MITOS E REALIDADE DA DINÂMICA POPULACIONAL José Eustáquio Diniz Alves (Universidade Federal de Ouro Preto-MG) Palavras chaves: Dinâmica Populacional, Direitos Reprodutivos, Transição Demográfica, Relações de Gênero 1. INTRODUÇÃO A história da humanidade tem sido a história da luta pela sobrevivência da espécie. O ser humano sempre lutou para se manter vivo diante dos inúmeros obstáculos do dia-adia e pela continuidade de sua descendência, constantemente ameaçada pelas altas taxas de mortalidade. Para fazer frente ao desafio da mortalidade, a sociedade se organizava para manter altas taxas de fecundidade, de modo a possibilitar o crescimento populacional. No século XIX, alguns poucos países começaram a vencer a batalha pela vida. Vários fatores contribuíram para a transição da mortalidade: a melhoria do padrão de vida da população, fruto dos ganhos de produtividade ocorridos especialmente a partir da segunda metade do século passado, decorrentes da chamada Segunda Revolução Industrial; as conquistas da medicina, resultado da inovação médica, dos programas de saúde pública, do avanço do saneamento básico, da higiene pessoal; e, também, do avanço educacional, que permitiu aos pais uma melhor atenção aos cuidados das crianças. Assim, alguns países mais industrializados conseguiram uma redução em suas taxas de mortalidade. Nestes países, este processo ocorreu de forma lenta e foi acompanhada, logo em seguida, pela redução das taxas de fecundidade. Em muitos países do chamado Terceiro Mundo, entretanto, a queda da mortalidade caiu muito rapidamente após a Segunda Guerra Mundial e não foi seguida, imediatamente, pela queda da fecundidade. Isto provocou um rápido crescimento populacional, que propiciou a difusão do mito da "explosão populacional". Em decorrência deste mito, metas de limitação demográfica foram traçadas e formas coercitivas de controle populacional foram aplicadas. Programas de restrição do número de 1 filhos ou de "planejamento familiar" foram recomendados e implementados sem muito respeito aos direitos individuais. As mulheres foram as principais vítimas das propostas autoritárias de regulação da fecundidade. A maioria dos programas implantados de cima para baixo não apresentaram os resultados esperados. Todavia, independentemente da vontade das autoridades controlistas, a queda da fecundidade se generalizou em quase todo o mundo, fruto da menor demanda por filhos. Hoje em dia, com a redução generalizada das taxas de fecundidade, está surgindo um novo mito: o mito da "implosão populacional". Muitas vozes, principalmente dos setores religiosos, estão interpretando a transição de altos a baixos níveis das taxas de fecundidade como um indício de "suicídio demográfico". Este é outro mito, pois existe uma distância muito grande entre as baixas taxas de fecundidade e o desaparecimento de uma população. É importante destacar que este novo mito não tem servido para impor novos meios contraceptivos, mas sim para restringir seus usos e para atacar os direitos sexuais e reprodutivos dos indivíduos, especialmente das mulheres. Saem de cena os controlistas e entram os populacionistas ou natalistas. O mito da explosão populacional levou a formas coercitivas de restrição da fecundidade, enquanto o mito da implosão populacional pode levar a formas coercitivas para a elevação da fecundidade. Ambos contribuem para restringir o direito à livre decisão reprodutiva e tendem a jogar sobre o gênero feminino os custos de regular o ritmo da dinâmica populacional. 2. O MITO DA EXPLOSÃO POPULACIONAL Em 1798, quando a população mundial se encontrava na faixa de 0,8 bilhão de habitantes, Thomas Malthus publicou a primeira versão do Ensaio sobre população, lançando as bases da construção do mito da "explosão populacional". O princípio de população de Malthus dizia: "O poder de crescimento da população é indefinidamente maior do que o poder que tem a terra de produzir meios de subsistência para o homem. A população, quando não controlada, cresce numa progressão geométrica. Os meios de subsistência crescem apenas numa progressão aritmética" (Malthus, 1983, p. 282). 2 Malthus considerava a fecundidade marital como uma variável independente e que tenderia sempre para a "fecundidade natural" (ausência de qualquer controle deliberado). Para ele, existe uma eterna "paixão entre os sexos", paixão esta considerada imutável e moralmente correta, desde que heterossexual, monogâmica e legitimada pelo casamento. Pregava, como norma de comportamento virtuoso, a continência total antes do matrimônio, e concordava unicamente, enquanto "freio preventivo", com o adiamento do casamento até que o casal tivesse os meios suficientes para criar uma família. Em seu modelo, sexo e reprodução estão umbilicalmente ligados. Os determinantes da taxa total de fecundidade seriam, então, as taxas de nupcialidade e a idade ao casar. Quando as condições econômicas fossem favoráveis, os jovens se casariam cedo, provocando um "baby boom". Existiria, portanto, uma relação direta entre crescimento econômico e fecundidade. Todavia, com o tempo, o elevado crescimento demográfico ultrapassaria a capacidade de produção dos meios necessários à subsistência, o que provocaria uma elevação das taxas de mortalidade, entendida como uma variável dependente. O controle da população se daria através da fome, doenças, epidemias, guerras e miséria, ou seja, dos "freios positivos", como se referia Malthus a toda sorte de eventos externos que limitavam o crescimento populacional. Para ele, negativo seria a eliminação destes "freios". Pelo princípio malthusiano, a população tenderia sempre a crescer mais que os meios de subsistência, tornando a fome e a miséria uma realidade inexorável. Uma alternativa lógica para se evitar o desastre populacional seria o controle da natalidade através do uso de métodos contraceptivos, aborto, abstinência sexual no casamento etc. Mas isto ia contra outros princípios malthusianos, uma vez que Malthus era um sacerdote da Igreja Anglicana, que condenava a regulação da fecundidade entre casais e o aborto. Concordava, apenas, com a abstinência sexual fora do casamento. Ele pregava o princípio bíblico "crescei e multiplicai-vos". Neste sentido, mesmo indo contra o senso comum, podemos dizer que Malthus nunca foi um controlista. Como escreveu Poursin e Dupuy (1975): "Malthus é resolutamente populacionista". A base deste populacionismo pode ser explicada por seu posicionamento ideológico conservador, para não dizer reacionário. Malthus era um porta-voz declarado dos ricos 3 latifundiários e defendia seus interesses (renda da terra) contra os interesses da burguesia industrial nascente (lucro) e dos estratos populares (salário). Um dos objetivos do "Ensaio de população" foi, declaradamente, combater os ideais da Revolução Francesa de 1789 e, particularmente, as idéias progressistas de Condorcet e William Godwin. Estes autores pregavam reformas sociais e consideravam o vício e a miséria resultados da forma de organização das instituições humanas. Para eles, uma vez suprimidos os privilégios de classe e feitas as devidas reformas sociais, adviria um progresso ilimitado da humanidade, em meio à abundância e à prosperidade de todos os habitantes do planeta. Malthus se opôs a este otimismo revolucionário contrapondo o seu princípio pessimista, baseado na imperfectibilidade do ser humano. Para Malthus, todo meio artificial e "fora da lei da natureza" para conter a população suprimiria aquilo que dá alma ao trabalho e à indústria, pois "a necessidade é a mãe da invenção". Na visão malthusiana, o sofrimento e as vicissitudes do povo trabalhador são as condições necessárias para sua evolução moral. Utilizando princípios religiosos, ele considerava que o ser humano, maculado pelo Pecado Original, estaria marcado para sempre pelo mal, e sua vida seria "um estado de privação e uma escola de virtude". Por conseguinte, Malthus considerava que o princípio de população seria um designo divino, uma forma de punição contra a aversão humana ao trabalho e à indolência e que a humanidade não teria saído do estado selvagem se não fosse a luta pela sobrevivência, provocada pelo excesso populacional. Contra o ideário utópico da Revolução Francesa, ele expôs o seu sombrio "princípio da realidade": "Foi ordenado que a população crescesse mais rapidamente que o alimento para fornecer os mais permanentes estímulos desse tipo e para levar o homem a apoiar os designos favoráveis da Providência por meio do pleno cultivo da terra (...) se retornarmos ao princípio da população e considerarmos o homem como ele é realmente - inativo, apático e avesso ao trabalho - a não ser que impelido pela necessidade, podemos proclamar com certeza que o mundo não teria sido povoado senão por causa da superioridade do poder da população em relação aos meios de subsistência (...). Se a população e o alimento tivessem crescido na mesma 4 proporção, seria provável que o homem nunca tivesse saído do estado selvagem" (Malthus, 1983, p.376). Qual a função de tanto negativismo? Na verdade, só podemos entender o pensamento demográfico de Malthus se entendermos seu pensamento econômico e político. Ele foi o primeiro professor da disciplina de economia política e, segundo Keynes, lançou as bases para se compreender o problema da "demanda efetiva". Como já foi dito, ele defendia a renda da terra em detrimento da renda dos trabalhadores. Malthus defendia a chamada lei de bronze dos rendimentos dos trabalhadores, vale dizer, um salário de subsistência, que seria o valor natural capaz de garantir a reposição sem falta e sem excesso da força de trabalho. Retirando-se a massa salarial e os demais custos de produção, o excedente agrícola seria apropriado pelos latifundiários em forma de renda da terra. Quanto menores os salários, maior seria a renda da terra e vice-versa. Mas os salários não poderiam cair a zero, pois os trabalhadores não sobreviriam. O mínimo do salário seria aquele capaz de sustentar o trabalhador e sua família. Mas não uma família numerosa e sim um número suficiente de filhos para repor demograficamente os seus pais. Neste sentido, Malthus considerava que o salário de subsistência seria aquele capaz de garantir o equilíbrio homeostático entre população e meios de subsistência. A diferença entre o "salário de mercado" e o "valor natural do salário" provocaria a oscilação demográfica. Se o primeiro estivesse acima do segundo, a população cresceria mais rapidamente que a produção de bens de subsistência devido à relação direta entre a renda e a fecundidade e à relação inversa entre a renda e a mortalidade. No longo prazo, entretanto, o crescimento excessivo da população seria eliminado pela escassez de recursos. Ao contrário, se uma crise de mortalidade reduzisse excessivamente a população, a maior disponibilidade de recursos naturais forçaria a elevação do salário de mercado, induzindo casamentos mais precoces e, em conseqüência, a elevação dos níveis de fecundidade, até o ponto em que um novo equilíbrio fosse alcançado. O crescimento populacional tenderia a oscilar de acordo com as condições econômicas, pois segundo Malthus: "a humanidade prolífera e a terra avara são os dados permanentes de nosso destino". 5 Como podemos perceber, o modelo econômico/demográfico de Malthus visava antes de tudo defender a inflexibilidade do salário de subsistência em benefício da renda da terra, apropriada pelos latifundiários. Nesta perspectiva ele foi contra a liberação da importação de cereais, como reivindicavam os setores urbanos da Inglaterra de seu tempo. Esta liberação teria a função de reduzir o custo de reprodução da força de trabalho, o que beneficiaria, em primeiro lugar, a burguesia industrial e, em segundo lugar, os próprios trabalhadores. Malthus se opôs, também, às "leis dos pobres" que, segundo ele, só serviam para incentivar a ociosidade e o vício. Desta forma, ele antecipou em quase dois séculos os ideólogos neoliberais que, atualmente, combatem as conquistas do estado de bem-estar social (welfare state). Por fim, é desnecessário dizer que, na concepção de Malthus, nunca haveria espaço para se discutir as modernas questões relativas aos direitos sexuais e reprodutivos. Apesar da repercussão alcançada pelo Ensaio sobre população, a história se encarregou de jogar por terra o modelo malthusiano, uma vez que o desenvolvimento tecnológico propiciou, nos últimos dois séculos, um grande crescimento dos meios de subsistência e um enorme crescimento da produção per capita. Segundo Maddison (citado por McNicoll, 1998, p. 314), entre 1820 e 1992 as populações da Europa Ocidental e do mundo cresceram, respectivamente, 3 e 5 vezes, enquanto, no mesmo período, a economia mundial cresceu 40 vezes. Neste período, foi a produção que teve um crescimento geométrico e não a população. Assim, além de contrariar a visão tecnológica de Malhus, a história mostrou que não existe uma relação direta entre as variáveis renda e fecundidade, mas sim uma relação inversa, pois quanto maior a renda do casal menor é o número provável de filhos. Neste sentido, podemos dizer que o princípio malthusiano era apenas uma ideologia conservadora capaz de justificar a ordem estabelecida na sociedade feudal e pré-capitalista. Neste sentido, o mito da "explosão populacional" foi utilizado como um recurso para justificar a necessidade de manter o atraso e a superexploração das classes trabalhadoras, justificando salários miseráveis. Cabe ainda destacar a diferença entre as concepções de Malthus e o neomalthusianismo. Malthus é o ideólogo do período anterior à queda generalizada das 6 taxas de mortalidade. O fenômeno da transição demográfica, típico do século XX, veio trazer novas questões. O crescimento do padrão de vida da população, os avanços da medicina, as medidas de avanço da higiene pública, as campanhas de prevenção de doenças e os cuidados especiais com os recém-nascidos possibilitaram uma forte redução da taxa bruta de mortalidade em todo o mundo. Nos países industrializados, este processo ocorreu de forma relativamente lenta e foi acompanhado, após pequeno lapso de tempo, pela queda das taxas de fecundidade. Nos países do Terceiro Mundo, entretanto, a queda das taxas de mortalidade ocorreu, de modo geral, de forma muito rápida após o fim da Segunda Guerra Mundial e não foi acompanhada imediatamente pela redução dos altos níveis de fecundidade prevalecentes nestes países. Houve, em conseqüência, uma forte elevação das taxas de crescimento populacional. Foi nesta época que se popularizou o termo "explosão populacional" que, naquele momento, parecia ser um perigo real. Em 1958, Coale e Hoover, em um trabalho clássico, sugeriram que a manutenção de altas taxas de fecundidade nos países subdesenvolvidos poderia retardar ou mesmo impedir o crescimento econômico em países mais pobres que estavam abaixo do limiar necessário à decolagem (take off) do desenvolvimento. É importante destacar que estes autores não partilhavam a ideologia conservadora de Malthus, apesar de alertarem para os possíveis efeitos negativos da permanência de altas taxas de crescimento demográfico em países de baixa renda per capita. Mas, a partir do clima de medo criado neste período, várias previsões pessimistas foram feitas, traçando um cenário apocalíptico para a humanidade: os relatórios do "Clube de Roma" apontavam para os limites do crescimento econômico e para o esgotamento dos recursos naturais e, em 1968, Paul Ehrlich lançou o livro A bomba populacional, cujo título fala por si só. Diante de tudo isto, a solução apontada seria estabelecer metas de crescimento zero e, para tanto, os neomalthusinistas, livres dos princípios religiosos de Malthus, passaram a receitar o controle da fecundidade como forma de desarmar a "bomba populacional". Além de métodos modernos de contracepção criados pela ciência, como a pílula anticoncepcional, DIU etc., alguns chegaram a pregar a esterilização em massa, outros pregavam até mesmo o aborto. Ao contrário de Malthus, os teóricos neomalthusianos acreditam que é possível acabar com a miséria e a pobreza, mas tendem a culpar os 7 próprios pobres pela sua situação desprivilegiada, uma vez que estes são naturalmente prolíferos. Nesta perspectiva, políticas populacionais restritivas foram traçadas recorrendo a métodos de controle que atentavam contra os direitos reprodutivos. Até a China comunista, pós-Mao Tse Tung, adotou um sistema bastante forte para incentivar apenas um filho por casal. Tudo isto porque os neomalthusianos consideram que a pobreza é decorrente do excesso de população e contribui para atrasar ou frear o desenvolvimento econômico. É como se a fecundidade fosse uma variável independente que precisasse ser controlada. Desta forma, o mito da "explosão populacional" contribuiu, muitas vezes, para impor decisões reprodutivas alheias à vontade dos casais. Destacamos, então, que, enquanto o malthusianimo é uma ideologia essencialmente natalista, o neomalthusianismo é, ao contrário, essencialmente controlista. Já na década de 1970, o mesmo Coale (1979), revendo a teoria da transição demográfica, percebeu que a difusão do controle da fecundidade nos países de baixa renda estava, de modo geral, ocorrendo independentemente dos níveis de desenvolvimento. A ânsia controlista foi, então, amainada. Assim, o problema da "explosão populacional" deixou de assustar as agências internacionais e os governos dos países centrais. Foi ficando claro para todos que a transição demográfica é um fenômeno que tem se espraiado por todas as regiões do mundo e que o rápido crescimento populacional corresponde apenas a uma fase temporária da história de cada país, que prevalece entre o período de queda da mortalidade e da queda da fecundidade. A dinâmica deste crescimento depende, obviamente, de situações concretas e não elimina problemas que possam ocorrer com alguns países que econômica e culturalmente resistem à transição da fecundidade. Mas, enquanto um desafio mundial, a questão da "explosão populacional", em poucas décadas, deixou de ser o grande fantasma que assustava os responsáveis pelo planejamento econômico e colocava nuvens negras no horizonte da sociedade humana. O medo da explosão populacional ocorreu devido ao fato do crescimento populacional do século XX ter sido o maior de toda a história da humanidade. Enquanto, no século anterior, a população mundial dobrou de tamanho, no século XX ela quase quadruplicou, passando de 1,6 bilhão em 1900 para 6,1 bilhões no ano 2000. À primeira 8 vista, este salto demográfico pode parecer um sinal de descontrole das taxas de fecundidade, pois, caso este crescimento viesse a se manter nos séculos seguintes, teríamos uma verdadeira avalanche humana sobre a Terra. Contudo, este alto crescimento populacional foi o resultado da expressiva queda das taxas de mortalidade ocorrida na maioria dos países do mundo. Pela primeira vez em sua longa jornada, o ser humano logrou sucesso na redução definitiva dos altos níveis de mortalidade e na conquista de altos patamares de expectativa de vida. O alto crescimento demográfico do século XX foi, portanto, fruto de uma conquista: foi o resultado da vitoriosa prevenção de epidemias e doenças, do desenvolvimento da medicina e da melhoria do padrão de vida de amplas parcelas da população mundial. Portanto, a aceleração das taxas de crescimento demográfico ocorreu, simplesmente, durante um pequeno lapso de tempo, até que as taxas de fecundidade começassem a cair, correspondendo a uma determinada fase da transição demográfica. 3. O MITO DA IMPLOSÃO POPULACIONAL Um certo tempo após o início da queda da mortalidade, as taxas de fecundidade também começaram a cair, desacelerando o ritmo de crescimento da população mundial. Houve uma difusão de novas práticas conceptivas. Este processo começou primeiro nos países desenvolvidos, de maior renda per capita, países do Norte, para depois cair também nos países subdesenvolvidos, de baixa renda, países do Sul. Nestes últimos, ao contrário dos primeiros, a transição demográfica ainda não se completou. Para efeito prático, consideramos que o fim da primeira transição demográfica ocorre quando a taxa de natalidade se iguala à taxa de mortalidade. Nos países do Norte este processo já ocorreu ou está em vias de acontecer. Na verdade, em vários destes países as taxas de natalidade só não estão abaixo das taxas de mortalidade - o que provocaria o decréscimo populacional devido ao efeito da estrutura etária (alta proporção de mulheres em idade fértil) e à migração internacional. Ou seja, na maioria absoluta dos países do Norte as taxas de fecundidade estão abaixo do nível de reposição (aproximadamente 2,1 filhos por mulher). A continuar esta tendência, o conjunto destes países deverá assistir à diminuição de suas 9 populações. Contudo, nos países do Sul, salvo raras exceções, as taxas de fecundidade, mesmo estando em declínio, ainda encontram-se acima do nível de reposição. Muitas abordagens teóricas buscam explicar a transição da fecundidade. Segundo a abordagem da modernização, a redução do tamanho da família é decorrente da passagem da sociedade agrária para a sociedade urbano-industrial. Maiores níveis de educação, participação feminina no mercado de trabalho, industrialização, urbanização e secularização podem explicar a queda da fecundidade. Caldwell (1982), numa abordagem inovadora, afirma que só existem dois regimes de fecundidade (exceto o período de transição): alto e baixo. No primeiro, o fluxo intergeracional de riqueza (moeda, bens, serviços, proteção contra riscos etc.) vai dos filhos para os pais, ou das novas para as velhas gerações. O outro regime - de baixa fecundidade - acontece após a reversão do fluxo intergeracional de riqueza, que passa a ir dos pais para os filhos, ou das velhas para as novas gerações. A elevação dos custos (monetários, sociais, psicológicos) e a redução dos benefícios dos filhos tornam a baixa fecundidade uma realidade que veio para ficar. Uma série de abordagens de gênero mostra que os maiores custos da alta fecundidade recaem sobre as mulheres, o que reforça, mutuamente, as desigualdades econômicas, sociais e de prestígio entre os sexos e a segregação feminina na sociedade. Neste sentido, a baixa fecundidade está relacionada, dentre outros fatores, com a mudança nas relações de gênero e a recusa das mulheres em arcar, desproporcionalmente, com a maior responsabilidade da geração e criação dos filhos (Alves, 1994). A continuidade de taxas de fecundidade abaixo do nível de reposição, após o fim da primeira transição demográfica, deu origem ao fenômeno conhecido na literatura demográfica como "segunda transição demográfica" (Van de Kaa, 1987). O que caracteriza esta segunda transição é o baixo número médio de filhos num momento de redução das taxas de nupcialidade, da elevação da idade média ao casar, da elevação da idade média da mulher à primeira gravidez, da elevação dos índices de separações e divórcios, do maior número de filhos fora do casamento, de uma maior pluralidade nos arranjos familiares (inclusive com a união homossexual), do crescimento da coabitação, de casais vivendo em casas separadas, da utilização generalizada de métodos eficientes de contracepção, por 10 níveis cada vez mais elevados de escolaridade, da cada vez maior participação feminina no mercado de trabalho e de um crescente individualismo. Neste sentido a segunda transição demográfica tem a ver com mudanças nas relações de gênero, com o empoderamento da mulher na sociedade e com uma redefinição do papel da família na sociedade. A menor demanda por filhos tem tornado o controlismo e a explosão populacional questões anacrônicas ou restritas a poucas regiões do mundo. Todavia, ainda existem muitos controlistas que alardeiam o perigo da explosão demográfica e tomam como exemplo a situação existente no continente africano. Também existem aqueles que justificam o atraso e o subdesenvolvimento dos países do Sul pelo elevado ritmo de crescimento populacional, tentando jogar sobre os próprios pobres a culpa da pobreza e buscando ocultar as iniquidades da ordem econômica internacional. Para muitos ideólogos do Norte, é mais fácil discutir as altas taxas de crescimento populacional do que discutir as altas taxas dos juros internacionais e o receituário restritivo do FMI. Desta forma, enquanto cresce a preocupação com a possibilidade de decréscimo populacional nos países ricos do Norte, mantém-se o receituário controlista para os países do Sul. Como escreveu Dom Eugênio Sales, Cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro: “O egoísmo dominante nos indivíduos e países impede uma justa distribuição dos recursos naturais. Cada um pensa em si e em sua nação, sem atender ao bem comum. Aqui se coloca o empobrecimento do Terceiro Mundo, em benefício dos mais ricos. E, no Brasil, a concentração de riquezas é crescente. Busca-se, em vez de justiça social, a diminuição dos que deveriam igualmente participar desses dons que Deus criou para todos os seus filhos” (Jornal do Brasil, 13/08/1994). Toda esta diversidade de opiniões se fez representar na Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento, realizada na cidade do Cairo, de 5 a 13 de setembro de 1994. Estiveram, também, várias ONGs, grupos de mulheres e grupos em defesa da livre orientação sexual. Portanto, estava presente na Conferência do Cairo toda a pluralidade de idéias e ideologias, conflitantes ou não. Um dos assuntos mais polêmicos foi aquele relativo 11 ao tema dos direitos sexuais e reprodutivos. O Vaticano e setores fundamentalistas de outras religiões se opuseram radicalmente a estes temas. A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) se manifestou publicamente através de seus maiores representantes. Como já vimos acima, vários bispos denunciaram, corretamente, as injustas relações econômicas internacionais que são as causas das desigualdades entre os países, sendo a questão populacional mais um resultado da desigual distribuição dos recursos. Isto foi reforçado nas palavras de Dom Rafael Llano Cifuentes, então Bispo auxiliar do Rio de Janeiro: “Alega-se um desmedido crescimento populacional e agiganta-se o perigo de uma explosão demográfica. Para quê? Para se auto-protegerem. Não há perigo de explosão demográfica nos países ricos. Não. O perigo neles é o terrível inverso demográfico que está congelando o seu crescimento. O problema do crescimento demográfico afeta os países do Terceiro Mundo que eles querem dominar com um novo gênero de colonialismo: o colonialismo demográfico” (Jornal do Brasil, 29/08/1994). Mas, apesar da crítica correta ao mito da explosão populacional, diversos bispos passaram a cultivar o mito contrário: o do “inverso demográfico”. Dom Boaventura Kloppenburg, então Bispo de Novo Hamburgo, disse claramente: “A taxa de fecundidade está baixando nos países ricos. Querem que a Igreja aprove ou ao menos não se oponha às técnicas anticoncepcionais para evitar a explosão demográfica. Mas o perigo real, dia a dia mais evidente, tem agora outro nome: implosão demográfica” (Jornal do Brasil, 17/07/1994). Assim, definido o novo inimigo, os bispos da CNBB passam a defender o “direito de viver” e a atacar a “cultura da morte”, a “desnatalização”, o “terrorismo demográfico” etc. Muito próximos das concepções originais de Malthus, os bispos passam a combater os métodos contraceptivos, a esterilização e principalmente o aborto. Nas palavras de Dom Lucas Moreira Neves, Cardeal-arcebispo de Salvador e primaz do Brasil: “A terceira observação crítica – a mais severa – contra o ‘esboço de documento final’, é que, nele, o afã controlista, se não propugna pela esterilização em massa de mulheres férteis e até pelo aborto, pelo menos admitem estas práticas como métodos válidos para a desnatalização. É visível que conceitos e expressões como ‘direitos sexuais e reprodutivos’ 12 (usados mais de cem vezes no ‘Draft’), ‘sexo seguro’, ‘maternidade segura’, ‘saúde reprodutiva’, cobrem, na verdade, a intenção de legalizar e legitimar o ‘aborto seguro’. Isso eqüivale a colocar a Conferência sob signo sinistro de uma genuína ‘cultura da morte’” (Jornal do Brasil, 31/08/1994). Dom Boaventura Kloppenburg, combatendo os métodos contraceptivos e toda e qualquer forma de aborto, diz: “Nesta situação a Igreja deve colocar-se decididamente ao lado da vida. Cremos firmemente que a vida humana, mesmo que débil e com sofrimento, é sempre um esplêndido dom do Deus da Bondade” (Jornal do Brasil, 17/07/1994). Ou combatendo os ambientalistas, como Dom Rafael Cifuentes: “Mata-se um mico-leão e vira um caso de polícia. Matam-se milhões de seres indefesos – pelo aborto – e o fato não merece uma simples manchete” (Jornal do Brasil, 29/08/1994). Podemos perceber, então, que, em nome do combate ao controlismo dos neomalthusianos, os bispos passaram a defender o princípio bíblico “crescei e multiplicai-vos”, tão ao gosto de Malthus. Além de combater a contracepção e o aborto, os bispos se manifestaram contra os direitos sexuais e reprodutivos em função da defesa intransigente da família monogâmica, heterossexual e submetida à “finalidade generativa do sexo”. No mesmo artigo já citado de Dom Boaventura, fica claro que a Igreja se opõe aos novos arranjos familiares e à livre orientação sexual. Diz o Bispo: “Uma família sem filhos é como um círculo quadrado. Devemos eventualmente redescobrir que, como nos dizia o Concílio Vativano II e repete o novo Catecismo nº 1652, ‘os filhos são o Dom mais excelente do Matrimônio e constituem um benefício máximo para os próprios pais’”. É neste mesmo sentido que podemos compreender a oposição atual da Igreja ao projeto de “parceria civil entre pessoas do mesmo sexo”, da ex-deputada Marta Suplicy. Podemos compreender ainda porque o Vaticano também se opõe ao uso da camisinha como forma de “sexo seguro” no combate à epidemia da AIDS. Para a Igreja, sexo seguro é aquele feito dentro do casamento e sem adultérios. Outras formas de relacionamentos sexuais devem ser combatidos pois não passam de “uma vida sexual desordenada”. Segundo nota recente da CNBB: “A Igreja entende que a melhor prevenção contra a AIDS é educar os jovens para uma sexualidade vivida com responsabilidade e reservando sua expressão mais íntima na união conjugal” (Folha de São Paulo, 16/06/2000, p. A11). Em nome da doutrina católica, desconsidera-se 13 todos os outros arranjos familiares existentes, tentando impor um modelo único de relacionamento que não condiz com a liberdade individual e a pluralidade. Vê-se, desta forma, que o mito da "implosão populacional" pode servir para a defesa de posturas sociais conservadoras e para uma reedição das idéias de Malthus. Abandona-se o controlismo reinante durante a primeira transição demográfica e, em seu lugar, surge um novo populacionismo, agora adaptado para as condições da segunda transição demográfica. Enquanto Malthus falava da necessidade do "salário de subsistência", agora fala-se na falta de mão-de-obra provocada pela redução das taxas de fecundidade, e que esta escassez de trabalhadores poderia elevar o "salário de mercado", colocando em perigo a acumulação capitalista. Fala-se, também, na redução do mercado interno de consumo e nas deseconomias de escala provocadas por uma menor população. Revive-se o medo do despovoamento e da "desinflação" populacional. Fala-se nos impactos causados sobre a previdência social decorrentes da mudança da estrutura etária e da alta proporção de idosos no conjunto da população. Até demógrafos pouco citados, como Julian Simon, autor de The Ultimate Resource (1981), que sempre se opôs ao controlismo e ao "catastrofismo" de alguns ambientalistas, são relembrados para reforçar os argumentos a favor dos benefícios do crescimento populacional. 4. PERSPECTIVAS DEMOGRÁFICAS PARA O SÉCULO XXI Evidentemente, quando pensamos no muito longo prazo, taxas altas de fecundidade podem levar à "explosão populacional" e taxas muito baixas podem levar à "implosão populacional". O erro, nestes casos, é tentar extrapolar tendências do curto prazo como se fossem tendências permanentes e imutáveis ao longo do tempo. A história já mostrou o erro daqueles que previam um crescimento ilimitado da população. Agora, no sentido inverso, estão extrapolando tendências de crescimento negativo, baseados em taxas de fecundidade abaixo do nível de reposição que são fruto de condições históricas concretas. Não dá para dizer que as taxas de fecundidade vão continuar caindo ou que não venham a subir mais à frente. 14 Além disto, existe um problema adicional, pois a possibilidade de redução da população ocorre nos países do Norte, enquanto os países do Sul continuam apresentando crescimento positivo. Segundo projeções de Bongaarts e Bulatao (1999), a população dos países do Norte (representados por Europa, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Japão) deverá apresentar uma pequena diminuição durante o século XXI, passando de 1,18 bilhão de habitantes no ano 2000, para 1,11 bilhão de habitantes no ano 2100. No mesmo período, a população dos países do Sul deverá passar de 4,89 bilhões para 8,86 bilhões. A população mundial deverá caminhar para a estabilidade, atingindo um teto na casa de 10 bilhões de habitantes. Portanto, o maior crescimento se dará nos países mais pobres e o peso relativo da população dos países do Norte cairá de 19,4% em 2000 para 11,1% em 2100. Estimativas feitas por McNicoll (1999), apresentadas na tabela 1, mostram que nos próximos 50 anos a única região que deve aumentar o seu peso relativo na população mundial é a África. A Europa é a região que deverá apresentar a maior perda, com sua participação na população mundial caindo de 21,7% em 1950 para cerca de 7% em 2050. Tabela 1 Distribuição da população mundial por regiões (%) Estimativas e projeções 1950-2050 Regiões 1950 2000 2050 Europa 21,7 12,0 7 USA, Canadá, Austrália, NZ 7,2 5,5 5 América Latina 6,6 8,6 9 Ásia 55,7 60,9 59 África 8,8 13,0 20 População mundial (bilhões) 2,52 6,05 8,90 Fonte: Geoffrey McNicoll, 1999 Tomando como bastante prováveis os dados das projeções acima, podemos perceber, em primeiro lugar, que a diminuição da população do Norte para os próximos 50 ou 100 anos não é tão dramática que dê crédito à hipótese de implosão populacional. Além disto, no espaço de um século, muita coisa pode acontecer, inclusive a elevação da 15 fecundidade, pelo menos ao nível de reposição. Em segundo lugar, mostra que não existe o perigo de uma explosão populacional nos demais países, pois a população mundial deve crescer algo em torno de 60% no século XXI, muito abaixo dos 280% de crescimento do século XX. Se é assim, então de onde vem o medo do perigo demográfico que existe em alguns países do Norte? A escassez de mão-de-obra poderia ser solucionada, por um lado pela imigração e, de outro, pela exportação e transposição de plantas industriais para o Terceiro Mundo. A tese de diminuição do mercado interno não se sustenta diante do crescimento da renda per capita. A perda de influência geopolítica dos países do Norte é apenas relativa, pois não é o tamanho da população o único critério de avaliação. Caso isto fosse verdade a Indonésia teria um peso geopolítico muito maior que o Japão, que já foi o 5 º país em tamanho de população e deve cair para 19º lugar em 2100. Um grande “problema” demográfico, por exemplo, encontra-se na Europa. Alguns países do Velho Continente assistem ao crescimento dos partidos de direita e de ideologia racista. As lideranças destes partidos tendem a colocar todo o mal do desemprego e da exclusão social existente em seus países sobre os imigrantes dos países do Sul. No auge do crescimento europeu nas décadas de 60 e 70 os imigrantes foram bem vindos. Com a perda de dinamismo da economia européia, estes imigrantes passam a ser os responsáveis e não as vítimas das crises econômicas. A Revista Isto É reporta a morte de 58 migrantes chineses na cidade de Dover e comenta: “Ao mesmo tempo, acirra-se o discurso xenófobo da direita e dos conservadores contra os imigrantes. O bufão francês Jean-Marie Le Pen já não fala mais sozinho. Tem ao seu lado figuras como o neonazista austríaco Jörg Haider – cuja coalizão chegou ao poder na Áustria – e o líder dos conservadores britânicos, William Hague, que fez da repressão aos imigrantes sua principal bandeira política. E esse discurso belicoso encontra eco nos setores mais empobrecidos da população européia” (28/06/00, p. 117). Nota-se, desta forma, uma tentativa de alguns partidos em defender os interesses de nações ricas em detrimento de nações pobres, de classes sociais privilegiadas em detrimento das classes trabalhadoras e de interesses étnicos e raciais europeus contra imigrantes africanos, asiáticos e latino-americanos. 16 5. ALGUNS ASPECTOS DA DINÂMICA POPULACIONAL NO BRASIL A população brasileira era de 3,3 milhões de habitantes, em 1800, passando para 17,9 milhões em 1900, segundo Merrick e Graham (1981). No ano 2000 deve atingir a casa de 170 milhões. A população brasileira quintuplicou no século XIX e decuplicou no século XX. Em 200 anos, o número de brasileiros aumentou 50 vezes. Foi um dos maiores crescimentos populacionais do mundo, mas um crescimento que partiu de uma base muito pequena numa situação em que o país possuía uma imensa disponibilidade de terras e uma baixíssima densidade demográfica. A imigração internacional teve um peso decisivo no incremento populacional no século passado e na primeira metade do século XX, quando a população chegou a 52 milhões de habitantes em 1950. Na segunda metade deste último século do milênio, entretanto, o determinante principal foi o crescimento vegetativo, resultado da rápida queda das taxas de mortalidade. As décadas de 50 e 60 apresentaram taxas de crescimento demográfico da ordem de 3% ao ano, as maiores de toda a história brasileira. O que os pessimistas viam como um problema de excesso de nascimentos era, na verdade, resultado dos ganhos da batalha pela redução das taxas de mortalidade, principalmente entre as crianças com menos de um ano de vida. Tão logo se consolidou a queda da mortalidade, as taxas de fecundidade também começaram a cair, reduzindo o ritmo de crescimento populacional. A taxa geométrica de crescimento anual caiu para 2,4% na década de 70, para 1,9% na década seguinte e deve ficar em torno de 1,5% na década de 90. No final da década de 70 o IBGE projetou dois cenários para o ano 2000: no cenário baixo foi calculada uma população de 201 milhões e no cenário alto, de 222 milhões de habitantes. A diferença entre a projeção baixa e o que deve ser observado pelo censo 2000 ficará acima de 30 milhões de habitantes (equivalente à população da Argentina). Em apenas duas décadas a brusca desaceleração populacional derrubou o mito da explosão demográfica brasileira. O principal componente da desaceleração populacional foi a redução das taxas de fecundidade, apresentadas na tabela 2, abaixo: 17 Tabela 2 Taxas de fecundidade total (TFT) Brasil 1940-1996 1940 1950 1960 1970 1980 1991 1996 6,2 6,2 6,2 5,8 4,3 2,8 2,5 Fonte: Anuário estatístico do IBGE (1992) e Carvalho (1998) Esta expressiva queda da fecundidade ocorreu sem que o país tivesse qualquer política populacional explícita. Existia uma disputa implícita entre controlistas e populacionistas. Amplos setores das forças armadas, setores da esquerda e setores da Igreja Católica eram claramente a favor do crescimento populacional e de uma política de ocupação das terras e dos espaços vazios do interior do país. Outros setores chamavam a atenção para os aspectos negativos do rápido crescimento populacional, na linha do trabalho de Coale e Hoover de 1958. Controlistas e natalistas disputavam espaço dentro do governo, mas nunca houve uma clara hegemonia de qualquer uma das duas tendências. A posição oficial brasileira foi sempre a de deixar as coisas acontecerem, uma espécie de nãopolítica, ou uma política populacional de laissez-faire. Contudo, Fonseca Sobrinho (1991) mostra que a legislação trabalhista brasileira estava marcada desde seu início por uma preocupação em não prejudicar as concepções pró-natalistas, criando mecanismos que protegiam o trabalho da mulher, vista enquanto “mulher reprodutora”. Todavia, independentemente do debate ideológico entre esquerda e direita ou entre populacionistas e neomalthusianos, as taxas de fecundidade começaram a cair em todas as regiões do país e em todos os estratos sociais. Carvalho (1998) mostra que a queda da fecundidade no Brasil é um processo irreversível devido à alta prevalência de métodos contraceptivos entre as mulheres casadas (unidas), especialmente a alta prevalência da esterilização. Para a construção de hipóteses, num exercício de projeção populacional, o autor chega a trabalhar com uma taxa de fecundidade total de 1,81 filhos por mulher no ano 2020, portanto, abaixo do nível de reposição que já deve ser alcançado no ano 2000. A população esperada para o ano de 2020 foi estimada em 200,4 milhões de habitantes. Dados do IPEA projetam uma população de 248,7 milhões em 2050. A partir daí a população 18 brasileira caminharia para uma estabilidade ou uma ligeira redução. Projeções de longo prazo estão, obviamente, sujeitas a muitos erros. Mas uma coisa está mais ou menos clara, não deve haver nem explosão nem implosão populacional no Brasil nos próximos 100 anos. Com certeza o ritmo de crescimento vai continuar se desacelerando e uma inversão de tendência não deve ser nada dramático que justifique qualquer cassação de direitos individuais. O maior impacto de longo prazo da queda da fecundidade será sobre a estrutura etária e o envelhecimento da população. Carvalho (1998) mostra que o percentual da pessoas com idade igual ou superior a 65 anos em relação ao conjunto da população deverá passar de 4,80% em 1991 para 8,80% em 2020. Certamente haverá um forte impacto sobre a previdência social. Contudo, este impacto demográfico é, mais cedo ou mais tarde, inevitável. A solução não seria elevar a fecundidade, mas sim alterar os mecanismos de financiamento da previdência social, por exemplo, saindo do “regime de repartição” para o “regime de capitalização”. Mas, se nos próximos 20 anos vamos ter um aumento da proporção de idosos na distribuição etária brasileira, teremos, paralelamente, uma redução da população abaixo de 15 anos que deverá passar de 35,0% em 1991 para 21,50% em 2020. Portanto, num primeiro estágio, a redução da fecundidade vai possibilitar o crescimento da população em idade economicamente ativa. Segundo o mesmo autor, o grupo etário de 15-64 anos vai elevar sua participação de 60,30% em 1991 para 70,00% em 2020. Portanto, o efeito mais imediato da rápida queda da fecundidade é a mudança da estrutura etária, alterando a agenda das políticas sociais. Neste sentido é preciso reafirmar que são as políticas sociais que devem se adaptar à nova realidade demográfica e não a dinâmica demográfica às velhas políticas públicas consolidadas no passado. 6. CONCLUSÃO O espectro do apocalipse demográfico ronda o mundo. Primeiro foi o espectro da explosão demográfica. Segundo Malthus, a população cresceria em progressão geométrica enquanto os meios de subsistência cresceriam em progressão aritmética. A partir daí, teorias escatológicas pregavam a incapacidade do planeta de sustentar uma população cada 19 vez maior e com maior nível de consumo. O rápido crescimento populacional dos países do Terceiro Mundo logo após o término da Segunda Guerra Mundial reforçou o medo da “bomba populacional”, que seria mais perigosa que a bomba de Hiroshima. Mas, diante da desaceleração geral do crescimento populacional do mundo, o espectro do apocalipse mudou de lado. No final do século XX e início do terceiro milênio, as teorias escatológicas já falam no deserto populacional fruto da implosão demográfica provocado pelas baixas taxas de fecundidade. Mas explosões e implosões demográficas são mitos que devem ser rechaçados porque fazem parte de uma ideologia que traz, implícita, formas coercitivas para se estabelecer metas demográficas, ferindo os direitos individuais. Além disto, por trás destes mitos existem posturas ideológicas e políticas que defendem interesses de classe, interesses nacionais dos países do Norte e práticas racistas contra os imigrantes pobres do Terceiro Mundo. Enquanto o modelo econômico do neoliberalismo defende a abertura comercial e financeira, a quebra das barreiras comerciais e o livre fluxo do capital rentista, sua prática social restringe a livre circulação dos cidadãos e constrói muros, reais ou legais, entre os países do Norte e do Sul. Além das questões nacionais, de classe e de raça, existe ainda a questão de gênero. As soluções apontadas tanto pelos controlistas como pelos populacionistas acabam atingindo principalmente o gênero feminino. A imposição ou a restrição de meios contraceptivos, a esterilização em massa de mulheres ou a proibição de esterilizações, a criminalização do aborto e a falta de estrutura para a realização da interrupção da gravidez prevista em lei, o combate ao uso de camisinhas, a proibição da pílula do dia seguinte sob o argumento de que ela é abortiva, tudo isto recai especialmente sobre as mulheres, que são obrigadas a arcar com os maiores custos da geração e da criação dos filhos. Por trás do mito da implosão demográfica está uma perspectiva que quer valorizar o papel tradicional da mulher, criando incentivos para sua menor participação no mercado de trabalho e sua volta ao lar. Por trás das campanhas de reforço da família, muitas vezes, se esconde o combate à pluralidade dos arranjos familiares, à coabitação e à união civil de homossexuais. Em nome do combate à “cultura da morte”, ataca-se a livre realização dos desejos dos indivíduos e reforça-se os mecanismos de controle da sexualidade humana. 20 Mas, apesar de todos estes mitos e espectros, a Conferência do Cairo, em 1994, representou um avanço em relação às Conferências anteriores, particularmente às de Bucareste (1974) e México (1984), pois superou as limitações do neomalthusianismo, colocando a questão da regulação da fecundidade como uma questão de saúde reprodutiva – entendida como um estado de completo bem-estar físico, mental e social – e não como um meio para se chegar a metas controlistas. Como disse Berquó (1998): “O documento do Cairo reflete com bastante clareza a agenda de prioridades que as mulheres de todo o mundo, através de suas redes de lideranças, foram construindo durante os anos de preparação da Conferência. São elas que reorientaram o eixo da questão populacional, ao colocarem a regulação da fecundidade no plano dos direitos individuais. Como conseqüência, o planejamento familiar, stritu sensu, perde status, e surge no Cairo a consagração dos direitos reprodutivos” (p. 26). Desta forma, é preciso compreender que esta vitória do movimento de mulheres e das forças progressistas só foi possível na medida em que houve, mesmo que de forma circunstancial, uma aliança entre o feminismo e o neomalthusianismo. Segundo Hodgson e Watkins (1997): "Os neomalthusianos e aqueles que procuram influenciar as tendências populacionais, geralmente, não são aliados naturais das feministas nem tampouco inimigos naturais: muito depende das circunstâncias momentâneas (…). Nos anos 80, entretanto, feministas americanas se depararam com um movimento americano neomalthusianista diminuído em poder e influência, e modelado por uma agenda unilateral de 'conhecimento geral' que produziu uma aliança de questionável benefício mútuo" (p. 510). As autoras chamam a atenção para a fragilidade desta aliança na medida que o neomalthusianismo objetiva apenas reduzir a fecundidade enquanto o movimento de mulheres entende a saúde sexual e reprodutiva como um direito que as pessoas têm “a uma vida sexual segura e satisfatória e que tenham a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir sobre quando e quantas vezes devem fazê-lo” (Plano de ação do Cairo, 1994). Todavia, a maior ameaça aos avanços conseguidos no Programa de Ação do Cairo advém do lobby das tendências populacionistas. A perspectiva é que este lobby fique mais forte nas próximas conferências, à medida em que a queda da fecundidade for se generalizando. É importante notar que o malthusianismo é tão ou mais coercitivo que o 21 neomalthusianismo. Historicamente, o natalismo sempre buscou reforçar o papel tradicional da mulher. Como afirma Prado (1982): “Stalin fez retroceder nos anos 30, com o decreto de 1940, o caminho de uma estrutura familiar liberal que germinava nos ideais da revolução soviética. Hitler preconizava a teoria dos três Ks – “Kinder, Küche, Kirche” (crianças, cozinha e igreja) – como único destino das mulheres patriotas, na Alemanha nazista. O integralismo e o fascismo fundamentam na constituição da família sua força, assim como assistimos às lutas de um islamismo obscurantista, no Irã, que pune hoje com a morte uma infidelidade conjugal, que retirou as mulheres das universidades etc.” (p. 33). É neste sentido que podemos compreender a pressão das forças natalistas contra os direitos sexuais e reprodutivos. Portanto, é de se esperar que as questões colocadas na Conferência do Cairo voltem com mais força na próxima Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento. A compreensão dos interesses em jogo e a participação organizada dos setores da sociedade civil que defendem o livre exercício dos direitos sexuais e reprodutivos é a única garantia contra possíveis retrocessos. Hammel (1982) mostrou que a transição da fecundidade é um fato novo na história da humanidade e representa uma das maiores mudanças de comportamento de massas de todos os tempos. Esta mudança não foi fruto de uma imposição fatalista ou irracional, nem foi fruto de forças naturais ou sobrenaturais. A limitação voluntária da fecundidade foi fruto da decisão consciente e racional de homens e mulheres. Passados duzentos anos da polêmica Malthus versus Condorcet, período em que houve uma clara hegemonia do malthusianismo e do neomalthusianismo, está na hora de relembrar o autor do Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Herdeiro intelectual dos enciclopedistas e iluministas do século XVIII, Condorcet condenava a ignorância e o obscurantismo e considerava que o progresso é a realização dos ideais da razão. Ele defendia a idéia de que “o ser humano é um ser indefinidamente perfectível” e que a história é o campo do seu aperfeiçoamento e progresso. A Revolução Francesa foi um momento de triunfo da liberdade contra o despotismo. A revolução contraceptiva do século XX foi uma vitória contra o fatalismo. A revolução sexual dos anos 60 foi a revolta contra o obscurantismo comportamental. Assim, as conquistas tecnológicas, científicas e culturais dos últimos 200 anos dão mais razão ao otimismo de Condorcet que ao pessimismo de 22 Malthus. Por tudo isto, é importante resgatar a esperança contida no Esboço de um quadro histórico... utilizando-a como matéria-prima de uma nova Utopia. 7. BIBLIOGRAFIA AHLBURG, D. Julian Simon and the population growth debate. Population and Development Review, New York, v.24, n.2, p.317-327, jun.1998. ALVES, J. E. D. Transição da fecundidade e relações de gênero no Brasil. Belo Horizonte : CEDEPLAR, 1994. (Tese de Doutorado) BERQUÓ, E. O Brasil e as recomendações do Plano de Ação do Cairo. In: BILAC, E.D., ROCHA, M.I.B (orgs). Saúde reprodutiva na América Latina e no Caribe: temas e problemas. Campinas, Prolap, Abep, Nepo/Unicamp, 1998. BONGAARTS, J., BULATAO, R. Completing the demographic transition. Population and Development Review, New York, v.25, n.3, p.515-529, sep.1999. CARVALHO, J. A. M. Demographic dynamics in Brazil recent trends and perspectives. Brazil Journal of Population Studies, Brasília, v.1, 1997/1998. CALDWEEL, J. C. Theory of fertility decline. 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