demanda internacional de petróleo e a capacidade de oferta dos países exportadores tende a acirrar o conflito entre os dois pólos do mercado, sobretudo quando os 160 Curso de Formação em Política Internacional.p65 160 5/6/2007, 12:41 Igor Fuser cálculos passam a incluir o esgotamento de uma matéria-prima que é a única ou a principal riqueza dos países onde ela se situa. De acordo com projeções de 2001 do Departamento de Energia (Departament of Energy – DoE) dos Estados Unidos, a produção mundial de petróleo, para atender ao aumento da demanda, teria de crescer de 77 milhões de barris/dia extraídos para 121 milhões de barris/dia em 2025 – cerca de 57% ou 44 milhões de barris/dia. O DoE prevê que mais da metade dessa produção adicional virá do Golfo Pérsico e que a Arábia Saudita, sozinha, contribuirá com 12,3 milhões de barris/dia, o dobro do petróleo que tem extraído atualmente. Outros grandes exportadores – como o Iraque, a Nigéria e a Rússia – também terão de aumentar sua produção em mais de 100% nas próximas duas décadas se quiserem dar conta da “tarefa” a eles designada pelo governo norte-americano e por organizações internacionais como a Agência Internacional de Energia (AIE). O cenário projetado pelo DoE esbarra num problema que não pode ser resolvido nem pelo hard power nem pelo soft power: os limites físicos à extração. Para atingir os 44 milhões de barris/dia adicionais, ou ao menos se aproximar dessa meta, é preciso que as empresas petroleiras descubram novas reservas de petróleo de grandes proporções e que, além disso, ampliem – e muito – a produção dos poços já existentes. No entanto, as descobertas têm ocorrido num ritmo decrescente nas últimas décadas. Novas tecnologias podem levar à descoberta de poços menores ainda não detectados após mais de um século de procura frenética por petróleo em todos os cantos do planeta, mas dificilmente acharão os poços gigantes indispensáveis ao aumento do consumo nas taxas previstas. Mesmo na ausência de qualquer obstáculo físico ao cumprimento das metas de produção da Arábia Saudita e dos demais exportadores do Golfo Pérsico, fatores econômicos e políticos interferem nos cálculos sobre a oferta futura de petróleo. O governo Bush, ao erigir em prioridade de sua política externa a estratégia da “máxima extração” de petróleo, leva em conta apenas os interesses norte-americanos. Para os Estados Unidos, país cuja economia está organizada com base no baixo custo do transporte a longa distância, faz sentido – embora se possa discutir se esse é o caminho mais sensato – jogar todo o peso de sua influência internacional para garantir combustível abundante e 161 Curso de Formação em Política Internacional.p65 161 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional barato pelo maior tempo possível. Mas a Casa Branca, evidentemente, não consultou os principais países exportadores para saber se a “máxima extração” é a estratégia mais conveniente também para eles. O mercado dos combustíveis fósseis, como o petróleo e o gás natural, não se rege totalmente pelas leis econômicas da oferta e da procura. Na maioria das commodities, uma alta dos preços emite automaticamente um sinal aos agentes econômicos para que aumentem a produção, o que leva o mercado a um novo ponto de equilíbrio. Essa regra se aplicou ao mercado petroleiro enquanto a capacidade de oferta era maior do que a demanda – notoriamente, nas décadas de 1980 e 1990, quando a expansão rápida da exploração fora da OPEP coincidiu com a queda das taxas de crescimento da economia mundial, com a adoção de políticas de redução do consumo nos países desenvolvidos e com o ingresso de combustíveis alternativos, como a energia nuclear. O resultado foi um longo período de preços baixos depois dos choques do petróleo na década de 1970. O contexto do início do século XXI é muito diferente. Na medida em que a indústria petroleira se aproxima do ponto em que não será mais possível aumentar a extração, a alta dos preços se afirma como uma tendência irreversível. Não é mais possível ocorrer um ajuste pelo lado da demanda, pois não há substitutos viáveis para os derivados do petróleo no setor de transportes. Ao contrário do que ocorre em outros mercados, que respondem prontamente às variações de preços, o aumento das cotações do petróleo é insuficiente para fazer com que combustíveis alternativos passem a abastecer os automóveis, os caminhões e os aviões. Diante desse pano de fundo, não é difícil entender a impaciência manifestada em documentos do governo norte-americano e de organizações sob sua forte influência, como a AIE e o Fundo Monetário Internacional (FMI), diante dos obstáculos que as políticas nacionalistas vigentes nos maiores produtores da OPEP apresentam ao ingresso do capital estrangeiro que, supostamente, aceleraria a exploração de suas reservas. Claramente, os Estados Unidos têm muito mais pressa em ver o petróleo jorrando em novos poços nos desertos do Golfo Pérsico do que os proprietários dessa riqueza. Cruzam-se, aí, duas grandes tendências, com forte potencial explosivo: • de um lado, a perspectiva da escassez de petróleo nos próximos anos e décadas deixará os governantes do Golfo Pérsico sob forte pressão externa 162 Curso de Formação em Política Internacional.p65 162 5/6/2007, 12:41 Igor Fuser para ajustar suas políticas de produção e preço de petróleo – e, eventualmente, as regras relativas aos direitos de propriedade das reservas – aos interesses dos países consumidores, em especial dos Estados Unidos; • por outro lado, esses mesmos governantes não poderão deixar de considerar a importância decisiva do petróleo para a economia de seus países e, mais do que isso, como símbolo da independência. Trata-se de um assunto altamente sensível entre as populações dos países produtores de petróleo do Golfo Pérsico. Para se ter uma idéia, o emir do Kuwait – Estado nacional que deve aos Estados Unidos a sua própria existência após a guerra de 1991 – teve o seu pedido de mudança na Constituição a fim de permitir o ingresso de capital estrangeiro na exploração do petróleo derrotado pelo Parlamento do país, um órgão legislativo com poderes muito limitados em comparação com seus similares ocidentais. Qualquer discussão sobre a “abertura” do setor de petróleo e de gás natural às empresas ocidentais ou sobre a definição das políticas de preços e de volume de produção desses recursos minerais se dará num contexto fortemente simbólico. O petróleo está estreitamente associado à identidade nacional desses países, em processo de consolidação. Os Estados Unidos, em sua corrida para garantir o controle do petróleo, correm o risco de ter sua imagem cada vez mais associada às piores lembranças que as populações locais guardam dos tempos, não muito distantes, da espoliação neocolonial de seu único recurso valioso pelas grandes empresas petrolíferas ocidentais. É difícil prever como se dará o choque entre os interesses dos Estados Unidos e as tendências nacionalistas nos próximos anos. Mas o fato é que o esforço norte-americano de aplicar no Golfo Pérsico a política da “máxima extração” ocorre em um contexto local extremamente sensível, diante do qual o crescente envolvimento militar dos Estados Unidos não só pode se mostrar ineficaz como pode provocar novos conflitos e acirrar os já existentes. BIBLIOGRAFIA BACEVICH, Andrew J. The New American Militarism. Nova York/Oxford, Oxford University Press, Oxford University Press, 2005. 163 Curso de Formação em Política Internacional.p65 163 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional CLARKE, Richard. Contra todos os inimigos: Por dentro da guerra dos EUA contra o terror. Tradução de Claudia Gerpe Soares et al. São Paulo, Francis, 2004. IGNATIEFF, Michael. “The American Empire: Get Used to It”. NY Times Magazine, Nova York, 5 jan. 2003. IKENBERRY, John G. “A ambição imperial”. Política Externa, vol. II, n. 5, São Paulo, dez.-jan. 2002/2003. KLARE, Michal T. Blood and Oil. Nova York, Metropolitan Books, 2004. O’NEILL, Paul. The Prince of Loyalty. Nova York, Simon & Schuster, 2004. POLLACK, Kenneth M. “Securing the Gulf ”. Foreign Affairs, Washington, jul.-ago. 2003. STRATEGIC Energy Policy: Challenges for the 21st Century – Task Force Report. Rice (Texas)/Washington, James Baker III Institute for Public Policy of Rice University and the Council of Foreign Relations, 2001. 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A INTEGRAÇÃO Desde o início do século XIX existiu na África Austral uma virtuosa inserção na economia-mundo. Seus produtos primários provenientes das minas e de uma agricultura moderna eram competitivos e as receitas daí advindas permitiam transferências de lucro e importações dos equipamentos necessários. A inserção na economia mundial pelas exportações criou redes de transportes, migrações entre as fronteiras, comércio de mercadorias e transferências de rendas dos migrantes aos países pobres da região. Enfim, produziu um forte movimento de capital, de mercadorias e de pessoas que permitiu integrar a região pelo setor moderno, diferentemente das outras regiões africanas. Além das questões técnico-econômicas, a integração regional só foi possível pela política econômica heterodoxa, principalmente da África do Sul, levada a cabo ao longo do século XX. Essa política dedicava parte das receitas das exportações à redistribuição de rendas, à criação do Estado de BemEstar para os brancos, à subvenção de produções não-competitivas e ao incentivo da indústria mediante a substituição de importações. O lucro das exportações era alto porque se baseava na articulação de modos de produção entre o setor capitalista e o setor doméstico. O apartheid foi a mais bem acabada expressão dessa articulação, controlando com todo rigor os locais de residência e deslocação da população não-branca. 1 Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo, pró-reitor de graduação e diretor do CEAA (Centro de Estudos Afro-Asiáticos) da Universidade Candido Mendes, Rio de Janeiro. 165 Curso de Formação em Política Internacional.p65 165 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Por meio desses mecanismos desenvolveu-se a indústria sul-africana, que, embora não competitiva na economia mundial, tinha um mercado regional garantido. Nessa condição, de impulso das exportações à industrialização local, a inserção na economia mundial se tornou compatível e complementar à regionalização. A integração regional foi uma política de longo prazo desenvolvida pela iniciativa privada com o apoio não pouco conflituoso do Estado sul-africano. Foi a iniciativa privada sul-africana que construiu infra-estruturas, organizou o recrutamento e o alojamento dos emigrantes etc. Por sua vez, as instituições governamentais não foram tradicionalmente as instâncias essenciais da expansão regional da África do Sul. A dinâmica sempre foi a das empresas privadas, que recebiam apoios por acordos pontuais e setoriais da política heterodoxa do governo (Coussy, 1996). As instituições regionais surgiram progressivamente: • SACU (Southern African Customs Union) – União Aduaneira da África Austral, desde 1910, incluindo África do Sul, Botswana, Lesoto, Suazilândia e Namíbia; • Zona do Rand, desde 1910, com os mesmos países; • Federação da África Central, de 1953 a 1963, incluindo as duas Rodésias e o Malawi; • SADCC (Southern African Development Coordination Conference) – Conferência para a Coordenação do Desenvolvimento da África Austral, que incluía Angola, Botswana, Lesoto, Malawi, Moçambique, Namíbia, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue, em 1980; • SADC (Southern African Development Community) – Comunidade de Desenvolvimento para a África Austral, com todos os países da SADCC mais a África do Sul e as ilhas Maurícias, em 1990; • PTA (ou ZTP) (Preferential Trade Area for Eastern and Southern African States) – Área ou Zona de Trocas Preferenciais, incluindo Angola, Burundi, Camarões, Djibouti, Etiópia, Quênia, Lesoto, Malawi, ilhas Maurícias, Moçambique, Namíbia, Uganda, Ruanda, Suazilândia, Somália, Sudão, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue, criada em 1981, substituído pela Comesa; • Comesa (Common Market for Eastern and Southern Africa) – Mercado Comum da África Austral e Oriental, criado em 1994. 166 Curso de Formação em Política Internacional.p65 166 5/6/2007, 12:41 Beluce Bellucci 2. ESTRATÉGIAS EM CONFRONTO A situação política na África Austral mudou no fim da década de 1970 e no início da década de 1980. A política de desanuviamento de Vorster, na África do Sul, foi substituída pela “estratégia total” de P. W. Botha, para possibilitar a sobrevivência do apartheid. A independência do Zimbábue e a criação dos países da Linha da Frente numa organização de cooperação regional (SADCC) foram interpretadas por Pretória2 como uma grande ameaça. Em conseqüência, iniciou-se uma política de desestabilização militar e econômica considerável na região, e Moçambique foi especialmente atingido (Abrahamsson e Nilsson, 1995, p. 8). O período entre 1983 e 1986 foi marcado em Moçambique pela transição do socialismo ao capitalismo e da política desenvolvimentista para as políticas neoliberais. Foi nesse momento que a guerra de desestabilização levada a cabo pela África do Sul tomou proporções enormes, atingiu quase todas as regiões do país e formou bases internas, ao mesmo tempo em que a situação econômica se deteriorava a cada dia. A partir de 1987, Moçambique adotou o Programa de Ajustamento Estrutural do FMI (Fundo Monetário Internacional) e do Banco Mundial. A transição terminou efetivamente em 1992, com a assinatura do acordo de paz entre o governo de Moçambique e a Renamo (Resistência Nacional Moçambicana)3. Nesse momento instaurou-se um regime que pôs fim ao monopartidarismo, introduziu a liberdade de movimentação de capital e de mercadorias e reduziu substancialmente a participação do Estado na economia. Em fins de 1983, a crise financeira obrigou Moçambique a abrir novas frentes políticas e a aproximar-se mais do Ocidente. As exigências que este fazia, por meio do Clube de Paris, eram no sentido de uma política de desenvolvimento “realista que garantisse os pagamentos internacionais”; que Moçambique ingressasse no FMI e no Banco Mundial e buscasse uma apro- 2 Pretória é a capital administrativa da África do Sul, onde fica o executivo; a Cidade do Cabo, a capital legislativa; e Bloemfontein, a judicial. 3 Resistência Nacional Moçambicana, criada pelo governo racista de Ian Smith na Rodésia, visava a desestabilização do governo da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) mediante incursões militares. Passou a ter apoio da África do Sul após a independência do Zimbábue, quando intensificou em Moçambique as ações militares. Em 1992 assinou com a Frelimo acordo de paz e participou do processo eleitoral. 167 Curso de Formação em Política Internacional.p65 167 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional ximação com Pretória. Tal fato conduziria ao Acordo de Incomáti, em 1984, de não-agressão e boa vizinhança entre os dois governos. Com o acordo, a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) pretendia evitar os ataques sul-africanos que estavam destruindo a economia moçambicana e normalizar as relações comerciais com esse país, o que substancialmente era do interesse de ambos, enquanto deixaria de apoiar os movimentos antiapartheid, com o que esperava atrair novas alianças ocidentais. O acordo foi cumprido apenas por Moçambique. Com a retirada do apoio moçambicano, o Congresso Nacional Africano (CNA) viu-se obrigado a ter maior presença no interior da África do Sul e a intensificar o trabalho político de oposição clandestina. Ao se agregar a isso a derrota militar sul-africana em Angola no Cuíto Canavale, em 1987, pode-se entender os deslocamentos de poder na África Austral que levariam, alguns anos mais tarde, ao fim do apartheid e à ascensão de Nelson Mandela ao poder. Em 1984, a Frelimo começou a modificar sua perspectiva socialista, motivada pela deterioração da situação econômica interna. A crise instalava-se em todos os seus aspectos. As importações escasseavam, os investimentos reduziam-se, os produtos de consumo básico tornaram-se raros e os de luxo desapareciam. A produção era diminuta, as lojas comerciais estavam vazias, o poder de compra se reduzia, enquanto o comércio paralelo, com produtos contrabandeados da África do Sul, e a inflação aumentavam. As políticas socialistas foram substituídas em pouco tempo por políticas liberais. 3. A CONSAS (CONSTELAÇÃO DE ESTADOS DA ÁFRICA AUSTRAL) No início dos anos 1980, a vida política da África Austral caracterizavase pela existência de duas estratégias opostas, que procuravam incorporar os Estados da região numa associação econômica para aplicar suas estratégias. De um lado a Consas, dirigida pela África do Sul, de outro a SADCC (Conferência para a Coordenação do Desenvolvimento da África Austral). Uma política regional ativa vinha sendo preparada pela África do Sul desde a Segunda Guerra Mundial, mas se intensificou sobretudo a partir dos anos 1970, com a “estratégia total” do governo Botha. Era a resposta do sistema do apartheid às lutas populares na África do Sul e aos movimentos de libertação na região, e tinha como objetivo prolongar aquele sistema por 168 Curso de Formação em Política Internacional.p65 168 5/6/2007, 12:41 Beluce Bellucci meio da intensificação da repressão interna e de uma política externa agressiva que incluía ações políticas, econômicas e militares. O estabelecimento de uma constelação de Estados estava no programa da “estratégia total” de Botha. Já em 1977, O Livro Branco sobre a defesa, do governo sul-africano, expunha os objetivos essenciais do regime e se referia pela primeira vez à necessidade de mobilizar os recursos políticos, econômicos e psicológicos, assim como os militares, no processo para garantir e manter a soberania da autoridade do Estado numa situação de conflito. O Livro Branco traçou uma dupla posição no que diz respeito à política regional, “a estratégia de aliar promessas a ameaças”. De um lado, tratava da necessidade de “manter um sólido equilíbrio militar relativamente aos Estados vizinhos e a outros Estados da África Austral”; por outro, estabelecia como objetivo “a criação de relações de amizade e colaboração política e econômica com os Estados da África Austral”. Enumerava 14 “áreas de ação” a ser ativadas, com ênfase nos serviços de transporte, distribuição e telecomunicações. A concretização da constelação de Estados constituiu, portanto, parte da “estratégia total” do regime do apartheid. O conceito de “constelação” foi utilizado pela primeira vez em 1975 por B. J. Vorster, então primeiro-ministro, e posteriormente por seu sucessor P. W. Botha, em 1979, que lhe atribuiu maior substância, entendida como o estabelecimento de “relações mutuamente proveitosas entre Estados independentes, excluindo especificamente a possibilidade de relações tipo satélite”. A constelação foi uma tentativa da África do Sul de impor sua hegemonia na região e reunir os outros Estados numa aliança econômica e política sob essa hegemonia. Ela constituiu uma nova versão, modificada pela relação de forças na região, das políticas regionais seguidas pela África do Sul desde a União, em 1910 (Adam et alii, 1981, p. 66-68). Antes da Segunda Guerra Mundial, o governo sul-africano tinha ambições diretamente colonialistas de querer “rematar o Estado sul-africano com fronteiras penetrando profundamente no coração da África”, embora já tivesse incorporado a Namíbia, com o apoio da Liga das Nações, e induzido a Grã-Bretanha a renunciar à sua soberania sobre seus antigos High Commission Territories, atuais Estados de Botswana, Lesoto e Suazilândia. Até então, o governo sul-africano tinha efetuado fortes investimentos nas Rodésias (atuais Zimbábue e Zâmbia), na Namíbia e no Quênia, assinado acordos econômicos com as administrações de colonos ou com as potências 169 Curso de Formação em Política Internacional.p65 169 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional coloniais metropolitanas e ainda proposto uma união política aos representantes políticos dos colonos nas Rodésias. Com a ascensão do Partido Nacionalista ao poder na África do Sul, em 1948, os objetivos expansionistas continuaram, mas de outra forma. Apesar do esforço diplomático do governo para fazer da África do Sul a ligação permanente entre as nações ocidentais e a população da África subsaariana, as ambições coloniais dos governantes sul-africanos não vingaram. Essa postura sul-africana fundava-se na idéia de que a África do Sul era o “único país na África Austral com civilização branca e com o direito – em virtude da sua posição como país de brancos e de sua experiência com o problema dos indígenas e o problema dos mestiços – de atuar como conselheiro para os povos dos Territórios Setentrionais” (ibidem). O que aconteceu, entretanto, foram as independências de praticamente todos os países africanos colonizados e os protestos generalizados contra o apartheid, inclusive nas Nações Unidas. Internamente, foram períodos de fortes lutas sociais, com massacres e avanços significativos na organização do movimento antiapartheid. Assim, Pretória abandonou a pretensão à colonização de novos territórios e lançou, internamente, o programa de bantustanização4. Externamente, procurou aliados nos países vizinhos, e em 1971 conseguiu introduzir o “Diálogo com a África do Sul” na agenda da OUA (Organização da Unidade Africana), com a obtenção de seis votos a favor e 28 contra. Em 1974, com a derrota do regime fascista em Portugal, a situação para a África do Sul mudou em função da independência de Moçambique e de Angola, da constituição de governos socialistas e do desenvolvimento da luta armada no Zimbábue. Foi quando Pretória montou a nova estratégia para a manutenção de sua política, conhecida como Consas. A diferença entre a Consas e as ofensivas anteriores da África do Sul não estava nos objetivos, mas na forma de atingi-los. Antes procurava influen- 4 Estes (“territórios bantus”) seriam a criação de “nações independentes” de bases étnicas, dentro da África do Sul, porém sob a soberania desta, mantendo-os segregados, mas próximos. Diversos foram criados, mas nenhum deles foi reconhecido pela comunidade internacional. 170 Curso de Formação em Política Internacional.p65 170 5/6/2007, 12:41 Beluce Bellucci ciar indivíduos que elaboravam as políticas, agora, a estratégia da Consas consistia em influenciar as condições objetivas nas quais se realizavam as decisões. Pretendia construir relações econômicas que fossem favoráveis, pelo menos aos dirigentes dos Estados africanos visados, para que se convencessem de que teriam interesses comuns com a África do Sul. Para isso, propunham projetos sem exigir o engajamento do Estado receptor, visando influenciar o seu futuro comportamento político (ibidem). 4. ESTADOS-TAMPÕES E BANTUSTÕES A estratégia da constelação tinha um caráter regional e visava estabelecer relações particulares entre a República da África do Sul e os vizinhos Estados independentes, de modo a reverter ou impedir o crescimento dos movimentos socialistas e progressistas na região. Pretendia contemplar um agrupamento de Estados em torno da África do Sul, reunindo uma população de cerca de 50 milhões de pessoas. Incluía os membros da União Alfandegária e da Zona Monetária do Rand, liderada pela África do Sul (Botswana, Lesoto e Suazilândia), mais o Zimbábue, a Namíbia, o Malawi, a Zâmbia e o Zaire, além da perspectiva de – no conceito de “constelação ampla” ou “extensa” –, se mudassem os regimes, absorver Angola, Moçambique e Tanzânia. Já a “constelação interna” foi a expressão para descrever uma estruturação entre a África do Sul “branca” e os bantustões “independentes”. Seria a forma de manter sob o domínio do governo sul-africano esses territórios, sob a fachada de serem soberanos e independentes. A estratégia externa da constelação foi um fracasso para a África do Sul, que não conseguiu incorporar nenhum Estado independente visado, e internamente terminou no acordo entre o Partido Nacional e o Congresso Nacional Africano, pondo fim ao apartheid e abrindo o caminho para as eleições multipartidárias, que levaram Mandela ao governo nos anos 1990. O caminho desse fracasso, entretanto, levou o governo sul-africano a promover a guerra de desestabilização contra Moçambique e a invadir Angola. Ao mesmo tempo, e em contrapartida, efetuou-se a articulação dos Estados da Linha da Frente, envolvendo Moçambique, Angola, Zâmbia, Tanzânia e Botswana, mais o Zimbábue, recém-independente, que estabeleceram um agrupamento regional alternativo, a SADCC. Este atraiu os Estados 171 Curso de Formação em Política Internacional.p65 171 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional visados pela Consas, como Malawi, Botswana, Lesoto e Suazilândia, apesar das fortes divergências políticas e ideológicas entre os diferentes governos. Manter a aliança desses nove países na década de 1980, quando a África do Sul avançou violentamente contra Moçambique e Angola, foi fruto da capacidade de articulação política de seus líderes mais influentes, entre os quais o principal foi o moçambicano Samora Machel. 5. A SADCC (CONFERÊNCIA PARA A COORDENAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO DA ÁFRICA AUSTRAL) A SADCC foi criada em abril de 1980 em Lusaca, em oposição à constelação de países proposta pela África do Sul. Participavam nove Estados independentes da África Austral: Angola, Botswana, Lesoto, Moçambique, Malawi, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue. A SADCC, por sua eficiência, tornou-se ao longo da década de 1980 a organização econômica regional de maior importância no contexto africano. Embora não definisse objetivos ideológicos, tinha claro que romper a dependência econômica com a África do Sul implicava encontrar alternativas às relações com esse país, particularmente nas esferas de comércio, transporte e migração da mão-de-obra. A África do Sul foi durante os cem últimos anos o pólo central de desenvolvimento na região. A existência de ouro e de uma população colona garantiu o afluxo de capitais e a estruturação de uma economia baseada na exploração de mão-de-obra barata. O papel reservado a cada um dos Estados da região foi fundamentalmente, desde os fins do século XIX, de fornecedor de mão-de-obra e de serviços. Desta forma, existe uma especialização de trabalho regional em que a RSA [República Sul-Africana] fornece produtos agrícolas e industriais, compra mão-de-obra e utiliza certas infraestruturas existentes nesses países, sobretudo transportes ferroviários e marítimos. Os países da região tinham a função de fornecer mão-de-obra migratória e comprar mercadorias sul-africanas (Adam et alii, op. cit., p. 73). Toda a região austral esteve, desde o século XIX, sob a forte influência econômica direta britânica, subordinada ao colonialismo da Grã-Bretanha, à exceção de Moçambique e Angola, influenciados por Londres através da política colonial de Portugal. 172 Curso de Formação em Política Internacional.p65 172 5/6/2007, 12:41 Beluce Bellucci O primeiro aspecto dessa dependência regional é a dependência de suas importações e exportações em relação à África do Sul. O segundo aspecto diz respeito ao sistema de transporte sul-africano. Quase metade das exportações e importações de cinco países não destinadas à África do Sul e sem procedentes desse país passava por seus portos, devendo-se acrescentar o fluxo com o da própria África do Sul, que era consignado pelos serviços de transporte sul-africanos. Neste aspecto, Moçambique disputava esse transporte com a África do Sul, ficando com 38% do volume de tonelagem do tráfego de cinco países (Botsuana, Malaui, Suazilândia, Zâmbia e Zimbábue) contra 48% da África do Sul e 14% da Tanzânia. Malawi e Suazilândia, entretanto, dependiam dos portos de Moçambique em 100% para as suas importações e exportações, enquanto Botsuana e Zimbábue, apenas 25% cada um. O terceiro aspecto refere-se ao fluxo migratório da mão-de-obra para a África do Sul. Embora, no início dos anos 1980, já tivesse diminuído muito o número de trabalhadores estrangeiros na indústria mineira sul-africana, aproximadamente 20% do total da força de trabalho de cinco países continuavam a servir de mão-de-obra migratória nas minas sul-africanas. Por outro lado, o relacionamento desses países com o mercado internacional dependia da exportação de produtos cujos mercados não controlavam e eram dominados por grandes empresas. Assim, os países independentes tinham de mudar as relações com a África do Sul, pressionando pelo fim do apartheid, mas também reestruturar suas próprias economias e ligações com o mercado. A SADCC propunha coordenar ações com objetivos de realizar as seguintes propostas: “• redução da dependência econômica, particularmente, mas não somente, em relação à República da África do Sul; • reforço de laços para criar uma integração regional eqüitativa e genuína; • mobilização de recursos para promover a implementação de políticas nacionais, regionais e interestatais; e • ação concertada para assegurar a cooperação internacional dentro da estratégia desses países para a libertação econômica” (SADCC, 1980, p. 4-5). 173 Curso de Formação em Política Internacional.p65 173 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Além disso, a SADCC previa uma tripla reestruturação: das economias nacionais, das relações entre as diferentes economias regionais entre si e das relações delas com o exterior, fosse com a África do Sul ou outra fonte de dependência. Não pretendia montar uma estrutura burocrática para a coordenação e avaliava que havia na região energia e matérias-primas suficientes para “uma revolução industrial” que tornaria possível seus desejos de independência. O fato de a SADCC ter sido entendida como um veículo positivo de combate ao apartheid favoreceu o apoio dos países industrializados às ações de cooperação previstas em suas grandes propostas. O sistema de transportes existente na região foi planejado e concebido no século XX para convergir com o sistema de escoamento da África do Sul. As mercadorias do Zimbábue (então Rodésia), por exemplo, para chegar ao litoral, tinham de seguir pela África do Sul, quando o trajeto mais curto seria o Porto da Beira, em Moçambique. Por ser o principal nó de estrangulamento das economias dos países do hinterland, atribuiu-se como prioridade a reestruturação do sistema de transportes e comunicações (SADCC, 1980). Até a proclamação da declaração unilateral de independência da Rodésia do Sul em 1965, aproximadamente 80% do tráfego regional, com exceção do da África do Sul, passavam pelas redes ferroviárias e portuárias de Angola e de Moçambique. Mesmo após o redirecionamento do movimento da Rodésia para a África do Sul, essa porcentagem ficou acima de 70% e começou a cair após a independência das colônias portuguesas. A partir de 1977, a “estratégia total” sul-africana definiu como objetivo central a realização de ações econômicas e militares contra os países vizinhos, incluindo cortar ou dificultar suas vias de acesso ao mar. Por conta disso, o governo de Pretória desviou o tráfego Transvaal–Maputo para portos sul-africanos, contrariando inclusive os setores privados. Isso tudo se agravou com a independência do Zimbábue em 1980, quando as ações para desestabilizar Moçambique passaram a ser coordenadas pelo exército sul-africano – e depois pela Renamo – e foram intensificadas em todas as províncias moçambicanas. Foi nesse contexto que a SADCC justificou a prioridade dada aos projetos do setor de transportes e comunicações e, nele, aos corredores ferroviários, à produção de alimentos e à proteção ambiental. Decidiu-se ainda 174 Curso de Formação em Política Internacional.p65 174 5/6/2007, 12:41 Beluce Bellucci estimular a troca de informações sobre as atividades mineiras, a exploração de bacias hidrológicas, a energia e a agricultura, os problemas relacionados ao petróleo e os excedentes de eletricidade. Não poderia ficar de fora a formação de quadros, para a qual se previu a implementação de cursos e a elaboração de projetos conjuntos. Na segunda reunião da SADCC, organizações e países internacionais assumiram o compromisso de financiar os projetos apresentados. Mas problemas poderiam vir, pois com a desvinculação da África do Sul a integração regional só seria efetivada se fossem implementadas nos países medidas de reestruturação interna de suas economias e de suas ligações externas, com a busca de parceiros alternativos para a obtenção de insumos que normalmente vinham da África do Sul. Caso contrário se ficaria refém das intimidações do vizinho. Entretanto, fatores conjunturais, como as secas na região em anos seguidos na virada da década, obrigaram que importações de cereais em grandes escalas fossem provenientes da África do Sul, pois era a única fonte possível de abastecimento rápido e eficaz. Com certeza sabia-se que não se poderia rapidamente substituir os sul-africanos como parceiros comerciais. Não obstante todo o sucesso da SADCC, com a ampliação do intercâmbio econômico e das relações entre seus membros, a relação dos países da SADCC com a África do Sul continuou a aumentar. Não pelos caminhos legais, mas através do comércio ilegal, do contrabando de mercadorias pelas fronteiras. Assim, apesar de tudo, a SADCC não permitiu a melhora da situação econômica de seus membros na década de 1980, apesar dos investimentos realizados, sobretudo, nos transportes e nas comunicações. No contexto de fortes pressões econômicas e políticas, de guerra interna e agressões externas, de queda da produção em todos os níveis, de grande fluxo de migração e de penúria de parte significativa da população, foi estabelecido para os países da região o Programa de Ajustamento Estrutural, moldado pelo Banco Mundial e pelo FMI, conformando um novo quadro regional. 6. O NOVO PAPEL DA ÁFRICA DO SUL Na década de 1990 as atenções se voltaram para a África Austral, na expectativa de que as riquezas naturais e sua integração socioeconômica, junto com o fim do apartheid, trouxessem as esperanças de que houvesse 175 Curso de Formação em Política Internacional.p65 175 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional um relançamento da integração regional, sem a dominação e a hegemonia da África do Sul, mas sem descartar sua fundamental participação. A história, entretanto, não tem sido bem assim. Nas décadas de 1960, 1970 e 1980, houve grandes mudanças na conjuntura regional (independência unilateral da Rodésia do Sul; guerras de libertação e independências de Zimbábue, Namíbia, Moçambique e Angola; implantação de regimes socialistas; sanções internacionais e regionais contra o regime do apartheid etc.) que promoveram na África do Sul um acirramento das políticas de substituição de importações para fazer frente à economia de guerra na defesa do apartheid. De um lado, a necessidade de defesa nacional não permitia basear a escolha de atividades produtivas (como química, energia, transportes, comunicações etc.) em critérios de produtividade. De outro, houve forte mudança nos fluxos dos investimentos diretos estrangeiros, que passaram para empréstimos financeiros (de maior mobilidade ao capital internacional, nos casos de sanções, que as inversões produtivas). Tudo isso fez com que a África do Sul fortalecesse sua indústria, procurasse reduzir as dependências externas e diminuísse sua participação na economia-mundo. A esta estratégia se contrapuseram fatores técnico-econômicos que começaram a pôr em questão o modelo de industrialização norteado pela substituição de importações. Na década de 1970, as forças produtivas que impulsionavam esse modelo seriam ultrapassadas pelos novos paradigmas da acumulação de capital. Vieram somar-se a essas dificuldades aquelas provenientes da luta contra o apartheid e suas conseqüências: os aumentos de salários, os custos com a segurança, as dificuldades impostas pelos bloqueios etc. Tudo conduziu a uma degradação dos termos de troca, à perda de competitividade e à baixa da taxa de lucro da economia sul-africana. Conseqüentemente, houve redução das receitas e, assim, as políticas de proteção à indústria local e de substituição de importações ficaram difíceis de ser implementadas. Para buscar divisas, o governo começou a orientar os investimentos para os setores de exportação, o que exigia, então, produtividade e competitividade em nível internacional. Dessa forma, o próprio capital passou a questionar a eficácia da política de subvenção, de industrialização e de cartelização posta em prá176 Curso de Formação em Política Internacional.p65 176 5/6/2007, 12:41 Beluce Bellucci tica até então pela África do Sul, e abriu brechas importantes para o fim do apartheid. A partir desse momento, a inserção mundial se tornou concorrente da regionalização. A produção para exportação, exigida pela globalização, passou a concorrer com a substituição de importações, comprometendo a integração regional. A indústria a ser instalada localmente não seria mais para atender ao mercado regional, mas para exportação, e segundo os padrões globais. Quando Nelson Mandela foi eleito presidente da África do Sul, os países da região já tinham adotado o programa liberal havia uma década, com o objetivo de preparar a inserção mundial dos países africanos através das pretensas vantagens comparativas. Para isso seria imprescindível paz, democracia e uma economia de mercado (muito aberta), como passo inicial para “melhorar a competitividade e o retorno dos capitais”. Em todos esses países, os governos deixaram de falar em desenvolvimento e passaram a se preocupar com o equilíbrio das contas, com o aumento das exportações, com a liberdade cambial e de preços, com as privatizações etc., e a separar o Estado da economia, como desejavam as instituições internacionais. Tal foi o caso também do Banco Central e do Ministério das Finanças da África do Sul, que abandonaram, no pós-apartheid, as políticas heterodoxas tradicionais e passaram a buscar credibilidade para atrair novos capitais. Capitais esses, agora, para investimentos diretos (e não para empréstimos financeiros, como durante as sanções econômicas), direcionados para os setores de exportação, e não, como tradicionalmente, aos setores de substituição de importação. Como a substituição das importações passou a ser concorrente das exportações, o protecionismo das indústrias locais nos anos 1990 foi alvo de críticas constantes. Conseqüentemente, os aspectos fundamentais que garantiam a política de integração regional desapareceram. As intervenções de guerra não podiam ter lugar num clima de paz e a mobilidade das pessoas não poderia ser regulada sem o apartheid. O equilíbrio anterior já estava ameaçado. Os capitais provenientes do setor tradicional (em contraposição aos setores pós-modernos) da economia capitalista sul-africana, que ficaram bloqueados durante os últimos anos do apartheid, partiram, no início dos anos 1990, em busca de novos mercados. E naquele momento Moçambique lhes abriu as portas, após a desregulamentação do comércio e a privatização 177 Curso de Formação em Política Internacional.p65 177 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional das empresas públicas, e promoveu reestruturações que demandavam investimentos estrangeiros. Como exemplos, podem ser citados a indústria hoteleira e de turismo e alguns setores agrícolas e comerciais. Assim, o capital sul-africano em Moçambique, tal como o português, deslocou-se para aqueles setores que se beneficiavam da ausência de controle e de regulamentação estatal, de limites para a exploração e da ausência de organização sindical – eram eles os restaurantes, as oficinas, os setores de serviços. Em setores rurais houve mesmo certo retorno quase às companhias majestáticas, permitindo um capitalismo selvagem. Enormes áreas vêm sendo destinadas a empresas que produzem livremente, praticamente sem controle estatal. Mas há, paralelamente, naquilo que se pode qualificar de capital moderno, o incremento dos investimentos nos chamados Corredores5, como o da Beira, que tem investido fortes somas na construção de oleodutos, ferrovias e rodovias e na modernização dos portos; e os de Maputo e Nacala, ambos para atender às necessidades de movimentação de mercadorias provenientes e destinadas aos países do hinterland e, também agora, aos investimentos diretos estrangeiros em megaprojetos. Nestes casos, o investimento dá-se com os mais altos índices de produtividade e controle, com técnicos e financiamentos internacionais, tendo relativo reflexo direto na economia moçambicana, apesar da pouca criação de empregos. A integração regional articulada e desejada desde a década de 1990 vem propiciando o relançamento do capitalismo pela conjunção de demanda e oferta de investimentos privados, principalmente nos setores de turismo, na rede de transportes, nos recursos hídricos e no meio ambiente, sem conseqüências positivas significativas para a população. Mas, pergunta-se, poderia a África do Sul entrar no processo de globalização e ser, ao mesmo tempo, um centro promotor da modernidade e do desenvolvimento regional? Seguramente não, pois os sentidos da acumulação de capital, num caso e noutro, são contraditórios e a razão central dos conflitos atuais na região. 5 Os “corredores” constituem um conceito econômico e social, que faz referência a uma faixa de terra que comporta rodovias, ferrovias, em alguns casos servidas com oleodutos, e outras atividades socio-econômicas, que ligam um porto no litoral de Moçambique a países do interior. 178 Curso de Formação em Política Internacional.p65 178 5/6/2007, 12:41 Beluce Bellucci 7. A PARTICIPAÇÃO NO MUNDO GLOBALIZADO O eixo central da acumulação baseado na transferência de renda da sociedade doméstica para a sociedade moderna, que permitiu a integração regional durante o apartheid, está rompido, embora possa resistir num ou noutro caso. Isto é, não há condições para que se reproduza em larga escala o processo de acumulação que existiu durante o século XX, até porque as próprias sociedades não podem continuar mais suportando tal exploração. Por outro lado, as políticas nacionalistas e socialistas de desenvolvimento e de acumulação interna, em direção a uma sociedade industrial moderna, em que os camponeses seriam transformados em trabalhadores assalariados, fracassaram devido à própria guerra contra o apartheid e, sobretudo, por terem chegado tarde demais. Surgiram quando a economia-mundo passava por uma revolução técnico-científica cujo processo de globalização não mais comportava a acumulação baseada na substituição de importações como fator preponderante. Vale agora a competitividade (via redução de custos e de salários) para o mercado internacional, por meio das exportações. Para a nova competitividade, a capacitação técnico-científica nas localizações e nos tipos de investimento a ser realizados passou a ser mais importante que a matéria-prima e a mão-de-obra. Os esforços empreendidos pelas empresas internacionais de grande porte, acossadas pela crise e pela concorrência, convergiram no sentido de encontrar fontes alternativas de energia, de modo a reduzir seu consumo, como foi o caso do petróleo. Quanto às outras matérias-primas de base, as empresas dos países centrais vêm reduzindo seus custos mediante a evolução científica e tecnológica e substituindo produtos antes provenientes de países do Terceiro Mundo por produtos industriais próprios. O movimento da globalização é excludente, “com exceção de uns poucos ‘novos países industrializados’, que haviam ultrapassado, antes de 1980, um patamar de desenvolvimento industrial que lhes permite introduzir mudanças na produtividade do trabalho e se manter competitivos”, estando em curso “um nítido movimento tendente à marginalização dos países em desenvolvimento” (Chesnais, 1996, p. 33). Ao mesmo tempo, não são os países que se beneficiam integralmente dessa dinâmica global, mas setores da economia mundial. Os países mal situados em termos de pesquisa, 179 Curso de Formação em Política Internacional.p65 179 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional que já de saída não dispõem de acúmulos de conhecimentos técnico-científicos, terão muita dificuldade em se inserir na lógica da globalização. Na região da África Austral, poucos setores do capitalismo têm ou deverão ter esse privilégio, e para isso terão de aceitar incondicionalmente as regras do capital internacional, o que não ocorrerá em benefício de uma cooperação regional ou social. A reorganização econômica na região vem recebendo investimentos estrangeiros desnacionalizados. Os investidores são grupos de capitais internacionais de diferentes origens. Os IDE (Investimentos Diretos Estrangeiros) em Moçambique têm atraído megaprojetos, como para a produção de alumínio, com forte impacto no aumento do PIB (Produto Interno Bruto) e na balança comercial, mas têm gerado pouco resultado positivo no emprego e na renda dos trabalhadores. Eles transferem ao exterior a produção física e os lucros obtidos, através de baixa empregabilidade. Por outro lado, a política para a criação de empregos também depende do capital internacional, e se configura no sistema EIMI (Exportações da Indústria de Mão-de-Obra Intensiva). Essas indústrias baseiam-se em processos de trabalho geralmente individuais ou familiares e utilizam pouco meios de produção (máquinas de costuras, colas etc.). Os trabalhadores recebem as matérias-primas e se limitam a realizar um esforço físico intenso, num processo de montagem, colagem, corte ou costura, dependendo do produto. A empresa empregadora não tem capital no país, traz suas matérias-primas para um ciclo produtivo para serem trabalhadas localmente, e retornam com um produto acabado para ser vendido no mercado internacional. Têm-se aí as calças, camisas e gravatas de grifes, tênis e sapatos de marca e, num processo um pouco mais sofisticado, os produtos eletroeletrônicos e os informatizados. São, portanto, processos de trabalho individualizados que permitem exploração extra e são extremamente voláteis. Se há qualquer aumento interno no salário mínimo, ou redução em outros países, estas indústrias, por quase não terem capital fixo, podem ser deslocadas. Vistos em seu conjunto, os países da região, mesmo aceitando as regras como vêm fazendo, estão destinados a ser uma espécie de reserva para o capital de ponta, enquanto o capitalismo selvagem brota nas bordas e brechas, aproveitando-se do que sobrou do colonialismo, do apartheid e das guerras internas. 180 Curso de Formação em Política Internacional.p65 180 5/6/2007, 12:41 Beluce Bellucci Ter que participar da concorrência internacional significa aumentar a produtividade, pois só assim se reduz os custos unitários. A redução do custo unitário requer alta tecnologia e/ou aumento da exploração. As tecnologias requeridas no mundo atual são inexistentes na região, o que condiciona esses países, quando muito, a permitir instalações complexas em seus territórios, como no caso dos megaprojetos, desde que garantam enormes vantagens ao capital, como as isenções de taxas e impostos e a repatriação dos lucros. Quanto ao aumento da exploração, esta poderia se dar através do aumento da produtividade do setor de produção de bens-salários (maisvalia relativa), no modelo desenvolvimentista, mas isso está fora de questão no quadro globalizante atual. Resta aumentar a exploração reduzindo absolutamente os salários (aumento de horas ou redução monetária), como prevê a proposta EIMI. Mas é preciso lembrar que se trata dos países com os mais baixos salários do mundo, onde a miséria atinge proporções enormes da população, e qualquer redução de salário, ou manutenção do padrão atual, pode condenar à morte parcelas significativas da sociedade. Neste novo quadro socioeconômico e político se estabeleceram a União Africana, em substituição à Organização da Unidade Africana, e a Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD – New Partnership for Africa’s Development) 6, prometendo um novo contexto, o do Renascimento. São nestas duas organizações que se travam os combates sem fronteiras, não mais entre os movimentos de libertação e o colonialismo, o apartheid e seus oponentes, os capitalistas e os socialistas. Mas pressionados por grupos de sobrevivência, contrabandistas de armas, traficantes, corruptos, religiosos, financistas internacionais e grupos políticos, que bóiam no caldo remanescente dos Estados do século XX, enquanto os povos fermentam à espreita de nova esperança. 6 O NEPAD é o projeto que os dirigentes africanos adotaram como quadro estratégico para lutar contra a pobreza e o subdesenvolvimento do continente. É a fusão de vários programas e iniciativas de chefes de Estados africanos que foi incorporada pela 37 ª Cimeira da OUA (Organização da Unidade Africana) em Lusaka, em julho de 2001. No mesmo mês, cinco países africanos apresentaram o projeto na reunião do G8 em Gênova, que decidiu apoiá-lo. 181 Curso de Formação em Política Internacional.p65 181 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional BIBLIOGRAFIA ABRAHAMSSON, H. e NILSSON, A. Moçambique em transição: um estudo da história de desenvolvimento durante o período 1974-1992. Maputo, Padrigu, 1994. _____ e _____. Ordem mundial futura e governação nacional em Moçambique. “Empowerment” e espaço de manobra. Maputo, Padrigu/CEEI-ISRI, 1995. ADAM, Y.; DAVIES, R.; DLAMINI, S. “A luta pelo futuro da África Austral: as estratégias de CONSAS e SADCC”. Estudos Moçambicanos, n. 3. Maputo, CEA/UEM, 1981, p. 65-80. AMIM, S.; CHITALA D.; MANDAZA, I. Afrique Australe face ao défi sudafricain. Paris, Publisud-FTM-UNU, 1989. BORÓN, Atílio. A nova ordem imperial e como desmontá-la. In SEOANE, J. e TADDEI, E. (comp.). Resistencias mundiales. De Seattle a Porto Alegre. Buenos Aires, CLACSO, 2001. CAHEN, Michel. 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Esse processo abrange as viagens exploratórias realizadas entre 1492 e 1519, a conquista das civilizações da América Central e da cordilheira dos Andes entre 1519 e 1535, e o controle imposto aos então considerados territórios marginais entre 1535 e 1580. A extração de metais preciosos a baixo custo para a metrópole é o objetivo fundamental da exploração das colônias hispano-americanas nos séculos XVI, XVII e início do XVIII. Para garantir maiores benefícios deste monopólio, a Coroa espanhola institui a Casa de Contratação de Sevilha (1503), o Conselho das Índias (1542) e o sistema de frotas (1561). E, para satisfazer as necessidades da produção de minérios, surge uma economia de apoio quase desmonetarizada, que, por meio da troca, abastece de alimentos, tecidos e animais de carga as regiões de mineração e as cidades. Essa economia colonial baseia-se na exploração dos indígenas e dos escravos importados de outros continentes. Após um período de escravidão indiscriminada da população indígena, as “leis novas”, promulgadas em 1542 por Carlos III, proíbem esse tipo 1 Extraído da obra de Roberto Regalado, América Latina entre siglos: dominación, crisis, lucha social y alternativas políticas de la izquierda (Melbourne/Nova York, Ocean Press/La Habana, 2006). 2 Politólogo, membro fundador do Foro de São Paulo. Dirige a Seção de Análise da Área América do Departamento de Relações Internacionais do Partido Comunista de Cuba e da revista Contexto Latinoamericano. É autor do livro América Latina entre siglos. 184 Curso de Formação em Política Internacional.p65 184 5/6/2007, 12:41 Roberto Regalado de escravidão e estabelecem como única forma autorizada de exploração o sistema de repartimientos ou encomiendas3. A encomienda havia sido até então a forma de exploração aplicada àquelas etnias indígenas que, por diversas razões, os especialistas em direito canônico e em teologia aconselhavam a Coroa a não escravizar. As encomiendas se diferenciavam da escravidão por não serem permanentes e nem de direito hereditário, e por obrigarem o encomendero a “civilizar” e “cristianizar” os indígenas cujo trabalho explorava. Ainda que até 1670 continue legal escravizar índios “rebeldes” – contrários à colonização – e até 1810 índios “bárbaros” – acusados de atacar povoados fronteiriços espanhóis –, as “leis novas” afirmam o caráter temporal da encomienda, suprimem os “serviços pessoais”, ratificam a obrigação de os índios pagarem “tributos” e preservam a coexistência de várias “formas de propriedade da terra” na área ocupada pela população encomendada. Diferentemente das colônias americanas da Grã-Bretanha, Portugal e França, na América espanhola prevalece a exploração indígena sobre a importação de escravos de outros continentes. Isto se deve ao fato de, até a segunda metade do século XVIII, a Coroa não incentivar a economia de plantation, mais vinculada à escravidão africana. Ainda que a partir deste momento a Espanha multiplique o tráfico, a América espanhola recebe no total cerca de 1,5 milhão de escravos durante todo o período colonial (14921810), cifra que representa apenas 12% dos escravos africanos importados no continente (Hayek, 1990b). A importação de escravos faz parte desse processo desde o início da conquista e colonização. Quando ocorre a invasão espanhola da América, há na metrópole escravos de diversas origens, inclusive brancos europeus, árabes, asiáticos e negros africanos. Alguns deles foram trazidos para o continente americano já em 1493. Calcula-se que no final do século XVI havia na Espanha cerca de 44 mil escravos, que constituíam 1% da população (Hayek, 1990a). Da mesma forma, desde o início da conquista e colonização, a 3 Repartimiento é o sistema adotado na colonização espanhola das Américas para garantir mão-de-obra nas explorações agrícolas e minerais. Determinado número de índios era “repartido” entre os colonizadores espanhóis; a essa repartição se chamava encomienda, ou seja, estabelecia-se uma relação de patrocínio pela qual os índios deviam obediência ao encomendero “em troca” de instrução cristã. (N.T.) 185 Curso de Formação em Política Internacional.p65 185 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Coroa espanhola proíbe a entrada na América de escravos “infiéis”, de etnias “rebeldes” ou de outros agrupamentos humanos que representem uma ameaça ao seu domínio. Finalmente, em 1542, Carlos III decreta que só podem ingressar na América escravos negros de origem africana, com a especificação de que não sejam originários de determinadas etnias “guerreiras”. Menos intensos que na América hispânica são os primeiros anos da conquista e colonização do Brasil, nome que se origina da madeira preciosa denominada pau-brasil, cuja produção em larga escala tem início já em meados do século XVI. A disputa pelo controle do litoral brasileiro pelos navegantes franceses estimula a colonização portuguesa, iniciada com duas expedições punitivas em 1526 e 1531. Em 1532, a Carta Real de D. João III fixa a divisão do território brasileiro em 15 capitanias hereditárias, das quais apenas sete se constituem. Imediatamente após o fracasso do sistema de capitanias, a Coroa portuguesa reivindica seu direito sobre a totalidade do território da colônia, para o qual designa um governador-geral. Durante o século XVII, o núcleo da economia se desloca para as plantações de cana-de-açúcar do Norte do Brasil, abastecidas de gado e homens pelo restante da colônia. Essa economia açucareira entra em crise após a derrota da ocupação holandesa de Pernambuco (1630-1654), o que leva essa potência européia a empreender o cultivo da cana-de-açúcar em suas possessões do Caribe, e o mesmo fazem a Grã-Bretanha e a França. Diante da impossibilidade de o Brasil competir neste quesito com as Antilhas, as regiões marginais da colônia lusitana – dependentes da economia de apoio ao Norte açucareiro – sobrevivem com o comércio de madeira, ouro e pedras preciosas obtido por meio da troca com a população indígena, com a pecuária e a escravidão de índios capturados em territórios de fronteira, a qual torna-se mais barata que a importação de escravos africanos, crescentemente inacessíveis aos donos de engenho. Nas colônias americanas da Espanha e de Portugal coexistem cinco formas de produção: a economia de subsistência do camponês e a das vilas, a produção mercantil simples, a escravidão patriarcal e de plantation, a produção agrária feudal ou semifeudal sob a forma de latifúndio e os embriões pré-capitalistas (Heller, 1976). A transformação das relações de classe existentes na América pré-colombiana, assegurada pelo “direito de conquista”, deriva da dominação colonial imposta pela Espanha. Surge assim uma or186 Curso de Formação em Política Internacional.p65 186 5/6/2007, 12:41 Roberto Regalado dem social heterogênea na qual a supremacia é exercida por agentes do fisco e por comerciantes peninsulares, encarregados de maximizar a transferência das riquezas para a Coroa, ao passo que os senhores da terra e os proprietários da mineração são excluídos da circulação monetária. Os principais sujeitos da exploração colonialista são certamente os africanos e os índios, submetidos ao aniquilamento étnico e convertidos, por meio de formas variadas e mutantes de exploração, em classes peculiares da sociedade colonial. Também entre eles se estabelecem diferenças sociais: os escravos africanos constituem o escalão mais baixo da sociedade colonial. A relação econômica entre a Espanha e a América hispânica se transforma no decorrer do século XVIII em função do surgimento de uma zona econômica de apoio à mineração, representada pela agricultura e pela pecuária, que leva à proclamação das reformas burbônicas de 1778 e 1782. Estas reformas legalizam a importação de produtos coloniais, como açúcar e tabaco de Cuba, cacau da Venezuela e de Quito, couro do rio da Prata, além de metais preciosos, para o mercado espanhol. Também formalizam a exploração das colônias como mercado de consumo. Isso significa que a Espanha começa a fomentar a economia de plantation quando esta já está mundialmente em declínio. Enquanto isso, no Brasil do final do século XVIII, o descobrimento de jazidas de ouro e diamantes em Minas Gerais provoca o deslocamento do centro econômico das plantations do Nordeste para a mineração do Centro-Sul e estimula o surgimento de um conjunto de atividades econômicas de apoio ao setor da mineração, que chega ao seu ápice entre 1721 e 1870. Este processo corre paralelamente à redução, por parte da metrópole, da relativa autonomia administrativa e da liberdade comercial das quais a colônia usufruía. Durante o século XVIII, tanto na América hispânica quanto no Brasil, formam-se setores criollos4 em processo de aburguesamento, interessados na conquista do acesso direto ao mercado europeu, entre os quais se sobressaem fazendeiros, estancieiros, pequenos e médios produtores e comerciantes, intelectuais e artesãos. Esse processo alimenta a semente da consciência nacional americana e das idéias de independência sob a influência da Ilus- 4 Criollo: filho e/ou descendente de europeus nascido nas antigas colônias espanholas das Américas. (N.T.) 187 Curso de Formação em Política Internacional.p65 187 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional tração, da independência das 13 colônias inglesas da América do Norte (1775-1783), da Revolução Francesa (1789), da Revolução Haitiana (17901804) e das guerras européias, em particular a ocupação de Portugal (1807) e Espanha (1808) pelos exércitos napoleônicos, que expulsa dos respectivos tronos as duas monarquias e deixa acéfalos os impérios coloniais ibéricos. As mudanças ocorridas no sistema comercial espanhol, formalizadas pelas reformas burbônicas, alteram o status quo tanto na metrópole como nas colônias. Na Europa, a Espanha fica relegada ao papel de intermediária onerosa entre suas possessões americanas e as nações industriais, em particular a Inglaterra. Na América hispânica o monopólio comercial se esfacela, pois a metrópole, incapaz de cumprir os termos da nova relação, pratica uma intermediação parasitária que encarece a importação das mercadorias manufaturadas. Por mais que as reformas burbônicas operem exclusivamente em prol da Espanha e dos espanhóis residentes nas colônias, um de seus resultados é a erosão da posição de todos os estratos da pirâmide criolla. As novas restrições entram em contradição com a metamorfose pela qual passa a estrutura social hispano-americana, até então dominada pelos peninsulares (funcionários, comerciantes e grandes proprietários), pelo clero e pelos latifundiários criollos, que sufocam os setores protoburgueses emergentes ligados ao comércio exterior e aos setores rurais oriundos da diversificação da estrutura agrária. No caso das castas – limitadoras da mobilidade dos grupos étnico-sociais dedicados ao trabalho artesanal e a diversos ofícios e empregos desempenhados por brancos pobres, mestiços, mulatos e negros livres –, as reformas criam uma situação que impossibilita a ascensão não apenas no interior de cada uma delas, mas também transfere aos filhos o status alcançado pelos pais. Tudo isso vai constituindo um caldo de cultura para a guerra de independência. A formação da consciência “nacional” americana e o desenvolvimento da ideologia “nacionalista”, que refletem a cultura e as aspirações políticas, econômicas e sociais de seus portadores, se aceleram com as lutas independentistas e levam à “formação das nações latino-americanas”. Este é um processo muito complexo, porque junto às contradições existentes entre as metrópoles ibéricas e suas respectivas colônias – que se manifestam no antagonismo entre os peninsulares, encarregados da manutenção do monopólio comercial, e as camadas criollas altas e médias, interessadas no livre 188 Curso de Formação em Política Internacional.p65 188 5/6/2007, 12:41 Roberto Regalado comércio – há outras contradições: entre as elites – peninsulares e criollas –, detentoras do poder econômico, e os escravos negros, a população indígena e mestiça, e os demais setores produtivos sobre cujos ombros recai o peso da economia colonial. Por conseguinte, não se trata apenas de uma crise da relação de “dominação política e de exploração econômica” existente entre metrópoles e colônias, mas também das “estruturas socioeconômicas coloniais baseadas na polarização social e na regulamentação racial”. Seria impossível tentar traçar aqui até mesmo um esboço da guerra de independência hispano-americana. Basta assinalar que a contenda divide-se em duas etapas (de 1808 a 1815, e de 1816 a 1825) e que são diferentes as características da luta no México, na América Central e nos atuais territórios da Venezuela, da Colômbia, do Equador e da Bolívia – onde Bolívar é a principal figura –, e no Chile, na Argentina, no Uruguai e no Paraguai – onde a preeminência cabe a San Martín. Em essência, se no México a rebelião liderada por Miguel Hidalgo e José María Morelos tem início como um genuíno movimento popular, nos demais países da América hispânica ela é conduzida pelas elites criollas, interessadas na independência como forma de conservar o status quo socioeconômico. Neste sentido, destacam-se Venezuela e Nova Granada, até que na segunda etapa da guerra os setores populares se incorporam ao Exército Libertador, e o próprio Simón Bolívar dá uma guinada programática antiescravagista e com medidas favoráveis aos humildes. O enfrentamento entre os dois pólos – o oligárquico e o progressista – é a marca dos movimentos independentistas no rio da Prata. Já na América Central predominam as elites criollas aferradas ao poder metropolitano por temer uma insurreição popular como a que ocorreu no México. Na etapa final das lutas de independência, estas elites mexicanas e centro-americanas se somam ao processo quando seu desenlace torna-se óbvio e inevitável. A independência do Brasil está estreitamente vinculada à invasão francesa de Portugal, pois essa colônia luso-americana foi o lugar de refúgio da corte de D. João VI, fato que representa o estabelecimento de uma autonomia virtual, favorável aos interesses da aristocracia criolla. Com o regresso da corte imperial a Lisboa, e com as tentativas dos liberais portugueses de reativar a relação colonial com o Brasil, D. Pedro de Bragança, filho do imperador, apoiado pela aristocracia brasileira, rompe os vínculos com a metrópole em 7 de setembro de 1822 e se autoproclama imperador do 189 Curso de Formação em Política Internacional.p65 189 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Brasil. O novo império brasileiro se consolida em 1824, após a derrota das forças colonialistas portuguesas e da rebelião republicana de Pernambuco. Com a independência da América Latina (Hernández et alii, 1981), essa região conformada pela antiga América hispânica e pelo Brasil muda seu status de apêndice “colonial” para o de apêndice “neocolonial” do capitalismo. A isso se soma o fracasso dos ideais acalentados por inúmeros patriotas de que a “independência” e a “integração política” fossem elementos indissolúveis da emancipação. Sua expressão primeira é o pensamento de Bolívar, que identifica na unidade da América Meridional a condição indispensável para derrotar o pan-americanismo “monroísta5” – a América para os (norte) americanos – promovido pelos governantes estadunidenses. As repúblicas surgidas do fim do império colonial espanhol na América não têm um desenvolvimento econômico e uma estrutura social capitalista capazes de servir de base para integrar e conformar a “unidade nacional” de regiões tão extensas e distintas. Não só é impossível criar uma nação hispanoamericana como fracassam até mesmo as tentativas de criar unidades estatais parciais: a Grande Colômbia (Venezuela, Nova Granada e Equador), a confederação peruano-boliviana e a Federação do Centro da América (Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua e Costa Rica). O antigo Vice-Reino do Rio da Prata (Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai) também se fragmenta. Outro é o curso dos acontecimentos no Brasil, onde o interesse em preservar a escravidão leva a aristocracia a dar apoio decisivo às forças militares do império dos Bragança (1822-1889), as quais consolidam a unidade nacional em 1848, depois de sufocar as guerras civis desencadeadas por vários movimentos separatistas e regionais, entre as quais se destaca a Guerra dos Farrapos (1835-1845), no Rio Grande do Sul. O panorama da independência se caracteriza pela fragmentação em repúblicas e pelo enfrentamento entre os territórios e povos com os quais Bolívar sonhava construir a unidade latino-americana. Essas repúblicas nas- 5 Monroísta refere-se à Doutrina Monroe, estabelecida pelo presidente dos Estados Unidos, James Monroe, em 1823, mediante sua célebre frase: “América para os americanos” – que, na realidade, queria dizer: América Latina para os norte-americanos. Monroe proclamava, assim, que os Estados Unidos não permitiriam a nenhuma potência européia colonizar ou recolonizar nenhum território do continente americano. 190 Curso de Formação em Política Internacional.p65 190 5/6/2007, 12:41 Roberto Regalado cem subdesenvolvidas, atadas pela dependência econômica, pelo intercâmbio desigual e pelo endividamento externo a metrópoles neocolonialistas. Em tais condições, destacam-se a participação do Estado na economia, que surge como o único ente capaz de captar créditos e mobilizar capitais, o uso do poder político como meio de apropriar-se de propriedades e riqueza, e o auge da violência e do militarismo (em suas variantes de ditadura militar e autoritarismo civil), como mecanismos indispensáveis para conter e reprimir a irrupção das contradições decorrentes da desigualdade social. A destruição ocasionada pela guerra e a substituição do sistema colonial espanhol pelo norte-americano ou britânico, conforme o caso, provocam uma crise econômica que exacerba as contradições inerentes à abolição da velha ordem e o surgimento das novas sociedades independentes, aqui inclusa a perseguição à qual são submetidos os funcionários, militares e clérigos do antigo regime. A violência generalizada e a fragilidade estrutural das novas repúblicas resultam na permanência da militarização, fato que, de um lado, se torna elemento democratizador, que permite a mobilidade social de índios, negros, mestiços e brancos pobres transformados em oficiais dos exércitos insurrectos, e, de outro, em freio para que essa democratização não se estenda além do inevitável. Em tais circunstâncias se estabelece um equilíbrio de poder desfavorável à cidade e favorável ao campo, em função da importância adquirida pelas massas rurais na conformação dos exércitos. Em vez de ocupar o lugar privilegiado que os peninsulares monopolizavam na colônia, as elites criollas urbanas ficaram empobrecidas pela destruição de suas propriedades e pela incapacidade de evitar que os britânicos se apropriassem do comércio de além-mar, o que resultou na perda de seu poder político e na diminuição de seu status social. Aqueles que antes ocupavam o topo da pirâmide social criolla tornam-se empregados das estruturas políticoadministrativas, do exército e dos latifundiários. Em contrapartida, os maiores vencedores são os latifundiários convertidos em generais, e os generais convertidos em latifundiários, cuja posse maior – a terra – não foi destruída pelo conflito, e que sob as novas circunstâncias exercem o controle das massas camponesas das quais depende o poder militar e, por conseguinte, o poder político. Neste contexto, registra-se a mudança do papel socioeconômico exercido pela Igreja devido ao seu empobrecimento, à substituição de bispos e sacerdotes fiéis à realeza por patriotas e à subordinação da Igreja ao poder 191 Curso de Formação em Política Internacional.p65 191 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional civil. Essa metamorfose se complementa com a limitada ascensão social das camadas inferiores das cidades e das zonas rurais de trabalho livre, com a obsolescência da escravidão e com a submissão da população negra a novas formas de discriminação e subordinação. 2. DO COLONIALISMO AO NEOCOLONIALISMO O desaparecimento dos impérios coloniais da Espanha e de Portugal abriu o caminho para o estabelecimento na América Latina de uma nova “forma de dominação e exploração”, o “neocolonialismo”, que responde ao desenvolvimento alcançado pelo sistema de produção capitalista. Assim como no transcurso dos séculos XVI, XVII e XVIII o colonialismo havia sido um esteio do processo de acumulação originário do capital, da manufatura e do incremento da indústria capitalista, no século XIX o neocolonialismo emerge como nova forma de dominação e exploração na etapa da Revolução Industrial, e consolida-se paralelamente à transformação do capitalismo pré-monopolista em capitalismo monopolista. Em essência, “o neocolonialismo foi o fundamento da metamorfose do capitalismo de livre concorrência em capitalismo monopolista e, por conseguinte, do surgimento e desenvolvimento do imperialismo”. O neocolonialismo se caracteriza pela independência institucional “formal” da nova colônia, que camufla a subordinação política e a dependência econômica em relação à metrópole. A grande potência que estabelece a dominação neocolonial sobre a maioria dos antigos impérios luso e hispanoamericanos, especialmente na América do Sul, é a Grã-Bretanha. Não obstante, à medida que seu emergente poderio lhe permite, os Estados Unidos impõem seu domínio ao México e à América Central. Na América Latina, o neocolonialismo não é assegurado imediatamente após a conclusão do processo de independência do subcontinente (1825), e sim por volta de duas décadas e meia mais tarde. Essa demora se constitui em um dos fatores determinantes das diferenças existentes entre a dominação colonial e a neocolonial. Após um longo processo de formação de uma “consciência nacional”, de 15 anos de guerra contra o colonialismo na América hispânica e de mais de 25 anos de existência como repúblicas independentes, não era possível à América Latina reproduzir com a Grã-Bretanha e os Estados Unidos a mesma relação que antes mantinha com as metrópoles ibéricas. 192 Curso de Formação em Política Internacional.p65 192 5/6/2007, 12:41 Roberto Regalado A demora da Grã-Bretanha em consolidar seu domínio neocolonial na América Latina deveu-se ao fato de a Revolução Industrial ter açambarcado quase todos os capitais disponíveis no país até a década de 1870. A economia britânica naquele momento precisava “verter quantidades relativamente constantes de produtos industriais” nos mercados de seus sócios comerciais, enquanto a América Latina permanecia “um mercado com capacidade de consumo muito variável” (Hernández, 1984). No que diz respeito aos Estados Unidos, o atraso derivava do fato de o país ter estado imerso até 1853 em sua própria expansão territorial. A partir deste ano, o neocolonialismo torna-se a forma empregada pela potência emergente para impor sua dominação aos territórios da bacia do Caribe que não pode anexar em virtude da resistência dessas nações e da oposição britânica. O afiançamento da dominação neocolonial britânica na América do Sul ocorre entre 1850 e 1873. Durante essa etapa amplia-se a demanda européia de produtos tradicionais latino-americanos, abre-se o mercado europeu a seus produtos não-tradicionais e se estabelece um fluxo de capitais que inclui investimentos metropolitanos no comércio e nos transportes, logo ampliado a outros setores, e créditos aos governos. Ainda que a crise econômica de 1873 retraia as importações européias e interrompa os créditos dos quais dependem os governos latino-americanos para funcionar e saldar as dívidas anteriores, a relação econômica neocolonial consegue superar esse obstáculo e atingir a maturidade a partir de 1880, etapa correspondente à transformação do “capitalismo de livre concorrência” em “capitalismo monopolista”, que tem como uma de suas características a exportação de capitais. A relação neocolonial que se consolida a partir de 1880 baseia-se em uma divisão do trabalho em virtude da qual a América Latina exporta matérias-primas e alimentos e importa produtos industriais. Paulatinamente vai se reduzindo o componente perecível dessa importação em favor de bens de capital, produtos da nova metalurgia e combustíveis. Na maturidade do neocolonialismo, a divisão do trabalho se modifica em favor das potências industriais. Inclusive lá onde as elites criollas retêm o controle da produção primária, a dependência se acentua como resultante da monopolização financeira, mercantil e tecnológica, ao passo que a demanda de capital no setor primário estimula a penetração externa. O 193 Curso de Formação em Política Internacional.p65 193 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional mesmo ocorre com a construção de estradas de ferro, frigoríficos, silos e usinas açucareiras. Os grandes latifundiários, que se fortaleceram em razão da guerra de independência, têm seu poder econômico erodido pelo papel predominante que assumem os investidores e comerciantes metropolitanos. Com ritmos que variam de país a país, vão surgindo classes médias urbanas que reivindicam cada vez mais e setores operários que conquistam seu próprio protagonismo social. Embora os mercados europeus de exportação tendam a se diversificar durante a maturidade do neocolonialismo, a Grã-Bretanha se afirma como a principal fornecedora mercantil da América do Sul e mantém o controle dos sistemas bancário e financeiro sobre os quais se sustenta o comércio da região com outros países. De modo que ela é a principal metrópole neocolonial da América Latina quando, em 1889-1890, celebra-se a Conferência Internacional Americana de Washington, primeira tentativa do nascente imperialismo norte-americano de criação de um sistema de dominação continental. Desde a independência (1776), os chamados pais-fundadores dos Estados Unidos da América assentam as bases da expansão territorial e da dominação colonial e neocolonial características das relações do imperialismo norte-americano com o restante do continente. Já em 1777, o então embaixador Benjamin Franklin promove o assentamento de colonos na Louisiana com fins de anexação. Quando, em 1809, em Quito, se produz o Primeiro Grito de Independência da América Hispânica, os Estados Unidos já haviam invadido a Flórida oriental (1795), comprado da França a Louisiana (1803), realizado a primeira tentativa de anexação de Cuba (1803), atacado, durante anos, os postos espanhóis no rio Grande e na Louisiana ocidental, enviado expedições contra o Texas e a Califórnia, e despojado 20 milhões de hectares de terra dos indígenas. Quando culminam as lutas independentistas na América do Sul (1825), já havia ocorrido a segunda tentativa de anexação de Cuba e a primeira de Porto Rico (1811); a Espanha já havia entregado a Flórida ocidental e a oriental (1819), o México (independente desde 1821) sofria a política de “fronteira móvel”, John Quincy Adams havia promovido um pacto com a GrãBretanha e a França para evitar a libertação de Cuba e de Porto Rico, e já havia sido proclama a Doutrina Monroe (1823). 194 Curso de Formação em Política Internacional.p65 194 5/6/2007, 12:41 Roberto Regalado Até 1825, os Estados Unidos mantiveram uma suposta política de neutralidade diante da Guerra de Independência hispano-americana, que, entretanto, não os impediu de vender armas e munições à Espanha. Depois da independência latino-americana, ocorrem a sublevação do Texas (1832), o reconhecimento de sua independência pelo governo dos Estados Unidos (1837), a “consumação” do “Destino Manifesto” (de expansão até o oceano Pacífico), “legitimado” em 1848 com o Tratado de Guadalupe–Hidalgo, no qual o México cede o Texas, o Novo México e a Califórnia. Finalmente, após a fracassada tentativa do flibusteiro William Walker de arrebatar mais territórios do México, o governo dos Estados Unidos impõe a chamada “compra de Gadsen” (1853), a partir da qual fica estabelecida a atual fronteira entre os dois países. Apesar de alguns “pioneiros” sonharem com a expansão dos Estados Unidos não só do Atlântico ao Pacífico, mas também da costa do mar Ártico até o cabo Horn, depois de sete décadas de conquistas, desapropriações, compras e anexações, em 1853 conclui-se, no que é fundamental, a conformação da massa territorial da nascente potência, e passa então para o primeiro plano a disputa da dominação colonial e neocolonial exercida pela Espanha, pela Grã-Bretanha e por outras metrópoles européias no resto do continente. A expansão territorial dos Estados Unidos se completa com a incorporação dos estados do Alasca (comprado da Rússia em 1867) e do Havaí (anexado em 1898 e integrado à União em 1990). No entanto, desde a década de 1850, a resistência dos povos mexicano e centro-americano e a oposição britânica à ocupação e à anexação de novos territórios os obrigam a limitar a ampliação de seu domínio principalmente mediante o neocolonialismo. Essa ampliação, executada por meio de intervenções militares, da imposição de governantes e corpos repressivos submissos, e de todo tipo de pressões políticas e econômicas, começa a ser aplicada na bacia do Caribe para logo se estender para a América do Sul, na medida em que o incremento do poder do imperialismo norteamericano lhe permite disputar o controle que sobre essa região exerce o imperialismo britânico (Hernández, 2002). A primeira ingerência do governo estadunidense na América Latina e no Caribe é representada pela ajuda dada à França pelo presidente George Washington, em 1791, para que enfrente o despertar da Revolução Haitiana. 195 Curso de Formação em Política Internacional.p65 195 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Apesar da independência deste país ter se efetivado em 1804, as autoridades dos Estados Unidos só reconheceram a República do Haiti em 1862. No transcurso de pouco mais de um século, a partir de então até a guerra hispano-cubano-norte-americana, são numerosos os registros de atos de ingerência e intervenção estadunidense nas lutas de independência das nascentes repúblicas latino-americanas e em seus assuntos internos. Entre esses atos destacam-se as violações cometidas por William Walker na América Central entre 1855 e 1860. O governo dos Estados Unidos recorre freqüentemente ao argumento da defesa de vidas e propriedades de cidadãos estadunidenses para justificar sua intervenção militar na região. A principal ação expansionista do imperialismo norte-americano na transição do século XIX para o século XX é a intervenção na guerra de independência de Cuba contra a Espanha (1898) – que Lenin considera a primeira guerra de caráter imperialista –, em virtude da qual rouba do Exército Libertador a derrota que estava a ponto de infligir à metrópole, ocupa Cuba e estabelece seu domínio colonial sobre Porto Rico, Filipinas e Guam (Huntington, 1994). Outro acontecimento emblemático desse período é a subscrição do Tratado Hay–Pauncefote entre Estados Unidos e Grã-Bretanha, que deixa sem efeito acordos anteriores e autoriza os primeiros a construir um canal interoceânico no istmo centro-americano. Esse tratado representa o reconhecimento implícito de uma divisão das esferas de influência dos imperialismos anglo-saxões no continente: a Grã-Bretanha e outras potências européias aceitam a dominação estadunidense sobre as nações latino-americanas ao norte do rio Amazonas, enquanto os Estados Unidos concordam – momentaneamente – em respeitar o status quo das colônias européias do Caribe e o império neocolonial britânico no restante da América do Sul (Ianni, 1995). Nos primeiros anos do século XX, o presidente Theodore Roosevelt (19011909), artífice da política do Big Stick (grande porrete)6, elabora, entre 1903 e 1906 (Kanoussi, 1996), o conhecido Corolário Roosevelt da Doutrina Monroe, que afirma o direito exclusivo do imperialismo norte-americano de praticar a força para obrigar as repúblicas latino-americanas a saldar 6 A política do big stick (grande porrete), do presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt (1901-1909), refere-se à aplicação de uma política de força, de ingerência e intervenção. A frase é de T. Roosevelt: “fale suavemente, mas carregue um grande porrete (big stick)”. 196 Curso de Formação em Política Internacional.p65 196 5/6/2007, 12:41 Roberto Regalado suas dívidas internacionais. Durante seu mandato ocorrem: a secessão forçada do Panamá (1903), que desconhece a negativa da Colômbia à construção do canal interoceânico; a invasão militar da República Dominicana (1904), que dá lugar à intervenção alfandegária desse país (1905-1912); a segunda ocupação de Cuba (1906-1909); a interposição da infantaria da marinha com o propósito de obter dividendos políticos das guerras desencadeadas entre Guatemala e El Salvador (1906), e entre Honduras e Nicarágua (1907); as ações intervencionistas que levam à renúncia do presidente Santos Zelaya na Nicarágua (1909). O sucessor de Theodore Roosevelt, William Taft (1909-1913), protagoniza a intervenção militar em Honduras para derrotar o presidente Miguel Dávila (1911), a intervenção militar na Nicarágua para frustrar a rebelião encabeçada por Benjamín Zeledón (1912), e dá início à política de ameaças, pressões e agressões com vista ao enfraquecimento da Revolução Mexicana (1910-1917). Entre 1913 e 1921, etapa da chamada “diplomacia missioneira” de Woodrow Wilson, com o pretexto de “promover a democracia” e “frear a penetração alemã”, o governo dos Estados Unidos amplia a ingerência nos assuntos internos mexicanos, ocupa militarmente o Haiti e intervém na alfândega do país (1915-1934), ocupa a República Dominicana (19161924), intervém no Panamá (1918), apóia golpes de Estado e ditaduras civis e militares em países da América Central e do Sul, e aproveita-se da Primeira Guerra Mundial para consolidar seu domínio político, econômico e militar na bacia do Caribe e para deslocar da América do Sul os capitais da Alemanha e de seus aliados. Em decorrência do impasse provocado pela Primeira Guerra Mundial, com a desculpa de um suposto abandono do intervencionismo e de um maior respeito à soberania das nações latino-americanas, a política dos presidentes Warren Harding (1921-1923), Calvin Coolidge (1923-1929) e Herbert Hoover (1929-1933) durante a denominada “restauração republicana” caracteriza-se pelo apoio às ditaduras militares – implantadas para conter as lutas populares desencadeadas pela crise – e por uma política que busca tirar proveito dos conflitos de natureza diversa existentes entre e no interior de várias nações. Ao longo desses anos há várias intervenções militares: uma no Panamá, para reprimir protestos populares (1921); duas em Honduras, para se “interpor” à guerra travada por forças políticas em conflito (1923 e 1924); 197 Curso de Formação em Política Internacional.p65 197 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional e uma na Nicarágua (1926), a qual se transforma em enfrentamento contra o “Pequeño Ejército Loco” do general Augusto C. Sandino. Em síntese, o imperialismo norte-americano se concentra em assegurar seu domínio político, econômico e militar sobre o México, a América Central, a franja norte da América do Sul e as nações independentes do mar do Caribe, até que a crise de 1929-1933 quebra o sistema colonial britânico e lhe abre o caminho para os demais países da América Latina. Ainda que a Grande Depressão golpeie fortemente os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, seu efeito nas relações das duas potências com a América Latina é diferente. Isso se deve a que a dominação estadunidense se baseia mais na proximidade geográfica e na força militar – elementos que não se alteram com a crise –, ao passo que, no caso britânico, a dominação depende de sua capacidade de manutenção da supremacia comercial e financeira. Durante o período compreendido entre a Grande Depressão e o final da Segunda Guerra Mundial transcorre a presidência de Franklin Delano Roosevelt (1930-1945), que aplica a chamada política da boa vizinhança, durante a qual não se registram intervenções militares norte-americanas na América Latina e no Caribe. Roosevelt interage tanto com as ditaduras civis e militares como com os governos liberais constitucionalistas de orientação progressista. A política da boa vizinhança preconiza que o governo dos Estados Unidos renuncie à intervenção armada contra as repúblicas latinoamericanas. Essa política começa a ser aplicada depois de o imperialismo norte-americano haver instalado nos governos dos países da bacia do Caribe, que antes invadia, ditadores e guardas nacionais dóceis, como foi o caso de Anastácio Somoza, na Nicarágua, e Rafael Leonidas Trujillo, na República Dominicana. Essa mudança formal da política neocolonial não abriu mão das sanções econômicas e políticas. Não obstante, embora tenham sido muitas as pressões exercidas pelo governo Roosevelt em represália à nacionalização do petróleo mexicano, decretada por Lázaro Cárdenas, a situação internacional, do México e dos próprios Estados Unidos, o impediu de recorrer à usual agressão militar de seus predecessores. Independentemente da situação de cada país, a resposta das classes dominantes diante da ampliação das lutas populares e das demandas por uma maior democratização é a tentativa de estabelecer um equilíbrio social por meio tanto do liberalismo constitucional como da ditadura militar ou civil, 198 Curso de Formação em Política Internacional.p65 198 5/6/2007, 12:41 Roberto Regalado em todos os casos com uma base de apoio político sustentada na convergência de interesses dos setores sociais urbanos em detrimento dos rurais. No caso dos países de maior desenvolvimento político, econômico e social relativo, tais como Argentina e Chile, onde era possível assimilar seletivamente certas demandas das camadas médias e do proletariado, a resposta foi o liberalismo constitucional. No entanto, contra o liberalismo conspirava a quase nula incorporação do campo – em que a oligarquia latifundiária conservadora exercia o controle das massas rurais empobrecidas – à vida políticoeconômica nacional. Entre as soluções liberais aplicadas antes e durante a Segunda Guerra Mundial destacam-se: na Colômbia, os governos de Enrique Olaya (19301934) e Alfonso López Pumarejo (1934-1938 e 1942-1946); no México, o sexênio do governo de Lázaro Cárdenas (1934-1940) – durante o qual a política nacionalista revolucionária atingiu o ápice – e o de Miguel Ávila Camacho (1941-1946); no Chile, o governo da Frente Popular, encabeçado por Pedro Aguirre (1938-1942), e o da Aliança Democrática, presidido por Juan Antonio Ríos (1942-1946); na Costa Rica, os governos de Ángel Calderón (1940-1944) e Teodoro Picado (1944-1948), de cuja aliança participou o Partido Vanguardista Popular (comunista). Por outro lado, entre os projetos populistas destacam-se: no Brasil, o governo de Getúlio Vargas (1930-1945), em particular posteriormente a 1937, ano em que rompe a aliança com o Partido Integralista (fascista); e na Argentina o golpe de Estado (1943), a partir do qual ganha relevância a figura de Juan Domingo Perón, eleito constitucionalmente à presidência em 1946. Não é possível passar ao largo de 1944, ano em que, na Guatemala, é derrotada a ditadura de Juan José Ubico, o que, um pouco mais tarde, abre o caminho para a fase dos dois governos antiimperialistas encabeçados por Juan José Arévalo (1945-1950) e Jacobo Arbenz (1951-1954), respectivamente. Para finalizar, no pós-crise de 1929 destacam-se o início das ditaduras de Rafael Leonidas Trujillo, na Republica Dominicana (1931-1960), e o da dinastia implantada por Anastácio Somoza García (1936-1979), na Nicarágua (Kissinger, 1984). O imperialismo norte-americano se aproveita do clima internacional existente antes do início e durante o desenrolar da Segunda Guerra Mundial para frear e reverter a penetração de capital europeu na América Latina – em especial alemão e italiano – e para apropriar-se do setor de mineração da 199 Curso de Formação em Política Internacional.p65 199 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional região. Contudo, não se pode dizer o mesmo do setor industrial, que permanece sob o controle das burguesias desenvolvimentistas. Até este ponto havia avançado a dominação política, econômica e militar do imperialismo norte-americano sobre a América Latina, no momento em que o desenlace da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria provocaram mudanças radicais na situação internacional. A Segunda Guerra Mundial modifica a configuração de um sistema de relações internacionais que antes havia sido obrigado a acomodar-se com os resultados da conflagração de 1914-1918 e da crise de 1929-1933. Entre esses resultados destacam-se a destruição da Europa, a ascensão dos Estados Unidos à condição de primeira potência imperialista mundial, o surgimento do mundo bipolar, a partir da expansão do socialismo às nações da Europa Oriental. Desta combinação de elementos se origina a Guerra Fria (19461989), ofensiva universal – ideológica, política, econômica, diplomática e militar – encabeçada pelo imperialismo norte-americano com o intuito de “conter o comunismo” e evitar, em especial, sua expansão para a Europa ocidental, berço das idéias do socialismo e do comunismo, cuja devastação ameaça servir de incentivo à luta popular. A expressão Guerra Fria é utilizada pela primeira vez por Bernard Baruch, assessor do presidente Harry Truman, em um discurso pronunciado no dia 16 de abril de 1946, em Columbia, no estado da Carolina do Sul. Ela é retomada posteriormente sob a forma de título do livro do jornalista Walter Lippman, e também em um famoso discurso do primeiro-ministro britânico Winston Churchill. Nesse ano, o presidente Truman promulga a Lei de Segurança Nacional – que dispõe sobre a criação do Conselho de Segurança Nacional e da Agência Central de Inteligência (CIA) – e anuncia o lançamento do Plano para a Reconstrução da Europa, ou Plano Marshall. A partir deste momento, a noção de “segurança nacional” se converte em um dogma inapelável, justificativa para todo tipo de ação de força interna e externa. A Guerra Fria se constitui no principal instrumento do imperialismo norte-americano para ampliar e aprofundar sua dominação na América Latina, processo que avança mais rápido nos âmbitos político e militar do que no econômico. Isso se deve ao fato de que a prioridade norte-americana é a reconstrução da Europa ocidental. Para essa região reorienta o grosso de suas exportações de capitais, tanto para restabelecer a capacidade produtiva 200 Curso de Formação em Política Internacional.p65 200 5/6/2007, 12:41 Roberto Regalado de seu principal parceiro econômico e comercial como para convertê-la em um “bastião anticomunista”. De modo que, mesmo que os Estados Unidos tirem partido de sua supremacia mundial para expandir a penetração econômica monopolista na América Latina, os capitais disponíveis para tal empreitada são limitados. A Doutrina Truman é a encarnação da política da Guerra Fria na América Latina. Com o pretexto de combater a “ameaça do comunismo”, durante sua presidência (1945-1952), Truman lança uma ofensiva destinada à destruição de todas as forças políticas latino-americanas tidas como obstáculo à ampliação e ao aprofundamento de seu domínio continental. Essa política se aplica especialmente contra os partidos comunistas e outras organizações socialistas, progressistas e democráticas que haviam participado das chamadas frentes populares antifascistas promovidas pela União Soviética. A atuação de diversos governos foi conseqüente com a Doutrina Truman: na Colômbia, os governos de Mariano Ospina (1946-1950) e Carlos Urdaneta (1950-1953); no Brasil, o de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951); no Chile, o de Gabriel González Videla (1947-1952); no México, o de Miguel Alemán (1946-1952); no Equador, o de Galo Plaza (1948-1952); na Costa Rica, os de José Figueres (1948-1949) e Otilio Oñate (19491953); no Peru, a ditadura de Manuel Odría (1948-1956); e na Venezuela a ditadura de Marcos Pérez Jiménez. A Guerra Fria na América Latina encontra continuidade na política do presidente Dwight Eisenhower, cuja principal ação de força na região foi a derrubada do governo de Jacobo Arbenz na Guatemala, em 1954. Além do golpe contra Arbenz e de sua substituição pela ditadura de Carlos Castillo Armas (1954-1957), Eisenhower também estimulou a queda dos governos de Getúlio Vargas no Brasil (1954), de Juan Domingo Perón na Argentina (1955) e de Federico Chaves no Paraguai, dando origem à ditadura de Alfredo Strossner (1956-1989). Ao mesmo tempo contribuiu para debilitar os conteúdos da Revolução Boliviana nos governos de Víctor Paz Estensoro (1952-1956) e de Hernán Siles Suazo (1956-1960). Também neste período tem início a ditadura de Jean Claude Duvalier no Haiti. Finalmente, em razão do triunfo da Revolução Cubana em janeiro de 1959, Eisenhower ordena a criação de um plano de agressão seme201 Curso de Formação em Política Internacional.p65 201 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional lhante ao empregado contra o governo de Arbenz. A execução desse plano levou, em abril de 1961, seu sucessor, o presidente John F. Kennedy, à derrota na invasão de Playa Girón (baía dos Porcos). (Tradução Mila Frati) BIBLIOGRAFIA HAVAS, Peter. “Los conflictos sociales del capitalismo, la lucha de clases en la ideología y en la política de la socialdemocracia”. In Memorias del Seminario Internacional Proyección de la socialdemocracia en el mundo actual. Tomo 1. Havana, 6-9 out. 1981. HAYEK, Friedrich. La fatal arrogancia: los errores del socialismo. Madri, Unión Editorial, 1990a. _____. Camino de servidumbre. Madri, Alianza Editorial, 1990b. HELLER, Heller. “Las relaciones militares entre Estados Unidos y América Latina: un intento de evaluación”. Nueva Sociedad, n. 27, Caracas, 1976. HERNÁNDEZ, Jesús. “América Latina–Estados Unidos: el nudo de la crisis económica”. Cuadernos de Nuestra América, vol. I, n. 2, Centro de Estudios sobre América Latina, Havana, 1984. HERNÁNDEZ, Jorge. “Hegemonía y política latinoamericana de Estados Unidos en la era del ALCA”. Cuba Socialista, n. 26, Havana, 2002. 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Comentaremos aqui algumas questões que pautam o debate sobre as particularidades da formação social brasileira. Para efeito didático, as agruparemos em quatro campos interligados: a inserção do Brasil no sistema econômico mundial; a configuração territorial e populacional; a identidade cultural; e a integração social e política. A discussão sobre a natureza da relação entre o Brasil e a economia mundial foi intensa ao longo do século XX, particularmente a partir da difusão das idéias marxistas no país. Posteriormente, aprofundou-se, em função do papel destacado que pensadores brasileiros, como Celso Furtado, tiveram no desenvolvimento da chamada teoria da dependência e do debate que se seguiu sobre as limitações presentes nessa teoria. No que diz respeito às forças políticas de esquerda, esse debate teve sempre impacto decisivo, pois a caracterização da economia nacional e de sua relação com o sistema capitalista mundial assumia um papel determinante na definição das opções referentes a programa, estratégia, política de alianças etc. Tomando apenas um exemplo, a avaliação de que o país seria marcado pela sobrevivência de “restos feudais”, ou que determinados setores da burguesia nacional estariam vinculados ao ascendente imperialismo norte-americano, enquanto outros representariam os interesses do decadente imperialismo britânico, teve, por um longo período, um papel decisivo na justificativa das linhas políticas adotadas pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). 1 Professor de História Contemporânea da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. 203 Curso de Formação em Política Internacional.p65 203 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Consideramos que estas discussões foram, em grande medida, obscurecidas pela influência de um fenômeno que foi contemporâneo ao desenvolvimento do pensamento marxista na Europa do século XIX e que se estabeleceu como padrão mundial especialmente a partir do final da Segunda Guerra Mundial: a naturalização da idéia de Estado nacional. Ou seja, a visão de que a existência de Estados com domínios territoriais mutuamente excludentes, baseados na idéia de que representam um povo ou uma cultura homogêneos (ou a hegemonia interna de determinado povo sobre “minorias”), é um resultado “natural” da evolução histórica. Visto desta perspectiva, o capitalismo, por exemplo, tende a ser compreendido como um sistema que surge em primeiro lugar “dentro dos Estados”, para a seguir, com base nos graus distintos de desenvolvimento, gerar relações de subordinação e hierarquia “entre os Estados”. Assim, economias nacionais mais desenvolvidas tendem a ser vistas como modelos, e as “lacunas” ou “imperfeições” dos países periféricos diante desses modelos a ser vistas em termos de incompletude do “capitalismo nacional”. Essas abordagens têm sido criticadas, desde a década de 1970, por teorias como as do “sistema-mundo”, elaboradas inicialmente por Imanuel Wallerstein, e que tiveram sua versão mais recente sistematizada em O longo século XX, de Giovanni Arrighi (1997). Retomando idéias de historiadores da “longa duração”, como Fernand Braudel, a teoria do “sistema-mundo” vê o capitalismo, desde as origens, como um sistema internacional cujo desenvolvimento implica a própria criação de diferentes modelos de “Estado” e “empresa” como vetores complementares. Estado nacional e corporações multinacionais seriam, portanto, apenas a versão mais recente de uma divisão de papéis que, nos séculos XVII e XVIII, por exemplo, foi desempenhada predominantemente por impérios coloniais e companhias de comércio, como as das Índias Ocidentais e Orientais. O capitalismo, nessa perspectiva, não é entendido como uma realidade estabelecida a partir de determinado momento, em ruptura com um passado “feudal” ou “pré-capitalista”, mas sim como um processo marcado pela tendência progressiva à acumulação ilimitada de riquezas e à subordinação do conjunto das relações sociais à produção e circulação de mercadorias. Ele evolui, desde o final do século XV, em diferentes estágios marcados pela 204 Curso de Formação em Política Internacional.p65 204 5/6/2007, 12:41 Alexandre Fortes expansão de esferas econômicas mundiais, integradas por centros hegemônicos que se sucedem em distintos momentos (cidades-Estado do norte da Itália, da Holanda, da Inglaterra, dos Estados Unidos). Nesse sentido, mais do que olhar a história para pensar as insuficiências do Brasil como país capitalista, trata-se de pensar o papel que ele, desde as suas origens, desempenhou no desenvolvimento do capitalismo mundial e como, em grande medida, esse papel moldou os contornos da construção de seu espaço nacional. Não se trata, como apontam os críticos da escola dos “sistemas-mundo”, de ignorar ou desprezar a dinâmica interna do país e seu grau de autonomia relativa, mas sim de não tomar como ponto de partida uma unidade nacional que veio a existir em função da conjunção de interesses e iniciativas que só podem ser compreendidos a partir de processos internacionais. Portugal, um Estado europeu frágil e periférico, beneficiou-se de sua posição geográfica privilegiada e de sua unificação política precoce em um Estado absolutista para lançar-se a um empreendimento de vanguarda no final do século XV: a exploração marítima do Atlântico Sul em busca das valiosas rotas que levavam às especiarias do Oriente. Inicialmente, o modelo do império colonial português caracterizou-se, portanto, pelo estabelecimento de entrepostos em pontos estratégicos ao longo das costas do Brasil, da África e de diversos pontos da Ásia, que forneciam suporte logístico às rotas comerciais. Alguns desses pontos evoluíram no sentido da colonização territorial, na medida em que existisse a possibilidade de exploração de alguma atividade econômica local. No Brasil, apesar da frustração inicial com a existência de minerais preciosos próximos à costa, a exploração do pau-brasil possibilitou a primeira base para uma presença mais efetiva. Mas os dois elementos que viabilizaram o aproveitamento do imenso potencial territorial do Brasil – plenamente percebido poucas décadas após a “descoberta” – foram a cana-de-açúcar e a escravidão africana. Em termos retrospectivos, essa base econômica pode ser facilmente identificada como primária e arcaica, mas não era essa a realidade do período. Em primeiro lugar, na produção açucareira – um dos sistemas produtivos mais complexos do mundo nos séculos XVII e XVIII – podemos já perceber em estágio embrionário algumas das características da nova economia que se generalizaria a partir da Revolução Industrial. De um lado, o surgimento de novos 205 Curso de Formação em Política Internacional.p65 205 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional ramos econômicos não apenas a partir da mudança nos métodos de produção de mercadorias já existentes, mas sim pela oferta em escala crescente de mercadorias até então inexistentes, que constituem inicialmente um mercado de elite e, posteriormente, se expandem como bens de consumo de massas. De outro, a demanda, gerada por esse processo, de um fluxo de suprimento de mão-de-obra comercializável, livre dos constrangimentos de relações costumeiras e direitos tradicionais, inicialmente na forma da escravização de nativos, posteriormente pelo imensamente mais rentável comércio de africanos, finalmente pela criação da propriedade privada da terra e pela generalização do trabalho livre. As entradas e bandeiras, viabilizadas inicialmente pelo interesse econômico no mercado de escravos indígenas, reverteram por fim na descoberta de jazidas de metais preciosos, gerando um avanço no que diz respeito à maior integração territorial, à urbanização e à diversificação econômica. O ouro brasileiro financiou a crescente dependência portuguesa em relação à produção manufatureira e ao poderio naval britânicos, e junto com os lucros da exploração imperialista do algodão indiano contribuiu decisivamente para a transformação de Londres em um centro financeiro relevante. Do ponto de vista doméstico, a importância dos novos centros mineradores levou ao deslocamento da capital de Salvador para o Rio de Janeiro, numa posição de muito maior centralidade em relação aos limites territoriais que passavam a ser renegociados a partir de diversos tratados com a Espanha, substituindo as limitações iniciais, estabelecidas em Tordesilhas, em 1494, antes portanto da própria chegada dos portugueses à América. A ocupação efetiva do território, tanto no sentido econômico como no político, expandiu-se progressivamente para o oeste, à custa do extermínio, do recuo para o interior ou da desestruturação do modo de vida das populações indígenas. Configurava-se gradualmente a imagem de um país continental, em vez de uma mera faixa litorânea. Além disso, as demandas da produção mineradora e das novas concentrações populacionais geraram o primeiro esboço do que seria um mercado interno, fosse para as mulas criadas no Rio Grande no Sul ou para o gado do Piauí. Não surpreende, portanto, que a primeira manifestação de destaque da consciência nacional, como percepção de interesses da Colônia distintos dos da Metrópole, tenha sido a Inconfidência Mineira. 206 Curso de Formação em Política Internacional.p65 206 5/6/2007, 12:41 Alexandre Fortes Mas se Portugal passava de um papel desbravador, nas navegações e na produção açucareira, a uma tendência à estagnação, perceptível já na dependência diante da Holanda para o refino do açúcar e depois no escoamento dos lucros da mineração para os cofres britânicos, não deixa de ser notável o bem-sucedido esforço de preservação e consolidação do imenso território da Colônia por uma tão diminuta Metrópole. O estabelecimento do governo-geral já em 1548, o combate às incursões e ocupações de franceses e holandeses, a destruição das missões jesuítas, entre outras iniciativas, viabilizaram a unidade territorial e eliminaram poderosos riscos à soberania da Coroa. É bem verdade que Portugal alternou momentos de descentralização e centralização na gestão do Brasil – como continuaria a ocorrer com o governo central do país após a independência –, e que o poder local era deixado em grande medida nas mãos dos latifundiários, mas o fato é que, afora revoltas esporádicas de pequeno alcance, sua autonomia permaneceu dentro de limites bastante estreitos. Essa proeza de preservação da integridade da Colônia apesar da decadência da Metrópole, em certo sentido, atingiria seu auge quando, em 1808, acossada pela ocupação da Península Ibérica pelas tropas napoleônicas, a corte portuguesa transferiu-se para o Brasil, elevando-o posteriormente à condição de sede do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve. Se de um lado esse movimento, associado à abertura dos portos às nações amigas – leia-se Inglaterra –, implicava a renúncia final ao monopólio colonial e gerava a singularidade de uma nação americana que sediava um império ultramarino, de outro garantiu a transição para a independência política com a preservação dos interesses portugueses e, mais uma vez, eliminou qualquer risco de fragmentação, como já se percebia ser a tendência na América Espanhola. O historiador Kenneth Maxwell apontou como, ao contrário da imagem caricatural de D. João VI legada à história, o processo de criação do Reino Unido e as subseqüentes iniciativas que visavam resolver a questão da Cisplatina (atual República Oriental do Uruguai) e do Amapá, a fim de consolidar respectivamente as fronteiras sul e norte, revelam habilidade e discernimento político. Já durante o Império, novas fontes de risco à integridade do território seriam eliminadas com o resultado das guerras platinas: a destruição de qualquer perspectiva de autonomia e fortalecimento do Paraguai e o surgimento do Uruguai como Estado neutro, interposto entre 207 Curso de Formação em Política Internacional.p65 207 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional o Brasil e a Argentina, vista a partir daí pelos nossos militares como única ameaça potencial na região. A oeste, a obra de delimitação dos contornos territoriais seria completada, já na República, pela diplomacia do barão do Rio Branco. Entretanto, essa proeza de expansão e manutenção de território assentava-se em uma base extremamente frágil no que diz respeito às dimensões e à distribuição populacional. As populações nativas, pela própria característica de seu modo de vida dedicado à caça, à coleta e à lavoura de coivara, não apresentavam densidade significativa. Além disso, a forma altamente predatória assumida pela colonização praticamente as dizimou. Aqui o contraste é total com a dominação espanhola, que praticamente acoplou suas estruturas políticas às bases anteriormente construídas pelos impérios précoloniais (inca, maia e asteca) e mostrou-se desde o início zelosa na imposição de limites à exploração da mão-de-obra que pudessem comprometer a integridade da população indígena. Além disso, no Brasil, a concentração populacional limitava-se às áreas das atividades econômicas principais, e essas, com a exceção parcial da mineração, tinham caráter extensivo. Ao mesmo tempo, pela própria lógica do sistema escravista, havia o temor de que o estímulo ao desenvolvimento de uma camada de camponeses pudesse comprometer o sistema, diante da imensa oferta de terras virgens. Por isso, os projetos de colonização com base na agricultura familiar foram desenvolvidos de forma controlada, ganhando maior fôlego a partir da chegada das primeiras levas de alemães ao Rio Grande do Sul, em 1824, após experiências fracassadas ou de alcance limitado no Espírito Santo e na serra fluminense. No Sul, e geração após geração, no rumo do Oeste e do Norte, revelou-se eficaz o assentamento de colonos oriundos de países com excedentes populacionais – como alguns dos Estados que viriam a formar a Alemanha e a Itália, além de regiões da Europa Oriental –, num sistema em que as terras são suficientes para uma geração, mas exigem que a próxima desbrave uma nova fronteira. Inicialmente o objetivo maior era formar uma segunda linha de defesa sem mexer com os pecuaristas que dominavam a metade sul do Rio Grande do Sul. Posteriormente, o sistema forneceu iniciativa e mão-de-obra barata para a transformação de áreas dominadas por vegetação nativa em terra cultivável, a ser posteriormente concentrada nas mãos de uma pequena elite dos agronegócios. 208 Curso de Formação em Política Internacional.p65 208 5/6/2007, 12:41 Alexandre Fortes 1. DINAMISMO CAFEEIRO A transformação do Brasil no principal produtor mundial de café por quase um século, a partir das experiências de plantio iniciadas nas primeiras décadas do século XIX, de um lado consolidou a integração territorial no centro do país, dada a adequação da terra roxa e do clima dos planaltos ao cultivo. Numa indicação tanto da clareza de intenções por detrás dessa “marcha para o Oeste” quanto da dificuldade de romper com a tradicional orientação no rumo do litoral, é interessante lembrar que desde o Império já se debatia a proposta de mudança da capital para uma posição central na nova configuração territorial do país, algo que apenas se materializaria em 1960 com a inauguração de Brasília. Do ponto de vista populacional, o café gerou maior densidade, tanto pela concentração de grandes plantéis de escravos nas várias áreas incorporadas à sua produção quanto pela expansão de núcleos urbanos a ela associada. Apesar das crises periódicas de superprodução, o dinamismo gerado pela expansão da demanda internacional por café, que, de moda entre a boêmia parisiense, se transformou em estimulante oficial do mundo industrial, tornou essa parte do país – do Vale do Paraíba ao oeste Paulista, passando pelo sul de Minas e pelo norte do Paraná, tendo como cabeça o complexo formado pela cidade de São Paulo e pelo porto de Santos – no cenário do que era, no século XIX, uma agricultura capitalista moderna, sobre cujas bases surgiriam, na virada para o século XX, os primeiros núcleos industriais significativos do país, ainda hoje, e não por coincidência, concentrados nessa região. Paradoxalmente, entretanto, esse dinamismo cafeeiro, combinado com a bem-sucedida engenharia política conservadora legada por Portugal, à qual se adaptou muito bem a emergente burguesia nacional, perpetuou por mais de meio século o sistema escravista – de 1831 a 1888 –, num processo de “emancipação gradual e controlada”. Isso apesar do combate ao tráfico, desencadeado pela potência internacional hegemônica, a Inglaterra – da qual o Brasil independente herdara o endividamento e a tutela antes já exercida sobre Portugal –, e da legislação nacional de banimento do comércio escravista adotada também sob pressão inglesa (as famosas leis “para inglês ver”). 209 Curso de Formação em Política Internacional.p65 209 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Nesse quadro, o Brasil se caracterizava por um imenso potencial, tendo consolidado uma dimensão territorial ímpar na América Latina, desenvolvido um novo núcleo dinâmico integrado ao processo acelerado de expansão do mercado mundial no ritmo ditado pela Revolução Industrial e até mesmo constituído um mercado doméstico relativamente diversificado. Ficava, entretanto, cada vez mais defasado em relação a dois vetores que definiam a construção ou reconstrução das nações que disputariam quer a hegemonia, quer, ao menos, um espaço menos periférico no interior do sistema internacional: a industrialização e a democratização. A relativa modernização econômica já no final do século XIX, até mesmo como resultado da exportação de lucros excedentes realizada pela Inglaterra – e em menor escala por alguns países europeus – na forma de investimentos em infra-estrutura em suas colônias e países periféricos em sua área de influência, na verdade ampliaria o fôlego da economia cafeeira, renovando e aprofundando o endividamento e a canalização dos lucros do setor primário para as importações de manufaturados ingleses. Apesar de os próprios cafeicultores terem reinvestido, em algumas áreas e setores, parte de seus lucros na indústria, a política econômica continuaria orientada predominantemente para o favorecimento do setor agroexportador. Do ponto de vista político, desde o final do século XVIII a Europa era atravessada por ondas de processos revolucionários ou por reformas políticas sob fortíssima pressão das classes populares – tendo cada vez mais como núcleo a emergente classe operária –, levando à generalização do Estado liberal e à ampliação progressiva do direito ao voto, e os Estados Unidos decidiam de forma sangrenta seu modelo de capitalismo e os limites de seu federalismo com a Guerra Civil (1860-1865). Já o Brasil permaneceu um Império no continente das Repúblicas, suprimiu movimentos regionais que apontavam para a maior liberalização política e, em alguns casos, para algum protagonismo popular, prolongou a exclusão estrutural do núcleo de sua classe trabalhadora, os escravos, e planejou perpetuá-la com projetos imigrantistas voltados, entre outros objetivos, para o branqueamento da população. Cabe aqui comentar o imbricamento entre os processos econômicos, sociais e políticos mencionados anteriormente e o aspecto mais propriamente cultural da construção da identidade brasileira. O Brasil, como já aponta210 Curso de Formação em Política Internacional.p65 210 5/6/2007, 12:41 Alexandre Fortes ram pensadores do porte de Sérgio Buarque de Holanda, ocupa um lugar bastante peculiar no imaginário de uma Europa em profunda mudança na virada do século XV para o XVI. A exuberância da natureza tropical brasileira foi vista por certas correntes teológicas como a realização de profecias sobre a descoberta da existência do paraíso na Terra. Uma das conseqüências disso, como aponta Marilena Chaui, foi a persistência da visão de que aqui as leis humanas (e portanto os direitos) não se aplicavam, e que a nação brasileira seria uma emanação das características naturais de seu território, e não da soberania de seu povo. Nossa própria bandeira até hoje expressa esse conservadorismo essencialista, mantendo – além das cores da realeza portuguesa – a alusão a elementos naturais (ouro, matas e céu) e não, como é característico das repúblicas, a seus princípios políticos constitutivos. Do mesmo modo, na cultura brasileira as particularidades da constituição de nossa população são em geral tratadas pelo prisma dessa celebração da natureza que, na verdade, destitui a cidadania de um protagonismo efetivo na construção da nação. Isso acontece com o chamado “mito das três raças” – ou seja, da complementaridade e da harmonia entre brancos, negros e índios – com o qual desde o século XIX literatos, artistas plásticos e outros expoentes da alta cultura buscam explicar nossa especificidade nacional. Essa visão é complementada pela celebração da miscigenação e da “doçura” que teria caracterizado o exercício do poder senhorial português, elementos presentes, por exemplo, na obra de Gilberto Freyre. É evidente que as particularidades da forma de colonização adotada no Brasil contribuíram para configurar um perfil populacional ímpar, no qual a miscigenação tornou-se um fator muito mais expressivo do que no outro caso conhecido de uma grande nação contemporânea de passado escravocrata: os Estados Unidos. Essas particularidades incluem a forte desestruturação, dispersão e afastamento dos grandes centros das populações indígenas, a introdução de contingentes expressivos de escravos africanos sem um investimento expressivo na criação de condições para sua estabilidade e sua reprodução familiar, bem como a imensa sub-representação das mulheres entre os habitantes de origem européia por praticamente todo o período colonial. Quando a esse quadro somou-se, especialmente a partir do final do século XIX, a imigração de trabalhadores livres, o padrão brasileiro de relações raciais já estava em grande medida constituído. 211 Curso de Formação em Política Internacional.p65 211 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional As infinitas gradações dos tons de pele no Brasil não podem, entretanto, ofuscar a gritante persistência dos mecanismos de exclusão e discriminação baseados na origem racial. Nem podemos esquecer como foi longa e árdua a luta que levou da perseguição policial à capoeira, ao samba e aos terreiros de umbanda ao reconhecimento do caráter positivo do sincretismo como elemento de peso decisivo em nossa formação cultural, ainda assim sem apagar totalmente as marcas do estigma e da folclorização. A celebração da natureza tropical e de nosso povo mestiço no imaginário cultivado pelo discurso dominante, portanto, mal dissimula a realidade de uma nação esquartejada pela reprodução e pelo aprofundamento de desigualdades, pela naturalização das hierarquias sociais (o famoso “Você sabe com quem está falando?”, analisado por Roberto da Matta), pela resistência histórica de elites patrimonialistas a se submeter nem mesmo ao domínio da lei, quanto mais a qualquer projeto de integração nacional que implique redistribuição de renda ou qualquer tipo de interferência no poder absoluto do proprietário em “seus” domínios, sejam eles a fábrica, a fazenda ou qualquer outro espaço de exercício do arbítrio privado. 2. A CLASSE OPERÁRIA O processo de formação da classe operária, força motriz da democratização e, portanto, do aprofundamento da identidade entre povo e nação, em boa parte da Europa – e que tão perto de nós quanto na Argentina da virada do século XIX para o XX exerceu papel muito semelhante –, dar-se-ia no Brasil num cenário particularmente árduo. Além dos outros efeitos perversos já apontados anteriormente, a persistência da escravidão nos legou uma profunda estigmatização contra o trabalho manual. A forma como se deu a integração à economia industrial mundial levou a um contraste acentuado entre o dinamismo do Centro-Sul, particularmente de São Paulo, e o restante do país, que também se refletia em perfis e dimensões tremendamente díspares da força de trabalho. Além disso, num país continental com variações brutais de densidade populacional e com uma infra-estrutura desenvolvida de forma tremendamente desigual, além da forte repressão, a construção de qualquer tipo de processo organizativo nacional dos trabalhadores enfrentaria grandes dificuldades para se viabilizar. 212 Curso de Formação em Política Internacional.p65 212 5/6/2007, 12:41 Alexandre Fortes Voltando a fazer comparações com nossos vizinhos próximos, não havia paralelo no Brasil para o peso da concentração populacional de Buenos Aires na Argentina, uma cidade que, além disso, combinava as funções de capital e de principal centro econômico, papéis que no Brasil já se encontravam divididos entre Rio de Janeiro e São Paulo. O intenso esforço de criação de jornais e organizações operárias, ocorrido aqui desde a década de 1880, resultou em alguns movimentos mais expressivos, como as greves gerais de 1917, mas sem configurar o movimento operário como um ator nacional de feições claramente reconhecidas e articuladas. Talvez por essa combinação de fatores, e pela força do sistema político oligárquico montado na República Velha, não houve no Brasil movimentos no sentido da incorporação das classes populares à política no início do século XX, como haviam ocorrido, por via revolucionária, no México (com avanços consagrados na Constituição de 1917) e, pela via do voto, na Argentina, com a lei Saenz Peña de 1912. Quando ocorreu movimento em sentido semelhante no Brasil – com a Revolução de 1930 –, ele veio na onda dos regimes antiliberais que se espalharam pelo mundo em reação à recessão deflagrada pelo Craque da Bolsa de Nova York, em 1929, e associado a uma concepção corporativista de vinculação orgânica dos sindicatos ao Estado, sendo o exercício do voto popular em larga escala postergado por mais 15 anos. Na longa Era Vargas (1930-1954), o país viveu a quebra da hegemonia cafeeira, assistiu ao fortalecimento sem precedentes do governo central, e – aproveitando a desorganização e o refluxo do comércio internacional e a oportunidade para barganhas estratégicas durante a Segunda Guerra Mundial – lançou as bases para a implantação da indústria pesada. Nela se realizou a incorporação dos trabalhadores urbanos àquilo que Wanderley Guilherme dos Santos denominou “cidadania regulada”, ou seja, o acesso a um conjunto de direitos sociais mediado pela vinculação ao mercado de trabalho formal, estritamente regulado e controlado pelo Estado por meio de instrumentos como a carteira de trabalho, o imposto sindical e o poder de intervenção do Ministério do Trabalho na vida das entidades de representação dos interesses de classe. Os trabalhadores rurais permaneceram, em linhas gerais, excluídos mesmo dessa incorporação condicionada e restrita à cidadania. Com todas as suas limitações, que incluíram o gozo de apenas dois anos de atividade legal pela maior força de esquerda do país no período – o 213 Curso de Formação em Política Internacional.p65 213 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Partido Comunista Brasileiro –, ainda assim a existência de um sistema eleitoral de massas possibilitou ao menos o tensionamento do caráter do projeto nacional hegemônico. No chamado período populista, não obstante certas oscilações conjunturais, a transformação do Brasil em uma moderna economia industrial consagrou-se como um objetivo nacional, perseguido pelo Estado – até mesmo por meio de uma política externa que se tornava pouco a pouco mais independente – e pelas classes dominantes. Foi inaugurado um longo ciclo de 50 anos de crescimento econômico acelerado sem que, entretanto, se verificasse qualquer movimento mais expressivo de distribuição de renda, ou seja, com a manutenção das desigualdades sociais, algo que se estenderia e se aprofundaria durante o “milagre econômico” da ditadura militar nos anos 1970. Mas, até 1964, um movimento contra-hegemônico no sentido de transformar o populismo em uma democracia participativa, marcada por reformas sociais inclusivas, se esboçava tanto em segmentos das elites políticas e intelectuais do país quanto, especialmente, na constituição de movimentos de massas na cidade e, pouco a pouco, também no campo. A incapacidade dos setores mais reacionários das elites nacionais de absorver mesmo perdas e mudanças pontuais e limitadas, assim como a inflexibilidade da política externa do novo império mundial, os Estados Unidos, em um mundo marcado pela Guerra Fria e numa América Latina eletrizada pelas fagulhas da radicalização da revolução cubana, explicam a desproporção entre a modéstia do programa reformista que se esboçava no governo João Goulart e a violência do golpe de 1964, inaugurando o mais profundo e longo ciclo de ditaduras militares na América Latina. Os governos militares brasileiros oscilaram entre a busca de uma posição de aliados preferenciais do “grande irmão do Norte” e a manutenção de uma política externa mais autônoma, rebatizada de “pragmatismo ecumênico e responsável”, entre a ortodoxia monetarista e o desenvolvimentismo com repressão e arrocho salarial do “milagre econômico”, e, em linhas gerais, aprofundaram algumas tendências já presentes no país entre 1930 e 1964. O Brasil chegou a ocupar a posição de oitava economia mundial, urbanizouse aceleradamente, desenvolveu setores de ponta na produção industrial, diversificou sua economia, acelerou a ocupação dos territórios a oeste. Mas essa gloriosa modernização conservadora, coroada pelos projetos megalo214 Curso de Formação em Política Internacional.p65 214 5/6/2007, 12:41 Alexandre Fortes maníacos de Itaipu, da Transamazônica e da ponte Rio–Niterói, entre outros, ruiu estrondosamente com a crise da dívida externa que abalou os países do terceiro mundo nos anos 1980, a partir da manobra por meio da qual o Banco Central norte-americano reestruturou sua hegemonia sobre o sistema financeiro internacional, à custa de jogar o mundo em uma década de recessão. Na lenta e tortuosa transição para a democracia, que se fez então inevitável, um novo Brasil emergiu no cenário público. Um movimento sindical renovado e ampliado, uma grande diversidade de movimentos sociais no campo e na cidade, uma sociedade civil galvanizada pelas experiências de solidariedade na resistência dos “anos de chumbo”. O sistema partidário anterior, quaisquer que sejam as avaliações sobre seus méritos e deméritos, não pôde ser reeditado diante do prolongado bipartidarismo oficial e de sua defasagem diante daquela nova realidade social. A esquerda, progressivamente fragmentada a partir do início dos anos 1960, encarava o triplo desafio de interpretar as transformações vividas pelo país, reconstruir bases de unidade de ação e, a partir de 1989, adaptar-se a um mundo que, para o bem ou para o mal, deixava de ser polarizado entre capitalismo e socialismo real. É nesse cenário que se constrói a experiência democrática brasileira do final do século XX, levando a um protagonismo inédito, e até mesmo a postos de poder nacional, as forças políticas construídas com base nos novos atores sociais que emergiram no final dos anos 1970. De um lado, apesar dos pesares, uma democracia muita mais sólida e ampla do que sua predecessora no período 1945-1964. A própria simbologia da cidadania foi reapropriada de forma crítica e ativa em movimentos como os das Diretas Já e o do impeachment de Collor, dotando a identidade nacional de um novo sentido. Por outro lado, uma experiência democrática da qual se exige o resgate da dívida social e a construção de um novo modelo de desenvolvimento num momento histórico em que, como afirma Hobsbawm (2001), as próprias bases sobre as quais se construiu a idéia de democracia, como a soberania nacional, estão em questão. Ou, como afirma Naomi Klein (2001), num cenário em que, tendo os movimentos contra-hegemônicos finalmente logrado a democratização dos Estados nacionais em larga escala, o poder de decisão foi em grande medida subtraído para esferas transnacionais ou internacionais. 215 Curso de Formação em Política Internacional.p65 215 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional O Brasil do século XXI terá que se reinventar. Não nos está reservada a condição de paraíso terrestre, nem de país do futuro. O lugar que viremos a ocupar num mundo que caminha para turbulências imprevisíveis resultará do inevitável enfrentamento de nossas contradições internas e externas. Somente assim saberemos o quanto nosso imenso potencial como nação se realizará. BIBLIOGRAFIA ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. 2. ed. Rio de Janeiro/São Paulo, Contraponto/ Unesp, 1997. BRAUDEL, Fernand. Civilização material e capitalismo. Lisboa, Edições Cosmos, 1970. 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INTRODUÇÃO A formação social e nacional brasileira teve sua origem na expansão européia dos séculos XV-XVI através da “descoberta” e da colonização portuguesas. Durante quase quatro séculos a inserção internacional da região processou-se por intermédio das potências européias, inicialmente pelo mercantilismo português e posteriormente via liberalismo inglês. Na passagem do século XIX para o XX, contudo, o eixo da diplomacia política e econômica do Brasil voltou-se para os Estados Unidos, limitando-se predominantemente ao âmbito hemisférico (isto é, restrita às Américas). Desde o início dos anos 1960, na esteira do desenvolvimento industrial, a política exterior brasileira voltou-se para a busca de novos espaços mediante a mundialização e a multilateralização. Sob os efeitos da “globalização”, no final do século XX o país passou a valorizar o espaço regional latino-americano, através do Mercosul (Mercado Comum do Sul), ainda que sem renunciar completamente à cooperação com alguns dos espaços planetários anteriormente atingidos. Esta poderá se afirmar, nos próximos anos, como uma nova fase das relações do Brasil com o mundo. A história diplomática tradicional, cujo paradigma foi representado pelo clássico Manuel historique de politique étrangère, de autoria de Emile Bourgeois 1 Professor titular de Relações Internacionais da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), doutor em História Econômica pela USP (Universidade de São Paulo), pós-doutorado em Relações Internacionais pela London School of Economics, é pesquisador do Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS ([email protected]). 219 Curso de Formação em Política Internacional.p65 219 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional (1892-1898) (datado de fins do século XIX), abarcava apenas o estudo das relações oficiais entre os Estados, expressa na atuação de agentes credenciados pelos governos. No Brasil, essa tendência atingiu sua forma acabada nas histórias diplomáticas de Hélio Vianna e Delgado de Carvalho. Essa abordagem cedeu lugar à mais complexa História das relações internacionais, desde a afirmação dos trabalhos de Pierre Renouvin e Jean-Baptiste Duroselle (1967), nas décadas de 1950 e 1960. No Brasil, a nova perspectiva teórica foi desenvolvida a partir dos estudos de José Honório Rodrigues, tais como Brasil e África (1964) e Interesse nacional e política externa (1966). A “política exterior” envolve aspectos mais determinados no conjunto das relações internacionais. Ela enfoca a “orientação governamental” de determinado Estado a propósito de determinados governos e/ou Estados, ou ainda regiões, situações e estruturas, em conjunturas específicas. A interação, conflitiva ou cooperativa, das políticas externas deve ser considerada parte de um sistema mundial, constituindo então em seu conjunto a “política internacional”. Na análise da política externa, emergem duas questões de fundamental importância: em primeiro lugar, quem a formula; em segundo, de que forma ela se articula à política interna. Quanto ao primeiro aspecto, qualquer estudo empírico mais aprofundado demonstra que os rumos e as decisões da política externa não são definidos pelo conjunto do bloco social de poder que dá suporte a um governo, mas por alguns setores hegemônicos desse bloco. É preciso considerar que, graças à porosidade do Estado moderno, lobbies e grupos de interesse conseguem influir em determinadas áreas da política externa. Durante a fase colonial, o Brasil encontrava-se integrado ao mercantilismo português. Com o advento do processo de emancipação, nossa “dependência assimétrica” transferiu-se para a órbita do livre-comércio hegemonizado pela Inglaterra. Paralelamente, acentuou-se outra dimensão das relações internacionais do Brasil: a dos problemas regionais vinculados à construção do espaço geopolítico e nacional brasileiro, também enfocada como “questão de fronteiras”. Nesse contexto, a rivalidade com a Argentina fazia parte de uma “relação simétrica”, herdada dos antagonismos coloniais, a qual se caracterizou como um campo de relativa autonomia para o exercício de nossa diplomacia. 220 Curso de Formação em Política Internacional.p65 220 5/6/2007, 12:41 Paulo Fagundes Visentini A dupla problemática da “subordinação unilateral” ao capitalismo mediterrânico e norte-atlântico e da construção do espaço nacional constituiu a primeira fase de nossas relações exteriores, a qual se estendeu por quatro séculos. Durante o século XIX, esse processo configurou-se como uma unilateralidade sob hegemonia inglesa, segundo conceito de Werneck da Silva (1990). Já ao longo das últimas décadas daquele século afirmou-se gradativamente a influência norte-americana, prenunciando o advento de uma nova fase. A unilateralidade durante a hegemonia norte-americana representará um novo período das relações internacionais do Brasil. Nela será concluído o traçado das fronteiras, o país voltar-se-á para um processo de inserção hemisférica e terá início uma vinculação mais estreita da política externa com o desenvolvimento econômico. A gestão Rio Branco (1902-1912) representou um momento paradigmático dessa fase, pois concluiu a demarcação das fronteiras contestadas e estruturou a chamada “aliança não escrita” (segundo a clássica expressão de Bradford Burns) com os Estados Unidos da América. Coube a Getúlio Vargas e aos governos populistas dos anos 1950, por sua vez, a vinculação estratégica da política exterior às necessidades do processo de desenvolvimento econômico, fenômeno que Amado Cervo denominou “política externa para o desenvolvimento”. Durante todo esse período, que se estende até o fim da década de 1950, as relações exteriores do Brasil voltaram-se prioritariamente para os Estados Unidos, em busca do status de “aliado privilegiado”. Na medida, entretanto, em que essa relação se mostrava insuficiente como apoio ao desenvolvimento industrial, incrementado desde os anos 1930, a política externa brasileira viu-se na contingência de alterar seu perfil. A “autonomia na dependência”, conceito formulado por Gerson Moura (1980), que Vargas explorou às vésperas da Segunda Guerra Mundial, e o nacionalismo dos governos populistas dos anos 1950 representaram uma “estratégia de barganha” em relação a Washington. Essa barganha visava redefinir os laços de dependência diante dos Estados Unidos, de forma a obter apoio ao desenvolvimento industrial brasileiro. A falta de uma resposta positiva por parte dos Estados Unidos convenceu lideranças brasileiras da época da necessidade de ampliar os vínculos internacionais do Brasil. Fazia-se necessário atuar num plano mundial, 221 Curso de Formação em Política Internacional.p65 221 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional escapando à dependência hemisférica em relação aos Estados Unidos, não obstante isso permitisse ampliar a própria barganha com esse país. Embora esse processo começasse a emergir desde o segundo governo Vargas, foi com a Política Externa Independente (PEI) de Jânio Quadros e João Goulart, entre 1961 e 1964, que ela se configurou de forma explícita em nossa agenda diplomática. Iniciou-se então o terceiro grande período das relações exteriores brasileiras, o da “multilateralidade na fase da crise de hegemonia no sistema mundial”, que se estende até a atualidade. Aprofundou-se a vinculação da política exterior com a estratégia de desenvolvimento econômico, ao mesmo tempo em que se diversificavam nossos parceiros internacionais. Apesar da manutenção de um “eixo vertical Norte–Sul”, em particular as relações com os Estados Unidos, a diplomacia brasileira passou a atuar também num “eixo horizontal Sul–Sul” e num “eixo diagonal Sul–Leste” (relações com o terceiro mundo e com os países socialistas, respectivamente). Isso se tornou possível tanto pelas necessidades do desenvolvimento brasileiro quanto pelo advento de um sistema mundial de hegemonias em crescente desgaste. Embora os três anos iniciais do regime militar tenham sido caracterizados por um retrocesso ao alinhamento automático com os Estados Unidos e pelo refluxo a uma diplomacia de âmbito hemisférico, e a década de 1964-1974 fosse marcada pelas “fronteiras ideológicas”, a multilateralidade das relações exteriores e a busca do “interesse nacional do desenvolvimento” continuaram a se aprofundar. Os novos interesses internos então configurados, bem como as alterações do cenário internacional após o primeiro choque petrolífero, permitiram ao governo Ernesto Geisel ampliar esse processo, através do “pragmatismo responsável e ecumênico”. Nem mesmo o fim do regime militar em 1985 interrompeu essa estratégia diplomática, que prosseguiu até 1990. O Brasil praticava então uma política exterior com o perfil de uma potência média, e de abrangência planetária. As vigorosas alterações do cenário mundial, na passagem dos anos 1980 aos 1990, e a implantação de um modelo inspirado no neoliberalismo com o governo Fernando Collor, entretanto, configuraram uma crise no processo de multilateralização, crise ainda não superada. Nesse contexto, emerge a discussão acadêmica e política da inserção do Brasil na nova ordem mundial pós-Guerra Fria. Trata-se de um novo desafio para a política externa brasileira. 222 Curso de Formação em Política Internacional.p65 222 5/6/2007, 12:41 Paulo Fagundes Visentini 2. A UNILATERALIDADE DURANTE A COLONIZAÇÃO PORTUGUESA E A HEGEMONIA INGLESA No tocante à diplomacia brasileira, é necessário estabelecer um marco fundamental da política externa: seu caráter estrutural e organicamente dependente, ainda que logrando relativa autonomia conjuntural e regional. Segundo José Luiz Werneck da Silva, “a nossa própria história geral é, por hipótese, um capítulo da totalidade da história do capitalismo ocidental, norteatlântico-mediterrâneo, em gradativa construção e reconstrução, na qual totalidade a formação brasileira se colocou, historicamente, numa posição subordinada que cumpre sempre reavaliar, e superar. Isto se reflete, evidentemente, nas relações internacionais” (Silva, 1990, p. 25). A primeira fase da política externa brasileira abarca desde o Tratado de Tordesilhas até o início da gestão do chanceler barão de Rio Branco, no início do século XX. Como se pode ver, a existência legal do Brasil (1494) antecede sua existência real (1500). Esse longo período caracterizou-se pela problemática dominante da definição do espaço territorial de um verdadeiro imperialismo geográfico luso-brasileiro (espécie de “destino manifesto”) e pela dependência primeiramente em relação ao mercantilismo português e, posteriormente, ao capitalismo industrial inglês em expansão, de viés liberal-concorrencial. Além dos vínculos com a Europa, a América portuguesa também manteve relações expressivas com a África, onde eram apresados os escravos que constituíam a mão-de-obra das plantations. Assim, a história econômica elaborou o conceito de triângulo comercial atlântico. De outra parte, durante a fase colonial os conflitos europeus repercutiam diretamente no Brasil, especialmente no tocante às guerras platinas. O ciclo do ouro estabeleceu no Brasil do século XVIII os fundamentos de uma divisão da produção entre as diversas regiões, articulando-as entre si e acentuando o conflito de interesses com a metrópole. A crise do antigo sistema colonial, por seu turno, enfraquecia o mercantilismo português, subordinando-se cada vez mais ao capitalismo inglês. Esse 223 Curso de Formação em Política Internacional.p65 223 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional fenômeno se intensificou na passagem do século XVIII para o XIX, com a Revolução Francesa. As guerras napoleônicas representaram o apogeu do confronto entre dois modelos (e dois estágios) de capitalismo, o inglês e o francês, na disputa pela hegemonia mundial. Enquanto a França se afirmava na Europa, através do Bloqueio Continental2, a Inglaterra consolidava o seu domínio sobre os mares e sobre o mundo colonial, isto é, sobre o mercado global. Nesse quadro, ocorreu a invasão de Portugal por Napoleão, e a vinda da corte e da administração lusitanas para o Rio de Janeiro, sob a proteção da armada britânica, em 1808. A metrópole internalizava-se no Brasil, enquanto os portos eram abertos ao livre-comércio inglês. Com o fim da guerra na Europa e a restauração conservadora do Congresso de Viena, a situação se alterou. A constelação de Estados conservadores, da qual Portugal fazia parte, apostava num movimento recolonizador. Mas a dinastia dos Bragança encontrava-se no Brasil, na América em processo de emancipação, e a Inglaterra e os Estados Unidos opunham-se a qualquer forma de reação colonialista, além de apoiar o movimento de independência das possessões ibéricas. O dilema bragantino logo teve de ser resolvido. A Revolução Constitucionalista do Porto, de 1820, obrigou D. João VI a retornar a Portugal. A conjuntura contraditória entre reacionarismo na Europa, por um lado, e revolução e livre-comércio na América Latina, por outro, levou os Bragança a uma solução ousada: dividir os domínios da família em dois, o Brasil de um lado do Atlântico e o Império português de outro (1822). O acordo entre os dois ramos da dinastia foi avalizado pela Inglaterra (através do Tratado Luso-Brasileiro de 1825), em troca de um acordo de livre-comércio (renovação do de 1810) e do compromisso brasileiro de extinguir o tráfico negreiro. Assim, o I Reinado manteve a diplomacia bragantina e uma acentuada continuidade com a etapa anterior. É importante destacar que o Brasil, por sua estrutura monárquica e escravista, procurava capitalizar um papel de “Europa nos trópicos”, 2 O bloqueio Continental foi estabelecido por Napoleão, excluindo a Inglaterra do mercado europeu, que ficava à disposição exclusivamente da França. 224 Curso de Formação em Política Internacional.p65 224 5/6/2007, 12:41 Paulo Fagundes Visentini antagonizando-se com as repúblicas formadas na Hispano-América. O Prata, onde prosseguiam as rivalidades entre Brasil e Argentina, bem como as intromissões da Inglaterra e da França representaram a principal área de atrito entre o Império e os demais países do continente. Será nesse espaço que o Brasil defenderá seus interesses com relativa autonomia. Com a renúncia de D. Pedro I e a instalação da Regência em 1831, iniciaram-se lutas em torno da hegemonia política e econômica entre as diversas regiões do país. Isso implicou um refluxo da política externa, enquanto as questões internas adquiriam primazia. No Prata, o Brasil adotava uma atitude de “neutralidade paciente”. Apesar da momentânea aparente perda de importância da diplomacia, foi justamente nessa etapa que se configurou uma política externa propriamente brasileira, ainda que marcada por uma herança bragantina. O Conselho de Estado constituiu, então, o primeiro núcleo formulador da diplomacia nacional. A década de 1840 foi marcada pela implantação do II Reinado e pela consolidação política, econômica e diplomática do novo Estado. A partir daí abriu-se uma fase de reações contra as pressões inglesas pela renovação do acordo de livre-comércio. Em 1844 foram implantadas as Tarifas Alves Branco, de caráter protecionista, provocando a reação de Londres através do Bill Aberdeen, o qual visava impedir o tráfico de escravos. Dessa forma, a extinção do sistema dos tratados permitiu a criação de condições para a articulação de um projeto de política externa, apesar da persistência de uma relação de dependência assimétrica com a Inglaterra. Com a década de 1850 iniciou-se o apogeu da formação social representada pela monarquia, o que se refletiu na política externa. Os desacordos com a Inglaterra atingiram o paroxismo com a questão Christie3 e a ruptura das relações diplomáticas entre o Rio de Janeiro e Londres, de 1863 a 1865. Obviamente, isso não significou a ruptura das relações comerciais e financeiras, que permaneceram intensas. Outra dimensão fortalecida nessa época foi a política de força em relação ao Prata. Os interesses diplomáticos, econômicos e políticos levaram o Bra- 3 Christie era o embaixador da Inglaterra no Brasil, que negociou de forma arrogante um pedido de indenização pelo saque da carga de um navio inglês encalhado no Nordeste. O contencioso levou à ruptura de relações diplomáticas entre os dois países nos anos 1860. 225 Curso de Formação em Política Internacional.p65 225 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional sil a desencadear uma série de intervenções na região: Uruguai em 1851; Argentina em 1852; Uruguai em 1855-1856; e, finalmente, Uruguai em 1864, já vinculada ao desencadeamento da Guerra da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) contra o Paraguai, entre 1865 e 1870. Os objetivos do Sistema do Império no Prata consistiam na defesa dos interesses econômicos, na livre-navegação, no apoio aos colorados no Uruguai, mas sobretudo visavam obstaculizar a construção de uma Argentina forte, capaz de rivalizar com o Brasil. Esse último princípio também foi aplicado ao Paraguai de Solano Lopez. Após a Guerra do Paraguai, de onde o Brasil retirou-se em 1876, alterouse profundamente a situação em âmbitos nacional, regional e mundial. Com a transição do escravismo ao trabalho assalariado, entre outros fatores, a monarquia entrou em contínuo declínio, o que trouxe conseqüências negativas para a política externa. No plano regional, a Argentina emergiu fortalecida: em plena expansão econômica, logo ultrapassou o Brasil em dinamismo. Por outro lado, com a expansão das ferrovias brasileiras ao curso médio dos rios Uruguai, Paraguai e Paraná, a bacia do Prata perdeu o interesse estratégico para a diplomacia do país. A arrancada argentina, por sua vez, vinculou-se também à rearticulação da economia mundial, com o desencadeamento da Segunda Revolução Industrial. Graças a ela, processava-se uma reorientação profunda nas relações entre o centro e a periferia do sistema mundial. A Argentina levava vantagens nesse processo, recebendo capitais, imigrantes e novas tecnologias, para adequar a estrutura produtiva do país às novas necessidades da Europa industrial. Neste contexto, apesar de evoluir mais lentamente, o Brasil via a valorização de outros produtos e regiões, bem como a configuração de novos parceiros externos. A economia primário-exportadora, orientada ao crescimento para fora, precisava se modernizar e atender a novas demandas. A cafeicultura, progressivamente processada por trabalhadores assalariados, bem como a borracha explorada na Amazônia destinavam-se cada vez mais aos mercados dos emergentes Estados Unidos da América. Reflexo dessa aproximação foi, inicialmente, o convite do presidente Grant para que D. Pedro II abrisse a Centennial Exposition em 1876 na Filadélfia, e, posteriormente, a insistência norte-americana para que o Brasil apoiasse a criação de um 226 Curso de Formação em Política Internacional.p65 226 5/6/2007, 12:41 Paulo Fagundes Visentini Zollverein4 nas Américas (União Aduaneira Americana, 1886). Outra questão que marcou a política exterior brasileira na fase de transição da monarquia à república, apesar do relativo retraimento diplomático, foi o esforço por continuar defendendo as fronteiras contestadas, processo que só culminará com a gestão Rio Branco, já no início do século XX. Após 1876, envolvido com seus problemas internos, o Brasil conheceu um refluxo em sua política externa. Igualmente, a proclamação da República em 1889 fez que a ênfase da ação governamental passasse a voltar-se para os aspectos internos. Apesar disso, em função também da ascensão da Argentina nesse período, a diplomacia brasileira começou a se voltar para os Estados Unidos da América, que, por seu turno, projetavam então sua economia para fora, especialmente em direção à América Latina. Apesar das transformações que se operaram ao longo do século XIX, afirmavam-se alguns elementos estruturais da política externa brasileira. O primeiro consistia na condição dependente de “país novo e atrasado”, graças à subordinação de uma economia primário-exportadora aos centros internacionais (na época, a Inglaterra hegemônica). Nesse plano, configurava-se uma “relação político-econômica assimétrica”, pois o Brasil se encontrava em posição de flagrante inferioridade. Entretanto, num segundo plano, o país conseguia desenvolver uma diplomacia relativamente autônoma, na forma de uma “relação simétrica de poder”, representada então pela política no Prata. É preciso considerar também que em certas conjunturas o Brasil desafiava, ainda que de forma parcial, certos aspectos da hegemonia inglesa. A defesa de determinados interesses socioeconômicos da elite brasileira fazia a diplomacia nacional buscar certa margem de manobra, perfilando-se igualmente aqui uma relativa autonomia. Mas também é necessário observar que essa mesma elite sofria de uma espécie de “síndrome do escravismo”. Para a manutenção da hierarquia social no país, esse grupo não hesitava em se subordinar a interesses estrangeiros, assumindo conscientemente a posição de sócio menor. Nesse sentido, o potencial diplomático do país resultará, então, bastante inferior ao volume de sua população e de seus recursos eco- 4 Zollverein foi a União Aduaneira dos Estados do norte da Alemanha, promovida pela Prússia. Na época era empregada como sinônimo de Zona de Livre Comércio. 227 Curso de Formação em Política Internacional.p65 227 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional nômicos, naturais e territoriais. Sempre haverá um “perigo interno” a ser priorizado. Esse elemento persistirá mesmo após a abolição. Finalmente, é importante salientar outro elemento duradouro da política internacional do Brasil. Trata-se da tendência em se posicionar como rival dos Estados hispano-americanos. A política hegemonista em relação aos vizinhos, a ambição à posição de liderança regional, o temor a determinadas configurações sociais reformistas do republicanismo e do jacobinismo hispano-americanos e a oposição às tendências integradoras do panamericanismo de orientação bolivarista fizeram muitas vezes o Brasil se associar às grandes potências contra os países latino-americanos. Assim, o Brasil será considerado, e considerará a si próprio, um “país diferente” do restante da América Latina. 3. A UNILATERALIDADE SOB HEGEMONIA NORTE-AMERICANA A segunda fase da política exterior brasileira abrange desde a gestão Rio Branco (1902-1912) até o fim do governo Juscelino Kubitschek (19561961) e tem como temática principal as relações hemisféricas. A inserção brasileira no sistema interamericano nesta fase caracterizou-se por uma “aliança não-escrita” com os Estados Unidos, país do qual nossa economia passou a depender prioritariamente. Durante esse período, variaram as formas dessa “aliança”: “de acordo, sempre que possível”, “nobre emulação”, “parceiros prediletos” ou “satélites privilegiados”. Entretanto, não se duvidava de que todas essas nuanças se inseriam numa mesma perspectiva, a de que a “aliança” com Washington constituía a espinha dorsal da política exterior brasileira. Durante a primeira metade do século XX, como foi ressaltado, a diplomacia brasileira teve como tendência predominante a inserção no contexto hemisférico, em que o eixo principal era a relação com os Estados Unidos. Não se tratava apenas da dependência em relação aos Estados Unidos, mas do fato de o Brasil centrar sua política externa no estreitamento das relações com Washington, na perspectiva da “aliança não-escrita” concebida durante a gestão Rio Branco. A dependência, enquanto tal, prosseguiu depois dessa fase, mas a tônica não era mais essencialmente a busca de uma aproximação privilegiada com os Estados Unidos. Ao longo dessa fase, houve 228 Curso de Formação em Política Internacional.p65 228 5/6/2007, 12:41 Paulo Fagundes Visentini momentos de busca de uma relativa “autonomia na dependência”, ou de barganha para a defesa de certos interesses brasileiros, como durante a gestão Rio Branco e o primeiro governo Vargas. A gestão Rio Branco (1902-1912) foi marcante, uma vez que nela foram demarcadas vantajosamente as fronteiras amazônicas. Durante o auge do ciclo da borracha, o conflito do Acre evidenciou a determinação e a continuidade da política exterior brasileira. Além disso, Rio Branco desenvolveu uma política de defesa dos interesses nacionais numa época de dificuldades devidas ao reordenamento mundial. A aliança com os Estados Unidos, a par da subordinação evidente, assinalava a busca de uma estratégia de barganha, com vistas ao fortalecimento da posição internacional do Brasil. O restante da República Velha (1912-1930) e o mandato do presidente Dutra (1946-1951) caracterizaram-se, em oposição, por uma dependência relativamente passiva em relação aos Estados Unidos. Após a morte de Rio Branco, e sobretudo com a Primeira Guerra Mundial, os interesses norteamericanos afirmaram-se de forma assimétrica. Nos anos 1920, o desgaste da República cafeeira fez inclusive que a diplomacia brasileira refluísse. A crise de 1929, finalmente, desarticulou ainda mais a capacidade do país de formular uma política externa mais positiva. Todavia, devido à ascensão do projeto varguista de desenvolvimento, o período 1930-1945 pautou-se por uma tentativa consciente de tirar proveito da conjuntura internacional e da redefinição da economia brasileira, pela utilização da política externa como instrumento estratégico para lograr a industrialização do país. É necessário ressaltar, entretanto, que o estágio embrionário do desenvolvimento brasileiro e as escassas possibilidades oferecidas pelo contexto internacional, a longo e médio prazos, limitaram o alcance dessa inovação introduzida por Vargas. A diplomacia pendular do Brasil, entre Washington e Berlim, durante a preparação da Segunda Guerra Mundial buscava, em essência, reativar a velha “aliança privilegiada” com os Estados Unidos, inovando-a com outras formas de cooperação econômica. Em suma, Vargas ensaiava uma nova política externa em uma situação ainda dominada por velhas estruturas, de alcance regional. A derrubada do ditador estadonovista e o caráter da política externa do governo Dutra evidenciaram esses elementos limitativos. Além do mais, a tendência a formas mais ou menos passivas de acomodação submissa aos 229 Curso de Formação em Política Internacional.p65 229 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Estados Unidos ainda se faria sentir entre 1945 e 1964, especialmente durante o governo Dutra. Porém, a volta de Vargas ao poder vai significar uma importante mudança. É inegável que ainda iria persistir em larga medida a ilusão de que o Brasil poderia, através de uma barganha nacionalista, voltar a lograr estabelecer vínculos privilegiados com os Estados Unidos. A ilusão persistiu até o final do governo Kubitschek. Mas a situação nos anos 1950 era diferente. O desenvolvimento econômico e a progressiva afirmação de um novo perfil sociopolítico da sociedade brasileira impunham novas demandas à política exterior. A década de 1950 abria-se com o incremento da urbanização e da industrialização, a afirmação de uma burguesia industrial, de segmentos médios urbanos, de uma jovem classe operária e de outros trabalhadores urbanos e rurais. O sistema político tinha de responder à crescente participação popular, enquanto as contradições da sociedade brasileira constituíam um terreno fértil para os conflitos sociais. Assim, Vargas viu-se na contingência de retomar o projeto de desenvolvimento industrial por substituição de importações, incrementando a indústria de base. O setor externo da economia jogava, neste quadro, um papel fundamental. A obtenção de capitais e tecnologias só poderia ser lograda com o incremento da cooperação econômica com a potência então hegemônica do mundo capitalista, os Estados Unidos. No quadro da Guerra Fria, entretanto, o espaço de manobra era muito limitado para atrair a atenção norte-americana, visando a suplantar o “descaso” de Washington para com a América Latina e, em particular, para com o Brasil. Foi nesse quadro que Vargas procurou implementar uma barganha nacionalista, a qual consistia em apoiar os Estados Unidos no plano políticoestratégico da Guerra Fria em troca da ajuda ao desenvolvimento econômico brasileiro. Essa política, ao mesmo tempo, fortaleceria a posição interna do governo, granjeando-lhe apoio de diferentes forças políticas domésticas. As contradições internas cada vez mais pronunciadas e os magros resultados obtidos no plano externo atingiram um ponto grave, a partir de 1953, com a eleição do republicano Eisenhower. Neste momento, Vargas viu-se na contingência de aprofundar sua barganha diplomática, no intuito de reverter um quadro crescentemente adverso. O problema, contudo, era que o cenário internacional não oferecia suficientes alternativas, pois os países so230 Curso de Formação em Política Internacional.p65 230 5/6/2007, 12:41 Paulo Fagundes Visentini cialistas ainda eram considerados “inimigos”, a Europa ocidental e o Japão mal haviam concluído a reconstrução econômica, enquanto o terceiro mundo recém-despertava como realidade política devido ao embrionário estágio da descolonização. A América Latina, por seu turno, encontrava-se sob forte pressão dos Estados Unidos, além de politicamente bastante dividida. De qualquer forma, Vargas procurou tirar proveito dos limitados espaços, além de tentar criar outros. Todavia, mesmo esse esboço de multilateralização, o qual visava mais a barganha com os Estados Unidos do que uma nova forma de inserção no plano mundial, viu-se obstaculizado pelos acirrados conflitos internos, em que a oposição articulava-se diretamente com Washington, o que levou ao isolamento do governo e ao suicídio do presidente em 1954. A derrubada do governo Vargas e a reação conservadora que se seguiu, tanto no plano interno como, sobretudo, no externo, evidenciaram que a barganha nacionalista havia se tornado uma política incômoda para o status quo internacional hegemonizado pelos Estados Unidos. A tentativa precoce de promover uma diplomacia não linearmente subordinada a Washington se apoiava em fatores objetivos em desenvolvimento, e não apenas na vontade política de um líder populista. Por isso significou o esboço de uma nova política externa brasileira, que conhecerá seu amadurecimento com a Política Externa Independente. Entre 1954 e 1958, essa linha política conheceu um sério retrocesso, e houve um autêntico hiato com relação às tendências marcantes do período. A gestão Café Filho (1954-1955) caracterizou-se pela abertura econômica absoluta ao capitalismo internacional e pelo retorno do alinhamento automático em relação à diplomacia norte-americana, tal como no governo Dutra. O projeto de desenvolvimento foi momentaneamente abandonado em nome de um liberalismo econômico extremado, enquanto a barganha nacionalista desaparecia das palavras e atitudes do governo. Tratava-se da afirmação da diplomacia da Escola Superior de Guerra e de sua concepção de segurança e desenvolvimento. Com a ascensão de Kubitschek ao poder, em 1956, a situação se alterou em certo sentido. O Brasil continuou calcando sua política externa no alinhamento automático aos Estados Unidos, política concentrada na diplomacia hemisférica. Também prosseguiu a abertura ampla da economia ao 231 Curso de Formação em Política Internacional.p65 231 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional capital internacional. Contudo, JK retomou o projeto de industrialização, só que agora com base no setor de bens de consumo durável para as classes de média e elevada renda. Assim, Kubitschek conseguia conjunturalmente um espaço em que se harmonizavam os interesses da potência hegemônica e de um projeto de industrialização alterado. É necessário salientar, todavia, que tal política foi possível, entre outros fatores, pelo retorno pleno da Europa ocidental às relações econômicas internacionais, fornecendo alternativas comerciais e financeiras ao Brasil, sem confrontação com Washington. Esse hiato, com suas duas fases distintas, no entanto, encerrou-se em 1958, com a retomada da barganha nacionalista por JK em termos muito semelhantes aos de Vargas. A crise dos milagrosos “50 anos em 5” e determinadas alterações internacionais, como a criação da Comunidade Econômica Européia, a reeleição de Eisenhower num quadro de crise e o descontentamento latino-americano, bem como as pressões do Fundo Monetário Internacional (FMI), levaram o governo a retomar uma ativa barganha nacionalista através da Operação Pan-americana (OPA), que objetivava atrair a atenção dos Estados Unidos para a América Latina e obter maiores créditos nos marcos do sistema interamericano, comprometendo a Casa Branca com um programa multilateral de desenvolvimento econômico de largo alcance. A OPA pretendia não só incrementar os investimentos nas regiões economicamente atrasadas do continente, compensando a escassez de capitais internos, mas também promover a assistência técnica para melhorar a produtividade e garantir os investimentos realizados, proteger os preços dos produtos primários exportados pela América Latina, bem como ampliar os recursos e liberalizar os estatutos das organizações financeiras internacionais. Ao contrário da Aliança para o Progresso, que priorizava os capitais privados e as relações bilaterais, a OPA enfatizava a utilização de capitais públicos e a multilateralização das relações interamericanas. Paralelamente, JK buscou expandir a barganha para a área socialista e terceiro-mundista, mas de forma extremamente acanhada. A economia brasileira se internacionalizava progressivamente, e os conflitos sociais se exacerbavam, enquanto as repercussões da Revolução Cubana criavam problemas adicionais. Não podendo agir além do que lhe permitiam suas bases de sustentação política, a diplomacia de JK permanecerá no meio do caminho, empurrando para seus sucessores decisões que não podia ou não estava disposta a tomar. 232 Curso de Formação em Política Internacional.p65 232 5/6/2007, 12:41 Paulo Fagundes Visentini 4. A MULTILATERALIDADE DURANTE O DESGASTE DA HEGEMONIA NO SISTEMA MUNDIAL A terceira fase da política externa brasileira abarca o período que se inicia com a Política Externa Independente e vem até nossos dias. As caraterísticas básicas do período são a multilateralização das relações exteriores e os componentes ideológicos nacionalistas, com os quais o alinhamento automático em relação aos Estados Unidos passa a ser questionado. Ainda que a dependência do Norte industrializado persista, o aprofundamento do caráter multinacional do capitalismo permite a introdução de elementos novos. Conforme Werneck da Silva, “até este terceiro ‘momento’ o eixo Norte–Sul dominava as diretrizes que formulavam a nossa política externa, configurando-se uma dependência tão forte e exclusiva ao mundo Norte-atlântico nas relações internacionais, que elas ficaram marcadas pelo traço da unilateralidade. Neste terceiro ‘momento’, extremamente polêmico e diversificado nas nuanças conjunturais, começamos a praticar, no possível, a multilateralidade. Vislumbra-se a primeira oportunidade de horizontalizar (eixo Sul–Sul) ou de diagonalizar (eixo Sul– Leste) nossa política externa, mas isto sem negar totalmente a verticalização (eixo Norte–Sul). Com a horizontalização passaríamos a valorizar mais as nossas relações com a América Latina e a África. (...) Ora, para que ocorra este reposicionamento nos sistemas interamericano e mundial, é preciso discutir a liderança dos Estados Unidos” (Silva, op. cit., p. 31). Em 1961 Jânio Quadros e seu chanceler Afonso Arinos lançaram a Política Externa Independente (PEI), que tinha como princípios a expansão das exportações brasileiras para qualquer país, inclusive os socialistas, a defesa do direito internacional, da autodeterminação e a não-intervenção nos assuntos internos de outras nações, uma política de paz, desarmamento e coexistência pacífica, apoio à descolonização completa de todos os territó233 Curso de Formação em Política Internacional.p65 233 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional rios ainda dependentes e a formulação autônoma de planos nacionais de desenvolvimento e de encaminhamento da ajuda externa. A raiz de tal diplomacia se encontrava nas necessidades do desenvolvimento brasileiro, que sinalizavam para a mundialização da política externa, autonomizando-a dos Estados Unidos, que não contribuíam para a economia nacional, como desejavam as elites em troca de seu anterior alinhamento com Washington. Tentando agradar o capital internacional pelo programa de austeridade, os setores populares pela reforma e a pequena-burguesia através da onda moralizadora com que enfrentava os escândalos de corrupção, Jânio Quadros ia na verdade ampliando o descontentamento e a oposição a seu governo. A direita e os Estados Unidos reprovavam sua política externa, enquanto a esquerda e os segmentos populares criticavam duramente o programa econômico-financeiro. Enquanto o presidente, com seu estilo personalista, se isolava das diversas forças políticas, os atritos se multiplicavam. As iniciativas para estabelecer relações diplomático-comerciais com os países socialistas (URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – e Leste Europeu), o apoio à luta pela independência das colônias africanas de Portugal, a defesa da não-ingerência em relação à Revolução Cubana, a aproximação e a cooperação com a Argentina (Tratado de Uruguaiana) e a retórica nacionalista e terceiro-mundista descontentaram Washington e as forças armadas. Marcado pela suspeição ideológica, o governo Goulart será caracterizado pela instabilidade e pelo imobilismo. No plano diplomático, o novo chanceler, San Tiago Dantas, aprofundou a PEI como “defesa do interesse nacional”, voltada para o desenvolvimento, a soberania e, explicitamente, a reforma social. Apesar de não conseguir se implementar plenamente, a PEI gerou atritos crescentes com os Estados Unidos, devido à recusa brasileira à expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA) (Punta del Este, 1962), à política de encampação de empresas estrangeiras por Leonel Brizola e outros governadores e à aproximação em relação aos países socialistas (restabelecimento de relações com a URSS em 1962) e aos países nacionalistas da América Latina. Além dos caminhos e descaminhos da política do regime populista preocuparem a Casa Branca, a PEI, especialmente, encontrava-se sob a mira do governo norte-americano. Com o golpe de 1964 tem início o regime militar e uma nova fase da política externa brasileira, a qual, todavia, será marcada por traços de conti234 Curso de Formação em Política Internacional.p65 234 5/6/2007, 12:41 Paulo Fagundes Visentini nuidade. O governo Castelo Branco (1964-1967) representou um verdadeiro recuo, abandonando o terceiro-mundismo, o multilateralismo e a dimensão mundial da PEI, regredindo para uma aliança automática com os Estados Unidos e para uma diplomacia de âmbito hemisférico e bilateral. O que embasava tal política era a geopolítica típica da Guerra Fria, teorizada pela Escola Superior de Guerra, com seu discurso centrado nas fronteiras ideológicas e no perigo comunista. Em troca da subordinação a Washington e do abandono da diplomacia desenvolvimentista, o Brasil esperava receber apoio econômico. O chanceler Juracy Magalhães chegou a afirmar que “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Como prova de lealdade ao “grande irmão do norte”, o Brasil rompeu relações com Cuba em maio de 1964 e enviou tropas à República Dominicana em junho de 1965 sob bandeira da OEA, onde também apoiava os Estados Unidos na tentativa de constituir uma Força Interamericana de Defesa. No governo Costa e Silva (1967-1969), as relações internacionais representaram uma ruptura em relação ao governo anterior, contrariando frontalmente Washington. A Diplomacia da Prosperidade do chanceler Magalhães Pinto, enquanto política externa voltada para a autonomia e o desenvolvimento, assemelhava-se muito à PEI, embora sem fazer referência à reforma social. Ressaltava que a détente entre os Estados Unidos e a URSS fazia emergir o antagonismo Norte–Sul, e em função disso se definia como nação do terceiro mundo e propugnava uma aliança com este, visando a alterar as regras injustas do sistema internacional. Tal foi a tônica na II UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), em que o discurso do representante brasileiro lhe valeu a indicação para o recém-criado Grupo dos 77, bem como na recusa em assinar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP). Na análise da política externa do regime militar, é possível identificar fases bem definidas, com características próprias, apesar da existência de diversidades internas e de determinados traços comuns entre elas. A primeira fase, o governo Castelo Branco, constituiu um período atípico, com alinhamento automático aos Estados Unidos, formalmente segundo a concepção de fronteiras ideológicas da Doutrina de Segurança Nacional antiesquerdista. Houve um nítido refluxo diplomático para o âmbito hemisférico, recuando das iniciativas esboçadas pela Política Externa Inde235 Curso de Formação em Política Internacional.p65 235 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional pendente, com a primazia da ordem interna e do saneamento econômico nos moldes do FMI. Durante esta fase foi dominante a concepção “liberalimperialista”, calcada no princípio de uma diplomacia interdependente (ou dependente). Contudo, é preciso reconhecer que o alinhamento brasileiro foi menos profundo do que se pode pensar, pois muito da subserviência externa foi resultante de problemas internos. Durante a “correção de rumos” de Castelo Branco, igualmente estavam sendo lançadas as bases de um novo ciclo de desenvolvimento. Portanto, muito das características de sua política externa pode ser considerado um efeito conjuntural. A segunda fase foi constituída pelos governos Costa e Silva, da Junta Militar (agosto a outubro de 1969), e Emílio Garrastazu Médici (19691974), caracterizando-se pelo retorno a uma diplomacia voltada para o “interesse nacional” do desenvolvimento, embora ainda marcada por um discurso aparentemente referenciado às fronteiras ideológicas. Este último aspecto se deveu, sobretudo, a elementos de política interna, como os confrontos abertos com os setores de oposição e, inclusive, a luta armada. Consistia, pois, numa forma de legitimação política interna. Iniciando com uma série de confrontos com a Casa Branca (governo Costa e Silva), houve posteriormente uma relativa margem de iniciativa autônoma nas relações com os Estados Unidos, mas ainda situadas no âmbito regional. A conjuntura interna, marcada pela luta contra os grupos de esquerda, fez do Brasil um “problema” e permitiu certa convergência com Washington, ao mesmo tempo em que o “milagre econômico” era impulsionado. Essa “aliança com autonomia” foi também possível devido ao redimensionamento da estratégia norte-americana pela administração Nixon–Kissinger, que se apoiava em aliados regionais que desempenhavam o papel de “potência média”. A terceira fase abrangeu os governos Ernesto Geisel (1974-1979) e João Figueiredo (1979-1985). O Pragmatismo Responsável retomou as linhas gerais da Política Externa Independente e, embora adotasse uma postura menos politizada e mais conservadora (ausência de referência a reformas sociais internas), avançou muito mais em termos práticos. Trata-se do apogeu da multilateralização e da mundialização da política externa brasileira. A redemocratização pouco viria a alterar a linha diplomática implantada por Geisel, embora a segunda metade dos anos 1980 tenha presenciado a afirmação de uma conjuntura internacional adversa, que desembocará na 236 Curso de Formação em Política Internacional.p65 236 5/6/2007, 12:41 Paulo Fagundes Visentini “crise do multilateralismo” a partir de 1990. Nesta terceira fase, bem como na segunda, prevaleceu a concepção “nacional-autoritária”, de viés autonomista e desenvolvimentista. A política externa do período, salvo o hiato de Castelo Branco, apresentava-se como um instrumento de apoio ao desenvolvimento econômico industrial e à construção do status de potência média, representando o ponto alto de uma estratégia iniciada com Vargas, mas cujas origens mais remotas se encontram na ideologia tenentista. Tal política, ao longo do regime militar, conduziu à busca de uma maior autonomia na cena internacional, produzindo-se um crescente processo de multilateralização e mundialização, de dimensão tanto econômica como política. Neste processo, o país necessitava exportar produtos primários de colocação cada vez mais difícil no mercado mundial, e para tanto as relações com as Europas capitalista e socialista, com a China Popular e com o Japão foram particularmente importantes. Mas a recente industrialização tornava necessário buscar mercados também para os produtos manufaturados e serviços, e para tanto as relações com América Latina, África, Oriente Médio e Ásia foram decisivas. Contudo, o país necessitava também importar capital, tecnologia e máquinas, fazendo-se necessário manter boas relações com o Norte capitalista, especialmente com os pólos emergentes europeu e japonês, mas também com o campo soviético. Com o primeiro choque petrolífero, também a importação de petróleo se tornou uma questão estratégica, implicando um estreitamento de relações com os países produtores, especialmente do Oriente Médio. A utilização da política externa como instrumento de desenvolvimento, aliada às conseqüências do desgaste das hegemonias no sistema mundial, configurou a necessidade de redefinir as relações com os Estados Unidos, imprimindo maior autonomia à diplomacia brasileira em face do “aliado privilegiado”. Para escapar à acentuada dependência diante dos Estados Unidos e para barganhar termos mais favoráveis para essa relação, o Brasil ampliou sua diplomacia para outros pólos capitalistas (Europa Ocidental e Japão), aprofundou sua atuação nas organizações internacionais e buscou estreitar ou estabelecer vínculos com o terceiro mundo e com o mundo socialista. Assim, a “verticalidade Norte–Sul” passou a coexistir com a 237 Curso de Formação em Política Internacional.p65 237 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional “horizontalidade Sul–Sul” e a “diagonalidade Sul–Leste”. Tratava-se do apogeu do processo de multilateralização. Ultrapassando a dimensão de mero campo de barganha, a multilateralidade conduziu efetivamente à mundialização da diplomacia brasileira, introduzindo mudanças qualitativas. Os vínculos com alguns países socialistas, com a China Popular e com países-chave do Oriente Próximo constituíram relações autônomas e eqüitativas entre potências de porte médio, contrariando alguns pressupostos de um sistema internacional sob hegemonia do Norte capitalista e industrial. Apesar do inegável avanço que essa política representou, ela ficou aquém de suas possibilidades, considerando-se as brechas existentes no sistema internacional de então e as potencialidades político-diplomáticas do país. Acreditamos que tal “timidez” se deveu principalmente às decorrências de uma estrutura social profundamente excludente, o que limitou e entorpeceu a ação internacional do país. Aliás, o adjetivo “responsável” agregado ao pragmatismo também pode ser interpretado como um elemento de política interna conservadora (modernização econômica sem reforma social), ao contrário da Política Externa Independente, que teria sido “irresponsável” por associar a diplomacia autônoma a mudanças sociais domésticas. Mais ainda, muito da mobilização externa de recursos se deveu à tentativa de manter internamente uma pax conservadora. Dialeticamente, era preciso ser ousado externamente para conservar internamente. Por outro lado, o elevado grau de internacionalização da economia brasileira fez que muitos setores empresariais, governamentais e políticos preferissem apostar em vínculos dependentes, inclusive como condição para manter intocadas as estruturas sociais internas. Além disso, quando as dificuldades externas cresceram na passagem dos anos 1970 para os anos 1980, muitos tentaram negociar uma acomodação com poder hegemônico, em lugar de prosseguir numa estratégia autonomista cada vez mais onerosa. Contudo, é forçoso reconhecer que o paradigma das relações exteriores dedicadas a dar suporte ao desenvolvimento econômico-industrial logrou alcançar grande parte de seus objetivos. O Brasil, ainda que marcado pelas deficiências sociopolíticas bem conhecidas, converteu-se no único país ao sul do Equador a possuir um parque industrial completo e moderno, posicionando-se entre as dez maiores economias do mundo. Este sucesso 238 Curso de Formação em Política Internacional.p65 238 5/6/2007, 12:41 Paulo Fagundes Visentini do nacional-desenvolvimentismo foi, todavia, obscurecido pelas transformações do cenário mundial nos anos 1980, bem como por suas repercussões internas. Mesmo assim, o modelo resistiu durante o primeiro governo pós-regime militar. Com o encerramento do regime militar em 1985, a política externa da Nova República apresentou uma evolução singular. O ministro Olavo Setúbal mostrou-se determinado a romper com a linha diplomática do pragmatismo responsável e do universalismo. Argumentava que o Brasil era um país ocidental, que deveria maximizar suas oportunidades individuais, em cooperação com os Estados Unidos, para chegar ao primeiro mundo. Obviamente sua ênfase foi de afastamento do terceiro mundo e de suas reivindicações. Sua política se baseava em larga medida na situação internacional, caracterizada pela relativamente bem-sucedida tentativa norte-americana de reafirmar sua liderança, pela crise e pela reforma do socialismo (a ascensão de Gorbachov foi praticamente simultânea ao início da Nova República) e pelas crescentes dificuldades do terceiro mundo, pois em 1985, na Reunião de Cúpula do G-7 em Cancún, o diálogo Norte–Sul foi abandonado. Contudo, o Itamaraty resistiu a essa nova orientação, que se assemelhava à diplomacia de Castelo Branco. Assim, no início de 1986 o chanceler era substituído por Abreu Sodré. Uma de suas primeiras medidas foi o reatamento de relações diplomáticas com Cuba, que haviam sido até então obstaculizadas por Setúbal e pelo Conselho de Segurança Nacional (CSN). A cooperação com a URSS cresceu, especialmente com as esperanças despertadas pela Perestroika, mas logo a crise soviética e a convergência entre Moscou e Washington frustraram-na. Em relação à China, intensificou-se o comércio e desenvolveram-se projetos tecnológicos, especialmente na área espacial. Com relação ao terceiro mundo e aos organismos internacionais, Sarney conservou a mesma linha que se iniciara com Geisel, mantendo atitudes que lhe valeram até o respeito da esquerda. Com relação à África, ao Oriente Médio, à Europa Ocidental e ao Japão, a política foi exatamente igual à do governo Figueiredo, só que marcada por dificuldades ainda maiores. Também permaneceu inalterada a diplomacia centro-americana do Brasil, com apoio ativo ao Grupo de Contadora e crítica à atuação dos Estados Unidos. Quanto mais se estreitavam as possibilidades de atuação do Brasil no plano global, mais a América do Sul foi valorizada como alternativa estraté239 Curso de Formação em Política Internacional.p65 239 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional gica, tendo seu eixo centrado na cooperação e na integração com a Argentina, que vivia problemas semelhantes aos do Brasil. O retorno da democracia, com os presidentes Raúl Alfonsín e José Sarney, se deu numa conjuntura adversa do ponto de vista econômico e diplomático. A crise da dívida fez que os países latino-americanos ficassem extremamente vulneráveis às pressões do FMI e do Banco Mundial, num quadro de graves dificuldades econômicas, enquanto o conflito centro-americano permitia ao governo Reagan trazer a Guerra Fria para o âmbito hemisférico, o que lhe possibilitava também utilizar instrumentos diplomáticos e militares para exercer uma pressão suplementar sobre a América Latina. Neste contexto os dois países haviam aderido ao Grupo de Apoio a Contadora e desencadeado um acercamento sistemático e institucionalizado. Em 1985, através da Declaração de Iguaçu, foi estabelecida uma comissão para estudar a integração entre os dois países, e em 1986 foi assinada a Ata para Integração e Cooperação Econômica, que previa a intensificação e a diversificação das trocas comerciais. Fruto deste esforço, em 1988 foi firmado o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento Brasil–Argentina, que previa o estabelecimento de um Mercado Comum entre os dois países num prazo de dez anos. Por trás dessa cooperação, a par dos fatores já apontados, estavam a marginalização crescente da América Latina no sistema mundial, a tentativa de formular respostas diplomáticas comuns aos desafios internacionais, a busca de complementaridade comercial, a criação de fluxos de desvio de comércio e um esforço conjunto no campo tecnológico (particularmente no nuclear) e de projetos específicos. Para o Brasil, especificamente, a integração permitia aumentar a base regional para a inserção internacional do país, num caminho que conduzirá, em 1991, à criação do Mercosul. 5. A GLOBALIZAÇÃO E A CRISE DO MODELO Nos anos 1990, o multilateralismo e o desenvolvimentismo entram em crise, com o advento das políticas neoliberais, as quais tentam alinhar o Brasil a uma “ordem mundial” estruturalmente instável. Neste contexto, o Mercosul não constituía um fim em si mesmo, nem o aspecto comercial representava o objetivo essencial, mas fazia parte de um 240 Curso de Formação em Política Internacional.p65 240 5/6/2007, 12:41 Paulo Fagundes Visentini projeto mais abrangente de redimensionamento da inserção internacional dos países da região. Quando os Estados Unidos anunciaram as articulações para a criação do NAFTA (North American Free Trade Agreement – Tratado de Livre Comércio da América do Norte) (como reação ao estabelecimento do Mercosul e da União Européia), o Brasil respondeu lançando em 1993 a iniciativa da ALCSA (Área de Livre Comércio Sul-Americana) e estabelecendo com os países sul-americanos e africanos a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZoPaCAS), numa estratégia de círculos concêntricos a partir do Mercosul. A primeira iniciativa estimulava as demais nações sul-americanas a se associar ao Mercosul através da negociação de acordos de livre comércio (Venezuela, Bolívia e Chile já negociaram formas de associação ao Mercosul). A criação de uma área de integração sul-americana, com o Mercosul como núcleo duro, ampliava a margem de manobra e a capacidade de resistência ao poder de atração que o NAFTA exercia sobre os países latino-americanos individualmente, como no caso do Chile. Além disso, a possibilidade de uma integração regional ampliada criou alternativas para que os países do subcontinente não ficassem tão expostos às pressões externas para adotar planos liberais ortodoxos de ajuste, que seriam necessários para manter relações privilegiadas com os países desenvolvidos ou estar em condições de participar do próprio NAFTA, o que se converteu em autêntico “canto da sereia” para certas nações latino-americanas. No segundo caso, a idéia era criar outro círculo concêntrico em volta do Atlântico Sul, através da cooperação do Mercosul com a África do Sul pósapartheid e com os países recentemente pacificados da África Austral. Esse novo espaço constituiria uma área de crescimento econômico, tirando proveito das complementaridade existentes e potenciais. Além disso, essa iniciativa ampliaria o quadro de cooperação Sul–Sul, além de abrir uma rota permanente para os oceanos Índico e Pacífico, propiciando ainda condições para a concertação de alianças estratégicas com potências médias e/ou mercados emergentes do terceiro mundo. Este último aspecto parece ser particularmente importante para a diplomacia brasileira. O que se deseja destacar com isto é que o Brasil passou a ocupar um espaço de liderança regional que, mesmo sem desejar, gerou uma frente de atrito e competição com os Estados Unidos. Além disso, o Mercosul se 241 Curso de Formação em Política Internacional.p65 241 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional tornou um fator de atração na cena internacional, em face das disputas entre os blocos do hemisfério Norte. Além disso, a implantação do NAFTA foi acompanhada de problemas imprevistos. No dia em que entrou em vigor, eclodiu o levante zapatista no sul do México, e no final de 1994, em meio à crise política daquele país (assassinato do candidato oficial à presidência da República), desencadeou-se a crise cambial e financeira, com o “efeito tequila” repercutindo em toda a América Latina, reforçando ainda os setores políticos norte-americanos opostos ao NAFTA. Em novembro de 1994, para completar o quadro, os republicanos venceram as eleições legislativas nos Estados Unidos, tornando ainda mais difícil a aprovação do fast track, peça-chave para manter os países latino-americanos voltados para a integração com o Norte. Neste quadro relativamente adverso para a Casa Branca foi lançada na Cúpula das Américas, realizada em Miami em dezembro de 1994, a iniciativa da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Na ótica dos Estados Unidos, era preciso retomar a iniciativa política, dando uma resposta aos avanços do Brasil/Mercosul e à crise de confiança que a crise mexicana despertava no continente em relação à estratégia de Washington. Como reação a isso, o Mercosul assinou um acordo marco de cooperação com a União Européia em dezembro de 1995. A estratégia de inserção internacional foi centrada no Plano Real, com a atração de capitais estrangeiros via privatizações, causando enormes danos ao patrimônio nacional. O país se tornou deficitário no comércio exterior de forma sistemática, pela primeira vez na história. O ufanismo liberal-globalista, marcado por um filo-americanismo caricato, foi irradiado pelo governo em direção ao Itamaraty e à sociedade em geral. O segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002), contudo, coincidiu com o início da instabilidade financeira internacional, que golpeou duramente o modelo de inserção internacional que vinha sendo seguido até então. O governo teve de alterar rumos e priorizar a integração sul-americana, enquanto cresciam as pressões norte-americanas em favor da ALCA. Todavia, a eleição de George W. Bush e os atentados de 11 de setembro de 2001 deslocaram a agenda norte-americana para fora da região, o que seguramente facilitou certos desdobramentos políticos que viriam a ocorrer. 242 Curso de Formação em Política Internacional.p65 242 5/6/2007, 12:41 Paulo Fagundes Visentini Na América Latina as pressões norte-americanas cresciam, com a militarização e o avanço da proposta da ALCA, em meio à crise do chamado Consenso de Washington (agenda neoliberal para o continente). No México, encerrou-se a longa era de domínio do PRI (Partido Revolucionário Institucional), com a vitória do pró-norte-americano Vicente Fox. Às pressões contra Cuba e o regime popular-nacionalista de Chávez na Venezuela, somou-se a proposta do Plano Colômbia de combate ao narcotráfico e às guerrilhas de esquerda. Crises de governabilidade se espalharam pelo empobrecido continente, especialmente no Peru, na Argentina e na Bolívia. A Argentina, cujos dirigentes alegavam possuir relaciones carnales com os Estados Unidos, sofreu um completo colapso econômico-financeiro no final de 2001, sem receber nenhum socorro internacional, particularmente dos Estados Unidos. O neoliberalismo encontrava-se na defensiva, pois, além da crise econômica, Collor, Salinas de Gortary, Menen e Fujimori, antes apontados como modelos, tornaram-se homens com dívidas a acertar com a justiça de seus países. Mas o pivô da região era o Brasil. Diante do avanço da ALCA e da crise do Mercosul, procurou avançar a integração física dos países sul-americanos (Cúpulas de Brasília em 2000 e de Guayaquil em 2002). O país procurava construir um espaço econômico de contrapeso à ALCA, como forma de constituir um pólo protagônico para a construção de um sistema internacional multipolar. Contudo, o elemento decisivo foi a eleição presidencial de 2002, com a vitória da esquerda com o candidato Luiz Inácio Lula da Silva. Abriuse espaço para uma reação de caráter tanto social como nacional, que pode ter grande influência no fragilizado continente. O atual curso da política externa brasileira teve início já em meados do segundo governo Fernando Henrique Cardoso. Mas o ex-presidente não possuía os requisitos para uma mudança que ultrapassasse um tímido discurso crítico, o que coube ao atual mandatário. Em primeiro lugar, o governo Lula devolveu ao Itamaraty a posição estratégica que anteriormente ocupara na formulação e na execução da política exterior do Brasil, pois FHC dominara a parte política (“diplomacia presidencial”), o ministro Malan a agenda econômica internacional, restando ao Ministério das Relações Exteriores apenas a parte técnico-burocrática das negociações e receber as críticas. 243 Curso de Formação em Política Internacional.p65 243 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Evidentemente, Lula desenvolve uma intensa agenda internacional, mas como porta-voz de um projeto que transcende objetivos de projeção pessoal e adesão subordinada à globalização. Aliás, esta é a grande diferença: o “desalinhamento da política” externa em relação ao “consenso” liberal norte-atlântico como forma de “recuperar a capacidade de negociação”. Ao aceitar previamente os postulados e agendas dos países desenvolvidos, não havia muito o que negociar, apenas adaptar-se (desde os anos 1970 FHC criticava o desenvolvimentismo em suas conferências nos Estados Unidos). Visto pela perspectiva do G-7, por que conceder alguma coisa a quem já aceitou seu projeto? Ironicamente, hoje o Brasil tem melhor diálogo com Washington e uma diplomacia mais respeitada, com capacidade de negociação. Outro ponto importante é que o Brasil age com otimismo e vontade política, criando constantemente fatos políticos na área internacional. Anteriormente tínhamos uma baixa auto-estima, pois os governos Collor e Cardoso viam o país como atrasado em relação aos ajustes demandados pelos países ricos. Agora, ao contrário, o país se considera protagonista de mesmo nível, com capacidade de negociação e portador de um projeto que pode, inclusive, contribuir para inserir a agenda social na globalização. Isso capacita o país para iniciativas como o ingresso num Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas) reformado, como membro permanente. Finalmente, o Itamaraty, em lugar de se concentrar na tentativa de cooperação com países em relação aos quais somos secundários e em relação a mercados grandes, mas saturados, buscou os espaços não ocupados. Ao nos aproximarmos dos vizinhos sul-americanos, especialmente os andinos, da África Austral, dos países árabes e de gigantes como Índia, China e Rússia, nossa diplomacia logrou um avanço imediato e impressionante, com grandes perspectivas comerciais. A presença de empresários e de convidados argentinos na delegação presidencial é uma marca importante na sensibilidade da nova diplomacia. Além disso, a cooperação com esses países permitiu a construção de alianças de geometria variável como o G3 e o G20, com influência marcante no plano global. Em lugar de uma diplomacia de forte conteúdo ideológico, o Brasil desenvolveu uma postura ativa e pragmática, buscando aliados para cada problema, contestando sem desafiar os grandes (como nas negociações 244 Curso de Formação em Política Internacional.p65 244 5/6/2007, 12:41 Paulo Fagundes Visentini comerciais e no caso do desrespeito anglo-americano em relação à ONU), respeitando sem respaldar a posição de países problemáticos como Venezuela, Cuba, Líbia e Síria, por exemplo. Enfim, o Brasil desenvolveu uma diplomacia própria, adequada à era da globalização, com um projeto de desenvolvimento para o país. O problema é que ela desperta imensas expectativas, e somente poderá dar resultados se houver desenvolvimento econômico e geração de empregos (que nem sempre estão juntos). Ajustes internos e esquemas externos foram realizados para tanto, mas variáveis internacionais são importantes. Dependemos ainda de um mundo muito instável para que esse projeto dê resultados positivos. Sem crescimento não conseguiremos consolidar os grandes avanços logrados na área sul-americana, base de nossa inserção internacional. Mas é preciso reconhecer que em 20 anos ocorreram mudanças políticas significativas no país. Uma parte importante da sociedade “globalizou-se” (no mau sentido da palavra, isto é, alienou-se) e perdeu a dimensão nacional. Quando o governo simplesmente manifesta certos pontos de vista, como em relação ao direito de dominar o ciclo nuclear (com fins pacíficos), ou adota medidas de soberania, como em relação ao problema da reciprocidade no fichamento de passageiros norte-americanos, vozes brasileiras se levantam contra. Isso revela um agudo problema de identidade ou a persistência de um sentimento de inferioridade. A política econômica, por exemplo, demonstra como a visão de mundo do Consenso de Washington contaminou parte da elite e dos especialistas. A grande batalha, contudo, é a integração sul-americana, objetivo prioritário do governo. Recuperar o Mercosul e associá-lo à Comunidade Andina é o objetivo estratégico, base da inserção internacional do país (Costa, 2004), e a alternativa viável à integração hemisférica projetada pela ALCA. Da mesma forma, a cooperação nos campos diplomático, científico, militar e econômico com os grandes países em desenvolvimento, como Rússia, China, Índia e África do Sul, são uma condição indispensável para o país se tornar um dos pólos de poder num sistema mundial multipolar e um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Pensar grande e agir, dentro de um projeto nacional soberano, é igualmente um elemento necessário para que o país possa atingir o desenvolvimento econômico e social. 245 Curso de Formação em Política Internacional.p65 245 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional BIBLIOGRAFIA ALBUQUERQUE, José Guilhon. Sessenta anos de política externa brasileira. São Paulo, Cultura, 1996, 2 vols. BANDEIRA, Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil. 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Mello 1 Este artigo propõe uma discussão sobre a política externa na área comercial do primeiro governo Lula (2003-2006), a partir do ponto de vista das organizações e dos movimentos sociais que atuam nesta área. A atuação desses movimentos e organizações revela que a política externa brasileira na área comercial tornou-se objeto de forte disputa no âmbito da política nacional, expondo como as posições negociadoras na arena comercial refletem as opções de política interna e a correlação de forças doméstica. Para tal, o artigo apresenta, em primeiro lugar, alguns tópicos de debate no campo analítico, visando reforçar as abordagens que atestam a diluição das fronteiras entre as políticas externa e interna. A segunda parte do artigo propõe uma análise da política comercial do primeiro governo Lula segundo as continuidades e rupturas em relação à política do governo anterior, particularmente no caso das negociações da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) e da Rodada de Doha da OMC (Organização Mundial do Comércio). 1. A DILUIÇÃO DAS FRONTEIRAS ENTRE POLÍTICA EXTERNA E POLÍTICA INTERNA Acabou-se o tempo em que se podia pensar a formulação da política externa de forma dissociada da política doméstica. As posições externas do Brasil nas negociações internacionais de comércio e as opções do país de políticas internas não são de forma alguma distintas mas estão diretamente articuladas, ao contrário do que propõe a abordagem realista clássica. A 1 Diretora da FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional) e secretária executiva da Rebrip (Rede Brasileira pela Integração dos Povos). 247 Curso de Formação em Política Internacional.p65 247 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional diluição das fronteiras entre o exteno e o interno não significa, no entanto, que o Estado nacional, o poder e outros elementos estruturais da ordem internacional e que orientam a ação externa das unidades nacionais perderam validade. Propomos aqui uma análise que seja uma combinação de condicionantes externos e internos. Grosso modo, é sabido que em um dos extremos do leque de abordagens sobre as relações internacionais encontra-se o realismo clássico, cujas principais premissas seriam o fato de não existir autoridade acima dos Estados nacionais, a dimensão absolutamente central do poder, a soberania dos Estados e a separação entre as esferas doméstica e internacional. As perspectivas realistas concebem, portanto, as relações internacionais totalmente centradas no Estado, que por sua vez seria um ator unitário e racional, sem conflitos internos nem fragmentações. O interesse nacional seria único, e de uma maneira geral a dimensão de política doméstica seria irrelevante para a política internacional, muito embora autores como Aron considerem importante a dimensão interna dos Estados e a natureza e a qualidade de cada uma das unidades do sistema; Raymond Aron critica a idéia do interesse nacional sem conflito, problematizando a questão de quem formula o interesse nacional. Stephen Krasner também argumenta que para que se possa definir o interesse nacional é necessário olhar para dentro do Estado a fim de examinar quais negociações domésticas são necessárias. A maioria dos autores realistas, entretanto, focaliza na correlação de forças entre Estados e mantém a visão de insulamento do Estado. Este é o caso de Kenneth Waltz, que argumenta que o interesse nacional seria deduzido da posição do Estado em relação aos demais, ou seja, do elemento estrutural da posição relativa do Estado. Se fôssemos adotar apenas os dois extremos do espectro de abordagens analíticas sobre relações internacionais, no pólo oposto ao realismo estaria localizada a perspectiva de governo mundial. Os defensores de tal perspectiva argumentam que há uma mudança qualitativa em curso no sistema, e uma das expressões disso seria a pluridade de atores e de temas, entre eles a participação e o peso político crescentes na política internacional de atores não-estatais como as ONGs (Organizações não-governamentais) e os movimentos sociais. O sistema atual seria caracterizado, portanto, pelo fim da primazia das questões estratégico-militares, acompanhado da emergência de valores e de normas compartilhados por todos os atores do sistema, por 248 Curso de Formação em Política Internacional.p65 248 5/6/2007, 12:41 Fátima V. Mello forte erosão das soberanias – resultante da intensa aproximação entre política doméstica e internacional – e por altas dispersão e desagregação do poder. Segundo tal perspectiva, ao acabar com a primazia dos temas estratégico-militares, as questões da chamada “baixa política”, relacionadas ao bemestar dos cidadãos, e portanto mais próximas à formulação de demandas societais, passam a ser objeto de negociação internacional. Além disso, a natureza “global” dos problemas da atualidade resultaria quase que automaticamente em cooperação fundada em valores comuns. Na atualidade, embora seja possível identificar um grau razoável de erosão dos Estados nacionais no que diz respeito à possibilidade de formularem autonomamente suas políticas diante da interdependência e da aproximação crescentes entre política doméstica e internacional, estes continuam a ser os atores centrais das relações internacionais, cuja configuração, ao que tudo indica, continuará sendo a de um sistema interestatal, embora tenda a incorporar inúmeras e importantes mudanças resultantes de uma ordem em transição. Algumas interpretações sugerem que, à medida que a idéia de um mundo cada vez mais globalizado avança, mais perde força, em proporção inversa, o pensamento realista. As evidências, porém, levam a crer que se faz necessário um exame mais cuidadoso. É verdade, por exemplo, que os Estados nacionais sofrem pressões e condicionamentos externos fortíssimos advindos do capitalismo globalizado, e que os impactos dessa dinâmica são devastadores, visto que as agendas de política econômica passam a ficar cada vez mais dependentes de condicionamentos externos. O fenômeno da globalização também desafia as premissas realistas do Estado nacional como ator unitário, que vem perdendo sua exclusividade como ator das relações internacionais, passando a conviver com a emergência de novos atores, como é o caso de forças transnacionais de elevadíssimo poder (como o capital financeiro) e de outras que atuam no campo da normatividade e da construção de valores e de regras a ser observados por todas as unidades do sistema, como por exemplo as ONGs e os movimentos sociais. O reconhecimento dessas evidências não resulta, entretanto, na conclusão de que haveria um grave comprometimento das capacidades do Estado-nação; diante desse contexto, ocorre uma perda de autonomia dos Estados nacionais em relação à sociedade, porém não necessariamente perda de capacidade (RisseKappen, 1995). 249 Curso de Formação em Política Internacional.p65 249 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Se a erosão dos Estados nacionais não vem se confirmando como tendência absoluta, por outro lado pode-se afirmar que há aspectos do paradigma realista que estão sendo fortemente colocados em questão pelo fenômeno da globalização. Este é o caso da premissa da separação entre política interna e política externa. A idéia clássica de uma sociedade internacional na qual as unidades se inter-relacionam sem interferir nos assuntos internos das outras já não existe no cenário atual (Lyons e Mastanduno, 1995). Tal interação entre o doméstico e o internacional já havia sido proposta por Putnam em seu modelo de jogos de dois níveis (Putnam, 1988), que defende a integração entre política doméstica e internacional, mas com a manutenção, no entanto, da unidade negociadora centrada no Estado. Embora reiterando a centralidade (porém não a exclusividade) do Estado nacional – o Estado continua a ser o mediador entre o interno e o externo, e tem de enfrentar o problema de compatibilizar as negociações internacionais com as dinâmicas domésticas –, estes modelos interativos trazem implícita a idéia de que os Estados não possuem mais o controle total nem do ambiente internacional nem do doméstico. Putnam trabalha, portanto, com a idéia de jogos em dois níveis, que integram a dinâmica doméstica com a política internacional, e com a necessidade de combinar a dimensão estrutural com o processo decisório, mantendo a unidade negociadora centrada no Estado, ou seja, é o Estado que negocia com a sociedade e faz toda a mediação. Autores como Skidmore e Hudson (1993) organizam esta discussão segundo as dimensões estatal e societal. No caso da dimensão estatal, a política externa é distinta da política doméstica, dado que a primeira trata do interesse nacional, que por sua vez trata da sobrevivência do Estado. Neste caso, a política externa não está sujeita à politização ou a diferentes pontos de vista, pois supostamente ninguém pode ser contra a defesa da sobrevivência do Estado, que se trata do bem público. A política externa, portanto, não faria parte do conflito doméstico, caracterizando-se por ser uma política de Estado que está acima dos conflitos da sociedade. Já a dimensão societal é resultante de interesses particulares da sociedade, e é articulada à idéia de que a política externa tem impactos diferenciados na sociedade. Ou seja, há políticas que beneficiam determinados setores, enquanto outros são prejudicados. Essa abordagem tem como foco a necessidade de examinar a política externa em sua relação com a sociedade. Na verdade, temas como agenda econômico250 Curso de Formação em Política Internacional.p65 250 5/6/2007, 12:41 Fátima V. Mello comercial, meio ambiente, direitos humanos aproximam a política doméstica da política externa, ocorrendo assim uma politização desta última. As abordagens do tipo realista-estrutural não são adequadas, portanto, para a análise da política externa brasileira recente na área comercial, pois essas perspectivas partem de uma avaliação sobre as opções disponíveis para determinado Estado nacional, de acordo com sua posição relativa dentro do sistema internacional. Assim, para um país periférico e dependente como o Brasil, restaria uma margem muito limitada de opções, pois são poucos os seus recursos de poder para tentar alterar a chamada geografia comercial, ou seja, as relações de poder que organizam as negociações de comércio no sistema internacional atual. No entanto, sem deixar de considerar as limitações estruturais do Brasil no sistema intenacional, é preciso reconhecer que o país tornou-se um ator central no concerto de países que formam o núcleo duro do processo decisório sobre o comércio mundial. As motivações e as ferramentas negociadoras serão discutidas na próxima seção. 2. POLÍTICA COMERCIAL DO PRIMEIRO GOVERNO LULA: CONTINUIDADES E RUPTURAS COM O PERÍODO ANTERIOR Desde 2003, o Brasil passou a integrar o núcleo decisório de dois processos de negociação comercial: a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) e a Rodada Doha da OMC (Organização Mundial do Comércio). Estes dois processos, somados ao investimento na integração da América do Sul, formam o coração da política externa do primeiro governo Lula na área comercial. Uma das principais rupturas em relação à política externa do período anterior se fez sentir logo no primeiro ano do governo Lula, em 2003, quando os negociadores brasileiros atuaram de forma coordenada em duas frentes para, por um lado, esvaziar as negociações para a formação da ALCA e, por outro, na reunião ministerial da OMC em Cancún, no México, para formar uma coalizão de países em desenvolvimento – o G20 – com o intuito de tentar equilibrar e desbloquear as complicadas negociações da Rodada de Doha (Mello, 2007). 2.1 A RODADA DE DOHA E A CRIAÇÃO DO G20 As iniciativas tomadas pelo governo brasileiro na reunião ministerial de Cancún devem ser analisadas tomando-se como pano fundo o elemento 251 Curso de Formação em Política Internacional.p65 251 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional estrutural que orienta o Brasil no âmbito da OMC: desde a Rodada Uruguai os governos brasileiros vêm buscando, primeiro no GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio) e posteriormente na OMC, a liberalização do comércio agrícola. A prioridade dos diversos governos brasileiros sempre foi a busca de ampliação do acesso aos mercados de produtos agrícolas nos Estados Unidos e na União Européia, mediante redução de barreiras tarifárias e não-tarifárias, eliminação dos subsídios à exportação e redução substancial do apoio doméstico nesses países. Para tanto, o Brasil atuava essencialmente através de uma coalizão de países agroexportadores (desenvolvidos e em desenvolvimento) conhecida como Grupo de Cairns. Desde o seu início, o governo Lula não deixou dúvidas sobre o seu compromisso e sobre a prioridade que daria à OMC e a uma solução para a Rodada de Doha. Em sua percepção, o âmbito multilateral seria mais favorável ao Brasil porque ali a configuração de forças seria melhor do que nos acordos regionais e bilaterais, nos quais o Brasil teria que, isoladamente, medir forças com Estados Unidos e União Européia (Rebrip, 2006). O novo governo, portanto, investiu seu esforço negociador em viabilizar os interesses comerciais da agricultura exportadora (o chamado agronegócio ou agricultura patronal) por meio do avanço da Rodada de Doha. Esta prioridade negociadora O ESVAZIAMENTO DA ALCA O acordo que resultou no esvaziamento da ALCA foi realizado na reunião ministerial de Miami, em novembro de 2003. Elaborada pela então co-presidência Brasil–Estados Unidos, a Declaração Ministerial indicava que a partir daquela reunião a ALCA seria negociada em dois pisos: 1) um piso mínimo, ou seja, uma base comum aos 34 países, em que seriam incluídas obrigações em todos os temas que sempre existiram nas negociações da ALCA (acesso a mercados, agricultura, serviços, investimentos, compras governamentais, propriedade intelectual, política de concorrência, subsídios, antidumping e direitos compensatórios, e solução de controvérsias). A reunião de Miami, no entanto, não definiu o grau de compromisso a ser assumido pelos 34 países em cada um desses temas e adiou 252 Curso de Formação em Política Internacional.p65 252 5/6/2007, 12:41 Fátima V. Mello “reflete o imenso peso que tem o agronegócio na estrutura de poder político na sociedade brasileira – expresso, entre outros exemplos, na bancada ruralista e na incapacidade de todos os governos em resolver o problema histórico-estrutural que marca mais fortemente a sociedade brasileira que é o latifúndio. Nenhum outro setor econômico tem tamanha relação orgânica com as estruturas de poder no Brasil. Em nome da liberalização agrícola o Brasil sempre concordou em fazer concessões nas outras áreas de negociação, a exemplo das concessões em propriedade intelectual (TRIPS) na Rodada Uruguai para conseguir um pífio acordo agrícola, e (na Rodada de Doha) acenou com concessões em NAMA e em serviços” (Rebrip, 2006). Outro fator importante a ser assinalado sobre a formação da posição negociadora do Brasil na OMC durante o governo Lula é a abertura à participação de organizações, de redes e de movimentos sociais nas instâncias de debate acerca da formação das posições negociadoras, o que permite até mesmo o ingresso desses atores nas delegações oficiais de governo durante reuniões ministeriais. De fato, o governo Lula avançou como nunca em relação à transparência e à inclusão desses atores no essas decisões substantivas para uma posterior reunião; 2) um segundo piso, em que os países poderiam assumir níveis distintos de compromissos adicionais no âmbito da ALCA, por meio de acordos bilaterais e/ou plurilaterais. Pode-se afirmar que em Miami, pela primeira vez, os Estados Unidos abriram mão – pelo menos temporariamente – de sua proposta de ALCA abrangente, ou seja, em que todos os 34 países deveriam estabelecer compromissos plenos em todas as áreas em negociação. Isso foi considerado uma derrota temporária da política externa e de comércio do governo George W. Bush, mas que em seguida foi compensada pelo avanço de acordos bilaterais de livre comércio (algo como mini-ALCAs) com Colômbia, Peru, países da América Central e República Dominicana, além de um acordo para a liberalização de investimentos com o Uruguai, em uma clara tentativa de isolar e fragmentar o Mercosul. 253 Curso de Formação em Política Internacional.p65 253 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional debate interno de formação da posição brasileira. O fato de terem sido incluídos no jogo não significa, no entanto, de forma alguma, que o governo tenha adotado as posições desses setores sociais. Embora haja canais de diálogo, as divergências destes em relação à posição do governo na OMC e em outras negociações comerciais são conhecidas e explicitadas de forma permanente. Ainda há que se mencionar que, diferentemente de outros governos, no governo Lula sentam-se à mesa de negociações também ministérios (como o do Desenvolvimento Agrário, do Meio Ambiente e outros) mais sensíveis às reivindicações dos movimentos sociais. A combinação de pressões a partir da sociedade civil e desses ministérios tem garantido alguns (pequenos) avanços nas posições negociadoras do país, por exemplo na defesa da agricultura familiar e camponesa diante das ameaças do “livre comércio” – como é o caso de algumas sinalizações de apoio do governo brasileiro ao tema das salvaguardas para produtos especiais e medidas de trato especial e diferenciado para os produtos da agricultura familiar. Apesar dessas novidades, o governo Lula deu continuidade à política comercial dos governos anteriores em um aspecto fundamental, que é a centralidade do objetivo de liberalização do comércio agrícola. Lula buscou a liberalização através de uma nova política de alianças na OMC, em que a importância do Grupo de Cairns na estratégia brasileira deu lugar a uma DIVERGÊNCIAS NA OMC As divergências em curso na Rodada de Doha são amplas e traduzem diferenças políticas em relação às concepções sobre o peso e a autonomia que deve ter a política internacional diante das políticas domésticas. Ou seja, divergem sobre o grau de autonomia que a esfera da política nacional deve, ou pode, ter em relação à economia e ao poder decisório das instituições internacionais que, no caso da OMC, espelham os interesses de empresas globais. As divergências nas negociações da OMC envolvem muitos problemas, e talvez um dos mais difíceis de ser equacionado diga respeito às negociações sobre acesso a mercados em que, de um lado, os chamados países em desenvolvimento priorizam a 254 Curso de Formação em Política Internacional.p65 254 5/6/2007, 12:41 Fátima V. Mello nova aliança com as maiores economias do mundo em desenvolvimento, resultando na criação do G20, no qual se destacavam Brasil, África do Sul, Índia e China (Rebrip, 2006). A aposta brasileira na formação do G20 buscou atender, portanto, a dois objetivos da política externa: um, mais ligado aos interesses econômicos do setor agroexportador, de ampliar os mercados para os produtos do agronegócio e das grandes empresas a ele vinculadas; e outro, de natureza política, de liderar uma coalizão de países em desenvolvimento de forma a buscar uma alteração na correlação de forças no sistema internacional, que primeiro passasse pela democratização das negociações na OMC, para depois ir produzindo efeitos em outras instâncias do sistema internacional. Na prática, a iniciativa de criação do G20 e toda a movimentação cujo ápice se produziu na reunião ministerial de Cancún teve um resultado político da mais alta relevância: produziu uma quebra do ambiente existente até 2002 no sistema multilateral de comércio, alterando assim a balança de poder e o processo decisório na OMC. Este é um fato muito relevante se levamos em consideração que até então o núcleo formado pelos países do Norte mantinha um padrão extremamente fechado em relação ao processo de tomada de decisões, caracterizado pelos chamados Green Rooms, quando os países desenvolvidos, em momentos-chave, se fechavam para decidir os rumos das negociações e os demais países ficavam do lado de fora aguar- ampliação de suas exportações agrícolas para os mercados do Norte e, de outro, os chamados países desenvolvidos concentram-se no interesse de expansão dos negócios de suas empresas na área de serviços (financeiros, telecomunicações, de água, energia, audiovisual etc.), de seus bens industrializados e de propriedade intelectual. Desde a VI Reunião Ministerial da OMC, realizada em Hong Kong em dezembro de 2005, o foco da disputa e das inúmeras tentativas de desbloqueio das negociações está situado nas barganhas cruzadas entre agricultura, serviços, propriedade intelectual e NAMA (Non-Agricultural Market Access); trata-se do acordo para a redução de tarifas de importação de produtos industrializados e da liberalização do comércio de produtos florestais como madeira e pesca, entre outros. 255 Curso de Formação em Política Internacional.p65 255 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional dando as decisões. O resultado do “empate” inaugurado em Cancún é que hoje há diversas coalizões de países (além do G20, o G90, o G33, entre outras cuja formação se dá em torno de interesses mais imediatos e conjunturais) que se reúnem em torno de agendas comuns. O investimento no G20 passou a ser objeto de debate interno no Brasil: “o agronegócio inicialmente se opôs à nova estratégia do governo brasileiro. Para alguns líderes deste setor a relativização da centralidade do acesso a mercados era uma inaceitável concessão2. O governo, contudo, conseguiu rapidamente convencer o agronegócio de que o G20 era na realidade a maneira mais eficaz de conseguir uma liberalização agrícola nas áreas possíveis (subsídios). Já as organizações da sociedade civil consideraram o surgimento do G20 como uma oportunidade de, por um lado, alterar a correlação de forças na OMC com uma nova configuração mais favorável aos países em desenvolvimento e, por outro lado, como uma oportunidade de bloquear as negociações. Nosso apoio ao G20 se deu pela percepção de que através dele seria possível sinalizar a necessidade de uma nova ‘geografia política’, porém ainda insuficiente para os movimentos sociais, já que a coalizão se propunha a disputar o jogo dentro dos parâmetros do livre comércio, e nunca enunciou o interesse em lançar as bases de novos paradigmas. As organizações da sociedade civil brasileira avaliaram e compreenderam desde o início os limites e oportunidades do G20. Na disputa doméstica, algumas organizações e movimentos sociais reforçaram a mudança na configuração de poder, apostando, diferentemente do governo, no fracasso da Rodada. Outras também utilizaram a criação do G20 para aprofundar a disputa doméstica com o agronegócio, como foi o caso de setores da 2 A criação do G20 viabilizou-se em ampla medida pela aliança entre Brasil e Índia, e por isso a agenda da coalizão inclui tanto o pilar de interesse do Brasil – eliminação de subsídios e de apoio doméstico – quanto o de interesse da Índia – políticas de apoio ao desenvolvimento rural. 256 Curso de Formação em Política Internacional.p65 256 5/6/2007, 12:41 Fátima V. Mello agricultura familiar que viram na ascensão da discussão do trato especial e diferenciado no G20 uma oportunidade de lutar contra o agronegócio, e para que o governo brasileiro adotasse uma posição inédita de defesa de produtos especiais e mecanismos de salvaguardas especiais. Em ambos os casos, entretanto, estas organizações e movimentos brasileiros sempre tiveram consciência de que se tratava de um grupo pragmático e pró-acordo” (Rebrip, 2006). De sua parte, o governo Lula vê em seu papel no G20 uma forma de se legitimar como ator político relevante no sistema global, sendo esta coalizão uma ferramenta central de fomento das relações Sul–Sul a partir de interesses econômicos comuns. Essa busca de legitimação explica, inclusive, a insistência do Brasil em querer destravar a Rodada de Doha a qualquer custo, quando todos os sinais apontam para obstáculos praticamente intransponíveis. 2.2 O ESVAZIAMENTO DAS NEGOCIAÇÕES DA ALCA Lula inseriu sua política de comércio em uma visão geopolítica de mudança de eixo da política externa brasileira para o Sul, ao contrário do governo anterior de Fernando Henrique Cardoso, que centralizava sua estratégia externa na ALCA e nas relações com os Estados Unidos e a União Européia. Neste sentido, o esvaziamento das negociações da ALCA talvez seja o símbolo mais importante das rupturas realizadas pela política externa do governo Lula. Somado a uma percepção de que um alinhamento tão subordinado aos Estados Unidos não corresponderia a uma trajetória de longa data da política externa brasileira caracterizada por manter um pluralismo pragmático nas relações internacionais, a decisão pelo investimento no esvaziamento das negociações ocorreu também porque passou a haver, no setor exportador ligado ao agronegócio, a forte convicção de que não haveria obtenção de ganhos de acesso ao mercado agrícola dos Estados Unidos por meio da ALCA. A estratégia de esvaziamento também respondeu aos fortes anseios vindos da opinião pública brasileira, que foi convocada pelos movimentos sociais através da Campanha Brasileira Contra a ALCA a resistir ao avanço das negociações (Mello, 2007). Jamais um acordo comercial atingiu um grau de debate público tão amplo como foi o caso da ALCA. Uma ampla campa257 Curso de Formação em Política Internacional.p65 257 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional nha nacional contra a ALCA formou-se, reunindo igrejas, pastorais, sindicatos, partidos políticos, ONGs, movimentos de mulheres, de estudantes, camponeses, urbanos, de professores, de defesa da saúde pública. Essa campanha realizou um sem-número de atividades de informação e capacitação junto a grupos de base sobre os potenciais impactos que o ingresso do Brasil na ALCA poderia produzir no cotidiano da população, restringindo o acesso a serviços essenciais, anulando direitos conquistados, ampliando as privatizações e o controle de empresas estrangeiras sobre setores-chave de nossa economia, voltando a agricultura ainda mais para o mercado externo, limitando a capacidade do governo de formular políticas públicas soberanas e atrelando o país aos interesses dos Estados Unidos. Foi realizado um intenso processo de mobilização – incluindo passeatas, marchas e outras ações de massas – que culminou na realização, no ano de 2002, de um plebiscito em que a pergunta era se o Brasil deveria integrar a ALCA, tendo-se alcançado um total de 10 milhões de votos contrários. Esse amplo esforço dos movimentos sociais brasileiros de politização do debate sobre a ALCA se somou a um esforço similar em diversos países das Américas, consolidando uma Aliança Social Continental, uma rede de redes com abrangência do Canadá ao Uruguai, unida em torno do objetivo comum de lutar contra a ALCA a partir do fortalecimento e da ampliação das resistências no interior de cada país. Esse processo de mobilização da opinião pública punha ênfase nos impactos que um acordo como a ALCA produziria nas políticas e nos direitos no interior do país, expondo claramente os nexos entre as opções externas e as políticas domésticas. O argumento utilizado era de que, ao contrário do que afirmavam representantes dos governos do continente americano sobre a limitação das negociações da ALCA à criação de uma área de livre comércio, o que estava em jogo na verdade era a manutenção, ou não, e com que abrangência, da prerrogativa regulatória e do poder decisório dos Estados nacionais. As regras em negociação protegeriam os investidores privados em detrimento das conquistas de movimentos sociais por todo o continente americano, que haviam conseguido assegurar, embora freqüentemente sem a devida implementação, alguns direitos, normas e regulações no âmbito das legislações nacionais. As redes que formam a Aliança Social Continental e a Campanha Brasileira contra a ALCA ressaltavam também a natureza antidemocrática de 258 Curso de Formação em Política Internacional.p65 258 5/6/2007, 12:41 Fátima V. Mello acordos como a ALCA, que obedecem a um padrão de negociação e aprovação em que as sociedades não são consultadas e em que não há transparência. No caso da ALCA, a divulgação dos rascunhos dos textos dos grupos de negociação – que foi o resultado de incansáveis pressões de organizações sociais e sindicais de todo o continente – não foi suficiente para alterar o caráter fechado que caracterizou o processo negociador. As negociações eram levadas a cabo por setores dos poderes executivos, em consultas com setores empresariais, restando aos Parlamentos o papel de meros ratificadores ao final do ciclo negociador (Mello, 2002). A permeabilidade entre o interno e o externo, portanto, é diretamente condicionada pela questão democrática. O jogo de pressões entre interesses múltiplos e freqüentemente antagônicos só pode ocorrer em um ambiente em que haja a possibilidade de se disputar na esfera pública os rumos da formação das posições negociadoras. 3. POR UMA EFETIVA DEMOCRATIZAÇÃO DOS PROCESSOS DECISÓRIOS EM POLÍTICA COMERCIAL Além dos riscos econômicos, acordos visando a liberalização comercial, como é o caso da ALCA, das regras negociadas na OMC e de outros acordos como o Mercosul–União Européia, também tendem a colocar em risco a consolidação da democracia em um país como o Brasil. A dinâmica negociadora desses acordos permite que a diplomacia atue em nome de um suposto interesse nacional, como se este fosse único e a sociedade não fosse permeada de conflitos de interesses. Ainda que o governo Lula tenha criado mecanismos de acesso a informações e de ampliação da transparência, as negociações desses acordos seguem com um padrão bastante fechado, concentrado no poder Executivo, contando com o Parlamento apenas marginalmente para ratificar o processo ao seu final, e com instâncias de consulta à sociedade que se limitam a informar de forma superficial sobre as negociações em curso, sem recolher propostas a ser de fato processadas e incorporadas à formação da posição negociadora. Experiências de instâncias como a Senalca e Seneuropa3 têm precisamente esta limitação na 3 Trata-se de instâncias – criadas no âmbito do Ministério das Relações Exteriores – de informação e consulta sobre as negociações da ALCA e do acordo União Européia–Mercosul, reunindo setores empresariais, representantes de ministérios, parlamentares e alguns sindicatos e ONGs. 259 Curso de Formação em Política Internacional.p65 259 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional origem de sua criação. A formação das posições negociadoras ainda reflete de forma preocupante o jogo de pressões exercido dentro de gabinetes e em reuniões e conversas informais, por parte de um grupo de empresários e lobistas que integram o fechado clube que se sente dono do poder no país. Um passo importante, portanto, para que se possa formular políticas comerciais e de integração alternativas e democráticas é o estabelecimento de uma relação direta e institucionalizada entre as políticas interna e externa. Uma política comercial democrática deve ser necessariamente permeável à sociedade, dialogando com a correlação de forças e os conflitos domésticos, e colocando limites à autonomia estatal nas negociações. “Mecanismos de controle político externos à agência diplomática são imprescindíveis para a conciliação, em contextos democráticos, dos recursos de autoridade e de representação necessários à credibilidade da política externa junto aos interlocutores e parceiros externos” (Lima, 2000). Em décadas anteriores a política externa brasileira se “ancorava ora no ideário do nacional-desenvolvimentismo, do modelo substitutivo de importações, ora nas doutrinas dos regimes militares, como a diplomacia do interesse nacional, o pragmatismo responsável de Geisel ou o chamado universalismo de Figueiredo. Em um contexto de total distinção entre política interna e externa, o Brasil reprimia as demandas por democracia e justiça dentro de suas fronteiras, enquanto pregava no plano internacional uma democratização das relações Norte–Sul, o direito ao desenvolvimento do Terceiro Mundo e a tentativa de diversificar as relações comerciais de forma a não ficar na dependência exclusiva dos Estados Unidos” (Mello, 2000-2001). Já nos anos 1990, ocorre a falência da capacidade de formulação de projetos nacionais em decorrência do chamado Consenso de Washington e de seu receituário de abertura comercial e financeira indiscriminada. 260 Curso de Formação em Política Internacional.p65 260 5/6/2007, 12:41 Fátima V. Mello Nos dias de hoje, a América do Sul vive um ambiente de quebra de hegemonia do pensamento único, que tem se traduzido na eleição de governos mais sensíveis às aspirações populares. Tendo acumulado vitórias resultantes de anos de lutas e mobilizações populares, a região está pouco a pouco conquistando a possibilidade de desenhar seu projeto de futuro, combinando democracia com projetos soberanos e integrados. A região vive um momento histórico novo, e o Brasil tem um importante peso específico na conformação dessa possibilidade de futuro. Na atualidade, a política externa brasileira para a América do Sul e para as demais regiões não precisa mais ser refém, de um lado, de projetos do tipo Brasil Potência nem, por outro lado, se render aos esquemas de acordos de livre comércio. Um caminho novo para a política externa passa, necessariamente, pela combinação entre democratização substantiva no plano doméstico, um projeto nacional de desenvolvimento sustentável e um Estado mediador entre o interno e o externo que mantenha sua capacidade mas deixe de ser autônomo em relação aos conflitos de interesses existentes na sociedade. BIBLIOGRAFIA EVANS, Peter; JACOBSON, Harold; PUTNAM, Robert (eds.). DoubleEdged Diplomacy: International Bargaining and Domestic Politics. Berkeley, University of California Press, 1993. KRASNER, Stephen. “Power Politics, Institutions, And Transnational Relations”. In Bringing Transnational Relations Back In – Non-State Actors, Domestic Structures And International Institutions. 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Rio de Janeiro, mar. 2006. _____. Boletins Rebrip (Rede Brasileira Pela Integração dos Povos). Mimeo. Rio de Janeiro, diversas edições, 2005 e 2006. RISSE-KAPPEN, Thomas (ed.). “Introduction” e “Structures of Governance And Transnational Relations: What Have We Learned?”. In Bringing Transnational Relations Back In – Non-State Actors, Domestic Structures And International Institutions. Cambridge, Cambridge University Press, 1995. SKIDMORE, David e HUDSON, Valerie M. (eds.). The Limits of State Autonomy – Societal Groups and Foreign Policy Formulation. Boulder, Westview Press, 1993. 262 Curso de Formação em Política Internacional.p65 262 5/6/2007, 12:41 Ana Maria Stuart Integração regional e construção da democracia na América do Sul Ana Maria Stuart 1 O objetivo do presente trabalho é relacionar a questão da integração regional com a construção da democracia na América do Sul, com base na experiência européia de combate às assimetrias regionais. Por que fazer essa relação? Por um lado, por entender que o processo de integração europeu enfrentou o desafio da desigualdade entre seus países e regiões com propostas audaciosas que, ao longo de anos de implementação de políticas públicas, mostraram resultados positivos. A mobilização de sujeitos políticos locais, regionais e nacionais, em interação com as instituições da União, para aplicar os Fundos Estruturais e de Coesão permitiu a geração de interesses e valores comuns, contribuindo para democratizar o processo de decisões na esfera do regionalismo. Por outro, pela convicção de que o processo de integração da América do Sul enfrenta desafios similares, centrados no problema da desigualdade de desenvolvimento de seus países e regiões em escala muito maior por razões históricas, agravados pela generalizada situação de empobrecimento dos países sul-americanos nas últimas décadas. Isso posto, trata-se de refletir sobre a relação entre regionalismo e democracia à luz do processo de integração mais bem-sucedido – o Mercosul (Mercado Comum do Sul) – que, desde 2003, entrou em fase de consolidação de um projeto de integração alternativo àquele construído nos anos 1990, quando ficara submetido à lógica caprichosa das crises econômico-financeiras que abalaram os países-membros. As 1 Professora de Relações Internacionais da Unesp-Franca, membro titular do Gacint/USP (Grupo de Análise da Conjuntura Internacional), pesquisadora do Cedec (Centro de Estudos de Cultura Contemporânea) e coordenadora da Assessoria Internacional do Partido dos Trabalhadores. 263 Curso de Formação em Política Internacional.p65 263 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional soluções encontradas para os diversos impasses surgidos ao longo do processo de integração europeu podem servir como inspiração para a resolução de problemas de natureza similar no Mercosul. Assim, este trabalho visa destacar o tema da integração regional na busca de coesão econômico-social como condição para a democratização do processo de integração. Visa também contribuir para o desenho de um modelo de integração regional da América do Sul com políticas públicas e instituições a serviço da resolução das grandes pendências históricas no plano do desenvolvimento e da democracia. O objetivo é assentar bases para um programa de pesquisa que facilite o desenho de um projeto alternativo de integração sul-americana, com base no Mercosul, aprofundado institucionalmente e alargado pela via da aproximação com os países da Comunidade Andina de Nações. Em primeiro lugar, é necessário precisar os objetivos do Mercosul em termos de desenvolvimento e democracia, recuperando, assim, o elo perdido ao longo de décadas de desarticulação de projetos nacionais; em segundo, debruçar-se sobre uma agenda consistente. Nesse sentido, os Objetivos 2004-2006, apresentados pelo governo brasileiro na Cúpula de Assunção (junho de 2003), constituíram um guia para a implementação das mudanças necessárias para a transformação do processo de integração. A mudança contempla a tendência à autonomia como condição de democracia, incorporando o direito à igualdade de oportunidade e à diversidade cultural. A coesão econômico-social, como objetivo da luta contra as assimetrias, é considerada condição para a construção do regionalismo democrático. 1. MUDANÇAS NA PERSPECTIVA DO REGIONALISMO E DA DEMOCRACIA O primeiro projeto de integração latino-americana surgiu concomitantemente ao europeu, nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, fundado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), em torno do objetivo do desenvolvimento industrial. Não se trata aqui de fazer o relato desse projeto nem de aprofundar as causas determinantes dos fracassos das experiências vinculadas a esse período. Apenas queremos registrar a convicção de que a interrupção desse processo teve 264 Curso de Formação em Política Internacional.p65 264 5/6/2007, 12:41 Ana Maria Stuart relação com as carências democráticas nas sociedades e com a emergência de regimes ditatoriais2. Pensar o problema em termos sul-americanos tem como fundamento a interpretação das mudanças ocorridas nas décadas de 1980 e 1990 e a identificação de entraves decorrentes de processos específicos pelos quais passaram determinados países e que abalaram significativamente o arcabouço integracionista latino-americano. Em especial, é importante mencionar a decisão do México de iniciar um processo de abertura econômica pautado pela relação especial com os Estados Unidos. Como conseqüência da crise da dívida externa do início da década de 1980, esse país empreendeu uma mudança de rumo da política externa, iniciada por Miguel de la Madrid e consolidada por Carlos Salinas de Gortari, com a assinatura do NAFTA (North American Free Trade Agreement – Tratado de Livre Comércio da América do Norte) em 1991. Essa opção mexicana teve impacto profundo nas relações interamericanas, que, desde os processos de independência do poder colonial, tinham se desenvolvido pelo prisma da dualidade América anglo-saxã/América Latina. Entender a importância dessa mudança no contexto das relações latino-americanas e hemisféricas obriga a repensar o regionalismo no continente sobre bases distintas. Houve vários trabalhos que caracterizaram as etapas do regionalismo e colocaram a década de 1980 como divisor de águas entre o “regionalismo romântico” e o “regionalismo pragmático”, inaugurado em meados dos anos 1980 com o início dos novos processos de integração no continente. Não é objetivo do presente trabalho tratar das mudanças ocorridas no projeto do regionalismo nas Américas, tema muito abordado ao longo das décadas de 1980 e 1990 e sobre o qual existe uma excelente literatura que apresenta as diversas reflexões sobre o tema3. Mas é importante registrar esse dado da mudança nas relações continentais depois da entrada do México na “geografia política” da América do Norte4. Houve, a partir da década de 1990, 2 Raúl Prebisch, na etapa final da sua vida, faz uma reflexão centrada na questão democrática, dimensão que teria sido subestimada pela geração “cepalina”: “Yo he llegado a la conclusión de que el proceso de democratización es incompatible en la América Latina com el régimen vigente de acumulación de capital y distribución del ingreso. Debemos buscar nuevas fórmulas de transformación profunda de la sociedad en nuestro continente”. Citado por Esthela Gutiérrez Garza (1994). 3 Esses debates originaram importantes obras editadas pelo Grupo Editor Latinoamericano (GEL), no marco do Programa de Estudios Conjuntos sobre las Relaciones Internacionales de América Latina (RIAL) e dos Programas de FLACSO (Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais). 4 Para detalhes desse processo, consultar Rojas et alii (1991). 265 Curso de Formação em Política Internacional.p65 265 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional uma redefinição dos blocos unindo o regionalismo à geografia, e em especial às diferentes posições sobre a nova proposta hemisférica lançada pelos Estados Unidos: a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas). Foi lugar-comum caracterizar a década de 1980 como a década perdida para a América Latina, do ponto de vista do desenvolvimento econômico. Do ponto de vista político, porém, foi a década da recuperação do regime democrático para a maioria dos países da região. Em particular, foi a década da aproximação do Brasil e da Argentina, que em 1985 assinaram a Ata de Iguaçu, inaugurando um novo processo de integração, formalizado no Tratado de Assunção, de 1991. Já a década de 1990, sob a égide dos governos neoliberais, terminou com um saldo de perdas econômicas – aumento da pobreza da população e da vulnerabilidade econômica dos países – e políticas – instabilidade social crescente e perda de credibilidade nas instituições democráticas. Essas mudanças, vinculadas aos padrões político-econômicos consolidados após a queda do Muro de Berlim, tiveram amplo impacto nos Estados e nas sociedades da América do Sul (Lozano, 2000). Os benefícios do tandem mercado/democracia, prometidos pelos ideólogos do modelo neoliberal não se verificaram na prática; pelo contrário, a América Latina apresentou os níveis mais altos de desigualdade social no mundo5. É verdade que a questão da desigualdade é fenômeno antigo nessa parte do continente. Cantegriles, villas miserias e favelas acompanharam o processo de urbanização e industrialização, e uma ampla literatura refletiu o debate entre funcionalistas e marxistas em busca de uma explicação para esse fenômeno. No entanto, essa rica produção teórica muitas vezes subvalorizou o papel da política6. Nos últimos anos, as teorias sociais sustentadas na premissa da prioridade do espaço global sobre o espaço regional contribuíram para reforçar a idéia de pertença a um sistema e a uma ordem como única via possível de inserção internacional7. 5 Para uma análise bem documentada sobre o tema, ver Dupas (1999). Madueño (2000), em seu instigante artigo “La construccíon de la cultura a través de los actores”, defende a superação do legado cultural das ciências sociais latino-americanas: “Tenemos un arsenal teórico constreñido por las grandes teorias evolucionistas, orgánicas o mecanicistas, incluyendo las propuestas de marxismo autóctono y del estructural-funcionalismo predominante”. 7 A história teria chegado ao fim sob o pressuposto do acesso ao “espírito universal” no sentido hegeliano. Ver Fukuyama (1992). 6 266 Curso de Formação em Política Internacional.p65 266 5/6/2007, 12:41 Ana Maria Stuart Na perspectiva do presente trabalho, a questão da desigualdade, social e territorial, merece ser revisitada em relação à questão da democracia e do regionalismo. O regresso da teoria política como teoria social permite vislumbrar os processos e as mudanças que vêm ocorrendo no plano das sociedades e dos Estados. A desigualdade histórica dos desenvolvimentos sociais humanos mostrou que o mundo conquistado pelos europeus se compunha de sociedades e de nações muito diversas. A incorporação delas à dinâmica do sistema colonial não significou a perda de suas características autóctones, e os processos, longe de homogeneizar as sociedades e tender à igualdade política e social, mantiveram e/ou aprofundaram as desigualdades. Esse contexto marcou o desenvolvimento dos Estados e das sociedades e, em particular, contribuiu para dificultar as propostas de regionalismo surgidas do projeto cepalino. Recentemente, no debate travado sobre modernidade e pós-modernidade, mostrou-se a necessidade de abrir novas perspectivas que incorporem a diversidade, escondida pelo prisma da linearidade histórica própria do pensamento positivista. O dualismo primitivo/civilizado influenciou as elites sul-americanas que importaram essa visão de mundo, impedindo uma leitura integrada da própria realidade, condenada à segregação de sociedades/territórios considerados “arcaicos”. Assim, os grandes centros urbanos ficaram de costas para o próprio território, vinculados aos grandes centros de poder mundial, mercado das matérias-primas cuja exportação trazia riqueza para as elites, excluindo as maiorias do desenvolvimento e do progresso (ver Stuart, 1989). Por que essa reflexão, aqui e agora? Por entender que essa tarefa histórica não cumprida pelos Estados nacionais pode ser assumida nesta nova etapa da integração com base no projeto do Mercosul, ampliado e aprofundado. 2. CONSTRUINDO UMA PERSPECTIVA DE REGIONALISMO DEMOCRÁTICO: A QUESTÃO DA SOBERANIA E DA AUTONOMIA Há uma extensa literatura produzida na América do Sul que desenvolve o tema da autonomia. O’Donnell e Linck colocaram o centro nas condições estruturais da dependência, entendida como resultado da exploração e da acumulação tecnológica dos países centrais, entre outros fatores determinantes (ver O’Donnell e Linck, 1973). Outros autores definiram as nações com potencia267 Curso de Formação em Política Internacional.p65 267 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional lidade de autonomia como aquelas que têm os recursos para impor severas penalidades aos que venham a transgredir esse atributo, mantendo a capacidade de autodeterminação no plano interno e ampla margem de manobra no plano internacional (ver Jaguaribe, 1979). Neste artigo, a tentativa é relacionar a autonomia à questão do regionalismo e, de acordo com esse enfoque, especificar a importância da democracia para sua realização8. No contexto da realidade dos países da América do Sul, a questão da autonomia pode ser analisada numa tríplice perspectiva. Em primeiro lugar, como princípio que sustenta a regra de não-intervenção em assuntos internos dos Estados9. Em segundo, como condição do Estado-nação para articular e alcançar metas políticas de maneira independente. E em terceiro como interesse objetivo dos Estados junto aos interesses de sobrevivência e bem-estar econômico da sociedade. Na reflexão que guia este trabalho, esse último significado é o mais operativo para vincular a questão da autonomia ao regionalismo e à democracia. Combinando as dimensões da prática e da teoria, Juan Carlos Puig10 produziu extensa obra no campo do direito internacional, da política e das relações internacionais. Seu pensamento original articulou-se em torno da questão da autonomia. Puig analisa a “comunidade internacional” como sociedade internacional que apresenta similaridades com as sociedades nacionais, se observada a tendência à centralização da tomada de decisões (Puig, 1980). Suas idéias críticas do positivismo foram precursoras de análises críticas contemporâneas: “El positivismo es una doctrina apta para situaciones históricas consolidadas y tendencialmente statuquistas, como fue, por ejemplo, el siglo XIX (...) Pero, para bien o para mal, vivimos un mundo en que asistimos a profundos y vertiginosos cambios (...)” (Puig, ibidem, p. 65). 8 Para uma completa apresentação da questão da autonomia na política exterior, da ótica das teorias de relações internacionais, consultar Tokatlian e Carvajal (2000). 9 O “direito público americano” foi celeiro de doutrinas internacionais, incorporadas ao direito internacional público, centradas na defesa da autonomia. 10 O argentino Juan Carlos Puig foi professor de Direito Internacional Público, autor de vasta obra e ministro de Relações Exteriores do governo Cámpora (1973). Faleceu em Caracas em 1989. 268 Curso de Formação em Política Internacional.p65 268 5/6/2007, 12:41 Ana Maria Stuart Na sua obra há uma crítica aos enfoques teóricos tradicionais da disciplina das relações internacionais, segundo ele tributários das concepções “atomistas” da comunidade internacional, nos quais o poder é baseado somente na força material e cuja perspectiva gira em torno do predomínio absoluto das grandes potências. Em sua concepção, a busca da autonomia transcende os marcos jurídicos do Estado: “(...) como determinados tratados preservan (y aún incrementan) la autonomia, o sea la capacidad de decisión propia del Estado, aunque signifiquen una limitación a su ‘soberania’ formal y normativa (por ejemplo, tratados de integración autonomistas), no siempre el mantenimiento de la ‘soberania’ significa en el fondo una mayor autonomia” (ibidem, p. 105). Puig entende que a justiça é uma “categoria planetária”: “(...) lo que ocurre, en primer término, es que la soberania del Estado, eminentemente formal, no describe la realidad del régimen internacional. Para los Estados pertenecientes a un bloque, el criterio supremo no es el de la impermeabilidad del Estado-nación, sino la impermeabilidad del bloque. Lo cual no quiere decir que la autonomia, dentro del bloque, y hasta la secesión, no sean juridicamente posibles” (ibidem, p. 105). Essa reflexão completa-se com uma valoração do regionalismo como instrumento de desenvolvimento integrado numa perspectiva de solidariedade estratégica: “La integración en sí misma tampoco es autonomizante. En el fondo es instrumental, y su sentido dependerá del objetivo que se fije. Tal vez porque los objetivos no fueron propiamente autonómicos es que no han avanzado decididamente los 269 Curso de Formação em Política Internacional.p65 269 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional procesos de integración en América Latina. Y por eso también sea posible que pretensiones autonomistas, ineludiblemente competitivas en lo económico y en lo estratégico con las naciones industrializadas, no puedan sostenerse en América Latina sin modelos de desarrollo interno congruentes y sin estar afincadas en una solidaridad estratégica, que no ocasional y especulativa, com países que aspiran a lo mismo” (ibidem, p. 154-155). A consideração da autonomia como tema vinculado à política e à democracia, diferentemente da soberania, que é atributo de natureza jurídica, permite avançar para a consideração de sua realização além das fronteiras do Estado-nação. Autonomia e dependência são categorias opostas para observar uma mesma realidade, na qual é impossível encontrá-las em estado absoluto. Numa perspectiva crítica, como a que guia este trabalho, o conceito de autonomia não está restrito, como na ciência política clássica, ao estudo do Estado, já que existem outros planos de autonomia regional e da sociedade civil com implicações nas relações internacionais11. A questão da soberania, portanto, deve ser abordada, numa superação dos marcos teóricos clássicos, como vinculada à questão da autonomia e da democracia. Stephen Krasner (1999) definiu a soberania estatal como “constructo hipócrita”. Na ánalise, Krasner aponta o processo de desconstrução desse atributo com base na observação das assimetrias de poder, o que torna cada vez mais inconsistente o modelo westfaliano12. A situação de “hipocrisia organizada” se coloca no cenário internacional quando as regras são obedecidas em determinadas circunstâncias e em outras simplesmente ignoradas. Sem dúvida, este trabalho aponta os mesmos problemas já observados por Puig quando diferenciava a autonomia da soberania. No caso das decisões de Estados que comprometem parte de sua soberania em processos de integração regional, como na União Européia e no Mercosul, é possível interpretar essas decisões como plenamente autônomas. Nos processos de integração entre países em desenvolvimento, a cessão 11 Para ampliar essa perspectiva, ver Díaz-Polanco (1994). Termo utilizado para caracterizar o sistema de Estados, consolidado no cenário internacional pelo Tratado de Westfália, de 1648. 12 270 Curso de Formação em Política Internacional.p65 270 5/6/2007, 12:41 Ana Maria Stuart de soberania pode ser analisada como via de resistência autônoma aos imperativos da globalização ou às imposições dos Estados mais poderosos. O desafio é aprofundar conceitos. O cruzamento da “desconstrução” do conceito clássico de soberania e da “reconstrução” do conceito de democracia vinculado à autonomia constitui o núcleo dessa transformação. As incertezas colocadas pela globalização, principalmente no plano econômicofinanceiro, motivam a busca de novos marcos institucionais para a implementação de políticas públicas. Para muitos, o regionalismo democrático é a resposta. A construção de uma política regional com o objetivo de atenuar as desigualdades entre sub-regiões e países, potencializando a região como um todo no cenário mundial, constitui uma opção política. O vetor da integração econômica é considerado um meio para atingir tais fins. 3. OS AVANÇOS NA POLÍTICA DE INTEGRAÇÃO REGIONAL Existe ampla literatura descritiva, analítica e reflexiva sobre os primeiros dez anos do Mercosul, cujo aporte é base para as linhas que se seguem13. Serão apontadas principalmente as carências desse processo no plano da busca de coesão econômico-social e da representação dos poderes regionais e locais, visualizados como componentes necessários de uma estratégia de desenvolvimento democrático. O processo de integração na América do Sul foi iniciado na década de 1980, à luz da aproximação bilateral entre Brasil e Argentina. A redemocratização dos regimes políticos nesses países foi uma das causas importantes da mudança da tendência histórica de rivalidade que marcou as relações Brasil–Argentina no plano regional e hemisférico. A vinculação de interesses dos atores da transição democrática no Brasil e na Argentina foi decisiva para iniciar uma política de convergência em momentos em que o governo de Raúl Alfonsin sofria a ameaça de golpes militares e José Sarney se esforçava para legitimar seu governo depois da morte do presidente eleito Tancredo Neves. 13 Três obras tratam apropriadamente de um amplo leque de questões vinculadas aos desafios atuais do Mercosul: Bernal-Meza (2000); Lima e Medeiros (2000); e Sierra (2001). 271 Curso de Formação em Política Internacional.p65 271 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Na década de 1990 houve um mudança de rumo nesse processo, que abandonou as características de integração complementar, gradual e setorial para adotar um modelo de integração que passou a privilegiar as relações comerciais, no marco da perspectiva chamada de “regionalismo aberto”. As conseqüências da implementação desse modelo no Mercosul, em especial o aprofundamento do processo de concentração de poder e riqueza nas sub-regiões mais desenvolvidas do eixo São Paulo–Buenos Aires, não levavam a considerar necessário abordar o tema das disparidades sub-regionais no Mercosul. O processo de integração do Cone Sul foi construído seguindo o modelo intergovernamental e desconsiderando a necessidade de contar com instituições supranacionais representativas dos diversos setores sociais e políticos. Estes optaram por organizar-se informalmente e atuar como associações de interesses regionais, marginalizadas do processo de tomada de decisões14. Pretendemos discutir esse modelo e contribuir para a elaboração de uma proposta institucional que permita a defesa dos direitos e interesses envolvidos pela integração e abra perspectivas ao desenvolvimento de todos os países e de todas as sub-regiões, em especial daquelas que apresentam índices socioeconômicos muito inferiores à média regional. A contribuição da experiência da União Européia, centrada no desenvolvimento de políticas públicas para diminuir as desigualdades, pode servir como inspiração para resolver o problema das assimetrias existentes no Mercosul. Não se trata de transportar o modelo mas de estudar a própria realidade focalizando o objetivo da coesão regional, como meio para envolver a participação de agentes locais e regionais no processo de integração. Como já foi dito anteriormente, os processos de integração regional, a partir dos anos 1990, ficaram sujeitos a imperativos exógenos que imprimiram uma dinâmica centralizadora, por um lado, com conseqüências homogeneizadoras em termos de políticas econômico-financeiras e, por outro, fragmentadora das sociedades e dos territórios, que sofreram os impactos do abandono das políticas públicas por parte dos Estados. A proposta é a reto- 14 Para um estudo sobre os atores do Mercosul, ver Hirst (1996), especialmente o Capítulo IV. 272 Curso de Formação em Política Internacional.p65 272 5/6/2007, 12:41 Ana Maria Stuart mada dessas políticas nos marcos do bloco regional, com base nos interesses e valores endógenos, isto é, gerados pelas sociedades civis e políticas nas diferentes instâncias subnacionais em interação com os Estados nacionais. As vicissitudes que sofreu o Mercosul na década de 1990 e inícios do século XXI, submetido ao vaivém das conjunturas dos governos do Brasil e da Argentina, obrigou os governos iniciados no ano de 2003 (Lula no Brasil, Nestor Kirchner na Argentina) a começar a discussão sobre o modelo de integração adotado. O Mercosul passou a ser considerado um instrumento de acumulação de poder e riqueza para suas nações e seus povos, passível de enfrentar os desafios colocados pelo processo de globalização econômicofinanceira. Viu-se a necessidade de reformular as premissas do projeto de integração, gerando normas e instituições com base nos interesses e valores criados na interação de seus Estados e sociedades em suas múltiplas dimensões. O controle das políticas dirigidas ao aumento da coesão econômica e social, mediante a constituição de uma instância institucional representativa dos governos locais e regionais, constituiu uma estratégia adequada para a construção de um regionalismo democrático. O Mercosul, segundo o Tratado de Assunção que o constituiu, nasceu com vocação referenciada no modelo de integração europeu: constituir um mercado comum, com perspectivas comunitárias. Entretanto, durante a primeira década, apesar do intenso crescimento do comércio intra-regional e do conseqüente aumento da interdependência entre os países, assistiu-se a uma prolongada seqüência de crises que colocaram em risco a continuidade do projeto. A debilidade institucional do modelo regional do Mercosul foi responsável pela decrescente credibilidade do processo. Além das assimetrias entre países, causa das severas críticas apresentadas pelos governos de Uruguai e Paraguai, também o Brasil e a Argentina sofrem de graves distorções que afetam o funcionamento do sistema federativo em ambos os países. O desenvolvimento de políticas ativas de coesão econômico-social permitiu uma distribuição eqüitativa dos benefícios e custos do processo. Quais são os instrumentos disponíveis para enfrentar essas disparidades que atentam contra a constituição do mercado comum? No Mercosul não existia nenhum regime, mecanismo ou instituição que tivesse por objetivo central a resolução dessa questão vital para todo o processo de integração, 273 Curso de Formação em Política Internacional.p65 273 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional principalmente em países onde as desigualdades sociais e sub-regionais impedem o avanço da democracia (ver Nun, 2001). Considera-se que a aprovação dos Fundos de Convergência Estruturais (Focem) permitirá viabilizar projetos que atendam às necessidades do desenvolvimento regional e local, com representação de seus agentes no processo decisório, como se implementa na União Européia. Na União Européia, a política de Fundos Estruturais foi iniciada em 1975 e consolidada com a criação dos Fundos de Coesão após intensa pressão dos países menos desenvolvidos, como Irlanda, Grécia, Portugal e, principalmente, Espanha. Hoje, constituem instrumentos que os Estados-membros, em estreita colaboração com as autoridades regionais, utilizam para fomentar o desenvolvimento e reduzir as desigualdades entre as regiões e os grupos sociais. Quais são as dificuldades de implementar uma proposta similar no Mercosul? A primeira observação que cabe colocar refere-se à inexistência de um orçamento comunitário no Mercosul. Há estudos que apresentam propostas viáveis para o financiamento de políticas de apoio ao crescimento econômico e social, a projetos de infra-estrutura física e de reconversão produtiva, auxílio às pequenas e médias empresas e diminuição de disparidades sociais e subregionais. Para a realização desse projeto de integração é necessário contar com instituições representativas dos poderes sub-regionais e locais para que o desenho das políticas e a distribuição dos recursos contem com a participação dos cidadãos. Dessa forma será possível exercer um controle democrático dessas políticas, já que a centralização tem demonstrado uma tendência à malversação de recursos. A governabilidade regional conjugaria assim a necessidade de compatibilizar a “cláusula democrática”15 com a criação das condições socioeconômicas que dariam conteúdo e viabilidade a longo prazo à democracia. Nesse sentido, a proposta de criar instituições que controlem democraticamente a alocação desses recursos é de grande relevância. A introdução de uma agenda política e social sofre forte resistência de setores conservadores que vêem o Mercosul como uma oportunidade de 15 Esse compromisso consta na Declaração presidencial sobre cláusula democrática no Mercosul (San Luis, 1996, e Ushuaia, 1998). 274 Curso de Formação em Política Internacional.p65 274 5/6/2007, 12:41 Ana Maria Stuart mercado e nada mais. Esses setores defendem um Mercosul com formato de “área de livre comércio”, compatível com a constituição da ALCA. 4. MERCOSUL: UMA NOVA AGENDA Em primeiro lugar, os novos governos do Brasil e da Argentina consideraram que o Mercosul dos anos 1990, plataforma para a abertura indiscriminada das economias, devia mudar com base numa visão diferente sobre a integração, baseada em projetos de desenvolvimento com políticas públicas ativas, com o objetivo de realizar a passagem do modelo de integração negativa para outro de integração positiva (ver Merkel, 1999). Já na primeira visita de Lula à Argentina como presidente eleito, em novembro de 2002, mencionou-se a necessidade de voltar ao espírito do PICE (Programa de Integración Comercial y Económica) assinado pelos presidentes Sarney e Alfonsín nos anos 1980, programa que iniciou uma aproximação inédita dos dois países em todas as áreas da produção, do trabalho e do conhecimento16. O que significava retomar o espírito do PICE? Principalmente, centrar o projeto nas potencialidades da complementação produtiva, da implementação de políticas comuns de reconversão econômica e do estabelecimento de instituições e regulamentos-marco que permitissem a implantação do mercado comum com livre circulação de pessoas, bens, capitais e serviços num prazo de tempo razoável. Nesse sentido, uma leitura atenta dos acontecimentos e dos discursos dos presidentes Lula, Nestor Kirchner, Tabaré Vázquez e Hugo Chávez permite vislumbrar mudanças significativas na política para o Mercosul e a região sulamericana. Para ilustrar essa premissa, vamos comentar o documento apresentado pelo governo brasileiro na primeira reunião da Cúpula do Mercosul (Assunção, junho de 2003) posterior à tomada de posse dos presidentes Lula e Kirchner. Nesse documento, conhecido como Objetivos 2004-2006, ficaram estampadas as metas de aprofundamento e ampliação do Mercosul. 16 Nos marcos desse acordo assinaram-se, primeiro, 24 protocolos setoriais e, posteriormente, outros 24 abrangendo todas as áreas. 275 Curso de Formação em Política Internacional.p65 275 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional Como já foi assinalado, a generalizada situação de empobrecimento dos países sul-americanos nas últimas duas décadas agravaram a crônica condição de fragmentação social e territorial, aumentando os bolsões de exclusão em todos os países. A consciência da necessidade de uma resposta regional para uma realidade que exige intervenções profundas de políticas públicas motivou a decisão de abandonar a tese soberanista para assumir a necessidade de compartilhar a soberania com os países vizinhos num processo de construção de uma comunidade autônoma além das fronteiras dos Estados. O objetivo de consolidar o processo de integração, submetido até 2002 à lógica das crises econômico-financeiras que afetaram os países-membros, está presente em cada um dos itens da proposta, intitulada “Programa para a consolidação da União Aduaneira e para o lançamento do Mercado Comum”, apresentada pelo governo brasileiro na mencionada reunião de Cúpula do Mercosul. A primeira parte apresenta o “Programa político, social e cultural”. A construção de uma nova institucionalidade é um dos grandes desafios do Mercosul e, nesse sentido, a aprovação do Parlamento, já inaugurado em dezembro de 2006, constitui a consecução de um dos objetivos mais relevantes para a democratização do bloco regional. A segunda parte da proposta brasileira trata do “Programa da União Aduaneira”. Neste capítulo, a questão da coesão econômico-social e territorial, isto é, o combate às assimetrias, é considerada um princípio basilar da integração. A experiência européia neste campo, já mencionada anteriormente, deve inspirar as políticas públicas específicas para garantir a aproximação das regiões e dos países em termos de desenvolvimento econômicosocial. Nesse sentido, os Fundos de Convergência Estrutural para o Mercosul (Focem), também aprovados em fins de 2005, significam um avanço relevante no cumprimento dos Objetivos 2004-2006. A terceira parte da proposta trata do “Programa de base para o Mercado Comum”, contemplando a livre circulação da mão-de-obra e a promoção dos direitos dos trabalhadores. Na quarta seção do documento, chamada de “Programa da nova integração”, a ênfase é colocada na “integração produtiva avançada” e na “integração física”. Este último objetivo constitui um dos pilares da construção da Comunidade Sul-americana de Nações. As negociações em torno desse programa não foram simples porque enfrentaram interesses constituídos na defesa do modelo de Mercosul centrado 276 Curso de Formação em Política Internacional.p65 276 5/6/2007, 12:41 Ana Maria Stuart no comércio e regido pelos imperativos do mercado. As resistências de setores dominantes vinculados às empresas multinacionais provocaram impasses que os governos conseguiram superar, dada a determinação política. Nesse sentido, as linhas estratégicas lançadas nas declarações conjuntas Lula– Kirchner (“Consenso de Buenos Aires”, outubro de 2003, e “Ata de Copacabana”, fevereiro de 2004) mostram que a relação Brasil–Argentina constitui o eixo estruturante do novo Mercosul. Em 2003, juntamente com essas medidas de aprofundamento do Mercosul, foram tomadas decisões para proceder à ampliação do processo de integração. Nesse sentido, as perspectivas abertas pela viagem do presidente Lula ao Peru e à Venezuela durante aquele ano tiveram como objetivo avançar rapidamente no acordo Mercosul–CAN (Comunidade Andina de Nações) para constituir a Comunidade Sul-americana de Nações. Nascida em Cuzco em dezembro de 2004, seus objetivos são aprofundar o diálogo político, fomentar acordos comerciais e, principalmente, implementar a integração da infra-estrutura física. Para ilustrar este ponto, é importante mencionar os avanços na construção do corredor biooceânico17 e nas negociações sobre o chamado “anel energético”18. “O Brasil não quer hegemonia, quer cooperação”, declara reiteradamente o presidente Lula para afastar as prevenções dos que desconfiam de interesses egoístas por parte do Estado brasileiro, sem entender que para o atual governo os interesses nacionais e regionais são interdependentes e estão imbricados. A construção de um novo projeto de desenvolvimento, sustentável e com justiça social, será possível se soubermos plasmar os interesses nacionais numa escala regional. Hoje, com a integração da Venezuela, o Mercosul constitui o núcleo principal em torno do qual se consolidará a integração sul-americana. 17 Conjunto de obras públicas transfonteiriças visando a cominucação entre países de costa atlântica com os países banhados pelo Oceano Pacífico. Há avanços importantes nos projetos aprovados pelos governos do Brasil e do Peru. 18 Projeto discutido por Venezuela, Brasil e Argentina para construir um gasoduto atravessando esses países e que interligaria também com a Bolívia. Na I Cúpula Energética da América do Sul (Margarita, Venezuela, março de 2007) foi formado o Conselho Energético, constituído pelos ministros de área dos países membros da Comunidade Sul-Americana de Nações para estudar o planejamento das obras energéticas que servirão todos os países da região. 277 Curso de Formação em Política Internacional.p65 277 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional BIBLIOGRAFIA BERNAL-MEZA, Raúl. Sistema mundial y Mercosur. Globalización, regionalismo y políticas exteriores comparadas. Buenos Aires, Grupo Editor Latinoamericano, 2000. DÍAZ-POLANCO, Héctor. “Autonomía regional y territorialidad india. Perspectivas del Estado multiétnico”. In MARINI, R. M. e MILLÁN, M. La Teoria Social Latinoamericana. 3 tomos. 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O bloqueio da Venezuela em 1902: suas implicações nas relações internacionais da época, com especial atenção às posições do Brasil e da Argentina. Dissertação de Mestrado, USP, São Paulo, 1989. TOKATLIAN, Juan Gabriel e CARVAJAL, Leonardo H. “Autonomia e política exterior: un debate abierto, un futuro incierto”. Trabalho apresentado no Primeiro Workshop sobre “El estado del debate contemporáneo en Relaciones Internacionales”. Universidade Torcuato Di Tella, Buenos Aires, 27 e 28 de julho de 2000. 279 Curso de Formação em Política Internacional.p65 279 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional 280 Curso de Formação em Política Internacional.p65 280 5/6/2007, 12:41 Livros indicados Livros indicados1 SÉCULO XX: FICÇÃO, POESIA, ENSAIO IMPERIALISMO E COLONIALISMO 1. Joseph Conrad, O coração das trevas, Porto Alegre, L&PM, 1998. Conto exemplar sobre o colonialismo na África. 2. Joseph Conrad, Nostromo, São Paulo, Companhia das Letras, 2007. Um aventureiro no Caribe, um golpe militar, uma revolução separatista e o imperialismo inglês. 3. T. E. Lawrence, Os sete pilares da sabedoria, Rio de Janeiro, Record, 2000. Como a Inglaterra manipulou a revolta árabe contra a Turquia no final da Primeira Guerra Mundial. 4. Nadine Gordimer, O engate, São Paulo, Companhia das Letras, 2003. A sina de um imigrante ilegal árabe na África do Sul. 5. E. M. Forster, Uma passagem para a Índia, São Paulo, Globo, 2005. Choques na Índia ocupada pelos ingleses. 6. Octavio Paz, Labirinto da solidão, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2006. Os conflitos inerentes à conquista na América Latina e as mentalidades resultantes. 7. Hannah Arendt, Origens do totalitarismo, São Paulo, Companhia das Letras, 1997. As relações entre anti-semitismo, imperialismo e o nascimento do totalitarismo. 1 Lista elaborada com a colaboração de Walnice Nogueira Galvão, professora titular de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo. 281 Curso de Formação em Política Internacional.p65 281 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional PRIMEIRA E SEGUNDA GUERRAS MUNDIAIS 8. Kafka, O processo, São Paulo, Companhia das Letras, 2000. O pesadelo do totalitarismo que se avizinhava. 9. Elie Wiesel, A noite, Rio de Janeiro, Ediouro, 2001. Reminiscências de um sobrevivente dos campos de concentração nazistas. 10. Primo Lévi, É isto um homem?, Rio de Janeiro, Rocco, 2000. Meditação do autor sobre sua experiência enquanto judeu num campo de concentração. 11. Erich Maria Remarque, Nada de novo no front, Porto Alegre, L&PM, 2004. A Primeira Guerra Mundial vista das trincheiras. 12. Norman Mailer, Os nus e os mortos, Rio de Janeiro, Record, 1992. Um testemunho sobre a Segunda Guerra Mundial no Pacífico. 13. John Hersey, Hiroshima, São Paulo, Companhia das Letras, 2002. Uma das primeiras reportagens feitas no local onde explodiu a primeira bomba atômica, nos estertores da Segunda Guerra Mundial. 14. James Clavell, Xogum, Rio de Janeiro, Nórdica, 1986. Amplo panorama histórico e cultural do passado do Japão, cujo autor é um sobrevivente de campos de concentração japoneses na Segunda Guerra. ESTADOS UNIDOS 15. Norman Mailer, Os exércitos da noite, Lisboa, Dom Quixote, 1997. O movimento pacifista-hippie contra a guerra do Vietnã nos Estados Unidos. 16. Dee Brown, Enterrem meu coração na curva do rio, Porto Alegre, L&PM, 2003. Crônica do extermínio dos índios peles-vermelhas nos Estados Unidos. 17. Toni Morrison, O olho mais azul, São Paulo, Companhia das Letras, 2003. A intolerância racial encarniçada contra uma menina negra. 18. John dos Passos, Trilogia U.S.A. (Paralelo 42, 1919 e Dinheiro graúdo), Rio de Janeiro, Rocco, s.d. Nos três livros, a Primeira Guerra e seus efeitos na transformação dos Estados Unidos em potência mundial. 19. Haley Alex, Autobiografia de Malcolm X, Rio de Janeiro, Record, 1992. O grande líder Black Power que enfrentou todos os poderes e morreu assassinado. REVOLUÇÕES 20. John Reed, Dez dias que abalaram o mundo, São Paulo, Global, 1978. Jornalista norte-americano presencia o deslanchar da Revolução Russa. 282 Curso de Formação em Política Internacional.p65 282 5/6/2007, 12:41 Livros indicados 21. Edmund Wilson, Rumo à Estação Finlândia, São Paulo, Companhia das Letras, 2006. Quadro histórico da Revolução Russa através de suas principais figuras. 22. Leon Trotsky, Minha vida, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969. Um dos dois líderes da Revolução Russa conta sua trajetória. 23. Victor Serge, Memórias de um revolucionário, São Paulo, Companhia das Letras, 1987. 24. Alexander Isaievitch Soljenitzyn, Arquipélago Gulag, Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército, 1976. O sistema concentracionário criado por Stalin. 25. Aldous Huxley, Admirável mundo novo, São Paulo, Globo, 2001. Uma fantasia premonitória de entre-guerras sobre o futuro da humanidade em tempos totalitários. 26. Martin Bernal, “Mao e a Revolução Chinesa”. In Eric J. Hobsbawm (org.), História do marxismo, vol. 8, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985, p. 375-417. 27. Ernest Hemingway, Por quem os sinos dobram, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2004. Um combatente escreve sobre a guerra civil espanhola. 28. Nikolai Ostrovski, Assim foi temperado o aço, São Paulo, Expressão Popular, 2003. Exemplo de romance proletário e do “realismo socialista” que vigorou na União Soviética. 29. George Orwell, A revolução dos bichos, Companhia das Letras, 2007. Nesta fábula, os animais tomam o poder e o que deveria ser uma sociedade democrática se transforma em um regime totalitário. 30. Jung Chang, Cisnes selvagens, São Paulo, Companhia das Letras, 1994. A Revolução Chinesa através da história de três gerações. 31. Anatoli Ribakov, Os filhos da rua Arbat, São Paulo, Difusão Cultural, 1990. DIÁSPORAS CONTEMPORÂNEAS 32. Arundathi Roy, O deus das pequenas coisas, São Paulo, Companhia das Letras, 2004. A vida cotidiana entre gente simples do sul da Índia. 33. Uzodinma Iweala, Feras de lugar nenhum, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2006. Um menino africano é recrutado para matar nas guerras civis. 34. Paulina Chiziane, Ventos do Apocalipse, Lisboa, Caminho, 1999. A vida tribal em Moçambique interrompida pelo caos que a guerra civil instaurou. 283 Curso de Formação em Política Internacional.p65 283 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional 35. Jhumpa Lahiri, Intérprete de males, São Paulo, Companhia das Letras, 2001. Contos sobre as agruras da vida de imigrantes indianos em NovaYork. 36. Hanin Kureishi, No colo do pai, São Paulo, Companhia das Letras, 2006. Um expatriado paquistanês conta a história de sua família, entre Karashi e Londres. AMÉRICA LATINA 37. Valle-Inclán, Tirano Banderas, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1976. Inaugurou um gênero: o romance em que o protagonista é um ditador latino-americano. 38. Fernando Ortiz, Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar, Caracas, Biblioteca Ayacucho, 1978. O Gilberto Freyre do Caribe, criador do conceito de “transculturação” e pioneiro dos estudos afrocubanos. 39. Ernesto “Che” Guevara, De moto pela América do Sul, São Paulo, Sá Editora, 2003. Viagem iniciática para conhecer de perto o continente. 40. Miguel Ángel Astúrias, Week-end na Guatemala, São Paulo, Expressão Popular, 2007. Os meandros da intervenção dos Estados Unidos no Caribe, em 1954. 41. Alejo Carpentier, O reino deste mundo, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1985. A Revolução Haitiana e o reinado de seu auto-proclamado monarca, o ex-escravo Henri Cristophe. 42. Mariano Azuela, Los de abajo, Madri, Mestas Ediciones, 2003. Um olhar interno sobre os inícios da Revolução Mexicana. 43. Juan Rulfo, Pedro Páramo e Chão em Chamas, Rio de Janeiro, Record, 2005. Ficção indigenista mexicana. 44. José María Arguedas, Os rios profundos, São Paulo, Companhia das Letras, 2005. Os conflitos gerados pela exploração que assola os índios peruanos. 45. José Carlos Mariátegui, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, São Paulo, Alfa-Omega, 2004. Um intelectual que luta pelo socialismo discute as relações entre cultura e política, tendo como tema central o indigenismo. 46. Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão, Rio de Janeiro, Record, 1997. Romance inaugurador do boom hispano-americano do realismo mágico. 47. Manuel Scorza, Bom dia para os defuntos, São Paulo, Círculo do Livro, 1979. Uma companhia de mineração expropria a terra dos camponeses no Peru. 284 Curso de Formação em Política Internacional.p65 284 5/6/2007, 12:41 Livros indicados BRASIL 48. Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, 19. ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001. O regime do coronelato em alta literatura. 49. Euclides da Cunha, Os sertões, edição Crítica de Walnice Nogueira Galvão, São Paulo, Ática, 1999. Epopéia da Guerra de Canudos. 50. Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, São Paulo, Global, 2006. Um exame das relações entre senhores e escravos no regime patriarcal. 51. Sergio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2006. Um estudo comparativo entre as colonizações espanhola e portuguesa. 52. Antonio Candido, Formação da literatura brasileira, 10. ed. Rio de Janeiro, Ouro Sobre Azul, 2007. Como os brasileiros realizaram seu projeto de possuir uma literatura independente. 53. Caio Prado Jr., Formação do Brasil contemporâneo, São Paulo, Brasiliense, 1996. Análise dos principais elementos de nosso passado colonial que moldaram a nação. 54. Mário de Andrade, Macunaíma, Belo Horizonte, Villa Rica, 1997. Neste carro-chefe de nosso modernismo, o protagonista deixa a floresta amazônica e parte para a metrópole industrial. ENSAIO 55. E. Hobsbawm, A era dos extremos – O breve século XX, São Paulo, Companhia das Letras, 1999. Tratado das linhas de força que definiram o século. 56. Susan Sontag, Diante da dor dos outros, Companhia das Letras, 2003. Avaliação das fotografias de atrocidades com que a mídia nos bombardeia. 57. Edward M. Said, Orientalismo, São Paulo, Companhia das Letras, 1990. A construção do “Oriente” como projeção negativa do Ocidente. 58. Fernando A. Novais e Nicolau Sevcenko (orgs.), História da vida privada no Brasil, vol. 3, República: da Belle Époque à Era do Rádio, São Paulo, Companhia das Letras, 1998. Panorama das contradições entre esfera pública e esfera privada na República Velha. POESIA 59. Jorge Luis Borges, Fervor de Buenos Aires. In Obras completas de Jorge Luis Borges, vol. I, São Paulo, Globo, 1998. O poeta escreve sobre sua cidade. 285 Curso de Formação em Política Internacional.p65 285 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional 60. Pablo Neruda, Canto geral, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2002. Poesia libertária, de protesto contra a injustiça social no continente latino-americano. 61. Carlos Drummond de Andrade, Nova reunião, Rio de Janeiro, José Olympio, 1983. A evolução do poeta através de seus principais livros. 62. José Martí, Versos singelos, Porto Alegre, SBS, 1997. A veia lírica do precursor da Revolução Cubana. 63. T. S. Eliot, Obra completa, vol. I, Poesia, São Paulo, Arx, 2004. Visão desencantada dos descaminhos do século XX. 64. Saint-John Perse, Anábase, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979. O poeta francês medita sobre o valor da poesia em nosso tempo. 65. Maiakovski – Poemas, tradução de Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman e Augusto de Campos, São Paulo, Perspectiva, 2006. O poeta da Revolução Russa. 66. Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu e Elegias de Duíno, Petrópolis, Vozes, 2006. O poeta descortina os novos tempos com apreensão e desconfiança. 67. Bertold Brecht, Poemas 1913-1956, São Paulo, Editora 34, 2004. Grande poesia política. 68. Konstantinos Kavafis, Poemas, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990. O poeta da decadência canta em grego as glórias do passado e sua cidade egípcia, Alexandria. 69. e. e. cummings, Poemas, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1999. A discussão da modernidade através das imagens poéticas. 286 Curso de Formação em Política Internacional.p65 286 5/6/2007, 12:41 Filmes indicados Filmes indicados1 OS GRANDES TEMAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 1. Sob a névoa da guerra (The Fog of War). EUA, 2003, dir.: Errol Morris, 95 min. Documentário sobre Robert McNamara, um dos estrategistas dos Estados Unidos como superpotência, entre os anos 1940 e 1970. 2. Terra de ninguém (No Man’s Land). Bósnia-Herzegovina/Eslovênia/Itália/ França/Inglaterra/Bélgica, 2001, dir.: Danis Tanovic, 98 min. Filme que, a partir de uma situação dramática envolvendo dois soldados inimigos em uma trincheira, problematiza o papel da mídia e da ONU na crise da Bósnia. 3. A Batalha de Argel (La Battaglia di Algeri). Itália, 1966, dir.: Gillo Pontecorvo, 121 min. Filme clássico que leva para as telas a luta pela independência argelina dos anos 1950, e a conseqüente repressão francesa, ancorado na visão marxista de imperialismo e descolonização. 4. Babel (Babel). EUA/México/França, 2006, dir.: Alejandro González Iñárritu, 143 min. A partir de dramas individuais entrecruzados, ambientados nos Estados Unidos, no México, no Marrocos e no Japão, o filme tenta demonstrar a assimetria e as injustiças da globalização. 5. Corações e mentes (Hearts and Minds). EUA, 1974, dir.: Peter Davis, 112 min. Documentário realista e impactante sobre a tragédia da guerra do Vietnã, sobretudo seus efeitos sobre o povo daquele país asiático que derrotou os Estados Unidos numa das piores guerras do século XX. 6. O bom pastor (The Good Shepherd). EUA, 2006, dir.: Robert De Niro, 167 min. A partir de uma visão shakesperiana de luta pelo poder, o 1 Lista elaborada com a colaboração de Marcos Napolitano, professor de história da Universidade de São Paulo. 287 Curso de Formação em Política Internacional.p65 287 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional filme encena a trajetória de criação da CIA e a inserção dos Estados Unidos na política mundial. 7. Exílios (Exils). França/Japão, 2004, dir.: Tony Gatlif, 104 min. Dois jovens franceses, de origem argelina, fazem o caminho oposto das migrações contemporâneas, saindo da Europa para a Argélia, e deparam-se com situações e pessoas que fazem pensar sobre as questões identitárias do mundo contemporâneo. 8. Boa noite e boa sorte (Good Night, and Good Luck). EUA, 2005, dir.: George Clooney, 93 min. Filme que se passa durante o macartismo, perseguição aos comunistas e simpatizantes ocorrida nos anos 1950 nos Estados Unidos, narrando a história de um jornalista que resiste à censura e ao cabotinismo. 9. Um filme falado (Um filme falado). Portugal/França/Itália, 2003, dir.: Manoel de Oliveira, 96 min. Bela metáfora fílmica sobre a crise e o papel da civilização ocidental no mundo contemporâneo. 10. O senhor das armas (Lord of War). EUA/França, 2005, dir.: Andrew Niccol, 122 min. Misturando drama familiar e aventura, o filme narra a trajetória de um mercador de armas sem escrúpulos ou ideologia, que se aproveita das contradições, dos conflitos e das insanidades constituintes da própria geopolítica mundial. 11. Uma verdade inconveniente (An Inconvenient Truth). EUA, 2006, dir.: Davis Guggenheim, 100 min. Apesar de ser um descarado marketing pessoal de Al Gore para a próxima corrida presidencial norte-americana, o filme mapeia os principais desafios ambientais do mundo. MOVIMENTOS CONTRA A GLOBALIZAÇÃO NEOLIBERAL 12. O que você faria? (El Método). Argentina/Espanha/Itália, 2005, dir.: Marcelo Piñeyro, 115 min. No mesmo momento em que ocorre um protesto antiglobalização em Madri, um grupo de candidatos a um emprego numa grande corporação multinacional compete por uma vaga de executivo. 13. O jardineiro fiel (The Constant Gardener). Alemanha/Inglaterra, 2005, dir.: Fernando Meirelles, 129 min. Numa narrativa próxima da aventura, o filme denuncia a ação de laboratórios multinacionais da área médica na África, abordando temas como miséria, corrupção, tráfico de influência, globalização. 288 Curso de Formação em Política Internacional.p65 288 5/6/2007, 12:41 Filmes indicados 14. Pão e rosas (Bread and Roses). Inglaterra/França/Alemanha/Espanha/ Itália/ Suíça, 2000, dir.: Ken Loach, 110 min. Numa perspectiva de esquerda, o filme narra as desventuras de uma imigrante mexicana em Los Angeles, em sua luta por melhores condições de vida e trabalho. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA EUROPA 15. Metrópolis (Metropolis). Alemanha, 1927, dir.: Fritz Lang, 153 min. Clássico do cinema mundial, é uma alegoria da modernidade capitalista e de seus dilemas, expressão de um tempo que viu nascer o nazismo. 16. Roma, cidade aberta (Roma, Città Aperta). Itália, 1945, dir.: Roberto Rossellini, 100 min. Clássico do neo-realismo italiano que pode ser visto como uma homenagem à resistência contra o nazismo e ao nascimento de uma nova Europa no pós-1945. 17. Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia). Inglaterra, 1962, dir.: David Lean, 210 min. Biografia de um agente inglês, T. E. Lawrence, que tinha a missão de reunir as tribos árabes contra o Império Otomano durante a Primeira Guerra Mundial. 18. Cruzada (Kingdom of Heaven). Inglaterra/Espanha/EUA/Alemanha, 2005, dir.: Ridley Scott, 145 min. Épico que permite pensar as origens do choque entre o Ocidente e o Islã, bem como as trocas culturais entre estas duas grandes civilizações. 19. Elizabeth (Elizabeth). Inglaterra, 1998, dir.: Shekhar Kapur, 124 min. Numa narrativa centrada nos dramas pessoais da famosa rainha inglesa, o filme permite alguma reflexão sobre o nascimento da geopolítica no período do Absolutismo. 20. Danton – O processo da revolução (Danton). França/Polônia/Alemanha Ocidental, 1983, dir.: Andrzej Wajda, 136 min. Além de retratar o processo político que culminou na morte de George Danton, protagonista da Revolução Francesa, o filme radicaliza o questionamento sobre a questão da revolução e seus legados, no mundo moderno. 21. 1900 (Novecento). Itália/França/Alemanha Ocidental/EUA, 1976, dir.: Bernardo Bertolucci, 315 min. Épico sobre a história italiana e européia. 22. O Leopardo (Il Gattopardo). Itália/França, 1963, dir.: Luchino Visconti, 187 min. Clássico sobre o processo de modernização italiana no século XIX e as mudanças sociais e políticas advindas. 289 Curso de Formação em Política Internacional.p65 289 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional 23. Os companheiros (I Compagni). Itália/França/Iugoslávia, 1963, dir.: Mario Monicelli, 130 min. Um dos melhores filmes sobre o nascimento do movimento operário e as dificuldades cotidianas do operariado na era das fábricas. 24. Sacco e Vanzetti (Sacco e Vanzetti). Itália/França, 1971, dir.: Giuliano Montaldo, 120 min. Drama sobre a morte de dois militantes anarquistas italianos, nos Estados Unidos dos anos 1920. 25. Europa (Europa). Dinamarca/Suécia/França/Alemanha/Suíça, 1991, dir.: Lars von Trier, 112 min. Metáfora da reconstrução da Europa no pós-Guerra, a partir de um caso de amor entre um norte-americano e uma alemã. 26. Arquitetura da destruição (Undergångens Arkitektur). Suécia, 1989, dir.: Peter Cohen, 119 min. Documentário sobre a visão de mundo dos nazistas, responsável pela estetização da política e suas conseqüências trágicas. 27. Billy Elliot (Billy Elliot). Inglaterra/França, 2000, dir.: Stephen Daldry, 110min. Comédia dramática sobre uma família operária, envolvida numa longa greve contra o governo de Margareth Tatcher na Inglaterra dos anos 1980, enquanto seu caçula tenta se transformar em bailarino profissional. 28. O corte (Le Couperet). Bélgica/França/Espanha, 2005, dir.: CostaGravas, 122 min. Saga de um ex-executivo desempregado na tentativa de se recolocar no mercado de trabalho. 29. Segunda-feira ao Sol (Los Lunes al Sol). Espanha/França/Itália, 2002, dir.: Fernando León de Aranoa, 113 min. Num tom de comédia dramática, o filme mostra os efeitos que o desemprego em massa tem sobre o cotidiano dos operários de um estaleiro. 30. Nossa música (Notre Musique). França/Suíça, 2004, dir.: Jean LucGodard, 76 min. Filme ambientado durante a guerra da Bósnia, com apelo pacifista que se articula com a questão do reconhecimento da alteridade como base da paz. ÍNDIA 31. Gunga Din (Gunga Din). EUA, 1939, dir.: George Stevens, 117 min. Filme clássico, totalmente eurocêntrico, que narra a tentativa de um indiano de ser reconhecido como soldado a serviço do Império Britânico na Índia. 290 Curso de Formação em Política Internacional.p65 290 5/6/2007, 12:41 Filmes indicados 32. Passagem para a Índia (A Passage to India). Inglaterra/EUA, 1984, dir.: David Lean, 163 min. Filme romântico que problematiza o contato cultural entre ingleses e indianos. 33. Um casamento à indiana (Monsoon Wedding). Índia/EUA/França/ Itália/ Alemanha, 2001, dir.: Mira Nair, 114 min. A partir de uma cerimônia nupcial, o filme retrata a complexa sociedade indiana. 34. Gandhi (Gandhi). Inglaterra/Índia, 1982, dir.: Richard Attenborough, 188 min. Épico biográfico sobre a vida do grande líder da independência da Índia. ÁSIA 35. Anna e o rei (Anna and the King). EUA, 1999, dir.: Andy Tennant, 148 min. Drama ligeiro que permite alguma percepção sobre o choque cultural causado pelo imperialismo europeu na Ásia, bem como sobre as disputas entre França e Inglaterra pelo domínio do continente no século XIX. 36. Tempestade sobre a Ásia (Potomok Chingis-khana). União Soviética, 1928, dir.: Vsevolod Pudovkin, 125 min. Clássico do cinema épico soviético, sobre a revolução socialista na Mongólia. 37. Indochina (Indochine). França, 1992, dir.: Regis Wargnier, 157 min. Drama histórico sobre a presença francesa na Indochina. 38. O americano tranqüilo (The Quiet American). EUA/Alemanha/Austrália, 2002, dir.: Phillip Noyce, 101 min. Aventura ambientada no Vietnã dos anos 1950, quando os Estados Unidos começaram a substituir a França na política de contenção do comunismo na região. 39. O último imperador (The Last Emperor). China/Inglaterra/França/ Itália, 1987, dir.: Bernardo Bertolucci, 165 min. Biografia do último imperador chinês, cujo drama pessoal se confunde com a história da China no século XX. 40. Platoon (Platoon). EUA, 1986, dir.: Oliver Stone, 120 min. Drama de guerra sob a perspectiva liberal, centrado nas desventuras dos soldados norte-americanos no Vietnã. 41. Os boinas verdes (The Green Berets). EUA, 1968, dir.: John Wayne e Ray Kellogg, 141 min. Aventura sobre as tropas de elite norte-americanas, numa perspectiva de direita sobre a geopolítica da região. 291 Curso de Formação em Política Internacional.p65 291 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional 42. Apocalypse Now (Apocalypse Now). EUA, 1979, dir.: Francis Ford Coppola, 153 min. Épico sobre a guerra do Vietnã considerado por muitos o melhor filme de guerra de todos os tempos. 43. Balzac e a costureirinha chinesa (Xiao Cai Feng/Balzac et la Petite Tailleuse Chinoise). França/China, 2002, dir.: Sijie Dai, 110 min. Dois jovens são punidos com um exílio interno numa aldeia de agricultores durante a Revolução Cultural chinesa, nos anos 1960. 44. Osama (Osama). Afeganistão/Países Baixos/Japão/Irlanda/Irã, 2003, dir.: Siddiq Barmak, 83 min. Drama que narra as desventuras de uma menina que finge ser homem para poder participar da vida social e cultural do Afeganistão dominado pelos talibãs. 45. A caminho de Kandahar (Return to Kandahar). Canadá, 2003, dir.: Paul Jay e Nelofer Pazira, 65 min. Uma viagem pelo Afeganistão do Talibã. RÚSSIA: REVOLUÇÃO E MODERNIZAÇÃO 46. Guerra e paz (War and Peace). Itália, 1956, dir.: King Vidor, 208 min. Épico hollywoodiano sobre a história russa do século XIX, baseado no livro clássico de Leon Tolstoi. 47. Doutor Jivago (Doctor Zhivago). EUA, 1965, dir.: David Lean, 197 min. Visão liberal do processo revolucionário e da construção do socialismo na União Soviética. 48. Outubro (Oktyabr). União Soviética, 1928, dir.: Sergei M. Eisenstein e Grigori Aleksandrov, 103 min. Visão oficial bolchevique da Revolução Russa, em seus aspectos políticos e geopolíticos. 49. Arca russa (Russkiy Kovcheg). Rússia/Alemanha, 2002, dir.: Aleksandr Sokurov, 96min. A partir de uma visita ao famoso museu Hermitage, em São Petersburgo, o filme narra a história russa e seus dilemas. 50. Adeus, Lenin! (Good Bye Lenin!). Alemanha, 2003, dir.: Wolfgang Becker, 121 min. Comédia sobre o fim do comunismo na Alemanha (Oriental), consegue abordar de maneira criativa as contradições de ambos os sistemas. ORIENTE E INTERVENÇÃO NORTE-AMERICANA 51. Syriana – A indústria do petróleo (Syriana). EUA, 2005, dir.: Stephen Gaghan, 126 min. Filme instigante e crítico sobre os jogos geopolíticos e os interesses corporativos no Oriente Médio. 292 Curso de Formação em Política Internacional.p65 292 5/6/2007, 12:41 Filmes indicados 52. Paradise Now (Paradise Now). Palestina/França/Alemanha/Países Baixos/Israel, 2005, dir.: Hany Abu-Assad, 90 min. Filme ousado e polêmico sobre os últimos momentos de dois homens-bomba palestinos, divididos entre angústias pessoais e dilemas políticos. 53. Fahreinheit 11 de Setembro (Fahreinheit 9/11). EUA, 2004, dir.: Michael Moore, 122 min. Documentário que, apesar do tom sensacionalista e bem-humorado, toca em questões cruciais da política de George W. Bush para o Oriente Médio. 54. O tigre e a neve (La Tigre e la Neve). Itália, 2005, dir.: Roberto Benigni, 114 min. O filme é uma das primeiras ficções cinematográficas ambientadas durante a invasão do Iraque pelos Estados Unidos. 55. O caminho para Guantanamo (The Road to Guantanamo). Inglaterra, 2006, dir.: Michael Winterbottom e Mat Whitecross, 95 min. Docudrama que narra acontecimentos reais, baseado em relatos de prisioneiros políticos da base norte-americana de Guantanamo, acusados de pertencerem ao Talibã e à Al Qaeda. ÁFRICA 56. Em minha terra (Country of My Skull). Inglaterra/Irlanda/África do Sul, 2004, dir.: John Boorman, 103 min. Drama sobre o processo de reconciliação pós-apartheid na África do Sul. 57. Um grito de liberdade (Cry Freedom). Inglaterra, 1987, dir.: Richard Attenborough, 157 min. Cinebiografia do militante antiapartheid Stephen Biko, morto pela repressão. 58. Hotel Ruanda (Hotel Rwanda). EUA/Inglaterra/Itália/África do Sul, 2004, dir.: Terry George, 121 min. Durante a guerra civil de Ruanda, quando as etnias dos tutsis e dos hutus se enfrentaram, com um saldo de 1 milhão de mortos, um gerente de hotel tenta salvar o máximo de vidas, enquanto o Ocidente abandona o país à sua própria sorte. AMÉRICA LATINA 59. Diários de motocicleta (Diarios de Motocicleta). Argentina/EUA/Cuba/ Alemanha/México/Inglaterra/Chile/Peru/França, 2004, dir.: Walter Salles, 126 min. Road movie sobre a viagem sentimental e política do jovem Che Guevara pela América Latina nos anos 1950. 293 Curso de Formação em Política Internacional.p65 293 5/6/2007, 12:41 Curso de formação em política internacional 60. Queimada! (Queimada). Itália/França, 1969, dir.: Gillo Pontecorvo, 115 min. Filme que sintetiza, dentro dos cânones do marxismo mais esquemático, o processo de independência das ex-colônias americanas, tutelado pela Inglaterra, e sua inserção no capitalismo liberal do século XIX. 61. Desaparecido – Um grande mistério (Missing). EUA, 1982, dir.: Costa-Gavras, 122 min. Clássico sobre o golpe do Chile e a participação dos Estados Unidos. 62. A batalha do Chile – 3 vols. (La Batalla de Chile: La Insurrencción de la burguesia; La Batalla de Chile: El Golpe de Estado; La Batalla de Chile: El Poder Popular). Cuba/França/Venezuela; Cuba/Chile/França; Cuba/Chile/ Venezuela, 1975/1977/1979, dir.: Patricio Guzmán, 191/90/100 min. Documentário sobre o governo Allende e as contradições entre capitalismo e socialismo na América do Sul. 63. Memórias do subdesenvolvimento (Memórias del Subdesarrollo). Cuba, 1968, dir.: Tomás Gutiérrez Alea, 97 min. Clássico do cinema latino-americano, retrata o olhar amargo e irônico de um burguês que resolve ficar em Cuba após a revolução de 1959. 64. Kamchatka (Kamchatka). Argentina/Espanha, 2002, dir.: Marcelo Piñeyro, 105 min. A repressão na Argentina a partir da visão de um menino que tem os pais perseguidos. BRASIL: CONSTRUÇÃO NACIONAL E INSERÇÃO INTERNACIONAL 65. Mauá: o imperador e o rei. Brasil, 1999, dir.: Sérgio Rezende, 135 min. Melodrama sobre a história do Barão de Mauá e seus projetos capitalistas para um Brasil agrário e escravista do século XIX. 66. Bye Bye Brasil. Brasil, 1979, dir.: Cacá Diegues, 110 min. Uma caravana circense percorre o Brasil profundo nos anos 1970 e testemunha o processo de modernização conservadora patrocinado pelo regime militar. 67. For All: O trampolim da vitória. Brasil, 1997, dir.: Luiz Carlos Lacerda e Buza Ferraz, 95 min. Filme leve e bem ambientado sobre a presença norte-americana em Natal, durante a Segunda Guerra Mundial. 68. O Velho: a história de Luis Carlos Prestes. Brasil, 1997, dir.: Toni Venturi, 105 min. Documentário biográfico sobre o líder comunista Luis Carlos Prestes, com imagens inéditas do seu exílio em Moscou. 294 Curso de Formação em Política Internacional.p65 294 5/6/2007, 12:41 Filmes indicados A BRASIL 69. Lost Zweig (Lost Zweig). Brasil, 2003, dir.: Sylvio Back, 115 min. Investigando o misterioso pacto suicida do famoso escritor alemão, dissidente do nazismo, exilado no Brasil nos anos 1930, o filme aborda os complexos jogos da política externa do Estado Novo getulista. 70. Jango (Jango). Brasil, 1984, dir.: Silvio Tendler, 117 min. Documentário sobre o governo João Goulart e as razões que levaram ao golpe de Estado de 1964, incluindo a Política Externa Independente. 71. Estado de sítio (État de Siège). França, Alemanha Ocidental, Itália, 1972, dir.: Costa-Gavras, 115 min. Drama político ambientado durante o seqüestro do cônsul brasileiro pelos tupamaros no Uruguai, em 1971, permitindo refletir sobre a participação da ditadura brasileira nas políticas anticomunistas da Guerra Fria. POLÍTICA INTERNACIONAL DO CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA NA AMÉRICA DO SUL 72. A história oficial (La Historia Oficial). Argentina, 1985, dir.: Luis Puenzo, 112 min. Melodrama premiado, que teve o mérito de ser um dos primeiros filmes a representar a ditadura argentina e seus efeitos sobre a vida pública e privada. 73. Memória do saque (Memoria del Saqueo). Suíça/França/Argentina, 2004, dir.: Fernando E. Solanas, 120 min. Documentário sobre a era Menem na Argentina e a revolta popular que derrubou o governo de Fernando de La Rua, em 2001. 74. A revolução não será televisionada (Chavez: Inside the Coup). Irlanda/ Países Baixos/EUA/Alemanha/Finlândia/Inglaterra, 2003, dir.: Kim Bartley e Donnacha O’Briain, 74 min. Documentário sobre a tentativa de golpe de Estado na Venezuela, contra Hugo Chaves, em 2001, com cenas incríveis captadas dentro do palácio presidencial. 75. Entreatos (Entreatos). Brasil, 2004, dir.: João Moreira Salles, 115 min. Documentário que acompanhou a intimidade da campanha presidencial que levaria o ex-operário Luis Inácio da Silva ao governo federal, em 2002. 295 Curso de Formação em Política Internacional.p65 295 5/6/2007, 12:41 Fundação Perseu Abramo Rua Francisco Cruz, 224 04117-091 – São Paulo – SP Fone: (11) 5571-4299 Fax: (11) 5571-0910 Correio Eletrônico: [email protected] Na Internet: http://www.fpa.org.br Curso de formação em política internacional foi impresso na cidade de São Paulo pela Gráfica Bartira, que também forneceu os fotolitos de capa e de miolo, em junho de 2007. O texto foi composto em AGaramond no corpo 11,5/15. A capa foi impressa em papel Carta Íntegra 220g; o miolo foi impresso em Offset 75g. Curso de Formação em Política Internacional.p65 296 5/6/2007, 12:41