Uma abordagem fenomenologica para a analise de Agua e Vinho

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UMA ABORDAGEM FENOMENOLÓGICA PARA A
ANÁLISE DA OBRA “ÁGUA E VINHO”
DE EGBERTO GISMONTI
Por Cândida Borge
SUMÁRIO
I - INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 3
II – MÚSICA, TEMPO E OUTROS CONCEITOS... ...................................................... 5
III – ÁGUA E VINHO ....................................................................................................... 9
IV - CONCLUSÃO ............................................................................................................ 14
V – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 17
INTRODUÇÃO
Escolhi fazer a análise de uma obra do repertório pianístico de Egberto Gismonti,
“Água e vinho”, disponível para consulta na forma de duas gravações distintas: a primeira é
integrante do CD “Alma”, gravada no Brasil em estúdio em 1986; a segunda foi gravada ao
vivo em 2003 na Argentina e consta ainda como arquivo particular do compositor, que
gentilmente a cedeu. Além das gravações, uma pequena partitura foi publicada no encarte do
CD “Alma”, escaneada e utilizada como consulta neste trabalho.
Esta pesquisa teve como objetivo principal responder às questões abaixo através da
análise desta obra:
1) Quais são as peculiaridades musicais (temporais, rítmicas, harmônicas,
melódicas, texturais, timbrísticas ou outras) presentes nesta obra?
2) De que forma essas peculiaridades se expressam na realização musical de
Gismonti, tanto em estúdio quanto ao vivo?
3) Que concepção de música está subjacente ao pianismo de Gismonti, do ponto
de vista composicional e performático?
Desta forma, pretende-se compreender as estruturas que compõem a obra
analisada, identificar como essas estruturas se revelam no pianismo de Gismonti em dois
momentos de performance historicamente distantes, e como o conceito de música do
compositor se apresenta nestes. Como objetivos secundários, o trabalho propôs-se ainda a
identificar: 1) que processos de análise aplicados às gravações seriam úteis à compreensão
musical pretendida. 2) que aspectos da obra de Gismonti saltam predominantemente à minha
percepção pessoal, dando a diretriz aos conceitos principais a serem explorados e
desenvolvidos na dissertação final.
Para atender a estes objetivos, a primeira questão que se colocou foi quanto ao
método de análise musical. Que procedimento daria conta de responder a essas questões? Foi
preciso buscar uma metodologia capaz de conciliar a objetividade das características
composicionais e performáticas de Gismonti ao mesmo com a subjetividade da interpretação
desses dados correlacionando-os com o seu conceito de música.
As formas tradicionais de análise musical e análise pianística (técnica) costumam
revelar o aspecto “coisal” das obras, na medida em que apresentam dados empíricos
desconectados de uma compreensão mais abrangente e “holística” da obra.
2
A maioria das pesquisas sobre uma obra musical se limita a realizar a sua análise
formal-fraseológica e, do ponto de vista pianístico, fornecer citações técnicas de
procedimentos pianísticos, tais como dedilhado, dinâmica, respirações, técnica, etc. Não foi
este o caminho pretendido por este trabalho. A abordagem que se deu à análise de “Água e
Vinho” não almejou alcançar “dados objetivos e racionais”, mas experienciá-los numa
dimensão mais profunda de conhecimento, onde a percepção foi priorizada na condução da
pesquisa. A lógica e a racionalização foram ferramentas a serviço de uma experiência do
fenômeno considerado, onde o pesquisador pôde interagir com a observação e vice-versa,
diluindo a separação sujeito-objeto.
Dentro desta proposta, a abordagem fenomenológica foi aplicada para guiar o
percurso desta pesquisa, especialmente na escolha da metodologia, usando as concepções de
Clifton, Jauss, Koellreutter e Ferrara.
Entende-se por fenomenologia o estudo dos fenômenos, cujo princípio pretende
trazer a luz a sua essência, através da experiência que o sujeito faz do objeto. A análise
fenomenológica “busca livrar-se de procedimentos analíticos que propõem um modelo prédeterminado a ser preenchido pela obra em questão, ressaltando que cada obra definirá os seus
próprios procedimentos” (FREITAS, 1997). Também citando Ferrara, as questões a serem
respondidas encontram-se na própria obra.
Para a análise, aplicou-se um modelo fenomenológico construído através de
pesquisas coordenadas pela Profª Vanda Freire. Através de algumas escutas preliminares, a
própria obra apresentou os principais elementos a sua compreensão, estando esta livre das
expectativas de possuir este ou aquele elemento. Foi priorizado o fenômeno musical e
artístico em si, como um processo dinâmico entre observador-obra. A percepção do
observador foi parte integrante desta descoberta, revezando com a obra o papel de sujeito e
objeto, na medida em que se captava da obra o que ela tinha a oferecer à capacidade de
percepção do observador, percepção esta que é, também, condicionada culturalmente.
Este modelo de análise foi capaz de discutir as duas gravações disponíveis para a
pesquisa. Num segundo momento, utilizou-se a partitura como um recurso visual secundário à
compreensão do conteúdo musical da obra.
No
decorrer
das
análises,
o
tempo
resultou
como
uma
essência
predominantemente importante do acontecer musical, permeado por outras essências, tais
como timbre, textura, espaço. A forma é observada como resultado da interação dessas
essências, ainda que o tempo tenha sido identificado como essência da compreensão da obra.
3
Após esta breve introdução, o trabalho se orienta do sentido de apresentar os
conceitos de tempo identificados na obra. Há uma revisão de literatura, onde, tomando as
referências de Clifton, Jauss, Koellreutter e Ferrara, serão delineados os conceitos que
orientaram os processos analíticos. Em seguida, a análise de “Água e Vinho” é apresentada e
posteriormente a conclusão, onde as percepções das análises foram relacionadas para
identificar o conceito de música do compositor subjacente a sua obra.
Não há qualquer pretensão de se esgotar as informações sobre esta obra, mas que
esta reflexão seja pertinente a este momento da experiência, e que possa servir como ponto de
partida para as próximas abordagens sobre a obra de Egberto Gismonti que serão feitas ao
final deste curso de Mestrado.
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MÚSICA, TEMPO E OUTROS CONCEITOS...
Nesta seção, serão definidos alguns conceitos básicos à condução desta pesquisa,
a partir da revisão de literatura na área.
O primeiro conceito a ser revisto é o de música. Segundo a definição de Clifton,
traduzida por Freitas (1997:24):
“Música é um arranjamento ordenado de sons e silêncios cujo sentido é presentativo ao
invés de denotativo. (...) música é a realização da possibilidade de qualquer som apresentar a
algum ser humano um sentido que ele experimenta em seu corpo”.
Segundo MORAES (1991), música é uma maneira peculiar de sentir e pensar, que
propõe novas maneiras de se fazê-lo.
“É por isso que se pode perceber a música não apenas naquilo que o hábito convencionou
chamar de música, mas – e sobretudo – onde existe (...) a invenção de linguagens: formas de ver,
representar, transfigurar e de transformar o mundo.”
Nesta reflexão, utilizaremos como base um conceito de música aberto, onde os
dois conceitos anteriores ou outros podem transitar. A música inclui uma variedade de
possibilidades de realização que vai do som, como matéria básica, à invenção de novas
linguagens, a partir das sintaxes que organizam esses sons.
Para Clifton, a diferenciação entre música e não-música “reside no uso que a
pessoa experienciando faz dos sons”, em que contexto ele o insere, e que comportamento
(musical ou não) o som evoca no ouvinte a partir da sua escuta, percepção, interpretação,
julgamento e sentimento.
Nesta concepção, é unânime considerar que o sentido da música existe na sua
realização espaço-temporal (presentativo) e depende do envolvimento pessoal, o que já coloca
a necessidade da percepção e descarta a idéia da partitura em si só como música,
“A música, arte do tempo por excelência, se caracteriza pela dualidade que suscita entre
obra concebida e obra realizada, dado que a obra real, vivente, não pode existir, senão na realidade
temporal, realidade que a obra unicamente concebida não pode revelar.” (FUBINI apud
TRAGTEMBERG, 2001)
A percepção pressupõe a existência de uma fonte sonora – um músico e seu
instrumento, por exemplo - e de um ouvinte, que pode ser o próprio músico, ou algum
espectador segundo. Para Moraes, músico é aquele que ouve ativamente, criativamente, e
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desta maneira é capaz de interferir na realidade para produzir sua própria expressão musical.
Através deste prisma, forma-se uma circularidade compositor/intérprete/ouvinte/compositor,
onde um mesmo indivíduo pode ser todas essas personagens simultaneamente.
Absorvendo para a música alguns conceitos da literatura propostos por Jauss,
aplicaremos a sua primeira premissa que fala sobre historicidade.
“A possibilidade de a obra se atualizar como resultado de uma leitura é o sintoma de que
está viva; porém, como as leituras diferem a cada época, a obra mostra-se mutável, contrária a sua
fixação numa essência sempre igual e alheia ao tempo.
Historicidade coincide com atualização, e esta aponta para o indivíduo capaz de efetivá-la:
o leitor.” (ZILBERMAN 1989: 33)
Essa premissa fala da natureza eminentemente histórica da literatura, que se
manifesta durante o processo de recepção e efeito de uma obra, cujo protagonista é o leitor.
Trazendo para música, a historicidade completa o conceito de música proposto, admitindo que
o ouvinte, dentro do seu momento histórico e da sua individualidade, atualiza a escuta de uma
obra, tornando-a viva e mutável. A concepção de música como obra fechada, imutável,
estática e inerte a ação do tempo é revista e atualizada por uma outra concepção, que se abre
às interferências da recepção.
Dentro desta concepção, permitiu-se neste trabalho a inserção de um outro fator
de atualização para a música, que se dá apenas na instância do músico-intérprete-criador, que
também é ouvinte. Este fator é a improvisação, como elemento de atualização, revisão,
acréscimo, correção e expressão de um momento único para o músico. A historicidade
permite atualizações da esfera da escuta – para o ouvinte – e da performance – para o músico.
“Improvisação (do latim ex improviso – sem preparação) normalmente diz respeito a uma
performance musical que não foi preparada ou uma “extemporização” baseada tanto em temas
precisos ou formas musicais [...], ou em um desenvolvimento livre de idéias de idéias musicais
espontâneas sugeridas pela imaginação, e que resultam em uma sucessão caleidoscópica de
eventos, freqüentemente juntos em uma tênue linha apenas.” (BRINDLE, 1975:81 apud
TRAGTEMBERG 1997:24)
O grupo de conceitos apresentados a seguir refere-se a questão fenomenológica do
tempo, baseado na proposta de conceituação presente na obra de Clifton:
“(...) o tempo não é um processo independente, mas uma relação entre uma pessoa e um
evento experimentado.”
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Quando Merleau-Ponty escreve que o tempo é subjetivo, ele quer dizer que os
conceitos de tempo - como antes, depois, durante, agora, novamente, etc - fazem sentido a um
objeto experienciado, ou seja, a existência humana.
Segundo Clifton, podemos considerar quatro tipos principais de tempo:
a) A música enquanto registro (partitura e gravações) está suscetível ao tempo do
mundo (cronológico) e suas conseqüências.
b) Nossa percepção de uma obra é influenciada por um tempo pessoal de
vivência.
c) a performance acontece no tempo cronológico, mas a percepção da obra segue
um tempo interno do ouvinte, em seus processos de retenção e pretensão.
d) diferentemente do tempo cronológico que uma obra leve, há um tempo
evocado por esta, chamado tempo fenomenológico. A evocação do tempo pode ter referências
imediatas (independente de conceitos mediadores – início, fim continuidade, descontinuidade,
etc) e designativas (a outras referências de tempo).
As descrições que se seguem são sobre as evocações imediatas do tempo, segundo
Clifton.
INÍCIO
Toda experiência musical acontece num espaço-temporal que em algum momento
passou a ser, concretizou-se na existência real. Há ainda diferenciações para diferentes
momentos dessa existência, como os descritos abaixo
início – momento em que a experiência se inicia, é trazida à existência.
repetição – recomeçar o processo, após seu término. Permite a inserção de
outras situações.
recapitulação – retorno à idéia original, ou suas variantes.
segundo início – apresentação de uma idéia diferente do primeiro início –
pertence ao mesmo evento do 1º início, onde é anunciado.
início de outra seção – novo evento, nova idéia, novo tempo.
TERMINAÇÃO
Há diversas experiências envolvidas com o conceito de terminação, que pedem
uma diferenciação de seus termos.
A questão principal é a separação entre terminação (ending) e cessação (stopping).
Ambos os termos compreendem a idéia de fim (finished), percebido como tal pelo silêncio,
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pelo nada entre a obra e o evento seguinte. Entretanto, essa terminação pode não ser
interpretada como um fim se observada uma tendência a um “fim futuro” (ainda por vir). Da
mesma maneira, compassos cadenciais ou outras evidências de terminação, podem realmente
dar lugar aos sons do ambiente, ou dar início a outro movimento ou mesmo outra seção do
mesmo movimento.
Na intenção de diferenciar terminar de cessar, a noção de satisfação parece ser
importante. Tratando-se de uma percepção subjetiva, esta não pode ser considerada medida
estética para classificação do tipo de fim de uma obra. Entretanto, em alguma medida,
podemos
dizer
que
“fim”
refere-se
ao
momento
que
uma
composição
passa
(fenomenologicamente) a não-existência. No sentido de cessar, é mais provável que produza
a sensação de insatisfação, enquanto que no sentido de terminar proporcione mais aceitação e
satisfação. É possível que uma obra apresente esses dois tipos de finais.
Ambos início e fim demarcam limites temporais e espaciais. Entretanto, tratam de
construções artificiais, que têm sido questionadas pela música contemporânea.
Uma grande quantidade das músicas ocidentais apresenta um gesto de finalização
(por ex. cadências) que o autor chama de queda (fall). Entretanto, isto não configura uma
norma, e é preciso mais do que esta característica para determinar a percepção de fim, não
importando se o gesto é ascendente ou descendente, completo ou incompleto, esperado ou
inesperado. Outros eventos podem provocar esta experiência de fim.
CONTINUIDADE
Continuidade está envolvida na abertura do tempo: na idéia de que eventos
passados não estão eternamente dissociados de um presente que constantemente o retoma, e
que eventos futuros não consistem em “outro” incognoscível, ignorando e ignorado pela
situação presente.
“A palavra continuidade serve como referência a um processo que conduz um estado ao
outro sem interrupção.(...) A experiência de continuidade está mais relacionada com o tempo, com
a idéia de um passado não esqucido pelo presente, e um presente deslocando-se em direção a um
futuro (...).” (POTTHOFF, 1997: 20)
Sucessão e duração são fundamentadas na continuidade.
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A experiência de continuidade é vivenciada através da ampliação do horizonte de
consciência para dentro do objeto experienciado, na intenção de revelar o seu tempo interno,
ainda que sejam objetos estáveis, tal como uma simples nota prolongada.
Desta maneira, podemos considerar que a noção de continuidade é um produto da
intenção, tanto quanto o sentimento e a cognição. Não se trata de algo encontrado no mundo
factual, mas “de uma questão de subjetividade, decisão, constituição e intenção, não de pura
dádiva,” segundo Husserl.
Consciência resumida (synthetic consciousness) é a propriedade da consciência de
criar unidade entre percepções do mesmo objeto. A identidade é obtida através dessa síntese.
A experiência de continuidade parte de um ato constituído, resultante da
consciência de uma relação entre o objeto e o mundo, assim como com o seu tempo passado e
futuro eminente (Merleau-Ponty) e não uma fusão em uma identidade (Husserl).
Algumas considerações importantes sobre continuidade:
1) A inter-relação das dimensões temporais define a individualidade assim como o
significado do presente. Inter-relação, entretanto, não deve ser confundida com fusão.
2) Algo é reconhecido como passado se um vetor significante de natureza
retencional pode ser conectado entre o passado e o presente. Na ausência de tal conexão,
encontramos um passado insignificante, reprimido ou esquecido.
3)A estrutura de retenções e protenções não é rigidamente fixa, mas sempre em
processo. Além disso, a densidade das retenções e protenções é proporcional à nossa
habilidade de construir relações entre eventos aparentemente diferentes (passado e futuro).
4) Sucessão é uma experiência temporal significativa pela possibilidade do homem
de encarar o futuro.
5) Duração é algo flexível onde, fenomenologicamente, se percebe o presente
embutido. Difere da definição clássica de tempo que define duração como a percepção de
cada um dos seus membros como presentes.
6) A interpretação fenomenológica de continuidade demonstra uma relação
recíproca entre uma continuidade de atos de consciência e uma continuidade de um horizonte
relevante. Não se trata de uma percepção que se recebe passivamente.
Tempo e espaço não são manifestações independentes no mundo físico. Outros
conceitos, tais com o de espaço, revisão, estabilidade, ruptura, acúmulo são necessários à
compreensão do tempo de um evento dentro dos parâmetros acima, baseada na revisão
continuada dos processos musicais percebidos. Entretanto, ater-me-ei às descrições referentes
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ao tempo. Cabe aqui apenas um pequeno comentário acerca do espaço, de acordo com
Clifton.
Espaço musical é a área de natureza fenomenal, não física, que a música cria ao
dispor seus elementos, na qual o ouvinte habita ao imergir na experiência musical. É nesse
espaço que o tempo da música acontece, independente do tempo físico. É o espaço na
percepção.
Além das considerações sobre tempo, ainda restam alguns conceitos a serem
esclarecidos. Passamos agora às referências a Koellrreuter sobre estética e estilo.
Consideramos o conceito de estética como o estudo racional e fenomenológico da
expressão artística, suas condições e efeitos, quer quanto a sua conceituação (estética
objetiva), quer quanto à diversidade de emoções e sentimentos que ela suscita no homem
(estética subjetiva). A estética é a ideologia do artista. Então, é possível se dizer que o
conjunto de idéias que um artista possui se reflete na sua obra, na maneira com que organiza e
manipula os elementos da sua arte.
À medida que personifica suas impressões em uma manifestação artística, o artista
define o que podemos chamar de estilo pessoal.
“Estilo é o conjunto de características que une a produções artísticas de (...) um artista; ou
que separa a produção artística de (...) um artista de outro. Cada grande compositor tem sua
própria gramática musical, determinada por particularidades condicionantes de seu estilo pessoal “.
KOELLREUTTER, 1984.
Música e tempo foram os conceitos principais escolhidos para delinear a
compreensão da obra neste momento e conduzir as reflexões a que se propõe este trabalho.
Esta escolha foi feita através de escutas preliminares, onde a minha percepção pessoal
selecionou os critérios fundamentais à compreensão da obra.
O corpo de conceitos aqui apresentados será aplicado no processo de análise da
obra “Água e Vinho”, sob uma orientação fenomenológica, na próxima seção deste trabalho.
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ÁGUA E VINHO
A presente seção revela uma análise da obra “Água e Vinho”, de Egberto
Gismonti, segundo um enfoque fenomenológico.
Na intenção de aplicar os conceitos estudados no curso de fenomenologia em uma
análise de uma obra do universo da minha pesquisa final de Mestrado, optei por uma obra de
Egberto Gismonti à qual eu estava me dedicando no momento para apresentar no meu recital
de mestrado. Este foi o critério adotado para a seleção desta obra dentre as várias desse
compositor.
Conhecia esta peça há muito tempo. Já havia a escutado e tocado inúmeras vezes,
sendo, coincidentemente, a primeira obra de Gismonti que conheci e toquei. Entretanto,
tamanha foi a minha surpresa quando, ao ouvir sua gravação na classe de fenomenologia junto
a outros colegas, deparei-me com sons que nunca havia percebido. Uma nova obra se
apresentou, e pude vislumbrar a infinidade de escutas que se pode ter de uma mesma obra, e
quanto muitas vezes estamos tão acomodados em nossas escutas, que praticamente ouvimos
apenas o que queremos. Somente através de uma mudança brusca de contexto, pude ouvir o
que realmente estava tocando naquele CD...
Partindo das percepções dos meus colegas e da minha nestas escutas preliminares,
a obra revelou um aspecto muito importante a sua compreensão: a questão do tempo. Decidi
usar este ponto como principal foco da minha análise, sem excluir outros elementos que
também se apresentaram.
Iniciei pela análise da obra na versão do CD “Alma”, gravada em estúdio em 1986.
Neste trabalho, denominarei esta versão de A. Posteriormente, dediquei-me a análise da
gravação ao vivo no Teatro Colón (Argentina) em abril de 2003, a qual denominarei de versão
B. Alternando escutas entre as versões e observação da partitura escaneada do encarte do CD
“Alma”, fiz inicialmente uma análise global da peça, e posteriormente contextualizei em cada
versão especificamente. As informações reveladas nesta análise foram um material excelente
para compreender questões mais amplas sobre a obra de Gismonti, que apresentarei na
conclusão.
A análise
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“Água e vinho” é uma peça de caráter melódico, uma canção lenta, que já foi
letrada por Geraldo Carneiro. Foi gravada por diversos músicos, dentre eles o próprio
Gismonti (2 vezes), Olívia Bynton, Sharon Isbin, Duo Assad, entre outros.
Sua estrutura suavemente cadenciada, contrastando regiões graves e agudas, em
curtos desenhos melódicos, parece suscitar a transferência do ouvinte envolvido para um
outro mundo. Um mundo onde o tempo parece ter estagnado, ou move-se lentamente, em um
grande espaço aberto, composto de uma pequena mas expressiva variedade de timbres.
Segundo a minha percepção, a peça traz ao ouvinte uma melancolia, uma introspecção a um
mundo interno de angústias, conflitos e contrastes, de crescendos e decrescendos, de graves e
agudos, tal como a água e o vinho.
Composta originalmente para o piano, apresenta basicamente quatro planos
sonoros:
 acompanhamento “à mão esquerda”1 – feito em arpejo de acordes, na forma
“pendular” (fundamental–quinta-terça-quinta-fundamental), que lhe dá uma característica
melódica e harmônica simultaneamente; estrutura harmônica predominantemente tonal,
encadeia acordes por proximidade de suas notas, como se um acorde se transformasse em
outro; movimento rítmico regular e constante em colcheias conduz a melodia principal e o
tempo de toda a peça; sua inflexão é fluente, em legato, cadenciado, de sonoridade suave, mas
que se encorpa em alguns momentos, onde atua como contra-canto da melodia;
 melodia principal “à mão direita” – composta de notas duplamente
repetidas, em pequenos motivos melódicos, movimenta-se predominantemente por grau
conjunto. Apresenta multidirecionalidade de movimento, predominando o movimento
ascendente em que culmina. Possui flexibilidade rítmica, tornando irregular o desenho
melódico apresentado em colcheias na partitura.
 contra-canto –desenho esparso, geralmente em 6ª acima da melodia principal
e em tempo inteiro. Aparece na 2ª e última vez que a seção principal é reapresentada.
 F# 5 – aparição restrita à estrutura de transição.
1
Informação entre aspas por não ser fundamental à compreensão musical do elemento descrito. Trata-se de uma
observação “pianística”. Pode ser entendida como plano inferior, no caso da mão esquerda, e plano superior, no
caso da mão direita.
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A gravação A em estúdio permitiu ao compositor inserir outros sons, não
provenientes do piano. Outros planos foram criados nesta versão, compostos de sons de
sintetizadores com timbre de cordas na região média e aguda (na freqüência do F# 5), uma
“nuvem de chiados” e sons de badaladas de sinos. Estes elementos foram introduzidos nas
regiões de transição entre as seções, resultando em um ampliação do espaço musical.
A única referência escrita oficial desta peça obtida na forma de partitura foi uma
publicação no encarte do CD “Alma”. Abaixo está sua imagem escaneada:
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Esta partitura é uma pequena referência à primeira parte e principal da obra.
Contém o seu tema fundamental, mas ambas as gravações apresentam diversas variações a
essa estrutura. Outra partitura foi obtida através de um músico que transcreveu auditivamente
a gravação A, e esta foi consultada inicialmente para visualização das estruturas musicais e
preparação da minha performance. Entretanto, desprovida de informações sobre interpretação
do próprio compositor, ative-me a depreender das próprias gravações informações a respeito
de dinâmicas, superposições tímbricas, variações, etc.
Ambas as versões apresentam 4 seções, distribuídas da seguinte maneira:
1ª seção – recapitulação da 1ª seção – 2ª seção – recapitulação da 1ª seção.
A 1ª seção é basicamente esta apresentada na imagem anterior. Trata-se de uma
apresentação inicial das idéias musicais que serão evocadas reiteradamente, possibilitando
momentos de retenção.
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Já a 2ª seção, não é encontrada nesta partitura e difere completamente entre as
versões. Na A, desenvolve-se através de uma nova melodia sobre a mesma estrutura
harmônica da primeira seção. Esta nova melodia mantém as características da melodia da 1ª
seção, como se fosse um prolongamento desta, apesar de ampliar-se sobre a região aguda e
elevar a dinâmica a forte. Já na versão B, esta seção central apresenta um novo tema, com
estrutura harmônica nova em outra tonalidade, ainda dentro da região média e da dinâmica
mezzo-piano. Desta forma, concluí que esta seção central trata-se de um improviso, uma seção
improvisada que, ora o compositor fez sobre a seqüência harmônica principal, ora criou um
novo tema e harmonia.
Observei um aspecto de maior regularidade e estabilidade na versão A, promovido
pela repetibilidade dos eventos. Na versão B, observa-se um intensa modificação melódica e
estrutural, com mudanças de oitava e divisão rítmica na melodia, variações no
acompanhamento, mudança de compasso e uma suspensão na música a 4:542. Quanto ao
andamento, a versão B é pouco mais acelerada que a versão A. Além dessas diferenças, a
seção improvisada na versão B é mais extensa e percorre caminhos mais distantes da seção
principal.
Tendo escolhido a essência do tempo como principal elemento de compreensão
desta obra por mim neste momento, inicio a comentá-la sob este aspecto, já tendo traçado um
panorama geral da estrutura musical fundamental à compreensão dos conceitos que aplicarei
aqui.
O tempo é percebido em toda a obra muito mais fluido do que métrico, devido
predominantemente à imprecisão do pulso e do acento métrico. A regularidade das colcheias
no acompanhamento promove uma fluidez constante e abre uma dimensão de tempo para o
ouvinte própria para o seu desenvolvimento. Um tempo próprio é evocado (fenomenológico)
que se apresenta em um espaço sonoro particular.
Seu espaço musical é dimensionado pela textura formada pelo plano superior e
inferior, que caminham na região média do piano, com algumas expansões para o agudo na
melodia e interferências do F# 5, e para o grave nos baixos.
2
Referência feita em relação à medição cronológica do tempo como um recurso disponível para localizar o
evento descrito na gravação.
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Este espaço pode ser identificado como amplo também pela sonoridade das
gravações. A acústica dos locais, o pedal do piano, tratamentos com reverb, tudo isso ajudou a
criar um sonoridade cheia de harmônicos, que nos dá a sensação de espaço aberto. Além
disso, a textura preenchida por várias camadas de timbres e de sons diferentes, em todas as
regiões, ajuda a alargar o espaço sonoro da peça.
No aspecto timbre, em sua feição pianística, a peça explora variados timbres deste
instrumento – o piano. Tomando a acepção da palavra no seu sentido acústico restrito, todos
os sons do piano representam um mesmo timbre. Entretanto, a diferenciação do pianismo
(toques, pedal, etc) e da região, entre outros fatores, produzem uma percepção diferenciada na
“coloração” dos sons produzidos pelo mesmo instrumento. Nesta peça, o acompanhamento e
a melodia principal possuem um caráter lírico, melódico, produzida por uma articulação em
legato. Este timbre é contrastado pelo F# 5, que, como um grito, um som agressivo, isola-se
na região aguda em meio à trama que se desenvolve predominantemente na região média. O
contra-canto que surge em alguns momentos 6ª acima da melodia principal também revela
uma “coloração” diferenciada desta, provocada pela região mais aguda e pela sua organização
métrica mais esparsa. Outras “colorações” podem ser percebidas em outros elementos, tais
como, a escala ascendente final em tons inteiros, e o baixo grave (D –1) ao final da obra.
Além dos diferentes timbres internos ao piano, a versão A apresenta outros
instrumentos e sons, que trazem novos timbres aos descritos anteriormente. Cada um dos sons
sintetizados se sobrepõe ao timbre do piano, criando um contraste com este.
Cada um dos planos sonoros descritos no início da análise delineia uma área e um
tempo próprios. Juntos, realizam o espaço e o tempo geral da peça, mas cada um contribui
com uma característica peculiar. Cada um desses planos é um estrato temporal e espacial.
O princípio da faixa do CD antecede 1 ou 2 segundos da primeira nota. Entretanto,
os dois primeiros compassos funcionam à minha percepção como uma preparação, uma
ambientação e delimitação espaço-temporal para a melodia que começa a seguir e dá partida
(impulsiona) ao movimento da peça, iniciando-a propriamente. Ocorrem duas recapitulações
desta entrada, uma logo após a sua exposição, e outra após a seção improvisada. Na seção
improvisada da versão A, considero que ocorre um 2º início por ainda estar dentro da
familidaridade do 1º início. Já na versão improvisada da versão B, considero haver o início de
uma nova seção, pela mudança estrutural, temática e harmônica que ocorre.
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A estrutura da 1ª seção possui uma forma circular, no sentido que seus compassos
iniciais são iguais aos finais, que dão novo início ao tema. Essa estrutura que se apresenta nos
compassos 18 a 20 conduz a sensação de saciedade e de conclusão, mas emenda em novo
início para que seja recapitulada. No final da segunda seção, na versão A, a seqüência
harmônica se reinicia dando lugar a uma nova melodia. Já na versão B, uma micro-estrutura
do final da 2ª seção (la-sib) é repetida continuamente e dá início a uma seção improvisada. A
última seção é concluída a contento na mesma estrutura de final dos compassos 18 a 20, mas
que neste momento é concluída com uma queda ao acorde de ré menor, tom da obra, seguido
de escala ascendente de tons inteiros, que demarca o esvaziamento do espaço na região aguda,
e um baixo D –1 na região grave. Podemos considerar que o fim da obra ocorre nesta queda
ao acorde de ré menor, e que tanto a escala quanto o último baixo apenas completam ou
reforçam a questão do espaço, mas não são necessários à completude da idéia, nem à sensação
de saciedade.
Após sua última nota, na gravação ao vivo a obra dá lugar a uma intensa
manifestação da platéia, que aplaude, assobia e grita. Esse tipo de manifestação foi absorvida
por Gismonti em algumas faixas do CD “Alma” que foram gravadas ao vivo, como que
completassem a estrutura da obra enquanto fenômeno.
A forma circular da primeira seção dilui a noção de presente passado e futuro no
ouvinte. Um mesmo trecho (como os compassos 18 a 20), que já foi ouvido, está sendo
ouvido e já se pode antecipar a sua reapresentação, dá um aspecto de continuidade na sua
estrutura. Essas recapitulações criam vínculos entre as seções, de maneira a criar um contínuo
na melodia/harmonia. Mesmo nas seções improvisadas, há a manutenção da atmosfera da
peça, e esta é sentida como uma continuação da seção anterior, e a próxima é tomada também
em continuação. Uma grande fluência conecta todas as seções da obra pela manutenção dos
seus “climas”. Outros elementos dão a noção de continuidade, tal como o desenho rítmico do
acompanhamento, a estrutura “pendular” do arpejo, o timbre do piano e a dinâmica. A
dinâmica nesta obra parece acompanhar um círculo, porque cresce, e quando se espera mais,
ela volta e recomeça tudo de novo, assim por diante, reforçando a percepção de circularidade.
Em oposição, podemos identificar alguns fatores de descontinuidade: a
intromissão tímbrica do F# 5 e dos sons sintetizados, os retornos da dinâmica em
ascendências da melodia, e a suspensão identificada na gravação B.
17
Traçado o panorama de compreensão da obra, passo agora a considerações mais
abrangentes sobre o trabalho de Gismonti, buscando identificar as dimensões filosóficas e
ideológicas por trás desta obra no contexto da sua produção.
18
CONCLUSÃO
“Água e vinho” foi o mapa desta viagem pelo universo de Gismonti.
Na intenção de conhecer além dos aspectos musicais por trás da sua criação, esta
obra revelou-nos importantes informações para uma aproximação do seu universo enquanto
compositor e intérprete.
Sem pretender generalizações de qualquer espécie, as reflexões aqui apresentadas
não almejam classificar Gismonti em qualquer estilo, ou mesmo criar qualquer tipo de regra,
rótulo ou padrão sobre suas obras. Baseada em apenas uma obra, não seria possível chegar a
estas informações. Pretende sim, procurando atender às questões preliminares, identificar que
concepção de música está subjacente ao pianismo e à composição de Gismonti.
O método aplicado para esta pesquisa foi o meio que proporcionou as reflexões
pretendidas. A abordagem fenomenológica permitiu enxergar além do material concreto da
obra. Sem dispensar o conhecimento formal, fraseológico e harmônico, outras impressões
acerca da sua imagem estética e da minha percepção foram determinantes para um
conhecimento mais aprofundado sobre a obra para a realização desta pesquisa, bem como
para aprimorar a minha interpretação pianística. Sem sombra de dúvidas, a inexistência de
parâmetros pré-concebidos e a valorização da minha percepção e da obra como fenômeno
foram os aspectos que desencadearam esta pesquisa, permitindo a integração das questões
pretendidas.
“Água e Vinho” é uma obra cuja estética denuncia claramente a concepção de
Gismonti. Pela sua estrutura, sua forma de acontecer, observa-se uma intensa liberdade que
permite que a sua expressividade se manifeste de muitas maneiras, tanto na sua melodia, no
seu ritmo, no seu acompanhamento, etc.
Partindo da suspeita de que a diferença histórica de 14 anos e de contexto entre as
gravações, a análise interagiu duas versões distintas. Uma realizada em 1989 em estúdio e
outra em 2003 ao vivo. Esta interação revelou diferenças musicais consideráveis, descritas na
seção anterior. Desde a questão timbrística, tempo, ritmo, andamento até estrutura melódica.
Estruturalmente, a obra apresentava a mesma forma e mesmas características
principais, mas diferia quanto ao desenvolvimento melódico, tanto do tema principal como da
seção improvisada. Atendo-me ao seu aspecto pianístico, a performance de Gismonti
19
apresentou muitas variações entre as versões, sob o ponto de vista melódico e harmônico
(exclusivamente na seção improvisada). Na versão B, observa-se uma maior liberdade,
irreverência, ousadia e mutabilidade do que a versão A, na medida em que ocorrem mais
variações e o seu improviso é completamente distante da estrutura da seção principal.
Não esperava encontrar na produção de Gismonti uma repetibilidade. O clássico
procedimento erudito de ser fiel à obra escrita e outrora composta não se verifica. Partindo da
ausência de registro escrito da obra oficial, ou mesmo particular, percebe-se em Gismonti uma
permanente atualização. O simples fato de não haver registros escritos já denuncia seu
desapego em terminar e estagnar uma obra. Seu trabalho permanece aberto às interferências
do momento que vive, das condições e contexto em que está inserido. Desta maneira, “Água e
vinho” será diferente toda vez que for executada por Gismonti. Diferente não somente nos
aspectos interpretativos, o que é comum à dinâmica de interpretação de toda obra, mas
também nos seus aspectos estruturais, uma vez que a habilidade de compositor se manifesta
em Gismonti também enquanto intérprete. Pode-se dizer então que, baseado na definição de
Koellreutter, a improvisação é uma característica da produção de Gismonti, que pode
constituir um dos elementos do seu estilo.
A improvisação é utilizada como um recurso de atualização, onde a
independência da partitura particulariza cada performance com renovações na estrutura
musical de sua obra.
Ampliando o conceito de improvisação, este não se restringe a acontecimentos
musicais inesperados ou não preparados, ocorridos “espontaneamente”. No sentido da obra de
Gismonti, a improvisação é aplicada como a inserção de novos elementos musicais a uma
referência anterior, que pela ausência da partitura se dá em função de uma última gravação.
No momento não é possível identificar se esses novos elementos foram premeditados ou não,
o que pode vir a ser verificado através de entrevistas. Por ora, o conceito de improvisação
refere-se ao recurso de atualização que Gismonti emprega às suas obras, que pode ser
premeditado ou não.
A gravação em estúdio fornece outras informações sobre a concepção de
Gismonti. A inserção de outros sons que não os do piano se dá através de sintetizadores que
simulam cordas e sons não-instrumentais (sinos, chiado). A utilização desse material denota
mais uma vez a amplitude da concepção de Gismonti, que absorve sons não-instrumentais no
contexto de suas obras, tornando-os música. Esses sons passam a integrar sua obra, e
constituem um de seus elementos, dotados de expressividade e sentido.
20
A performance ao vivo, em piano solo e desacompanhado de outros músicos e
equipamentos eletrônicos, retiram de Gismonti a possibilidade de aplicar os sons sintetizados.
Essa opção pela execução exclusivamente ao piano pode estar dotada de um sentido e
intenção de Gismonti, que pretendo investigar nas futuras entrevistas.
Em recente entrevista à jornalista Fabian Chacur da Revista Áudio Plus, em
janeiro de 2003, Gismonti declarou:
“Descobri que toco muito melhor ao vivo, independente dos erros. Estúdio não é lugar de
compor, é lugar de tocar.”
Nesta declaração, Gismonti revela sua preferência pessoal pela apresentação ao
vivo. Reconhece uma superioridade na sua performance, integrando os erros como fator de
enriquecimento casual, que ele aproveita para sua improvisação. Na sua linguagem,
estabeleceu uma diferenciação entre tocar e compor. Como já verificado, as performances de
Gismonti não estão dissociadas de elementos improvisativos, provenientes em algum nível da
composição. Desta forma, “tocar” e “compor” em Gismonti parecem não estar dissociados,
apesar de assim o declarar. Talvez a noção de tocar para Gismonti já inclua as possibilidades
de variação musical, que imprime uma liberdade de execução das suas obras, porém dentro de
idéias pré e semidefinidas. Este “tocar” Gismonti atribui ao estúdio, como um local onde se
pode escolher o que fazer. Compor pode se referir à improvisação completamente espontânea,
visceral, que acontece em uma apresentação ao vivo, em que tudo que se cria acontece sem a
possibilidade de se retornar para ajustes. Talvez seja justamente devido a esta espontaneidade
que Gismonti atribua mais valor às suas performances ao vivo.
Diante das observações desta pesquisa, podemos admitir a identificação de uma
concepção de Gismonti refletida na sua obra analisada. A estética da sua obra revelou em
alguma instância suas idéias, conceitos e intenções.
Podemos concluir que Gismonti admite um conceito de música amplo, que:

permite a inserção de sons não-instrumentais em sua obra, em contextos
que os tornam parte de seus elementos;

reconhece no fenômeno a possibilidade real de existência da música, e não
na partitura, uma vez que ela nem existe de fato;

permite alterações no discurso musical, como improvisações ou “erros”,
que atualizam e particularizam cada performance.
21
A pesquisa apresentada abriu um horizonte de possibilidades, idéias e recursos a
serem aplicados em pesquisas sobre Gismonti. As informações aqui fornecidas auxiliam não
apenas na compreensão específica da obra analisada, como em todo o repertório de Gismonti.
Mais além, desperta reflexões de muitas ordens sobre todo o repertório pianístico e suas
convenções de execução, abrindo espaço para que novos conhecimentos sejam adquiridos
nesta área, no sentido de explicar, justificar e esclarecer os comportamentos por trás de uma
performance pianística, para que escolhas sejam feitas com consciência.
22
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