MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ FEDERAL DA DA SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO VARA O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelos Procuradores da República signatários, no uso de suas atribuições constitucionais e legais, com fulcro no art. 129, incisos II e III, da Constituição Federal de 1988, bem como nos dispositivos pertinentes da Lei nº 7.347/85 e Lei Complementar n° 75/93, vêm, perante Vossa Excelência, propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA com pedido liminar, tendo por base os documentos em anexo e as razões de fato e de direito que passa a expor, em face de: UNIÃO FEDERAL, pessoa jurídica de direito público interno, com sede na Avenida Paulista, 1842, Edifício Cetenco Plaza – Torre Norte, 7º andar, conjuntos 76/77, no Município de São Paulo, Estado de São Paulo, podendo ser citada na pessoa de seu Advogado; ESTADO DE SÃO PAULO, pessoa jurídica de direito público interno, com sede no Palácio do Governo, na Avenida Morumbi, 4500, no Município de São Paulo, Estado de São Paulo, podendo ser citado na pessoa da Procuradora Geral do Estado de São Paulo, Dra. Rosali de Paula Lima (Avenida São Luiz, 99); 1 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, pessoa jurídica de direito público, com sede em sua Prefeitura Municipal, na Avenida Mercúrio, s/ nº, Palácio da Indústria, Parque Dom Pedro, em São Paulo/SP, representada por seu Procurador Geral, Dr. César Antonio Alves Cordaro (Rua Maria Paula, 270, Bela Vista). DOS FATOS Em março de 2000 foi instaurada na Procuradoria da República em São Paulo o procedimento administrativo n º 1.34.001.001496/2000-01, objetivando verificar a oferta e possível inclusão de outros medicamentos no tratamento da AIDS e doenças correlatas (doc. 01). Constatou-se, no curso do procedimento, que alguns medicamentos não eram fornecidos pelo Sistema Único de Saúde e outros não tinham fornecimento regular. Através dos ofícios 15.765/2000 MPF-PR/SP (doc. 02) e 15.867/2000 MPF-PR/SP (doc. 03) o Ministério Público Federal, solicitou, respectivamente, informações sobre a regularidade do fornecimento dos medicamentos em geral aos portadores do vírus HIV e, especificamente sobre a disponibilização dos medicamentos Amprenavir e Abacavir. O Sr. Coordenador Nacional de DST e AIDS, Dr. Paulo Roberto Teixeira, informou, em ofício datado de 12/12/2000, que na solicitação de compra de medicamentos de AIDS da programação 2001 os medicamentos Amprenavir e Abacavir haviam sido incluídos e que a previsão de início de distribuição era março de 2001 (doc. 04). Informou ainda, em ofício datado de 15/12/2000, que a distribuição dos medicamentos anti-retrovirais estava regularizada (doc. 05). 2 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL No mês de julho do ano em curso, foi instaurado o procedimento administrativo n º 1.34.001.002433/2001-45, a partir de notícia encaminhada pelo GRUPO DE APOIO E PREVENÇÃO À AIDS – GAPA BR SP (doc. 06), dando conta da falta de diversos medicamentos para os portadores do vírus HIV no âmbito do Sistema Único de Saúde. Vale transcrever as seguintes declarações do GAPA : “(...) 2. Que todos, os ora representados acima mencionados, são portadores do vírus HIV/aids, fazendo tratamento na rede pública do Estado de São Paulo, e mesmo assim houve a necessidade de ingressar com ação ordinária de obrigação de fazer com pedido de tutela antecipada, para receberem remédios prescritos, para que pudessem dar continuidade ao tratamento de saúde, que iniciaram. 2.1. Cumpre salientar, como é sabido, que os medicamentos prescritos aos Requerentes, são de suma importância, pois somente com eles é que conseguem evitar a replicação viral, continuarem vivos e com saúde. 3. Que, embora a saúde esteja protegida pela Constituição Federal e Estadual, em seus artigos 196 e 219, respectivamente, não é o que vem acontecendo. 3.1. Não é o que vem ocorrendo, pois não há respeito ao disposto nos artigos supra mencionados, como também não há respeito a lei 8.080/90, bem como não está ocorrendo o acesso universal e igualitário às ações e ao serviço de saúde, em todos os níveis, eis que faltam medicamentos (kaletra, abacavir e ritonavir)... os quais somente são conseguidos mediante ação judicial(...)” (grifos nossos) 3 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL No âmbito do mencionado procedimento administrativo, o Ministério Público Federal requisitou informações e providências dos gestores do SUS, através dos ofícios n os. 8687/2001, 8688/20001 e 11.155/2001 (docs. 07, 08 e 09). Respondendo à requisição do Ministério Público Federal, o Secretário Municipal de Saúde, encaminhou as seguintes informações prestadas pelo Coordenador do Programa DST/AIDS no Município (doc. 10): “...Não obstante o fato da Lei 9313/96 prever o direito ao recebimento de todos os medicamentos necessários para atender à AIDS, este procedimento é definido por uma reunião anual chamada de Consenso Terapêutico pela Coordenação Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde. O consenso é definido após consulta a um grupo dentre os melhores especialistas em tratamento de AIDS do Brasil. Complementarmente há uma definição de atribuições na compra destes medicamentos (previstos na Lei 9313/96) entre os 3 níveis do Governo Federal, Estadual e Municipal), sem ferir os princípios do SUS normatizados na Lei 8080/90, como mencionado pela Exma Sra. Procuradora. Assim cabe ao Ministério da Saúde a compra de todos os medicamentos anti retrovirais. O Governo do Estado de São Paulo e a Secretaria Municipal de Saúde ficam responsáveis pelos outros medicamentos necessários à atenção completa aos requisitos da Lei, conforme decisão da Comissão Bipartite do SUS (anexa). Mesmo assim, não temos em momento algum, nos 4 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL furtado a fornecer os medicamentos solicitados por ordem judicial, ainda que, alguma das vezes as indicações sejam discutíveis. Há atualmente nove pessoas que tomam medicação não prevista no consenso supra-referido, às custas da Municipalidade”(grifos nossos) A Secretaria Estadual de Saúde informou, através do Ofício G.S. n º 2414/2001 (doc. 11), que atendeu à pretensão de alguns portadores do vírus HIV que já tinham processos judiciais em curso. Confira-se: “Outrossim, com relação aos outros casos de solicitação de exames e medicamentos, informo que estão em fase de aprovação do repasse de recursos, tendo em vista não estarem ainda disponíveis regularmente em laboratórios da rede pública, devendo ser encaminhados a laboratórios privados para sua execução. Por conseguinte, tão logo se proceda a liberação dos recursos financeiros, os interessados serão convocados para a realização dos exames e retirada dos medicamentos, logicamente dentro da maior brevidade possível, visando o cumprimento dos prazos judiciais em curso.” (grifos nossos) O Coordenador Geral de Doenças Sexualmente TransmissíveisDST e AIDS, por sua vez, informou que (doc. 12): “1- Em relação aos medicamentos ARV que fazem parte do consenso terapêutico: A distribuição do medicamento amprenavir cápsula e solução oral foi iniciada em abril/2001. 5 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Em relação ao Abacavir, informamos que após o período negociação de preço com o fabricante, o contrato de aquisição do medicamento está em fase de conclusão com a previsão de assinatura de contrato ainda neste mês. Não há informações de falta do medicamento Ritonavir em SP, de acordo com os dados mensais de informação de estoque e consumo do medicamento no Estado, ou por quaisquer contatos da Coordenação Estadual de DST e Aids de São Paulo. 2- Em relação aos medicamentos ARV que não faz parte do consenso: (...) b) A compra do medicamento lopinavir + ritonavir (kaletra), na forma de cápsulas e solução oral, foi incluído na programação de medicametnos de aids de 2001, iniciada pela CN DST/Aids, em setembro/2001, e a previsão de início de distribuição é de março/2002.”(grifos nossos) Em 08 de novembro de 2001, o Ministério Público Federal oficiou novamente aos Coordenadores de DST e AIDS atuantes nas esferas federal, estadual e municipal (docs. 13, 14 e 15), noticiando que portadores do vírus HIV não estavam conseguindo obter os medicamentos Amprenavir, Abacavir e Kaletra do Sistema Único de Saúde, bem como solicitando informações sobre como obtê-los gratuitamente. O Assessor Técnico em DST/Aids da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo prestou as seguintes informações: “...Medicamento como o Amprenavir estão sendo distribuídos nas redes Municipais e Estaduais 6 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL normalmente desde o mês de setembro de 2001, não havendo registro de repressão de demanda. (...) Mesmo assim, apenas à título de informação o Abacavir faz parte do novo Consenso, já foi comprado pelo Ministério da Saúde e não em prazo tão exíguo como sugere a Sra. Procuradora, mas ainda no ano de 2001 estará disponível em toda Rede Pública de Saúde. Quanto ao medicamento Kaletra, o infantil, também faz parte do no Consenso e assim estará brevemente disponível na nossa Rede” (doc. 16) (grifos nossos) O Diretor Técnico de Departamento de Saúde e Coordenador do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids da Secretaria Estadual de Saúde, Dr. Arthur Olhovetchi Kalichman, informou que a“ CN-DST/AIDS já normatizou o uso de todos os anti-retrovirais disponíveis comercialmente, inclusive o Abacavir e o Kaletra ; o amprenavir já se encontra disponível na rede pública e é formecido aos pacientes que estejam dentro dos critérios clínicos para utilizá-la; os medicamentos abacavir e Kaletra, embora tenha sido normatizada sua utilização não estão disponíveis ainda na rede pública por razões administrativas, referentes ao processo de compra, que se dá pela CN-DST/AIDS (Ministério da Saúde).”(doc. 17)( grifos nossos) O Coordenador Nacional de DST e AIDS, Dr. Paulo Roberto Teixeira, informou: “O processo de aquisição do Kaletra, segundo as normas da Administração Pública, já se iniciou, estando prevista a disponibilização na rede pública na programação de abril/2002. O medicamento Abacavir, após longo processo de aquisição, resultante do monopólio de sua produção devido ao direito de patente do laboratório Glaxo Welcome, está programado para ser disponibilizado na 7 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL rede pública em dezembro do corrente. Quanto ao Amprenavir, medicamento já distribuído pela rede pública sendo esta a primeira notícia de sua falta para os pacientes, após contato com a Coordenação Estadual de DST e Aids, do Estado de São Paulo, obtivemos informação que o fornecimento está regularizado.”(doc. 18) (grifos nossos) Depreende-se do exposto, que o Sistema Único de Saúde – SUS, em suas diversas esferas de atuação – Federal, Estadual e Municipal, tem negado o fornecimento de medicamentos de controle e combate à AIDS, obrigando as pessoas soropositivas a recorrer ao Judiciário para que o Estado cumpra seu dever de prestar assistência integral à saúde. Com efeito, somente obtêm os medicamentos prescritos aqueles que litigam em Juízo, contratando um advogado ou utilizando os serviços prestados pelo departamento jurídico de alguma Organização Não Governamental, tal como o GAPA. Deste modo, tornou-se imprescindível a propositura desta ação civil pública visando obter provimento jurisdicional que determine aos entes governamentais prestação positiva, consistente no fornecimento aos usuários do SUS de quaisquer medicamentos necessários a seu tratamento. Vale frisar que as alegações de que os medicamentos Abacavir e Kaletra não estão disponíveis por razões administrativas, quais sejam, processos de compra, não podem constituir óbices ao acesso à saúde. O Poder Público deve aparelhar-se para cumprir seu papel, sob pena de tornar letra morta o preceito constitucional disposto no art. 196 da Constituição Federal. O Estado tem o dever de garantir, de maneira responsável, o direito à saúde, direito fundamental indissociável do direito à vida. A omissão governamental está patente. Veja-se, por exemplo, o 8 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL fornecimento dos medicamentos Amprenavir e Abacavir. Segundo informações fornecidas pela União (Coordenador Geral de DST/AIDS) ao Ministério Público Federal, esses medicamentos estariam disponíveis em março de 2001 (doc. 04). No entanto, constata-se hoje que o Abacavir não está sendo fornecido, conforme admitido pelos próprios gestores, e o Amprenavir não está disponível em toda a rede pública de saúde. No tocante à falta do medicamento Amprenavir, vale conferir as declarações prestadas pelo Senhor xxxxxxxxx na Procuradoria da República em São Paulo (doc. 19): “...que o declarante não toma medicamentos a cerca de dez meses; alega o declarante também que os medicamentos são de custo muito elevado e que não possui convênio médico que cubra o tratamento da AIDS e por isso de dirige ao ANCA (casa da Aids – tel: 31205290), localizado na Rua Frei Caneca, que faz parte do SUS – Sistema Único de Saúde; que no último dia 29 de outubro a médica do SUS receitou ao declarante para tomar o medicamento Amprenavir, contudo o declarante não conseguiu obter o referido medicamento junto ao ANCA, sob a alegação de que o medicamento é muito novo e ainda não foi enviado para eles; que o declarante não tentou comprar o referido medicamento em farmácias, pois como dito anteriormente não tem condições financeiras de fazê-lo; que o declarante recorre a este Órgão Ministerial, a fim de que o medicamento lhe seja concedido com a maior brevidade possível”. Esse paciente apresenta “diagnóstico de SIDA CID B 24, CD4= 10 mm e carga viral = 74.000 cels. Paciente evoluindo com neutropenia” (doc. 20), necessitando o medicamento Amprenavir “para compor novo esquema terapêutico”(doc. 21) 3 Os medicamentos Abacavir e lopinavir+ritonavir (kaletra®), 9 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL muitas vezes apresentam-se como únicas opções terapêuticas no tratamento dos pacientes. No entanto, conforme admitiram os próprios gestores, não são disponibilizados aos usuários do SUS. Declarações prestadas pelo Sr. xxxxxxxxxx, em 05/11/2001 (doc. 22): “... que o declarante é portador do vírus HIV desde o ano de 1995; que o declarante faz seu tratamento pelo Sistema Único de Saúde – SUS, que os medicamentos que o declarante vem tomando contra a doença não têm surtido efeito; que foi receitado ao declarante os medicamentos KALETRA E ABACAVIR, que são medicamentos novos contra a doença; que o declarante não conseguiu os referidos medicamentos junto à ANCA (local onde faz seu tratamento); que a médica informou ao declarante que tais medicamentos são muito caros, chegando ao valor de R$ 2000,00 (dois mil reais); que o declarante não possui condições financeiras de obter tais medicamentos, que o declarante está na dependência dos referidos medicamentos e por isso recorre a este Órgão Ministerial” Consoante relatório médico apresentado, “o paciente encontra-se em situação de falência terapêutica com o atual esquema necessitando o mais breve possível de novas drogas para compor seu novo tratamento” (doc. 23). Declarações prestadas pelo Sr. xxxxxxxxx: “...que foi receitado ao declarante para tomar o medicamento Kaletra, contudo o declarante não encontrou o referido medicamento na ANCA; que o declarante também procurou tal medicamento em farmácias, mas não o encontrou; lembra que mesmo que o encontrasse não teria condições financeiras de comprálo; o declarante foi informado que tal medicamento é difícil de ser encontrado e, ainda, que seu custo é muito 10 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL elevado...” (doc. 24) Em seu relatório médico consta: “Pac. HIV+ desde abr/88 com aumento da carga viral com perfil de multiresistência a vários anti-retrovirais associado a intolerância ao Ritonavir. Solicito com base em genotipagem início de Lopinavir/R (kaletra) por ser a única opção disponível no momento”.(doc. 25 e 26) Declarações prestadas pela Sra. Xxxxxxxxx (doc. 27): “...que é portadora do vírus HIV desde 1997 e que sempre tomou medicamentos anti-retrovirais (coquetel). Que esses medicamentos agora não estão mais fazendo efeito. Que foi receitado por sua médica, Dra. Rosana Richtmann, o medicamento Kaletra. Que a médica informou à Declarante que o Kaletra é uma droga nova e que somente é obtida mediante processo. Que a declarante não pode arcar com o custo do medicamento...” No relatório médico consta: “...P. intolerante a várias medicações, como ritonavir em dose plena. Atualmente, com carga viral 290.000...”, solicitando o médico o medicamento Kaletra (docs. 28 e 29). DO DIREITO Os fundamentos básicos do direito à saúde no Brasil estão elencados os arts. 196 a 200 da Constituição Federal. Especificamente, o art. 196 dispõe que: 11 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". O direito à saúde, tal como assegurado na Constituição de 1988, configura direito fundamental de segunda geração. Nesta geração estão os direitos sociais, culturais e econômicos, que se caracterizam por exigirem prestações positivas do Estado. Não se trata mais, como nos direitos de primeira geração, de apenas impedir a intervenção do Estado em desfavor das liberdades individuais. Os direitos de segunda geração conferem ao indivíduo o direito de exigir do Estado prestações sociais nos campos da saúde, alimentação, educação, habitação, trabalho etc. A Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, estabelece: “...................... Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. § 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. |..................... Art. 4°. O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das funções mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde – SUS. ......................” (grifos nossos). O artigo 7° da citada lei estabelece que as ações e serviços 12 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL públicos que integram o Sistema Único de Saúde serão desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no artigo 198 da Constituição Federal, obedecendo, ainda, aos seguintes princípios: “Art. 7°...................... I – universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; II - Integralidade de assistência, entendida como um conjunto articulado e contínuo de serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; III – preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral; IV – igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; ..................... XI – conjugação de recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na prestação de serviços de assistência à saúde da população; .....................”. Verifica-se, destarte, que a própria norma disciplinadora do Sistema Único de Saúde elenca como princípio a integralidade de assistência, definindo-a como um conjunto articulado e contínuo de serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema. Ademais, a Lei nº 9.313, de 13/11/96 impôs a gratuidade do fornecimento de toda a medicação necessária ao tratamento dos portadores do HIV e doentes da AIDS: "Art. 1º - Os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento. § 1º - O Poder Executivo, através do Ministério da Saúde, 13 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL padronizará os medicamentos a serem utilizados em cada estágio evolutivo da infecção e da doença, com vistas a orientar a aquisição dos mesmos pelos gestores do Sistema Único de Saúde. ..................... Art. 2º - As despesas decorrentes da implementação desta Lei serão financiadas com recursos do orçamento da Seguridade Social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conforme regulamento” Vale anotar que a padronização prevista no 1 º do art. 1º da Lei nº 9313/96 é de caráter meramente indicativo, pois não seria cabível uma restrição por lei ordinária, à integralidade de assistência consagrada na Constituição. O Estado deve fornecer todos os medicamentos necessários ao tratamento dos pacientes, ainda que não constem em lista oficial, posto que cada paciente é medicado conforme seu estado clínico, não podendo ficar restrito aos medicamentos convencionados pelo Ministério da Saúde. Neste sentido a jurisprudência: Ementa “ADMINISTRATIVO. MEDICAMENTOS PARA TRATAMENTO DA AIDS. FORNECIMENTO PELO ESTADO. OBRIGATORIEDADE. AFASTAMENTO DA DELIMITAÇÃO CONSTANTE NA LEI n º 9.313/96. DEVER CONSTITUCIONAL. PRECEDENTES. 1. Recurso especial interposto contra v. Acórdão que entendeu ser obrigatoriedade do Estado o fornecimento de medicamentos para portadores do vírus HIV. 2.No tocante à responsabilidade estatal no fornecimento gratuito de medicamento no combate à AIDS, é conjunta e solidária com a da União e do Município. Como a Lei n º 9.313/96 atribui à União, aos Estados, ao Distrito 14 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Federal e aos Municípios o dever de fornecer medicamentos de forma gratuita para o tratamento de tal doença, é possível a imediata imposição de tal fornecimento, em vista da urgência e conseqüências acarretadas pela doença. 3.É dever constitucional da União, do Estado, do Distrito Federal e dos Municípios o fornecimento gratuito e imediato de medicamentos para portadores do vírus HIV e para tratamento da AIDS. 4.Pela peculiaridade de cada caso e em face da sua urgência, há que se afastar a delimitação no fornecimento de medicamentos constante na Lei n º 9.313/96. 5.A decisão que ordena que a Administração Pública forneça aos doentes os remédios ao combate da doença que sejam indicados por prescrição médica, não padece de ilegalidade. 6.Prejuízos iriam ter os recorridos se não lhes for procedente a ação em tela, haja vista que estarão sendo usurpados no direito contitucional à saúde, com a cumplicidade do Poder Judiciário. A busca pela entrega da prestação jurisdicional deve ser prestigiada pelo magistrado, de modo que o cidadão tenha, cada vez mais facilitada, com a contribuição do Poder Judiciário, a sua atuação em sociedade, quer nas relações jurídicas de direito privado, quer nas de direito público. 7.Precedentes da 1 ª Turma desta Corte Superior. 8.Recurso improvido.”(STJ, 1 ª Turma, Resp n º 325337/RJ (2001/006737-4), relator Min. José Delgado, v.u., 21/06/2001) (grifos nossos) 15 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Deste modo, resta claro que o dever do Estado de prover as condições indispensáveis ao pleno exercício do direito à saúde, direito fundamental do ser humano, implica na obrigação do Sistema Único de Saúde propiciar aos usuários desse Sistema todos os meios existentes para a garantia de suas vidas, fornecendo todos os medicamentos necessários ao tratamento dos portadores do vírus HIV e doentes da AIDS. Vale citar as doutas palavras de José Afonso da Silva, no que tange ao direito à saúde: “E há de informar-se pelo princípio de que o direito igual à vida de todos os seres humanos significa também que, nos casos de doença, cada um tem direito a um tratamento condigno de acordo com o estado atual da ciência médica, independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito valor sua consignação em normas constitucionais” (grifos nossos) É de se destacar ainda que, de acordo com informações prestadas pelos Coordenadores Nacional e Estadual de DST/AIDS (docs. 17 e 18), atualmente já houve normatização (CONSENSO) prevendo o fornecimento pelo SUS de todos os anti-retrovirais disponíveis comercialmente, inclusive o Abacavir e o Kaletra® . COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL A competência da Justiça Federal está disciplinada no artigo 109 da Constituição Federal de 1988: “Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: I – as causas em que a União, entidade ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou opoentes, exceto as de falência, as de acidente de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho; 16 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL ...................... “§ 2°. As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal”. Os recursos destinados à aquisição dos medicamentos a serem, posteriormente, fornecidos às pessoas soropositivas, são provenientes do Sistema Único de Saúde, de cujo financiamento, participam, dentre outras forntes, a União Federal, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, consoante dispõe a Constituição Federal: “Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I- descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II- atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III- participação da comunidade. Parágrafo único. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes”. A Lei 8.080/90 estabeleceu, também, que: “Art. 9o - A direção do Sistema Único de Saúde (SUS) é única, de acordo com o inciso I do artigo 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos: I - no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde; II - no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente; e III - no âmbito dos Municípios, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente. 17 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Sobre o dever constitucionalmente imposto a cada um dos entes federativos de garantir e promover a saúde, já se manifestou, inclusive, o Egrégio Supremo Tribunal Federal, nos seguintes termos: “(...) O preceito do artigo 196 da Carta da República, de eficácia imediata, revela que ‘a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação’. A referência, contida no preceito, a ‘Estado’ mostra-se abrangente, a alcançar a União Federal, os Estados propriamente ditos, o Distrito Federal e os Municípios. Tanto é assim que, relativamente ao Sistema Único de Saúde, diz-se do financiamento, nos termos do artigo n° 195, com recursos do orçamento, da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. Já o caput do artigo informa, como diretriz, a descentralização das ações e serviços públicos de saúde que devem integrar rede regionalizada e hierarquizada, com direção única em cada esfera de governo. Não bastasse o parâmetro constitucional de eficácia imediata, considerada a natureza, em si, da atividade, afigura-se-me como fato incontroverso, porquanto registrada, no acórdão recorrido, a existência de lei no sentido da obrigatoriedade de fornecer-se os medicamentos excepcionais, como são os concernentes à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA/AIDS), às pessoas carentes. O município de Porto Alegre surge com responsabilidade prevista em diplomas específicos, ou seja, os convênios celebrados no sentido da implantação do Sistema Único de Saúde, devendo receber, para tanto, verbas do Estado. Por outro lado, como bem assinalado no acórdão, a falta de regulamentação municipal para o custeio da distribuição não impede fique assentada a responsabilidade do Município. Decreto visando-a não poderá reduzir, em si, o direito assegurado em lei. Reclamam –se do Estado (gênero) as atividades que lhe são precípuas, nos campos da educação, da saúde e da segurança pública, cobertos, em si, em termos de receita, pelos próprios impostos pagos pelos cidadãos. É hora de atentar-se para o objetivo maior do próprio Estado, ou seja, 18 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL proporcionar vida gregária segura e com o mínio de conforto suficiente para atender ao valor maior atinente à preservação da dignidade do homem.(...)” (RE 247900/RS, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 27-10-99, p. 00028). (grifos nossos) Ante o exposto, figurando a União no pólo passivo, justificada está, nos termos do artigo 109, I, da CF/88, a competência da Justiça Federal para o processamento e julgamento da presente demanda. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL A norma do art. 127 da Constituição Federal prescreve que ao Ministério Público, instituição essencial à função jurisdicional, compete a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Estabelecido este vetor, dispõe em seguida: Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: ................... II – Zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia. III - promover o inquérito civil público e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e outros interesses difusos e coletivos. ...................”. Pela análise do texto normativo transcrito, verifica-se que o constituinte incumbiu especificamente ao Ministério Público a relevante missão de defesa proteção do patrimônio público, do meio ambiente e qualquer outro interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo de relevância social. 19 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Em harmonia com a Carta Federal, preceitua a Lei Complementar n.º 75/93, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União: Art. 5º São funções institucionais do Ministério Público da União: ................... V - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos da União e dos serviços de relevância pública quanto: a) aos direitos assegurados na Constituição Federal relativos às ações e aos serviços de saúde e à educação. ................... Art. 6º Compete ao Ministério Público da União: ................... VII - promover o inquérito civil e a ação civil pública para: ................... c) a proteção dos interesses, individuais indisponíveis, difusos e coletivos, relativos às comunidades indígenas, à família, á criança, ao adolescente, ao idoso, às minorias étnicas e ao consumidor. O recebimento gratuito, pelos portadores do HIV e doentes de AIDS, de “toda medicação necessária a seu tratamento” é direito difuso, transindividual, de natureza indivisível, do qual são titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato. A assistência terapêutica integral aos portadores do vírus HIV e doentes da AIDS, garantida constitucionalmente, não interessa tão somente àqueles; interessa, outrossim, à sociedade como um todo. Ora, nítido está que os objetivos primordiais da presente demanda, para a qual está devidamente legitimado no pólo ativo o Ministério 20 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Público Federal, são a proteção do direito à saúde e do direito à vida. Destarte, afigura-se legítima a atuação do Ministério Público Federal para a defesa de direitos e interesses difusos, entre os quais se insere o direito à saúde, exteriorizada, in casu, na busca de provimento judicial que assegure, aos portadores de HIV e doentes de AIDS, o recebimento de toda e qualquer medicação indispensável a seu tratamento. DA LEGITIMIDADE PASSIVA DOS RÉUS A legitimidade passiva dos réus União Federal, Estado de São Paulo e Município de São Paulo decorre, inicialmente, da Constituição Federal: “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” A Lei 8.080/90, por sua vez, disciplina a organização, direção e gestão do Sistema Único de Saúde, nos seguintes moldes: “Art. 9o - A direção do Sistema Único de Saúde (SUS) é única, de acordo com o inciso I do artigo 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos: I - no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde; II - no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente; e III - no âmbito dos Municípios, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente.” (grifos nossos) Depreende-se, destarte, que o Sistema Único de Saúde ramificase, sem, contudo, perder sua unicidade, de modo que de qualquer de seus 21 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL gestores podem/devem ser exigidas as “ações e serviços” necessários à promoção, proteção e recuperação da saúde pública. Os réus, portanto, como integrantes e gestores do Sistema Único de Saúde, figuram como partes passivas legítimas, uma vez que a decisão postulada projetará efeitos diretos sobre suas respectivas esferas jurídicas. Vale citar a jurisprudência da Excelsa Corte: “E M E N T A: PACIENTE COM HIV/AIDS - PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE – FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS - DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) - PRECEDENTES (STF) - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável 22 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA PESSOAS CARENTES. DE MEDICAMENTOS A - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance,um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF.” (STF, 2 ª Turma, AGRRE-271286/RS, Rel. Min. Celso de Mello, v.u., DJ 24-1100, PP 00101 EMENT VOL-02013-07 PP-01409) (grifos nossos) 23 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL ANTECIPAÇÃO DE TUTELA Dispõe o art. 273 do Código de Processo Civil que: “Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: I – haja fundado receito de dano irreparável ou de difícil reparação; ou II – fique caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu”. (grifos nossos) A prova inequívoca da verossimilhança do pedido, segundo os dizeres do art. 273 do Código de Processo Civil ou o fumus boni iuris, encontrase caracterizado ante tudo o que foi exposto e evidencia-se na obrigação constitucional do Estado de assegurar o direito à saúde, que está ligado indissociavelmente ao direito à vida. De outro lado, o receio de dano irreparável ou de difícil reparação é manifesto, estando evidenciado na própria gravidade da doença. O vírus HIV, ao se manifestar e atuar no corpo humano, provoca a imuno-deficiência, ou seja, reduz a imunidade de seu portador, o que permite que as chamadas doenças ou infecções oportunistas se instalem e que, ante à baixa imunidade, o corpo humano não tenha como combatê-las. As declarações prestadas na Procuradoria da República em São Paulo pelos Senhores xxxxxxxxx, xxxxxxxxx, xxxxxxxxx e xxxxxxxxx, bem como os relatórios médicos apresentados demonstram o periculum in mora. De fato, os medicamentos que estão sendo fornecidos normalmente pelo SUS aos portadores de HIV acima mencionados não estão 24 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL mais surtindo efeito para conter a evolução da Aids, sendo necessária a obtenção de outros medicamentos para compor novo esquema terapêutico, tais como o Amprenavir, Abacavir e Kaletra ®. As situações clínicas desses pacientes, que apresentam aumento drástico da carga viral face ao insucesso dos esquemas terapêuticos aplicados não são casos isolados, reclamando resposta urgente do Poder Judiciário. Tendo em vista que o bem ameaçado é a vida desses pacientes, sendo que a demora pode significar o agravamento de sua saúde e até mesmo a morte, pugna o Ministério Público Federal pela concessão parcial dos efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, após a devida oitiva dos representantes judiciais dos réus União Federal e Estado de São Paulo em 72 horas, para determinar à União a aquisição e o fornecimento imediato ao Estado de São Paulo dos medicamentos Amprenavir, Abacavir e lopinavir + ritonavir (Kaletra ®) e ao Estado de São Paulo a distribuição e entrega desses medicamentos aos portadores do vírus HIV e doentes da AIDS no Estado de São Paulo. Consigne-se que embora o dever de fornecer toda a medicação imprescindível ao tratamento da AIDS seja compartilhada por todos os entes políticos, amplamente demonstrado no corpo desta petição inicial, o pedido de tutela antecipada referente à aquisição e fornecimento dos medicamentos é dirigido somente à União, porque este ente federativo atualmente realiza de forma centralizada as compras dos remédios antiretrovirais, conforme acordado na Comissão Intergestores Tripartite (vide docs. 10, 11, 12, 16, 17, 18, bem como docs. 30- Ofício n º 4447/99 GAB – CN DST e Aids/SPS/MS e 31-Portaria n º 176/GM de 08/03/1999). O autor constatou que está faltando o medicamento Amprenavir, uma vez que não está disponível em toda a rede pública, conforme declarações prestadas pelo Sr. xxxxxxxxxx (doc. 19) e não estão sendo distribuídos os medicamentos Abacavir e lopinavir + ritonavir (Kaletra®), fato admitido pelos próprios coordenadores de DST/AIDS. Nem se alegue também que está em curso processo de compra 25 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL dos remédios Abacavir e Kaletra ® pelo Ministério da Saúde, pois a situação é urgente e implica tomada de providências imediatas para assegurar a sobrevivência dos indivíduos soropositivos. Ademais, promessas anteriores de fornecimento não foram cumpridas! Cite-se, por exemplo, informação prestada a este órgão ministerial de que o medicamento Abacavir estaria disponível a partir de março de 2001 (doc. 04). Até hoje, entretanto, não foi concluído o processo de compra. Não se justifica, da mesma forma, a disponibilização do medicamento Kaletra para o mês de março (cf. doc. 12) ou abril de 2002 (cf. doc. 18). Ora, é certo que, se os pacientes forem privados do medicamento no transcurso desse lapso temporal, não sobreviverão para continuar seu tratamento. Além disso, não é demais lembrar que a situação de emergência constituiu hipótese de licitação dispensável (art. 24, IV da Lei 8.666). Deste modo, requer o Ministério Público Federal a antecipação dos efeitos da tutela, para determinar: 1) à União: a aquisição e o fornecimento dos medicamentos Amprenavir, Abacavir e Kaletra necessários ao tratamento dos portadores de HIV, em quantidade suficiente para atender todos os soropositivos do Estado de São Paulo, distribuindo-os diretamente ao Estado (Secretaria Estadual de Saúde) (doc. 30). 2) ao Estado de São Paulo: a distribuição e entrega dos medicamentos aos portadores do vírus HIV e doentes de AIDS no seu âmbito de abrangência geográfica. Para a remota hipótese de descumprimento, pede seja fixada multa de, no mínimo, R$ 10.000,00 (dez mil reais), em cada caso de desrespeito à decisão judicial. E, para que dêem cumprimento, pede sejam intimados do teor 26 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL da decisão o Excelentíssimo Secretário Estadual de Saúde e o Senhor Ministro da Saúde, sob pena de responsabilização penal e por improbidade administrativa. Por fim, vale citar a jurisprudência: Ementa: “PROCESSUAL CIVIL. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. PORTADORES DO HIV. MEDICAÇÃO NECESSÁRIA. I- OS PORTADORES DO HIV (VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA) E DOENTES DE AIDS (SÍNDROME DA IMUNODEFICIÊNCIA ADQUIRIDA) RECEBERÃO GRATUITAMENTE DO SUS TODA MEDICAÇÃO NECESSÁRIA A SEU TRATAMENTO (ART. 1 DA LEI 9.313/96). II- A UNIÃO É RESPONSÁVEL PELA COMRA E DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS NECESSÁRIOS AO TRATAMENTO DA AIDS E, INTEGRANDO O SUS, TAMBÉM É RESPONSÁVEL PELO CONTROLE, COMBATE E TRATAMENTO DA DOENÇA III- AGRAVO IMPROVIDO”(TRF. 2 ª Região, AG processo 99.02.11462-8/RJ, 2a. Turma, relator Juiz Castro Aguiar, v.u, DJ15/07/1999) . “PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. AQUISIÇÃO E ENTREGA DE MEDICAMENTOS PARA TRATAMENTO DA AIDS. LEGITIMIDADE DA UNIÃO. PRAZO PARA CUMPRIMENTO. REQUISITOS DA TUTELA. 1. Como a matéria questionada no instrumento confundese com aquela suscitada no âmbito do regimental, pode ser de pronto enfrentada, pelo princípio da celeridade 27 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL processual. 2. Segundo ART-196 da Carta Política, a legitimidade da União é indiscutível. 3. Ainda que não requerido prazo para cumprimento da determinação judicial, a decisão que o impõe não é ‘extra petita’. 4. Presentes os requisitos da antecipação da tutela, pois a fumaça do bom direito evidencia-se na obrigação constitucional assumida pelo Estado de assegurar o direito à vida, à saúde; o perito na demora está evidenciado na gravidade da doença. 5. O resgate de valores sagrados para a ordem jurídica deve ser efetivo e não inoperante. 6. Questões preliminares rejeitadas. Agravo improvido. Prejudicado o regimental.”(TRF, 4 ª Região, Processo 97.04.57545-9/SC, 4 ª Turma, DJ 11/02/1998) Ementa: “PROCESSUAL CIVIL. MEDIDA CAUTELAR. LIMINAR DE CARÁTER SATISFATIVO. SAÚDE PÚBLICA. DIREITO DO CIDADÃO E DEVER DO ESTADO. DECISÃO ASSENTADA EM DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. É vedada, como princípio geral, a concessão de liminar de caráter eminentemente satisfativo, excepcionando-se 28 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL as hipóteses de providências máximas urgentes. Quando, porém, a decisão recorrida se fundamentou em preceitos da Constituição Federal, não se pode sequer tomar conhecimento do recurso extremo”(STJ, 2 ª Turma, Resp 109473/RS, Rel. Min. Helio Mosimann, DJ 06/09/1999, pg 00069) Ementa: “MEDICAMENTO-AQUISIÇÃO-LIMINAR SATISFATIVA- DIREITO À VIDA. É VEDADA A CONCESSÃO DE LIINAR CONTRA ATOS DO PODER PÚBLICO NO PROCEDIMENTO CAUTELAR, QUE ESGOTE, NO TODO OU EM PARTE, O OBJETO DA AÇÃO. ENTRETANTO, TRATANDO-SE DE AQUISIÇÃO DE MEDICAMENTO (CERIDASE) INDISPENSÁVEL A SOBREVIVÊNCIA DA PARTE, O QUE ESTARIA SENDO NEGADO PELO PODER PÚBLICO SERIA O DIREITO À VIDA. RECURSO IMPROVIDO” (STJ, 1 ª Turma, Resp 97912/RS, rel. Garcia Vieira, DJ 09/03/1999, pg 00014) 29 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL DOS PEDIDOS Concedida a tutela antecipada, determinando à União Federal a aquisição e fornecimento imediato dos medicamentos e ao Estado de São Paulo a sua distribuição, requer o Ministério Público Federal a Vossa Excelência: I. a citação dos réus, para querendo, contestar a ação; II. a procedência da ação, condenando a UNIÃO, o ESTADO DE SÃO PAULO e o MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, de forma solidária, ao fornecimento gratuito e ininterrupto, através das respectivas redes de atendimento, a todos portadores do vírus HIV e a todos doentes de AIDS, de todos e quaisquer medicamentos necessários ao seu tratamento, independentemente de ser importado ou não constar na lista oficial do Ministério da Saúde; III. a condenação da UNIÃO, do ESTADO DE SÃO PAULO e do MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, de forma solidária, a publicar a sentença definitiva a ser proferida nos presentes autos nos jornais de maior circulação em âmbito nacional, estadual e local, em três dias alternados, sendo um deles domingo, sem, contudo, fazer menção à nome ou identificação dos portadores do HIV constantes dos autos; IV. com esteio no art. 12, da Lei n o. 7.347/85, a cominação de multa diária para o caso de descumprimento da liminar deferida; V. a decretação de segredo de justiça dos presentes autos, visando preservar o direito à intimidade dos portadores do 30 - 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL HIV, autorizada apenas a divulgação dos atos decisórios, após a devida omissão do nome dos pacientes. Embora já tenha apresentado o Ministério Público Federal prova pré-constituída do alegado, protesta, outrossim, pela produção de outras, por todos os meios em direito admitidos. Dá-se à causa o valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais). São Paulo, 19 de novembro de 2001. ADRIANA DA SILVA FERNANDES Procuradora da República MARLON ALBERTO WEICHERT Procurador da República *Nesta petição inicial foram utilizados argumentos constantes da ação civil pública n o. 2001.72.01.002827-3, proposta pelo Exmo. Procurador da República, Dr. Davy Lincoln Rocha em face da União Federal, Estado de Santa Catarina e Município de Joinville, em curso perante a 2 a. Vara Federal de Joinville. 31 - 31