1 Sobre o conceito de transitividade Maria Alexandra Fiéis - Universidade Nova de Lisboa Enquanto conceito filosófico, a transitividade opõe-se ao conceito de imanência e pode aplicar-se tanto ao domínio das acções como ao das causas. No primeiro caso diz-se que há passagem da acção de um ser ou agente a outro, enquanto que no segundo é a acção que tem o seu fim num ser distinto do primeiro. Em ambas as situações a acção não é inerente ao ser/agente. Um exemplo de transitividade normalmente apresentado quando se tenta definir o conceito em termos filosóficos, refere Deus como entidade imanente, por oposição a transitiva: (1) Deus est omnium rerum causa immanens non vero transiens, Spinoza, Ethica I, XVIII.1 “Deus é causa imanente a todas as coisas e não causa transitiva” Actualmente, o conceito de transitividade é utilizado em gramática e em lógica. Em lógica define-se como uma propriedade de certas relações associadas a predicados. Nesta óptica os predicados conferem propriedades aos nomes e podem ser de um, dois, três ou mais lugares (monádicos e poliádicos2), lugares esses que são preenchidos (saturados) por elementos nominais e que são ordenados de acordo com uma hierarquia pré-definida (Cf. Lyons (1977)). Em termos lógico-semânticos, os predicadores poliádicos constituem relações ordenadas (binárias), que se podem dividir em diferentes tipos consoante as suas propriedades formais (Cf. Allwood et alii (1977), Partee et alii (1990), Reese (1996), entre outros). No âmbito da formalização linguística, as relações binárias podem, então, ter propriedades de reflexividade, simetria, transitividade e conectividade. Propriedades essas que se podem apenas manifestar em relações que ocorram num dado conjunto AxA e nunca num conjunto AxB, onde B seja diferente de A.3 Reflexividade Por reflexiva entende-se uma “relação R num conjunto A (...) sse todos os pares ordenados com a forma <X, x> estão em R para todo o X em A” (Cf. Dicionário de Termos Linguísticos). Exemplos de relações reflexivas: 1 Cf. Encyclopédie Philosophique Universelle e também Enciclopédia Filosofica. Por poliádicos entendem-se todos os predicados com mais de um lugar o que, logicamente, inclui os diádicos e os triádicos. 3 Para um maior aprofundamento de questões relacionadas com as propriedades das relações binárias, veja-se Partee et alii (1990): 39-53; Allwood et alii (1977): 88-91 e também Reese (1996): 31, 213-224. 2 2 (2) a. O João é tão grande como a Maria ⇒ A Maria é tão grande como o João b. O João é idêntico ao Manel ⇒ O Manel é idêntico ao João. As relações binárias exemplificadas em (2) opõem-se às de (3) que são irreflexivas, ou seja, exemplificam um tipo de relação na qual não existe nenhum par ordenado <X, x> cujo primeiro e segundo membro sejam iguais. (3) a. O João é mais alto que o Chico ⇒ *O Chico é mais alto que o João. b. O Chico é pai do Pedro ⇒ *O Pedro é pai do Chico. Simetria Simétrica é a relação existente entre um x e um y e, do mesmo modo, também existe entre um y e um x, isto é, uma relação que se estabelece sempre no sentido oposto. Se tal não se verificar, a relação é considerada assimétrica. Em (4) são apresentados exemplos de simetria e em (5) de assimetria, nos quais se verifica que para qualquer <x, y> em R, o par <y, x> nunca está em R: (4) a. O João é tão grande como o Zé ⇒ O Zé é tão grande como o João. b. O Pedro é primo do António ⇒ O António é primo do Pedro. (5) a. O João é maior do que o Zé ⇒ *O Zé é maior do que o João. b. O Francisco é pai do Rui ⇒ * O Rui é pai do Francisco. Conectividade4 As relações binárias apresentam propriedades de conectividade se nessas relações em A para cada dois elementos distintos x e y em A, <x, y> ∈ R ou <y, x> ∈ R, ou ambas as situações. Ou seja, se em A o par x e y pertence à relação R e se o par y e x também pertence à relação R, então temos uma relação conectiva. Exemplo de uma relação conectiva é a relação maior do que no conjunto dos numerais integrais positivos definidos pelo conjunto Z={1, 2, 3, 4, 5, 6, ...} e que diz que para cada x e y tanto x > y ou y > x. Transitividade Finalmente, a relação mais relevante para o âmbito deste trabalho é a relação transitiva. Assim, uma relação é transitiva sse “para todos os pares ordenados <x, y> e <y, z>, o par <x, z> 3 também está em R” (Cf. Partee et alii (1990): 41). Por outras palavras, se dois elementos estabelecem uma relação deste tipo com um terceiro elemento, significa que se trata de uma relação mantida entre todos5, sendo que não é imperativo que os elementos da relação R sejam iguais.6 Exemplos de relações transitivas no conjunto dos seres humanos são ser antepassado de, ser maior do que, estar à esquerda de: (6) a. O Francisco é antepassado do João. b. O João é antepassado do Pedro. ⇒ O Francisco é antepassado do Pedro. (7) a. A Maria é maior do que a Rita. b. A Rita é maior do que a Joana. ⇒ A Maria é maior do que a Joana. (8) a. A Joana está à esquerda do Luís. b. O Luís está à esquerda do Ricardo. ⇒ A Joana está à esquerda do Ricardo. Quando nenhum destes casos se verifica, diz-se que a relação é intransitiva. Formalmente transcreve-se da seguinte forma: “para nenhum par <x, y> e <y, x> em R, o par ordenado <x, y> está em R” (Ibidem). São exemplos de relações intransitivas no conjunto dos seres humanos, ser mãe de, ser pai de. (9) a. A Maria é mãe da Filipa. b. A Filipa é mãe da Patrícia. ⇒ * A Maria é mãe da Patrícia. Com a relação ser pai de verifica-se o mesmo: (10) a. O Zé é pai do Paulo. b. O Paulo é pai do Pedro. ⇒ *O Zé é pai do Pedro. 4 De salientar que das obras que serviram de referência a este capítulo sobre formalização linguística, apenas Partee et alii (1990) fala em conectividade no âmbito das propriedades das relações que envolvem predicadores poliádicos. 5 Se a=b e b=c, então a=c, é uma relação transitiva. 6 A relação <2, 2> também é transitiva, na qual x=y=2=2. 4 Contudo, quando uma relação não é transitiva, não implica necessariamente a intransitividade, pode ser simplesmente não-transitiva. Por exemplo, dados os conjuntos {<1, 2>} e {<2, 3>} em R, a relação é não-transitiva porque falta o par {<1, 3>}. No conjunto dos seres humanos, as relações do tipo admirar, desprezar, conhecer, são exemplos de relações não-transitivas (Cf. Allwood et alii (1977)). (11) a. O João admira a Maria b. A Maria admira a Rita. ⇒ (*) O João admira a Rita. (12) a. O António despreza o Rui. b. O Rui despreza o Pedro. ⇒ (*) O António despreza o Pedro. (13) a. A Rute conhece a Maria. b. A Maria conhece a Joana. ⇒ (*) A Rute conhece a Joana. Os exemplos de relações binárias que caracterizam os predicadores poliádicos podem partilhar mais do que uma propriedade formal entre si.7 A relação ser pai de no conjunto dos seres humanos é, em primeiro lugar, irreflexiva uma vez que ninguém é pai de si próprio; é assimétrica, se um indivíduo x é pai de um indivíduo y, nunca pode ser verdade que y seja pai de x; é intransitiva, porque se x é pai de y e y é pai de z, então x é avô de z e nunca pai. Finalmente, esta é ainda nãoconectiva, uma vez que x e y são individuos distintos no conjunto dos seres humanos, de modo que nem a relação x é pai de y nem a relação y é pai de x são verdadeiras. A relação ter a mesma idade que, manifesta propriedades formais opostas às referidas no parágrafo anterior. Trata-se de uma relação R reflexa, uma vez que todos os individuos têm a mesma idade entre si; simétrica porque se x tem a mesma idade que y então y tem a mesma idade que x e transitiva porque x e y têm a mesma idade, assim como y e z, então x e z têm a mesma idade. Por último, caracteriza-se por ser não-conectiva, uma vez que existem indivíduos distintos que não têm a mesma idade. No âmbito da formalização linguística, o conceito de transitividade pressupõe uma relação com três elementos, isto é, implica um predicador que seja poliádico (de dois ou mais lugares), e é 7 As exemplificações que se seguem são extraídas de Partee et alii (1990): 42-43. 5 esta, sem dúvida, a base filosófica do conceito: um sujeito que passa uma acção a um segundo sujeito diferente do primeiro (normalmente de um actor para um alvo).8 A ideia de que a gramática faz parte da filosofia, está presente de igual modo nos trabalhos dos gramáticos renascentistas e mesmo anteriores. Contudo, a noção de transitividade encontra-se associada ao verbo, ao predicado, ou seja, trata-se de uma abordagem estrutural do conceito. O papel fundamental deste vocábulo (do verbo) seria o de ligar elementos na oração, tão simplesmente, na perspectiva da gramática tradicional ou filosófica (da qual a Gramática de Port-Royal foi precurssora), mas tal simplicidade consegue apenas ser mantida pelo verbo ser,9 na opinião dos gramáticos de Port-Royal, o único verbo que deveria existir. No entanto, da necessidade de julgar, de afirmar os objectos do mundo, vão surgindo, na opinião dos autores, novas palavras que não se limitam a “designar”, mas a expressar sentimentos, “palavra[s] cujo principal emprego é significar a afirmação” (Cf. Arnaud & Lancelot (1612-1694): 85) ou, na tradição portuguesa até ao século XIX, o verbo é uma “parte da oração, que significa alguma operação activa, ou passiva, e se conjuga por tempos, modos, e pessoas” (Cf. Andrade (1841):10). São estes membros da frase, que ajudam a “afirmar o mundo” e os objectos, que é proposto analisar neste trabalho, que não se pretende exaustivo mas apenas um aflorar de questões que se julgam pertinentes. De qualquer forma, apenas se poderão dizer algumas generalidades sobre os verbos transitivos já que o “ser transitivo um verbo depende do modo como a acção que elle significa, é representada na imaginação” (Cf. Silva Dias (1970): 40). Do adjectivo latino transitivus, quando usado em gramática, o termo transitivo queria significar que um termo da oração não se bastava a si próprio, necessitava de outro termo para lhe completar o significado. Ou seja, trata-se de um membro da frase não autónomo. Nas gramáticas latinas10 o verbo transitivo caracteriza-se pela capacidade de passivizar, por oposição aos intransitivos. Esta é igualmente a ideia vigente nas gramáticas renascentistas, 8 Esta concepção de transitividade encontra-se, por exemplo, em Lyons (1968); embora por outras palavras, a classificação semântica dos predicadores depende do número de nominais com os quais ocorrem, pelo que podem ser intransitivos (ou de um lugar) e transitivos (de dois ou mais lugares). Noutra perspectiva, o número de argumentos selecionados por um verbo corresponde à valência do verbo (Cf. Büsse & Vilela (1986), Vilela (1992)), ou seja, corresponde à propriedade que um elemento tem de “exigir, permitir, excluir complementos específicos” (Cf. Vilela (Ibidem): 31). Um verbo como chegar seria definido como tendo apenas um lugar vazio, o de sujeito, enquanto escolher tem dois lugares vazios, o de sujeito e o de complemento directo, casos há em que não há lugares vazios a preencher, como no caso de verbos como anoitecer (Cf. Ibidem). 9 Um verbo substantivo (na tradição latina) que exprime um só juizo, ou pensamento, por oposição a verbo adjectivo, que concentra em si próprio propriedades do verbo ser e de um particípio, com o objectivo de tornar a linguagem menos pesada (Canto em vez de estou cantando). Cf. Andrade (1841). 10 Por exemplo, Freire (1987). 6 ainda não totalmente libertas da rigidez das normas latinas, como era a gramática de Fernão de Oliveira (1536) e a de João de Barros (1540), “simplesmente analógicas”, regendo-se pela forma das gramáticas latinas e com pouca sensibilidade para os problemas específicos da língua portuguesa. No entanto, a noção de transitividade estava implícita na definição dos verbos adjectivos activos: verbos que passivizam e nos quais “denotamos fazer algu~a óbra que pásse em outra cousa, a quál poemos em o caso acusativo per semelhante exemplo: Eu amo a verdade”, que se opõem aos neutros porque não se convertem em forma passiva e nos quais há passagem da acção de uma coisa a outra como ando, estou, venho, vou, fico” (Cf. Barros (1540): 326). Ora, nestas definições evidencia-se desde já a influência das gramáticas com base filosófica, nas quais não é só a ideia de passivização (enquanto conceito definitório) que sobressai, mas a ideia de passagem da acção a algo, ou seja, a noção de objecto directo. Por outras palavras, o verbo transitivo, nesta linha, tem objecto directo. É também esta a concepção mais significativa, pelo menos nas gramáticas tradicionais. Vejam-se, por exemplo, os precussores de Port-Royal que definiam a transitividade e a intransitividade como formas de expressar acções que podem, no primeiro caso, ou não, no segundo, “transitar” para um objecto. E, para o português, as gramáticas filosóficas de João Nunes de Andrade (1841) e de Jeronymo Soares Barbosa (1807; 1871), que referem, igualmente, a noção de objecto. Para Andrade (1841), a acção expressa por um verbo transitivo consiste na demanda de um objecto (Tu renovas a esperança11), por oposição a um intransitivo que exprime uma acção que fica no sujeito que a produz e através da qual não há demanda de objecto nenhum, por exemplo Corro (Cf. Andrade (1841): 10). Em Barbosa (1807) (um precurssor na nova maneira de pensar a gramática), o verbo transitivo define-se como um verbo que exprime uma acção que pede um objecto “em que se exercite ou uma qualidade relativa, que requer um termo a que se dirije; ou ambas”. E exemplifica: Amar a Deus, Aproveitar aos homens, Dar o Seu a cujo he (Cf. Barbosa (1807): 57). A este nível transitividade é, então, um fenómeno sintagmático porque se aplica às orações com objecto directo e, ao mesmo tempo, um fenómeno paradigmático, já que é um conceito aplicável a todos os verbos que podem ter objecto directo. A dicotomia transitivo/intransitivo é, pois, definida com base na presença/ausência de objecto directo, ou seja, na “autonomia do verbo” face aos outros elementos da proposição. As visões mais conservadoras não encaravam sequer a possibilidade de a “passagem do sujeito ao objecto” ser feita por intermédio de uma preposição (verbos transitivos indirectos). 11 Esperança é o objecto de renovas. 7 Em Torrinha (1953), os verbos transitivos só têm complemento directo, isto é, a passagem da acção, nos termos definidos anteriormente, é feita directamente. Claro que esta visão redutora da transitividade não era a predominante e a generalidade das gramáticas apresenta a regência verbal como sendo directa (sem preposição) ou indirecta (com preposição). Em Cunha (1975) os verbos transitivos (que requerem a presença de um elemento de valor substantivo para lhes completar o sentido) podem, no que toca à regência verbal, ser directos ou indirectos. Por outras palavras, com ou sem recurso à preposição. É, pois, ideia geral que “o processo verbal não está integralmente contido [nas formas verbais]” (Cf. Cunha & Cintra (1984): 137), mas transmite-se a outros elementos. Por outras palavras, “a acção (...) vai além do verbo” (Idem). Uma questão de paralelismo sintáctico liga os verbos transitivos à noção de agentividade. De facto, semanticamente, um verbo transitivo era tido como indiciador de uma actividade exercida pelo sujeito que se associa necessariamente à ideia de agente (aquele que pratica ou sofre a acção praticada pelo verbo), o que o caracteriza como necessariamente [+activo]. Do ponto de vista linguístico, os pressupostos teóricos até ao momento considerados aplicam-se à grande maioria de predicados de dois lugares (ou sintacticamente transitivos), mas não a todos. Veja-se a oposição entre hit e hear (Cf. Robins (64)): (14)a. I hit you. b.I hear you. Em (14a) há passagem da acção de um agente (I) para um alvo (you), mas em (14b) passa-se exactamente o oposto, o que o suposto agente (I) ouve é enviado por uma fonte (neste caso o you). Sintacticamente são ambos transitivos, contudo, ao nível nocional, ou semântico, são diferentes. A transitividade não é, portanto, propriedade de todos os verbos poliádicos, mas apenas de alguns. Este tipo de classificação funciona igualmente com verbos como queimar (O João queimou o livro), ferir (O João feriu a Maria), etc., mas não faz sentido com verbos da classe de temer (os ditos psicológicos; O João teme o tigre). Neste caso o objecto gramatical (o tigre) é causa enquanto que o elemento que ocorre na posição de sujeito gramatical é o que sofre a acção. No caso dos verbos psicológicos como temer, amar, aproveitar, não se observa a presença de um agente, nem de um objecto directo,12 pelo que o argumento na posição de sujeito é um experiencador (Cf. Belletti & Rizzi (88)). Este modelo “activo” (o exercer de uma acção sobre o objecto), da gramática tradicional, parece não funcionar em todas as situações. Bem como a presença/ausência de objecto directo 12 As construções com verbos psicológicos têm uma configuração sintáctica inacusativa associada. 8 que, apesar de ser critério na dicotomia transitivo/intransitivo, parece não se adequar totalmente aos dados observados. Vásquez Cuesta (1971) falava da dificuldade em traçar uma linha divisória entre as duas classes de verbos, uma vez que os transitivos podem ser usados intransitivamente: (15)a. comer pão / beber vinho. b. O doente não come nem bebe. (Vásquez Cuesta (1971): 518) Assim como os intransitivos podem ter funções transitivas: (16)a. Dormi um belo sono. b. Chorou lágrimas amargas. (Ibidem) c. Andar kilómetros. d. Correr perigos. e. Dançar a valsa. (Silva Dias (1970): 41) Também Fernandes (1940) aponta dificuldades na distinção entre as duas classes de verbos. Como se poderia então caracterizar um verbo transitivo, na linha da gramática tradicional, se estes podem ocorrer sem complemento? Como classificar (17a) em comparação com (17b)? (17)a. O João comeu o bolo. b. O João apanhou uma multa. No primeiro exemplo parece haver “transmissão” de uma acção ao objecto, mas no segundo a acção parece passar ao sujeito.13 Semanticamente, nos termos definidos anteriormente, o elemento que ocorre na posição de sujeito é o que “sofre” a acção, não é o agente. Parece, nalguns casos, que a causatividade permite relacionar orações transitivas e intransitivas, ou seja, um mesmo verbo pode entrar nos dois tipos de construção.14 Por exemplo o verbo to move (Cf. Lyons (68): 352) (18)a. John moved. b. John moved the stone 13 Cf. também Marrafa (1985). 9 O verbo transitivo da frase (18b) é derivado do intransitivo através da operação causativa que introduz um sujeito agentivo.15 O mesmo se passa em relação às construções com apagamento do objecto. Se de facto a forma verbal (transitiva) precisa de algo para lhe completar o sentido, como se explica o exemplo de (19a) por oposição a (19b)? (19)a. O João comeu às 13 horas. b. O João comeu o bolo. Nestes casos, verbos como comer, beber, são lexicalmente transitivos,16 mas na sintaxe podem ou não ter os seus elementos saturados (Cf. Zubizarreta (1986)), ou seja, seleccionam opcionalmente um SN ([ (SN)]). Por outras palavras, semanticamente são sempre transitivos, uma vez que beber implica sempre beber algo bebível, assim como comer implica algo comestível. Nos estudos da gramática generativa iniciados com a teoria Standard e a Teoria Standard Alargada (Chomsky (1965)), considerava-se que a caracterização sintáctica e semântica de cada verbo era dada pelas entradas lexicais, nas quais eram definidas as regras de subcategorização. É, pois, uma questão de léxico. Um verbo transitivo (na linha do que tem sido dito até ao momento), cuja sequência V+SN é bem formada, é marcado positivamente na configuração [ SN]. No caso dos intransitivos passa-se o oposto, a sua estrutura de subcategorização não contempla o elemento nominal que vem a seguir ao verbo: *[ SN] mas [ ]. No âmbito destes estudos gramaticais, os verbos transitivos caracterizam-se de acordo com as regras de selecção, isto é, de acordo com os traços dos elementos nominais que ocorriam antes e depois do verbo. Nos exemplos de (20), o verbo comer teria uma estrutura de subcategorização como a seguinte: [comer, x], onde x é interpretado como [+animado]. (20)a. O João comeu o bolo. b.*O bolo comeu o João. Deste modo, os verbos transitivos definem-se consoante os elementos que os seguem e os precedem. 14 A estes verbos Lyons (1968) chama verbos ergativos. Também Lyons (Idem), quando refere a noção tradicional de sujeito, o associa à ideia de agente, tanto nas orações transitivas, como intransitivas. 16 Em Lyons (Idem) estes verbos são inerentemente transitivos, pelo que o objecto pode ser elidido. 15 10 A semântica generativa recupera da gramática tradicional o esquema Sujeito-VerboObjecto, e defende que a estrutura sintáctica é o reflexo das relações semânticas básicas. Propõe ainda um esquema de transitividade ideal, no qual os sujeitos são sempre [+animados]. Consideram igualmente que o número de entradas lexicais diminui, uma vez que para cada verbo existe apenas uma entrada lexical. Quando um verbo ocorre em construções de tipos diferentes não significa que se trate de verbos diferentes, semanticamente são iguais, residindo a única diferença no contexto. Trata-se de sinonímia conceptual com diferentes possibilidades combinatórias e que explicam (21): 17 (21)a. The door will open ⇒ Objecto = Sujeito superficial b. The janitor will open the door ⇒ Agente [+animado] = Sujeito 18 Até ao momento foi possível verificar os contextos superficiais no quais os verbos transitivos ocorrem, mas a sua verdadeira caracterização ao nível lexical não parece bem definida e exemplo disso são os casos de (21). Em (21a) ocorre apenas o sujeito de superfície seguido dos verbos na sequência SV, em (21b) temos o caso típico da oração transitiva, com a sequência Sujeito-Verbo-Objecto. Para Alarcos Llorach (1970), por exemplo, não existe distinção gramatical entre verbos transitivos e intransitivos, mas apenas diferentes estruturas de predicado. Mais do que uma característica dos verbos, estas estruturas correspondem a tipos específicos de organização frásica. Há, contudo, verbos que ocorrem sempre num determinado tipo de frase, por isso a terminologia tradicional continua a usar-se.19 O conceito de transitividade abordado neste trabalho, ainda bastante enraizado nos termos da gramática tradicional, assenta essencialmente na noção de “actividade”; a ideia de passagem da acção do sujeito a um objecto, bem como a ideia de que o sujeito (superficial) tem de ser sempre o agente, não se adapta a grande parte dos objectos linguísticos observados. Por exemplo: (22)a. O João leu o livro. b. O João chegou. c. O João estudou afincadamente. 17 Cf. Fillmore (1968a), (1968b), (1969) e Fillmore & Langedoen (1971). Foi igualmente com base nos exemplos de (23) que Fillmore criticou os conceitos de sujeito e de objecto de Chomsky (1965), para quem estes seriam universais linguísticos (isto é, noções de estrutura profunda), por oposição ao que a semântica generativa considerava serem noções puramente formais (ou seja, de estutura de superfície). 19 Segundo, por exemplo, Aguilar (1981) para o espanhol, levar é sempre transitivo, assim como estar, ir e vir são sempre intransitivos. A isto chama “monovalência funcional”, com base em Blickenberg (1960: 303). 18 11 O facto de a classificação verbal dita tradicional (bipartida) não ser suficiente não é facto novo, e os exemplos de (22) são bem a prova disso mesmo. A sintaxe por si só, ou melhor, os traços de subcategorização dos verbos, não são suficientes para explicar as diferenças entre as orações de (22). O valor semântico da relação sintáctica Verbo-Objecto tem de ser levada em linha de conta, bem como as restrições de ocorrência de certos elementos nominais com determinados verbos, em função da presença/ausência de certos traços semânticos.20 Veja-se a má-formação dos exemplos de (23): (23)a.*O livro leu o João. c.*O livro estudou afincadamente. Para alguns autores esta “aptidão” que certos verbos têm de coocorrer com determinados substantivos, torna impossível a dissociação entre léxico e sintaxe21 (associado ao Princípio de Projecção22), bem como o recurso aos papeis-θ das grelhas-θ de cada verbo.23 Interessa, a este propósito, avaliar o valor semântico da relação sintáctica que se estabelece entre verbo e argumentos, bem como as restrições e/ou aptidões de ocorrência de certos elementos nominais com certos verbos em função da presença/ausência de certos traços semânticos. Para dar conta de exemplos como os de (22) a classificação verbal, como se sabe, é tripartida. Seguindo Hoekstra (1984) podemos definir um verbo transitivo como um verbo que, semanticamente, seleciona um argumento externo (tipicamente o Agente) e um argumento interno (o Tema), categorialmente representado como complemento [ SN] (exemplo (22a)). Esta última característica distingue-os dos intransitivos que estruturalmente são [ ] (exemplo (22c)). Por último, (22b) representa a classe dos verbos inacusativos,24 que selecionam um argumento interno (o Tema) (ao qual não atribuem caso estrutural acusativo) que, superficialmente, ocorre na posição de sujeito da oração. Concluindo, à ideia veiculada pelas gramáticas tradicionais (passagem da acção de um sujeito/agente para um objecto e capacidade de passivizar), acrescentaram-se os contributos de estádios iniciais da Teoria da Regência e da Ligação, que caracteriza um verbo transitivo pela 20 Cf. Levin & Rappaport Hovav (1995). Cf., por exemplo, Chomsky (1981). 22 O Princípio de Projecção diz, no essencial, que as representações sintácticas são projectadas do léxico e que devem respeitar as propriedades de selecção de cada item lexical (Cf. Chomsky (1981)). 23 A cada verbo corresponde uma grelha-θ, mesmo no caso de verbos sinónimos mas que têm diferentes comportamentos sintácticos (Cf. Hale & Keyser (1993) e Levin & Rappaport Hovav (1995), por exemplo). 24 Cf. Perlmutter (1978). Em Burzio (1986) e também Eliseu (1984), estes verbos são designados por ergativos. 21 12 sua capacidade de relacionar dois argumentos, ou seja, um verbo transitivo é um predicado de dois lugares, pelo menos. É igualmente interessante contrastar os referidos diagnósticos de transitividade com os que a classificação tripartida das classes verbais veio impôr no âmbito dos estudos sintácticos. Para além de ter a capacidade de passivizar e de selecionar um objecto directo, um verbo transitivo passa outros testes empíricos. Uma oração transitiva pressupõe, então, a existência de um objecto que pode ser substituído por um pronome acusativo: (24)a. O João comprou um livro. b. O João comprou-o. E ainda, conforme referido anteriormente, tem a capacidade de passivizar:25 (25)a. O João comeu o bolo. b. O bolo foi comido (pelo João). A exemplificação que segue tem por base o trabalho de Eliseu (1984), que começa por referir a Construção de Particípio Absoluto, que não é problemática com verbos transitivos, isto é, com dois nominais, já que o constituinte que segue, ou não, a forma de particípio passado é o objecto directo: (26)a. O João leu o livro. b. Lido o livro, o João foi brincar. c. *Lido o João, o livro foi brincar. O Particípio Passado dos verbos transitivos pode ocorrer em posição predicativa (27) e também atributiva (28) (tal como no exemplo anterior, partilha estas propriedades com os verbos inacusativos): (27) O livro está lido. (28) O livro lido é interessante. Por outras palavras, são testes empíricos de transitividade, mas não exclusivos, podem agrupar conjuntos de verbos com características semelhantes. O que permite que, por exemplo, 25 Para Gross ey aliii (1971) a passiva é o único meio através do qual se reconhece um verbo transitivo. 13 que um verbo transitivo ocorra no mesmo tipo de construção que um inacusativo, como nos casos anteriores.26 A partir de verbos transitivos é igualmente possível formar adjectivos em -vel, o que não se passa em relação a verbos de outras classes (29), e as nominalizações com o sufixo de natureza agentiva -or pode igualmente (salvo algumas excepções) funcionar com transitivos (30): (29) O livro é legível. (30) Ler ⇒ Leitor. A concepção actual de transitividade, que segue Hoekstra (1984), propõe que a distinção entre verbos transitivos e intransitivos seja feita com base na capacidade de selecção de sujeito-θ. Conforme se pôde observar com alguns exemplos, esta definição parece adaptar-se pelo que, e até prova em contrário, “transitivity is regarded no longer as a property of combining with an NP to form a VP [...], but rather as having an external θ-role” (Hoekstra (1984): 227). Alguns dos testes sintácticos utilizados actualmente como “testes empíricos de transitividade” assentam essencialmente nas características semânticas do verbo (acção, processo), do sujeito ([± animado]) e do objecto (ou seja, das características do verbo e dos nominais por ele selecionados). Através destes se verifica que, em comparação com o que era veiculado pela gramática tradicional, a transitividade não se limita a um processo de “passagem” nem à mera capacidade que um verbo tem de selecionar um complemento directo ou indirecto. Conforme pudemos observar, a caracterização de um verbo transitivo faz apelo a vários critérios de ordem sintáctico-semântica, como a subcategorização de um constituinte nominal ([ SN]) e o número e o tipo de argumentos selecionados (dois argumentos, um Tema e outro tipicamente Agente, que recebe papel-θ externo). 26 Cf. Eliseu (1984): 9-22. Saliente-se que o autor utiliza o termo “ergativo” para referir, o que neste trabalho, se designa por verbo inacusativo. 14 Referências bibliográficas Aguilar, R. C. (1981) Estruturas Sintácticas Transitivas en el Español Actual, Madrid, Gredos. Alarcos Llorach, E. (1970) Estudios de Gramática Funcional del Español, Madrid, Gredos. Allwood, J., L.-G. Andersson & Ü. Dahl (eds.) (1977) Logic in Linguistics, Cambridge, Cambridge University Press. Andrade, J. N. de (1841) Grammatica Elementar da Lingua Portuguesa por Sistema Philosophico, Offerecida ao Ill.mo Sr. José Ferreira Pinto Basto., ... Lisboa, Tip. António Sebastião Coelho. Arnaud, A. & Lancelot (1612-1694/1992) Gramática de Port-Royal (Trad. do francês Grammaire Generale et Raisonée por B. F. Barreto e H. G. Murachco), São Paulo, Martins Fontes. Barbosa, J. S. (1807) As Duas Linguas ou Grammatica Philosophica da Lingua Portuguesa comparada com a Latina para ambas se aprenderem ao mesmo tempo, Coimbra, Imprensa da Universidade. ____________(1871) Grammatica Philosophica da Lingua Portuguesa ou Principios da Grammatica Geral Aplicados à Nossa Linguagem, Lisboa, Academia Real das Sciencias. Blickenberg, A. (1960) Le Problème de la Transitivité en Français Moderne. Essai syntacto-sémantique, Copenhagen, Historisk-filosofiske Meddelelser, udgivet af Kongelige Danske Videnskabernes Selskab, Bind 38, nº 1. Barros, J. de (1540/1971) Gramática da Língua Portuguesa, Reprodução fac-similada, Leitura, introdução e notas por M. Leonor Carvalhão Buescu, Lisboa, Faculdade de Letras. Belletti, A. & L. Rizzi (1988) “Psych-Verbs and θ-Theory”, Natural Language and Linguistic Theory 6 (3), 291-352. Burzio, L. (1986) Italian Syntax. A Government-Binding Approach, Dordrecht, Reidel. Büsse, W. & M. Vilela (1986) Gramática de Valências, Coimbra, Almedina. Chomsky, N. (1965) Aspects of the Theory of Syntax, Cambridge/Massachusetts, MIT Press (Trad. portuguesa Aspectos da Teoria da Sintaxe, Coimbra, Arménio Amado Ed., 1975). ___________ (1981) Lectures on Government and Binding, Dordrecht, Foris. Cunha, C. (1975) Gramática do Português Contemporâneo, Belo-Horizonte, Ed. Bernardo Álvares (5ª edição revista). 15 Cunha, C. & L. F. L. Cintra (1984) Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Sá da Costa. Eliseu, A. (1984) Verbos Ergativos do Português. Descrição e Análise, Monografia para Provas de Aptidão Pedagógica e Científica, Lisboa, Faculdade de Letras. Enciclopédia Filosofica, vol. 8, Roma, Edipem. Encyclopédie Philosophique Universelle, vol. 2 “Les Notions Philosophiques”, Paris, P.U.F.. Fernandes, F. (1940/1985) Dicionário de Verbos e Regimes, Rio de Janeiro, Globo (34ª ed.). Fillmore, C. J. (1968a) “Lexical Entries for Verbs”, Foundations of Language 4. ___________ (1968b) “The Case for Case” in BACH, E. & R. T. HARNES (eds.) Universals in Linguistic Theory, London, Holt, Rinehart & Winston, 1-88. ___________ (1969) “Types of Lexical Information” in Kiefer, F. (ed.), Studies in Syntax and Semantics, Foundations of Language 10. Fillmore, C. J. & D. T. Langedoen (eds.) (1971) Studies in Linguistic Semantics, Holt, Rinehart and Winston. Freire, A. (1987) Gramática Latina, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia (4ª ed.). Gross, M. et aliii (1971) “Syntaxe Transformationelle du Français”, Langue Française 11, Larousse. Hale, K. & S. J. Keyser (1993) “On Argument Structure and the Lexical Expression of Syntactic Relations” in Hale, K. & S. J. Keyser (eds.) The View from Building 20: Essays in Honor of Sylvain Bromberger, Cambridge/Massachusetts, MIT Press, 53-109. Hoekstra, T. (1984) Transitivity. Grammatical Relations in Government-Binding Theory, Dordrecht, Foris. Levin, B. & M. Rappaport Hovav (1995) Unaccusativity, Cambridge/Massachusetts, MIT Press. Lyons, J. (1968) Introduction to Theoretical Linguistics, Cambridge, Cambridge University Press. _______ (1977) Semantics 1, Cambridge, Cambridge University Press. Marrafa, P. (1985) A Construção Transitiva-Predicativa em Português, Dissertação de Mestrado, Lisboa, Universidade Clássica. Oliveira, F. de (1536/1988) Gramática da Linguagem Portuguesa, Lisboa, Biblioteca Nacional, Ed. fac-similada. Partee, B., A. Ter Meulen & R. E. Wall (1990) Mathematical Methods in Linguistics, Dordrecht/Boston/London, Kluwer. 16 Perlmutter, D. (1978) “Impersonal Passives and the Unaccusativity Hypothesis” in PBLS 4, 157-189. Reese, M. (1996) Essential Mathematics for the Romance Linguist, Master Thesis, Santa Barbara, University of California. Robins, R. H. (1964) General Linguistics. An Introductory Survey, London, Longman. Silva Dias, A. E. (1970) Syntaxe Histórica Portuguesa, Lisboa, Livraria Clássica Ed. (5ª ed.). Torrinha, F. (1953) Epítome de Gramática da Língua Portuguesa, s/l, Edições Marânus. Vásquez Cuesta, P. & M. A. M. da Luz (1971) Gramática da Língua Portuguesa (Trad. do espanhol Gramática Portuguesa por Ana M. Brito e Gabriela Matos), Lisboa, Edições 70 (3ª ed.). Vilela, M. (1992) Gramática de Valências: Teoria e Aplicação, Coimbra, Almedina. Xavier, M. F. & M. H. M. Mateus (orgs.) (1992) Dicionário de Termos Linguísticos, vol. 2, Lisboa, Ed. Cosmos, Associação Portuguesa de Linguística-ILTEC. Zubizarreta, M.-L. (1986) Levels of Representation in the Lexicon and in the Syntax, Dordrecht, Foris.