EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ - PR/SP

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ FEDERAL DA
DA SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO
VARA
O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelos Procuradores
da República signatários, no uso de suas atribuições constitucionais e legais,
com fulcro no art. 129, incisos II e III, da Constituição Federal de 1988, bem
como nos dispositivos pertinentes da Lei nº 7.347/85 e Lei Complementar n°
75/93, vêm, perante Vossa Excelência, propor a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA
com pedido liminar, tendo por base os documentos em anexo e as razões de fato
e de direito que passa a expor, em face de:
UNIÃO FEDERAL, pessoa jurídica de direito público
interno, com sede na Avenida Paulista, 1842, Edifício
Cetenco Plaza – Torre Norte, 7º andar, conjuntos 76/77, no
Município de São Paulo, Estado de São Paulo, podendo ser
citada na pessoa de seu Advogado;
ESTADO DE SÃO PAULO, pessoa jurídica de direito
público interno, com sede no Palácio do Governo, na
Avenida Morumbi, 4500, no Município de São Paulo,
Estado de São Paulo, podendo ser citado na pessoa da
Procuradora Geral do Estado de São Paulo, Dra. Rosali de
Paula Lima (Avenida São Luiz, 99);
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MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, pessoa jurídica de direito
público, com sede em sua Prefeitura Municipal, na Avenida
Mercúrio, s/ nº, Palácio da Indústria, Parque Dom Pedro, em
São Paulo/SP, representada por seu Procurador Geral, Dr.
César Antonio Alves Cordaro (Rua Maria Paula, 270, Bela
Vista).
DOS FATOS
Em março de 2000 foi instaurada na Procuradoria da República
em São Paulo o procedimento administrativo n º 1.34.001.001496/2000-01,
objetivando verificar a oferta e possível inclusão de outros medicamentos no
tratamento da AIDS e doenças correlatas (doc. 01).
Constatou-se, no curso do procedimento, que alguns
medicamentos não eram fornecidos pelo Sistema Único de Saúde e outros não
tinham fornecimento regular.
Através dos ofícios 15.765/2000 MPF-PR/SP (doc. 02) e
15.867/2000 MPF-PR/SP (doc. 03) o Ministério Público Federal, solicitou,
respectivamente, informações sobre a regularidade do fornecimento dos
medicamentos em geral aos portadores do vírus HIV e, especificamente sobre a
disponibilização dos medicamentos Amprenavir e Abacavir.
O Sr. Coordenador Nacional de DST e AIDS, Dr. Paulo Roberto
Teixeira, informou, em ofício datado de 12/12/2000, que na solicitação de
compra de medicamentos de AIDS da programação 2001 os medicamentos
Amprenavir e Abacavir haviam sido incluídos e que a previsão de início de
distribuição era março de 2001 (doc. 04). Informou ainda, em ofício datado de
15/12/2000, que a distribuição dos medicamentos anti-retrovirais estava
regularizada (doc. 05).
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No mês de julho do ano em curso, foi instaurado o procedimento
administrativo n º 1.34.001.002433/2001-45, a partir de notícia encaminhada
pelo GRUPO DE APOIO E PREVENÇÃO À AIDS – GAPA BR SP (doc. 06),
dando conta da falta de diversos medicamentos para os portadores do vírus HIV
no âmbito do Sistema Único de Saúde.
Vale transcrever as seguintes declarações do GAPA :
“(...)
2. Que todos, os ora representados acima
mencionados, são portadores do vírus HIV/aids,
fazendo tratamento na rede pública do Estado de São
Paulo, e mesmo assim houve a necessidade de
ingressar com ação ordinária de obrigação de fazer
com pedido de tutela antecipada, para receberem
remédios prescritos, para que pudessem dar
continuidade ao tratamento de saúde, que iniciaram.
2.1. Cumpre salientar, como é sabido, que os
medicamentos prescritos aos Requerentes, são de
suma importância, pois somente com eles é que
conseguem evitar a replicação viral, continuarem
vivos e com saúde.
3. Que, embora a saúde esteja protegida pela
Constituição Federal e Estadual, em seus artigos 196
e 219, respectivamente, não é o que vem acontecendo.
3.1. Não é o que vem ocorrendo, pois não há respeito
ao disposto nos artigos supra mencionados, como
também não há respeito a lei 8.080/90, bem como não
está ocorrendo o acesso universal e igualitário às
ações e ao serviço de saúde, em todos os níveis, eis
que faltam medicamentos (kaletra, abacavir e
ritonavir)... os quais somente são conseguidos
mediante ação judicial(...)” (grifos nossos)
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No âmbito do mencionado procedimento administrativo, o
Ministério Público Federal requisitou informações e providências dos gestores
do SUS, através dos ofícios n os. 8687/2001, 8688/20001 e 11.155/2001 (docs.
07, 08 e 09).
Respondendo à requisição do Ministério Público Federal, o
Secretário Municipal de Saúde, encaminhou as seguintes informações prestadas
pelo Coordenador do Programa DST/AIDS no Município (doc. 10):
“...Não obstante o fato da Lei 9313/96 prever o direito
ao recebimento de todos os medicamentos necessários
para atender à AIDS, este procedimento é definido por
uma reunião anual chamada de Consenso Terapêutico
pela Coordenação Nacional de DST/Aids do Ministério
da Saúde.
O consenso é definido após consulta a um grupo dentre
os melhores especialistas em tratamento de AIDS do
Brasil. Complementarmente há uma definição de
atribuições na compra destes medicamentos (previstos na
Lei 9313/96) entre os 3 níveis do Governo Federal,
Estadual e Municipal), sem ferir os princípios do SUS
normatizados na Lei 8080/90, como mencionado pela
Exma Sra. Procuradora.
Assim cabe ao Ministério da Saúde a compra de todos
os medicamentos anti retrovirais.
O Governo do Estado de São Paulo e a Secretaria
Municipal de Saúde ficam responsáveis pelos outros
medicamentos necessários à atenção completa aos
requisitos da Lei, conforme decisão da Comissão
Bipartite do SUS (anexa).
Mesmo assim, não temos em momento algum, nos
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furtado a fornecer os medicamentos solicitados por
ordem judicial, ainda que, alguma das vezes as
indicações sejam discutíveis.
Há atualmente nove pessoas que tomam medicação
não prevista no consenso supra-referido, às custas da
Municipalidade”(grifos nossos)
A Secretaria Estadual de Saúde informou, através do Ofício G.S.
n º 2414/2001 (doc. 11), que atendeu à pretensão de alguns portadores do vírus
HIV que já tinham processos judiciais em curso. Confira-se:
“Outrossim, com relação aos outros casos de solicitação
de exames e medicamentos, informo que estão em fase de
aprovação do repasse de recursos, tendo em vista não
estarem ainda disponíveis regularmente em laboratórios
da rede pública, devendo ser encaminhados a
laboratórios privados para sua execução.
Por conseguinte, tão logo se proceda a liberação dos
recursos financeiros, os interessados serão convocados
para a realização dos exames e retirada dos
medicamentos, logicamente dentro da maior brevidade
possível, visando o cumprimento dos prazos judiciais em
curso.” (grifos nossos)
O Coordenador Geral de Doenças Sexualmente TransmissíveisDST e AIDS, por sua vez, informou que (doc. 12):
“1- Em relação aos medicamentos ARV que fazem parte
do consenso terapêutico:
A distribuição do medicamento amprenavir cápsula e
solução oral foi iniciada em abril/2001.
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Em relação ao Abacavir, informamos que após o período
negociação de preço com o fabricante, o contrato de
aquisição do medicamento está em fase de conclusão
com a previsão de assinatura de contrato ainda neste
mês.
Não há informações de falta do medicamento Ritonavir
em SP, de acordo com os dados mensais de informação
de estoque e consumo do medicamento no Estado, ou por
quaisquer contatos da Coordenação Estadual de DST e
Aids de São Paulo.
2- Em relação aos medicamentos ARV que não faz parte
do consenso:
(...)
b) A compra do medicamento lopinavir + ritonavir
(kaletra), na forma de cápsulas e solução oral, foi
incluído na programação de medicametnos de aids de
2001, iniciada pela CN DST/Aids, em setembro/2001, e a
previsão
de
início
de
distribuição
é
de
março/2002.”(grifos nossos)
Em 08 de novembro de 2001, o Ministério Público Federal
oficiou novamente aos Coordenadores de DST e AIDS atuantes nas esferas
federal, estadual e municipal (docs. 13, 14 e 15), noticiando que portadores do
vírus HIV não estavam conseguindo obter os medicamentos Amprenavir,
Abacavir e Kaletra do Sistema Único de Saúde, bem como solicitando
informações sobre como obtê-los gratuitamente.
O Assessor Técnico em DST/Aids da Secretaria Municipal de
Saúde de São Paulo prestou as seguintes informações:
“...Medicamento como o Amprenavir estão sendo
distribuídos nas redes Municipais e Estaduais
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normalmente desde o mês de setembro de 2001, não
havendo registro de repressão de demanda.
(...)
Mesmo assim, apenas à título de informação o Abacavir
faz parte do novo Consenso, já foi comprado pelo
Ministério da Saúde e não em prazo tão exíguo como
sugere a Sra. Procuradora, mas ainda no ano de 2001
estará disponível em toda Rede Pública de Saúde.
Quanto ao medicamento Kaletra, o infantil, também faz
parte do no Consenso e assim estará brevemente
disponível na nossa Rede” (doc. 16) (grifos nossos)
O Diretor Técnico de Departamento de Saúde e Coordenador do
Centro de Referência e Treinamento DST/Aids da Secretaria Estadual de Saúde,
Dr. Arthur Olhovetchi Kalichman, informou que a“ CN-DST/AIDS já
normatizou o uso de todos os anti-retrovirais disponíveis comercialmente,
inclusive o Abacavir e o Kaletra ; o amprenavir já se encontra disponível na
rede pública e é formecido aos pacientes que estejam dentro dos critérios
clínicos para utilizá-la; os medicamentos abacavir e Kaletra, embora tenha
sido normatizada sua utilização não estão disponíveis ainda na rede pública
por razões administrativas, referentes ao processo de compra, que se dá pela
CN-DST/AIDS (Ministério da Saúde).”(doc. 17)( grifos nossos)
O Coordenador Nacional de DST e AIDS, Dr. Paulo Roberto
Teixeira, informou:
“O processo de aquisição do Kaletra, segundo as
normas da Administração Pública, já se iniciou, estando
prevista a disponibilização na rede pública na
programação de abril/2002.
O medicamento Abacavir, após longo processo de
aquisição, resultante do monopólio de sua produção
devido ao direito de patente do laboratório Glaxo
Welcome, está programado para ser disponibilizado na
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rede pública em dezembro do corrente.
Quanto ao Amprenavir, medicamento já distribuído pela
rede pública sendo esta a primeira notícia de sua falta
para os pacientes, após contato com a Coordenação
Estadual de DST e Aids, do Estado de São Paulo,
obtivemos informação que o fornecimento está
regularizado.”(doc. 18) (grifos nossos)
Depreende-se do exposto, que o Sistema Único de Saúde – SUS,
em suas diversas esferas de atuação – Federal, Estadual e Municipal, tem negado
o fornecimento de medicamentos de controle e combate à AIDS, obrigando as
pessoas soropositivas a recorrer ao Judiciário para que o Estado cumpra seu
dever de prestar assistência integral à saúde.
Com efeito, somente obtêm os medicamentos prescritos aqueles
que litigam em Juízo, contratando um advogado ou utilizando os serviços
prestados pelo departamento jurídico de alguma Organização Não
Governamental, tal como o GAPA.
Deste modo, tornou-se imprescindível a propositura desta ação
civil pública visando obter provimento jurisdicional que determine aos entes
governamentais prestação positiva, consistente no fornecimento aos usuários do
SUS de quaisquer medicamentos necessários a seu tratamento.
Vale frisar que as alegações de que os medicamentos
Abacavir e Kaletra não estão disponíveis por razões administrativas, quais
sejam, processos de compra, não podem constituir óbices ao acesso à saúde.
O Poder Público deve aparelhar-se para cumprir seu papel, sob pena de
tornar letra morta o preceito constitucional disposto no art. 196 da
Constituição Federal.
O Estado tem o dever de garantir, de maneira responsável, o
direito à saúde, direito fundamental indissociável do direito à vida.
A omissão governamental está patente. Veja-se, por exemplo, o
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fornecimento dos medicamentos Amprenavir e Abacavir. Segundo informações
fornecidas pela União (Coordenador Geral de DST/AIDS) ao Ministério Público
Federal, esses medicamentos estariam disponíveis em março de 2001 (doc. 04).
No entanto, constata-se hoje que o Abacavir não está sendo fornecido, conforme
admitido pelos próprios gestores, e o Amprenavir não está disponível em toda a
rede pública de saúde.
No tocante à falta do medicamento Amprenavir, vale conferir as
declarações prestadas pelo Senhor xxxxxxxxx na Procuradoria da República em
São Paulo (doc. 19):
“...que o declarante não toma medicamentos a cerca de
dez meses; alega o declarante também que os
medicamentos são de custo muito elevado e que não
possui convênio médico que cubra o tratamento da AIDS
e por isso de dirige ao ANCA (casa da Aids – tel:
31205290), localizado na Rua Frei Caneca, que faz parte
do SUS – Sistema Único de Saúde; que no último dia 29
de outubro a médica do SUS receitou ao declarante para
tomar o medicamento Amprenavir, contudo o declarante
não conseguiu obter o referido medicamento junto ao
ANCA, sob a alegação de que o medicamento é muito
novo e ainda não foi enviado para eles; que o declarante
não tentou comprar o referido medicamento em
farmácias, pois como dito anteriormente não tem
condições financeiras de fazê-lo; que o declarante
recorre a este Órgão Ministerial, a fim de que o
medicamento lhe seja concedido com a maior brevidade
possível”.
Esse paciente apresenta “diagnóstico de SIDA CID B 24, CD4=
10 mm e carga viral = 74.000 cels. Paciente evoluindo com neutropenia” (doc.
20), necessitando o medicamento Amprenavir “para compor novo esquema
terapêutico”(doc. 21)
3
Os medicamentos Abacavir e lopinavir+ritonavir (kaletra®),
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muitas vezes apresentam-se como únicas opções terapêuticas no tratamento dos
pacientes. No entanto, conforme admitiram os próprios gestores, não são
disponibilizados aos usuários do SUS.
Declarações prestadas pelo Sr. xxxxxxxxxx, em 05/11/2001 (doc.
22):
“... que o declarante é portador do vírus HIV desde o
ano de 1995; que o declarante faz seu tratamento pelo
Sistema Único de Saúde – SUS, que os medicamentos que
o declarante vem tomando contra a doença não têm
surtido efeito; que foi receitado ao declarante os
medicamentos KALETRA E ABACAVIR, que são
medicamentos novos contra a doença; que o declarante
não conseguiu os referidos medicamentos junto à ANCA
(local onde faz seu tratamento); que a médica informou
ao declarante que tais medicamentos são muito caros,
chegando ao valor de R$ 2000,00 (dois mil reais); que o
declarante não possui condições financeiras de obter tais
medicamentos, que o declarante está na dependência dos
referidos medicamentos e por isso recorre a este Órgão
Ministerial”
Consoante relatório médico apresentado, “o paciente encontra-se
em situação de falência terapêutica com o atual esquema necessitando o mais
breve possível de novas drogas para compor seu novo tratamento” (doc. 23).
Declarações prestadas pelo Sr. xxxxxxxxx:
“...que foi receitado ao declarante para tomar o
medicamento Kaletra, contudo o declarante não
encontrou o referido medicamento na ANCA; que o
declarante também procurou tal medicamento em
farmácias, mas não o encontrou; lembra que mesmo que o
encontrasse não teria condições financeiras de comprálo; o declarante foi informado que tal medicamento é
difícil de ser encontrado e, ainda, que seu custo é muito
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elevado...” (doc. 24)
Em seu relatório médico consta: “Pac. HIV+ desde abr/88 com
aumento da carga viral com perfil de multiresistência a vários anti-retrovirais
associado a intolerância ao Ritonavir. Solicito com base em genotipagem início
de Lopinavir/R (kaletra) por ser a única opção disponível no momento”.(doc. 25
e 26)
Declarações prestadas pela Sra. Xxxxxxxxx (doc. 27):
“...que é portadora do vírus HIV desde 1997 e que
sempre tomou medicamentos anti-retrovirais (coquetel).
Que esses medicamentos agora não estão mais fazendo
efeito. Que foi receitado por sua médica, Dra. Rosana
Richtmann, o medicamento Kaletra. Que a médica
informou à Declarante que o Kaletra é uma droga nova e
que somente é obtida mediante processo. Que a
declarante não pode arcar com o custo do
medicamento...”
No relatório médico consta: “...P. intolerante a várias
medicações, como ritonavir em dose plena. Atualmente, com carga viral
290.000...”, solicitando o médico o medicamento Kaletra (docs. 28 e 29).
DO DIREITO
Os fundamentos básicos do direito à saúde no Brasil estão
elencados os arts. 196 a 200 da Constituição Federal. Especificamente, o art.
196 dispõe que:
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“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação".
O direito à saúde, tal como assegurado na Constituição de 1988,
configura direito fundamental de segunda geração. Nesta geração estão os
direitos sociais, culturais e econômicos, que se caracterizam por exigirem
prestações positivas do Estado. Não se trata mais, como nos direitos de primeira
geração, de apenas impedir a intervenção do Estado em desfavor das liberdades
individuais. Os direitos de segunda geração conferem ao indivíduo o direito de
exigir do Estado prestações sociais nos campos da saúde, alimentação,
educação, habitação, trabalho etc.
A Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as
condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, estabelece:
“......................
Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano,
devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu
pleno exercício.
§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na
formulação e execução de políticas econômicas e sociais que
visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no
estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e
igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção,
proteção e recuperação.
|.....................
Art. 4°. O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por
órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais,
da administração direta e indireta e das funções mantidas pelo
Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde – SUS.
......................” (grifos nossos).
O artigo 7° da citada lei estabelece que as ações e serviços
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públicos que integram o Sistema Único de Saúde serão desenvolvidos de acordo
com as diretrizes previstas no artigo 198 da Constituição Federal, obedecendo,
ainda, aos seguintes princípios:
“Art. 7°......................
I – universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os
níveis de assistência;
II - Integralidade de assistência, entendida como um conjunto
articulado e contínuo de serviços preventivos e curativos,
individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os
níveis de complexidade do sistema;
III – preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua
integridade física e moral;
IV – igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou
privilégios de qualquer espécie;
.....................
XI – conjugação de recursos financeiros, tecnológicos, materiais
e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, na prestação de serviços de assistência à saúde da
população;
.....................”.
Verifica-se, destarte, que a própria norma disciplinadora do
Sistema Único de Saúde elenca como princípio a integralidade de assistência,
definindo-a como um conjunto articulado e contínuo de serviços preventivos
e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis
de complexidade do sistema.
Ademais, a Lei nº 9.313, de 13/11/96 impôs a gratuidade do
fornecimento de toda a medicação necessária ao tratamento dos portadores do
HIV e doentes da AIDS:
"Art. 1º - Os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência
humana) e doentes de aids (Síndrome da Imunodeficiência
Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de
Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento.
§ 1º - O Poder Executivo, através do Ministério da Saúde,
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padronizará os medicamentos a serem utilizados em cada
estágio evolutivo da infecção e da doença, com vistas a orientar
a aquisição dos mesmos pelos gestores do Sistema Único de
Saúde.
.....................
Art. 2º - As despesas decorrentes da implementação desta Lei
serão financiadas com recursos do orçamento da Seguridade
Social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, conforme regulamento”
Vale anotar que a padronização prevista no 1 º do art. 1º da Lei nº
9313/96 é de caráter meramente indicativo, pois não seria cabível uma restrição
por lei ordinária, à integralidade de assistência consagrada na Constituição.
O Estado deve fornecer todos os medicamentos necessários ao
tratamento dos pacientes, ainda que não constem em lista oficial, posto que
cada paciente é medicado conforme seu estado clínico, não podendo ficar
restrito aos medicamentos convencionados pelo Ministério da Saúde. Neste
sentido a jurisprudência:
Ementa
“ADMINISTRATIVO. MEDICAMENTOS PARA
TRATAMENTO DA AIDS. FORNECIMENTO PELO
ESTADO. OBRIGATORIEDADE. AFASTAMENTO
DA DELIMITAÇÃO CONSTANTE NA LEI n º
9.313/96.
DEVER
CONSTITUCIONAL.
PRECEDENTES.
1. Recurso especial interposto contra v. Acórdão que
entendeu ser obrigatoriedade do Estado o
fornecimento de medicamentos para portadores do
vírus HIV.
2.No tocante à responsabilidade estatal no fornecimento
gratuito de medicamento no combate à AIDS, é conjunta
e solidária com a da União e do Município. Como a Lei
n º 9.313/96 atribui à União, aos Estados, ao Distrito
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Federal e aos Municípios o dever de fornecer
medicamentos de forma gratuita para o tratamento de tal
doença, é possível a imediata imposição de tal
fornecimento, em vista da urgência e conseqüências
acarretadas pela doença.
3.É dever constitucional da União, do Estado, do Distrito
Federal e dos Municípios o fornecimento gratuito e
imediato de medicamentos para portadores do vírus HIV
e para tratamento da AIDS.
4.Pela peculiaridade de cada caso e em face da sua
urgência, há que se afastar a delimitação no
fornecimento de medicamentos constante na Lei n º
9.313/96.
5.A decisão que ordena que a Administração Pública
forneça aos doentes os remédios ao combate da doença
que sejam indicados por prescrição médica, não padece
de ilegalidade.
6.Prejuízos iriam ter os recorridos se não lhes for
procedente a ação em tela, haja vista que estarão sendo
usurpados no direito contitucional à saúde, com a
cumplicidade do Poder Judiciário. A busca pela entrega
da prestação jurisdicional deve ser prestigiada pelo
magistrado, de modo que o cidadão tenha, cada vez mais
facilitada, com a contribuição do Poder Judiciário, a sua
atuação em sociedade, quer nas relações jurídicas de
direito privado, quer nas de direito público.
7.Precedentes da 1 ª Turma desta Corte Superior.
8.Recurso improvido.”(STJ, 1 ª Turma, Resp n º
325337/RJ (2001/006737-4), relator Min. José Delgado,
v.u., 21/06/2001) (grifos nossos)
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Deste modo, resta claro que o dever do Estado de prover as
condições indispensáveis ao pleno exercício do direito à saúde, direito
fundamental do ser humano, implica na obrigação do Sistema Único de Saúde
propiciar aos usuários desse Sistema todos os meios existentes para a garantia de
suas vidas, fornecendo todos os medicamentos necessários ao tratamento dos
portadores do vírus HIV e doentes da AIDS.
Vale citar as doutas palavras de José Afonso da Silva, no que
tange ao direito à saúde:
“E há de informar-se pelo princípio de que o direito
igual à vida de todos os seres humanos significa também
que, nos casos de doença, cada um tem direito a um
tratamento condigno de acordo com o estado atual da
ciência médica, independentemente de sua situação
econômica, sob pena de não ter muito valor sua
consignação em normas constitucionais” (grifos nossos)
É de se destacar ainda que, de acordo com informações
prestadas pelos Coordenadores Nacional e Estadual de DST/AIDS (docs. 17
e 18), atualmente já houve normatização (CONSENSO) prevendo o
fornecimento pelo SUS de todos os anti-retrovirais disponíveis
comercialmente, inclusive o Abacavir e o Kaletra® .
COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL
A competência da Justiça Federal está disciplinada no artigo 109
da Constituição Federal de 1988:
“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
I – as causas em que a União, entidade ou empresa pública
federal forem interessadas na condição de autoras, rés,
assistentes ou opoentes, exceto as de falência, as de acidente de
trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;
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......................
“§ 2°. As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas
na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde
houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde
esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal”.
Os recursos destinados à aquisição dos medicamentos a serem,
posteriormente, fornecidos às pessoas soropositivas, são provenientes do
Sistema Único de Saúde, de cujo financiamento, participam, dentre outras
forntes, a União Federal, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,
consoante dispõe a Constituição Federal:
“Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma
rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema
único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I-
descentralização, com direção única em cada esfera de
governo;
II-
atendimento integral, com prioridade para as atividades
preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III-
participação da comunidade.
Parágrafo único. O sistema único de saúde será financiado, nos
termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade
social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, além de outras fontes”.
A Lei 8.080/90 estabeleceu, também, que:
“Art. 9o - A direção do Sistema Único de Saúde (SUS) é única,
de acordo com o inciso I do artigo 198 da Constituição Federal,
sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes
órgãos:
I - no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde;
II - no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pela respectiva
Secretaria de Saúde ou órgão equivalente; e
III - no âmbito dos Municípios, pela respectiva Secretaria de
Saúde ou órgão equivalente.
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Sobre o dever constitucionalmente imposto a cada um dos entes
federativos de garantir e promover a saúde, já se manifestou, inclusive, o
Egrégio Supremo Tribunal Federal, nos seguintes termos:
“(...) O preceito do artigo 196 da Carta da República, de
eficácia imediata, revela que ‘a saúde é direito de todos e dever
do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas
que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua
promoção, proteção e recuperação’. A referência, contida no
preceito, a ‘Estado’ mostra-se abrangente, a alcançar a União
Federal, os Estados propriamente ditos, o Distrito Federal e os
Municípios. Tanto é assim que, relativamente ao Sistema
Único de Saúde, diz-se do financiamento, nos termos do artigo
n° 195, com recursos do orçamento, da seguridade social, da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além
de outras fontes. Já o caput do artigo informa, como diretriz, a
descentralização das ações e serviços públicos de saúde que
devem integrar rede regionalizada e hierarquizada, com direção
única em cada esfera de governo. Não bastasse o parâmetro
constitucional de eficácia imediata, considerada a natureza, em
si, da atividade, afigura-se-me como fato incontroverso,
porquanto registrada, no acórdão recorrido, a existência de lei
no sentido da obrigatoriedade de fornecer-se os medicamentos
excepcionais, como são os concernentes à Síndrome da
Imunodeficiência Adquirida (SIDA/AIDS), às pessoas carentes.
O município de Porto Alegre surge com responsabilidade
prevista em diplomas específicos, ou seja, os convênios
celebrados no sentido da implantação do Sistema Único de
Saúde, devendo receber, para tanto, verbas do Estado. Por
outro lado, como bem assinalado no acórdão, a falta de
regulamentação municipal para o custeio da distribuição não
impede fique assentada a responsabilidade do Município.
Decreto visando-a não poderá reduzir, em si, o direito
assegurado em lei. Reclamam –se do Estado (gênero) as
atividades que lhe são precípuas, nos campos da educação, da
saúde e da segurança pública, cobertos, em si, em termos de
receita, pelos próprios impostos pagos pelos cidadãos. É hora
de atentar-se para o objetivo maior do próprio Estado, ou seja,
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
proporcionar vida gregária segura e com o mínio de conforto
suficiente para atender ao valor maior atinente à preservação da
dignidade do homem.(...)”
(RE 247900/RS, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 27-10-99, p.
00028). (grifos nossos)
Ante o exposto, figurando a União no pólo passivo, justificada
está, nos termos do artigo 109, I, da CF/88, a competência da Justiça Federal
para o processamento e julgamento da presente demanda.
LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
A norma do art. 127 da Constituição Federal prescreve que ao
Ministério Público, instituição essencial à função jurisdicional, compete a defesa
da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis. Estabelecido este vetor, dispõe em seguida:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
...................
II – Zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos
serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta
Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua
garantia.
III - promover o inquérito civil público e a ação civil pública,
para a proteção do patrimônio público e social, do meio
ambiente e outros interesses difusos e coletivos.
...................”.
Pela análise do texto normativo transcrito, verifica-se que o
constituinte incumbiu especificamente ao Ministério Público a relevante missão
de defesa proteção do patrimônio público, do meio ambiente e qualquer outro
interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo de relevância social.
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Em harmonia com a Carta Federal, preceitua a Lei
Complementar n.º 75/93, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o
estatuto do Ministério Público da União:
Art. 5º São funções institucionais do Ministério Público da
União:
...................
V - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos da União e
dos serviços de relevância pública quanto:
a) aos direitos assegurados na Constituição Federal relativos às
ações e aos serviços de saúde e à educação.
...................
Art. 6º Compete ao Ministério Público da União:
...................
VII - promover o inquérito civil e a ação civil pública para:
...................
c) a proteção dos interesses, individuais indisponíveis, difusos e
coletivos, relativos às comunidades indígenas, à família, á
criança, ao adolescente, ao idoso, às minorias étnicas e ao
consumidor.
O recebimento gratuito, pelos portadores do HIV e doentes de
AIDS, de “toda medicação necessária a seu tratamento” é direito difuso,
transindividual, de natureza indivisível, do qual são titulares pessoas
indeterminadas e ligadas por circunstância de fato.
A assistência terapêutica integral aos portadores do vírus HIV e
doentes da AIDS, garantida constitucionalmente, não interessa tão somente
àqueles; interessa, outrossim, à sociedade como um todo.
Ora, nítido está que os objetivos primordiais da presente
demanda, para a qual está devidamente legitimado no pólo ativo o Ministério
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
Público Federal, são a proteção do direito à saúde e do direito à vida.
Destarte, afigura-se legítima a atuação do Ministério Público
Federal para a defesa de direitos e interesses difusos, entre os quais se insere o
direito à saúde, exteriorizada, in casu, na busca de provimento judicial que
assegure, aos portadores de HIV e doentes de AIDS, o recebimento de toda e
qualquer medicação indispensável a seu tratamento.
DA LEGITIMIDADE PASSIVA DOS RÉUS
A legitimidade passiva dos réus  União Federal, Estado de São
Paulo e Município de São Paulo  decorre, inicialmente, da Constituição
Federal:
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação”
A Lei 8.080/90, por sua vez, disciplina a organização, direção e
gestão do Sistema Único de Saúde, nos seguintes moldes:
“Art. 9o - A direção do Sistema Único de Saúde (SUS) é única,
de acordo com o inciso I do artigo 198 da Constituição Federal,
sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes
órgãos:
I - no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde;
II - no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pela respectiva
Secretaria de Saúde ou órgão equivalente; e
III - no âmbito dos Municípios, pela respectiva Secretaria de
Saúde ou órgão equivalente.” (grifos nossos)
Depreende-se, destarte, que o Sistema Único de Saúde ramificase, sem, contudo, perder sua unicidade, de modo que de qualquer de seus
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
gestores podem/devem ser exigidas as “ações e serviços” necessários à
promoção, proteção e recuperação da saúde pública.
Os réus, portanto, como integrantes e gestores do Sistema Único
de Saúde, figuram como partes passivas legítimas, uma vez que a decisão
postulada projetará efeitos diretos sobre suas respectivas esferas jurídicas.
Vale citar a jurisprudência da Excelsa Corte:
“E M E N T A: PACIENTE COM HIV/AIDS - PESSOA
DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À
VIDA E À SAÚDE – FORNECIMENTO GRATUITO DE
MEDICAMENTOS - DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER
PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) - PRECEDENTES
(STF) - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.
O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA
CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À
VIDA.
- O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa
jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas
pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem
jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve
velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe
formular - e implementar - políticas sociais e econômicas
idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles
portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à
assistência farmacêutica e médico-hospitalar.
- O direito à saúde - além de qualificar-se como direito
fundamental que assiste a todas as pessoas - representa
conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O
Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua
atuação no plano da organização federativa brasileira, não
pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da
população, sob pena de incidir, ainda que por censurável
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
omissão, em grave comportamento inconstitucional.
A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO
PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL
INCONSEQÜENTE.
- O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta
Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que
compõem, no plano institucional, a organização federativa do
Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa
constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público,
fraudando justas expectativas nele depositadas pela
coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de
seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de
infidelidade governamental ao que determina a própria Lei
Fundamental do Estado.
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
PESSOAS CARENTES.
DE
MEDICAMENTOS
A
- O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas
de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes,
inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade
a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º,
caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance,um
gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das
pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem,
a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua
essencial dignidade. Precedentes do STF.” (STF, 2 ª Turma,
AGRRE-271286/RS, Rel. Min. Celso de Mello, v.u., DJ 24-1100, PP 00101 EMENT VOL-02013-07 PP-01409) (grifos nossos)
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
ANTECIPAÇÃO DE TUTELA
Dispõe o art. 273 do Código de Processo Civil que:
“Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar,
total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido
inicial, desde que existindo prova inequívoca, se convença da
verossimilhança da alegação e:
I – haja fundado receito de dano irreparável ou de difícil
reparação; ou
II – fique caracterizado o abuso do direito de defesa ou o
manifesto propósito protelatório do réu”. (grifos nossos)
A prova inequívoca da verossimilhança do pedido, segundo os
dizeres do art. 273 do Código de Processo Civil ou o fumus boni iuris, encontrase caracterizado ante tudo o que foi exposto e evidencia-se na obrigação
constitucional do Estado de assegurar o direito à saúde, que está ligado
indissociavelmente ao direito à vida.
De outro lado, o receio de dano irreparável ou de difícil
reparação é manifesto, estando evidenciado na própria gravidade da doença.
O vírus HIV, ao se manifestar e atuar no corpo humano, provoca
a imuno-deficiência, ou seja, reduz a imunidade de seu portador, o que permite
que as chamadas doenças ou infecções oportunistas se instalem e que, ante à
baixa imunidade, o corpo humano não tenha como combatê-las.
As declarações prestadas na Procuradoria da República em São
Paulo pelos Senhores xxxxxxxxx, xxxxxxxxx, xxxxxxxxx e xxxxxxxxx, bem
como os relatórios médicos apresentados demonstram o periculum in mora.
De fato, os medicamentos que estão sendo fornecidos
normalmente pelo SUS aos portadores de HIV acima mencionados não estão
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
mais surtindo efeito para conter a evolução da Aids, sendo necessária a obtenção
de outros medicamentos para compor novo esquema terapêutico, tais como o
Amprenavir, Abacavir e Kaletra ®.
As situações clínicas desses pacientes, que apresentam
aumento drástico da carga viral face ao insucesso dos esquemas terapêuticos
aplicados não são casos isolados, reclamando resposta urgente do Poder
Judiciário.
Tendo em vista que o bem ameaçado é a vida desses
pacientes, sendo que a demora pode significar o agravamento de sua saúde e até
mesmo a morte, pugna o Ministério Público Federal pela concessão parcial dos
efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, após a devida oitiva dos
representantes judiciais dos réus União Federal e Estado de São Paulo em 72
horas, para determinar à União a aquisição e o fornecimento imediato ao
Estado de São Paulo dos medicamentos Amprenavir, Abacavir e lopinavir +
ritonavir (Kaletra ®) e ao Estado de São Paulo a distribuição e entrega
desses medicamentos aos portadores do vírus HIV e doentes da AIDS no
Estado de São Paulo.
Consigne-se que embora o dever de fornecer toda a
medicação imprescindível ao tratamento da AIDS seja compartilhada por
todos os entes políticos, amplamente demonstrado no corpo desta petição
inicial, o pedido de tutela antecipada referente à aquisição e fornecimento
dos medicamentos é dirigido somente à União, porque este ente federativo
atualmente realiza de forma centralizada as compras dos remédios antiretrovirais, conforme acordado na Comissão Intergestores Tripartite (vide docs.
10, 11, 12, 16, 17, 18, bem como docs. 30- Ofício n º 4447/99 GAB – CN DST e
Aids/SPS/MS e 31-Portaria n º 176/GM de 08/03/1999).
O autor constatou que está faltando o medicamento Amprenavir,
uma vez que não está disponível em toda a rede pública, conforme declarações
prestadas pelo Sr. xxxxxxxxxx (doc. 19) e não estão sendo distribuídos os
medicamentos Abacavir e lopinavir + ritonavir (Kaletra®), fato admitido pelos
próprios coordenadores de DST/AIDS.
Nem se alegue também que está em curso processo de compra
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
dos remédios Abacavir e Kaletra ® pelo Ministério da Saúde, pois a situação é
urgente e implica tomada de providências imediatas para assegurar a
sobrevivência dos indivíduos soropositivos.
Ademais, promessas anteriores de fornecimento não foram
cumpridas!
Cite-se, por exemplo, informação prestada a este órgão
ministerial de que o medicamento Abacavir estaria disponível a partir de março
de 2001 (doc. 04). Até hoje, entretanto, não foi concluído o processo de compra.
Não se justifica, da mesma forma, a disponibilização do
medicamento Kaletra para o mês de março (cf. doc. 12) ou abril de 2002 (cf.
doc. 18). Ora, é certo que, se os pacientes forem privados do medicamento no
transcurso desse lapso temporal, não sobreviverão para continuar seu
tratamento.
Além disso, não é demais lembrar que a situação de emergência
constituiu hipótese de licitação dispensável (art. 24, IV da Lei 8.666).
Deste modo, requer o Ministério Público Federal a
antecipação dos efeitos da tutela, para determinar:
1) à União: a aquisição e o fornecimento dos medicamentos
Amprenavir, Abacavir e Kaletra necessários ao tratamento dos portadores
de HIV, em quantidade suficiente para atender todos os soropositivos do
Estado de São Paulo, distribuindo-os diretamente ao Estado (Secretaria
Estadual de Saúde) (doc. 30).
2) ao Estado de São Paulo: a distribuição e entrega dos
medicamentos aos portadores do vírus HIV e doentes de AIDS no seu
âmbito de abrangência geográfica.
Para a remota hipótese de descumprimento, pede seja fixada
multa de, no mínimo, R$ 10.000,00 (dez mil reais), em cada caso de desrespeito
à decisão judicial.
E, para que dêem cumprimento, pede sejam intimados do teor
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
da decisão o Excelentíssimo Secretário Estadual de Saúde e o Senhor Ministro
da Saúde, sob pena de responsabilização penal e por improbidade
administrativa.
Por fim, vale citar a jurisprudência:
Ementa:
“PROCESSUAL CIVIL. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA.
PORTADORES DO HIV. MEDICAÇÃO NECESSÁRIA.
I-
OS PORTADORES DO HIV (VÍRUS DA
IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA) E DOENTES
DE AIDS (SÍNDROME DA IMUNODEFICIÊNCIA
ADQUIRIDA) RECEBERÃO GRATUITAMENTE
DO SUS TODA MEDICAÇÃO NECESSÁRIA A
SEU TRATAMENTO (ART. 1 DA LEI 9.313/96).
II-
A UNIÃO É RESPONSÁVEL PELA COMRA E
DISTRIBUIÇÃO
DE
MEDICAMENTOS
NECESSÁRIOS AO TRATAMENTO DA AIDS E,
INTEGRANDO
O
SUS,
TAMBÉM
É
RESPONSÁVEL PELO CONTROLE, COMBATE
E TRATAMENTO DA DOENÇA
III-
AGRAVO IMPROVIDO”(TRF. 2 ª Região, AG
processo 99.02.11462-8/RJ, 2a. Turma, relator Juiz
Castro Aguiar, v.u, DJ15/07/1999) .
“PROCESSUAL
CIVIL.
ADMINISTRATIVO.
ANTECIPAÇÃO DA TUTELA. AQUISIÇÃO E
ENTREGA DE MEDICAMENTOS PARA TRATAMENTO
DA AIDS. LEGITIMIDADE DA UNIÃO. PRAZO PARA
CUMPRIMENTO. REQUISITOS DA TUTELA.
1. Como a matéria questionada no instrumento confundese com aquela suscitada no âmbito do regimental, pode
ser de pronto enfrentada, pelo princípio da celeridade
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
processual.
2. Segundo ART-196 da Carta Política, a legitimidade da
União é indiscutível.
3. Ainda que não requerido prazo para cumprimento da
determinação judicial, a decisão que o impõe não é
‘extra petita’.
4. Presentes os requisitos da antecipação da tutela, pois
a fumaça do bom direito evidencia-se na obrigação
constitucional assumida pelo Estado de assegurar o
direito à vida, à saúde; o perito na demora está
evidenciado na gravidade da doença.
5. O resgate de valores sagrados para a ordem jurídica
deve ser efetivo e não inoperante.
6. Questões preliminares rejeitadas. Agravo improvido.
Prejudicado o regimental.”(TRF, 4 ª Região, Processo
97.04.57545-9/SC, 4 ª Turma, DJ 11/02/1998)
Ementa:
“PROCESSUAL
CIVIL.
MEDIDA
CAUTELAR.
LIMINAR DE CARÁTER SATISFATIVO. SAÚDE
PÚBLICA. DIREITO DO CIDADÃO E DEVER DO
ESTADO. DECISÃO ASSENTADA EM DISPOSIÇÕES
CONSTITUCIONAIS. RECURSO ESPECIAL NÃO
CONHECIDO.
É vedada, como princípio geral, a concessão de liminar
de caráter eminentemente satisfativo, excepcionando-se
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
as hipóteses de providências máximas urgentes.
Quando, porém, a decisão recorrida se fundamentou em
preceitos da Constituição Federal, não se pode sequer
tomar conhecimento do recurso extremo”(STJ, 2 ª
Turma, Resp 109473/RS, Rel. Min. Helio Mosimann, DJ
06/09/1999, pg 00069)
Ementa:
“MEDICAMENTO-AQUISIÇÃO-LIMINAR
SATISFATIVA- DIREITO À VIDA.
É VEDADA A CONCESSÃO DE LIINAR CONTRA
ATOS DO PODER PÚBLICO NO PROCEDIMENTO
CAUTELAR, QUE ESGOTE, NO TODO OU EM
PARTE, O OBJETO DA AÇÃO.
ENTRETANTO, TRATANDO-SE DE AQUISIÇÃO DE
MEDICAMENTO (CERIDASE) INDISPENSÁVEL A
SOBREVIVÊNCIA DA PARTE, O QUE ESTARIA
SENDO NEGADO PELO PODER PÚBLICO SERIA O
DIREITO À VIDA. RECURSO IMPROVIDO” (STJ, 1 ª
Turma, Resp 97912/RS, rel. Garcia Vieira, DJ
09/03/1999, pg 00014)
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DOS PEDIDOS
Concedida a tutela antecipada, determinando à União Federal a
aquisição e fornecimento imediato dos medicamentos e ao Estado de São Paulo
a sua distribuição, requer o Ministério Público Federal a Vossa Excelência:
I.
a citação dos réus, para querendo, contestar a ação;
II.
a procedência da ação, condenando a UNIÃO, o
ESTADO DE SÃO PAULO e o MUNICÍPIO DE SÃO
PAULO, de forma solidária, ao fornecimento gratuito e
ininterrupto, através das respectivas redes de atendimento,
a todos portadores do vírus HIV e a todos doentes de
AIDS, de todos e quaisquer medicamentos necessários ao
seu tratamento, independentemente de ser importado ou
não constar na lista oficial do Ministério da Saúde;
III.
a condenação da UNIÃO, do ESTADO DE SÃO PAULO
e do MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, de forma solidária,
a publicar a sentença definitiva a ser proferida nos
presentes autos nos jornais de maior circulação em âmbito
nacional, estadual e local, em três dias alternados, sendo
um deles domingo, sem, contudo, fazer menção à nome ou
identificação dos portadores do HIV constantes dos autos;
IV.
com esteio no art. 12, da Lei n o. 7.347/85, a cominação de
multa diária para o caso de descumprimento da liminar
deferida;
V.
a decretação de segredo de justiça dos presentes autos,
visando preservar o direito à intimidade dos portadores do
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
HIV, autorizada apenas a divulgação dos atos decisórios,
após a devida omissão do nome dos pacientes.
Embora já tenha apresentado o Ministério Público Federal prova
pré-constituída do alegado, protesta, outrossim, pela produção de outras, por
todos os meios em direito admitidos.
Dá-se à causa o valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais).
São Paulo, 19 de novembro de 2001.
ADRIANA DA SILVA FERNANDES
Procuradora da República
MARLON ALBERTO WEICHERT
Procurador da República
*Nesta petição inicial foram utilizados argumentos constantes da ação civil pública n o. 2001.72.01.002827-3,
proposta pelo Exmo. Procurador da República, Dr. Davy Lincoln Rocha em face da União Federal, Estado de
Santa Catarina e Município de Joinville, em curso perante a 2 a. Vara Federal de Joinville.
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