1 6º COLÓQUIO INTERNACIONAL MARX E ENGELS GT 3 – Marxismo e Ciências Humanas GEOGRAFIA ECONÔMICA E MARXISMO EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO Leandro Dias de Oliveira Doutorando em Geografia – UNICAMP, Professor do IFRJ – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro. [email protected] Guilherme Ribeiro Doutor em Geografia – UFF, Professor da UFF – Universidade Federal Fluminense (Campos dos Goytacazes). [email protected] 1. Introdução: Este artigo é uma reflexão sobre os novos caminhos teórico-metodológicos da Geografia Econômica, a partir de um balanço de seu complexo quadro interpretativoconceitual. Com um passado marcado pela coleta e descrição de dados dispostos segundo um catálogo que operava em prol da legitimação da ideologia industrial, a Geografia Econômica vive atualmente um momento privilegiado pelo amadurecimento do diálogo com o marxismo e pelas novas dinâmicas territoriais que emergiram com o processo de globalização. Contudo, este diálogo é tenso, devido ao antagonismo entre as vertentes liberal e crítica, e as vicissitudes que acometem os questionamentos da centralidade do trabalho e da luta de classes. A metodologia deste trabalho se dividiu em três momentos: primeiramente, nos dedicamos ao estudo da geografia econômica em seu período clássico; em seguida, fizemos uma breve análise da relação entre espaço e economia no marxismo; por fim, nossas atenções se voltaram para duas atuais reflexões deste campo da Geografia: a defesa da centralidade do trabalho no processo produtivo e a (re) valorização econômica da natureza, com base em nossa experiência docente. 2. A Escola Francesa de Geografia e a Relevância das Questões Econômicas Primeiramente, há que se destacar os vínculos existentes entre o conhecimento geográfico e os interesses econômicos, quer estejam ligados à burguesia liberal industrial, quer à empresa colonial capitaneada pelo Estado-Nação (no caso, o Império Francês). No decorrer da segunda metade do século XIX, as questões colocadas à sociedade francesa acabaram por favorecer o campo geográfico. A necessidade de conhecer detalhadamente o território nacional e suas regiões, a obtenção de informações sobre as potencialidades econômicas das colônias e mesmo uma atração por países “longínquos” — tidos como exóticos pelo imaginário europeu — atraíam um público diverso em torno da Geografia — que, naquela altura, era tão plural quanto seus interlocutores. Nota-se, então, como a formação de um campo científico é um processo eminentemente social e, com efeito, como 2 as idéias e noções que emergem deste campo estão diretamente ligadas aos interesses econômicos, políticos e ideológicos de determinados grupos. É assim que a III República, traumatizada pela perda da Alsácia e Lorena e abalada pela Comuna de Paris, promoverá uma ampla reforma educacional. Cultuando a pátria, a ciência e a laicidade, o ensino deveria estabelecer o civismo e a harmonia entre as classes. Propunha-se um “exame coletivo de consciência” e, nesta esfera, a “educação geográfica da nação deveria ser repensada”1. Dois foram os protagonistas desta operação: Émile Levasseur e Auguste Himly, ambos historiadores. Se é verdade que o ensino de Geografia já vinha sofrendo melhoras desde a segunda metade do século XIX — incorporando, p.ex., a observação da realidade através do “método intuitivo”, partindo da aldeia ao departamento até chegar à França como um todo —, os dois percorreram o território francês a fim de conhecer suas reais condições. Mas os papéis da Geografia não se circunscreviam às demandas republicanas por patriotismo. As reformas educacionais souberam abordá-las a partir de outros ângulos. Segundo Catherine Rhein, um deles residia na Economia. No seio de suas preocupações com o progresso civilizatório e o crescimento econômico, a doutrina liberal — vigente no ambiente francês do século XIX — enfatizava, p.ex., a influência do clima e a exploração dos recursos naturais como dados a serem pesquisados. Admitindo o território como força produtiva, o planejamento da agricultura, comércio e indústria passava, necessariamente, por um amplo levantamento de suas especificidades. Nesta trilha, sendo Levasseur um dos mais eminentes representantes da economia política liberal, o programa escolar de 1872 concebia a Geografia como matéria-prima da riqueza e porta de entrada para os estudos econômicos. Em 1883, o título de sua lição inaugural no curso de história e geografia econômicas no Collège de France — Da importância da geografia física para o estudo das forças produtivas das nações — ratifica o potencial econômico do conhecimento geográfico, assim como sublinha a centralidade da geografia física como chave explicativa da geografia política e econômica2. Assim, após a derrota para a Prússia, a reconstrução econômica tornara-se matéria de urgência. Com a Geografia ocupando uma das linhas-de-frente desta empreitada, o grande ímã desta campanha é o Colonialismo. Se Berdoulay parece ter razão em alertar-nos acerca do perigo de igualar a geografia colonial à geografia econômica, na medida em que aquela atendia anseios tanto de natureza econômica quanto política3, é indubitável que a doutrina colonial conseguiu reunir a ambos. A propósito, aqui entra em cena um ator de peso: as Sociedades de Geografia. Independente da assertiva de Rhein de que a institucionalização e o consequente progresso da Geografia universitária francesa dar-se-ão sem o apoio direto daquelas Sociedades e do movimento liberal pró-colonial — na medida em que estas possuem uma concepção de Geografia como algo prático e utilitário, voltada para questões comerciais, algo que seria banido das instituições acadêmicas e universitárias —, Capel, Berdoulay e Broc são unânimes em sustentar exatamente o contrário. Para este último, “é em grande parte sob pressão das Sociedades de Geografia, reunidas anualmente em seus congressos nacionais, que os poderes públicos serão induzidos a organizar um verdadeiro ensino superior de Geografia”4. Depois de 1870, sensíveis às reformas de Levasseur, a 1 Numa Broc. “L’établissement de la géographie en France: diffusion, institutions, projets (1870-1890)”. Annales de Géographie, 459, sept/oct.,1974, p. 547. 2 Catherine Rhein. « La Géographie, discipline scolaire et/ou science sociale? (1860-1920)”. Revue française de Sociologie. Paris, XXIII, 1982, p.228-232. 3 Vincent Berdolay. La formation de l’école française de géographie. Paris, Éditions du CTHS, 1995, p. 75. 4 Broc, op. cit., p. 552. 3 Sociedade de Geografia de Paris torna-se mais dinâmica, sobretudo no tocante à questão comercial. Divulgando a causa colonial, espalhar-se-ão pelas províncias: Lyon (1873), Bordeaux (1874), Marseille (1876), Montpellier, Rochefort, Oran (1878), Nancy, Rouen (1879), Alger, Bourg, Dijon, Douai, Lille, Lorient, Nantes, Toulouse, Tours... A despeito da tentativa de uma “operação historiográfica”5 a exorcizar o discurso geográfico de seu conteúdo político — “mácula” atribuída, sobretudo, aos trabalhos “imperialistas” do alemão Friedrich Ratzel —, os geógrafos franceses influenciaram e foram influenciados pelo Colonialismo. Se Pierre Foncin parece ser seu militante mais engajado, Vidal de la Blache, p.ex., atua em várias frentes: favorável às pretensões do Comitê da África Francesa, faz conferências sobre as colônias e sua revista é um espaço privilegiado de atuação em prol da expansão colonial, “à qual nossa época ligou a sua glória”6. O outro fundador dos Annales de Géographie, Marcel Dubois, beneficia-se da política imperialista de Jules Ferry e torna-se o primeiro a ocupar a cadeira de geografia colonial na Sorbonne, em 1885. Em seu Dictionnaire de Géographie, Albert Demangeon (1872-1940) recobre o verbete Colonisation de um sentido histórico, como se quisesse naturalizar e renovar o esforço francês de levar a civilização a países novos e bárbaros. Não hesita em escrever que a principal motivação é a necessidade da indústria moderna em obter matérias-primas e mercados compradores ao redor da metrópole e dos Estados civilizados e protecionistas. Declara que a colonização se dá através da esfera de influência fixada pelos Estados, direito conquistado através das viagens de exploração, por missionários ou apenas segundo suas conveniências. Porém, a efetivação da autoridade carece, seguidas vezes, da intervenção de operações militares, “vez por outra atroz, mas sempre custosa”7. Enfim, a natureza da Geografia estava sendo profundamente alterada. Passando da descrição regional do globo ao estudo das relações homem-meio revestida de um conteúdo econômico, parece lícito lembrar que houve um avanço no tratamento da matéria geográfica e que — como destaca Broc — Levasseur teve papel essencial na modernização do ensino de Geografia8. Todavia, observando criticamente a totalidade da reforma escolar, Rhein nota que a Geografia atuou como um “Cavalo de Tróia” atendendo às demandas liberais — mais preocupadas em difundir suas doutrinas que desenvolver uma ciência geográfica9. 3. Marxismo e Geografia Econômica A tarefa é relacionar a abordagem materialista histórica e dialética e a ciência geográfica, destacando a riqueza espacial implícita no pensamento de Marx e seu aprofundamento pelo filósofo francês Henri Lefebvre e pelo geógrafo britânico David Harvey. Explicitamente, há aqui uma tomada de posição: o referencial marxista foi fundamental para o impulso dos estudos de Geografia Econômica. Sobre Marx, a perspectiva da luta de classes examinando temas como propriedade privada, trabalho assalariado, produção de mercadorias, mais-valia, separação cidadecampo, natureza como recurso, desenvolvimento desigual e expansão do capitalismo em escala global estão presentes em seus trabalhos mais importantes. O Manifesto, p.ex., 5 Michel de Certeau. A Escrita da História. 2ª ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2006, p. 65-119. Paul Vidal de La Blache. Princípios de Geografia Humana. Lisboa, Cosmos, 1954, p. 46. 7 Albert Demangeon. Dictionnaire de Géographie. Paris, Armand Colin, 1907, p. 193. 8 Broc, op. cit., p. 549. 9 Rhein, op. cit., p. 228-233. 6 4 ressalta a dissolução das bases nacionais da indústria, o cosmopolitismo da produção e do consumo e mesmo a criação de uma literatura universal, como se estivesse a analisar as principais características da Globalização de nossos dias10. Por sua vez, A Ideologia Alemã explora a indissociabilidade do homem junto à natureza, metabolismo que se transformou em dicotomia para que a natureza como fonte primacial de lucro fosse consumada no seio do modo de produção capitalista. A natureza passa a ser algo exterior ao homem (e, por conseguinte, o espaço geográfico!), abrindo caminho para sua exploração pela burguesia11. A propriedade comunal torna-se privada, o camponês é apartado da terra, o campo subordina-se à cidade, os burgos são antípodas aos subúrbios. Existe uma espacialidade típica do capitalismo. Não é por outra razão que Marx observa os liames entre industrialização e urbanização, atentando para o aumento do preço dos aluguéis nas cidades e o agrupamento de trabalhadores em um mesmo espaço (o fabril e o urbano). Sensível aos problemas geográficos, percebeu a ocorrência do processo de valorização do espaço, conforme podemos ler em uma expressiva passagem d’O Capital: Já a situação habitacional é fácil de entender. Qualquer observador desprevenido percebe que, quanto maior a centralização dos meios de produção, tanto maior o amontoamento correspondente de trabalhadores no mesmo espaço e, portanto, quanto mais rápida a acumulação capitalista, tanto mais miseráveis as habitações dos trabalhadores. Os ‘melhoramentos’ urbanos que acompanham o progresso da riqueza, a demolição de quarteirões mal construídos, a construção de palácios para bancos, lojas etc., desalojam evidentemente os pobres, expulsandoos para refúgios cada vez piores e mais abarrotados de gente.12 A interpretação é inequívoca: ele vinculava diretamente o espaço geográfico com a política habitacional e a economia capitalista, entendendo que o primeiro era manipulado pela classe dominante. Um instrumento político de dominação, erigido com o objetivo de garantir a reprodução das relações de produção. Portanto, poucos motivos justificam o predomínio do historicismo no pensamento crítico, um historicismo cego para a Geografia, relegando o espaço geográfico a uma posição secundária e recôndita no seio do próprio marxismo13. O esforço por reverter tal situação encontra na reflexão de Henri Lefebvre a pedra angular. Sua leitura do marxismo passa, inequivocamente, pelo entendimento de três aspectos: (i) o capitalismo vem se apropriando do espaço desde sua gênese; (ii) o processo de urbanização se afigura como revolucionário; (iii) o processo de produção do espaço assume um papel central na produção e reprodução do modo de produção capitalista, isto é, como condição de sobrevivência do mesmo14. Eles estão ligados à sua preocupação com as mudanças históricas nas condições da exploração capitalista. Durante o século XIX e o início do XX, a produção do espaço era restrita, limitada pelos poderes do mercado e pelo Estado. Na extração da mais-valia absoluta, a organização do tempo era muito mais relevante do que a do espaço. Já no capitalismo contemporâneo, a ênfase se dá cada vez 10 Karl Marx, Friedrich Engels. “O Manifesto Comunista”. Textos – Vol. 3. São Paulo, Ed. Sociais, s/d, p. 25. Karl Marx, Friedrich Engels. A Ideologia Alemã. São Paulo, Martins Fontes, 2001. 12 Karl Marx. O Capital: Crítica da Economia Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1975, p. 764. 13 Derek Gregory. “Teoria social e Geografia Humana” In: D. Gregory, R. Martin, G. Smith (orgs.). Geografia Humana: Sociedade, Espaço e Ciência Social. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1996. E também: Edward Soja. Geografias Pós-Modernas. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993. 14 Henri Lefebvre. La Pensée Marxiste et la Ville. Paris, Casterman, 1972; e também, do mesmo autor: Espacio y Politica. Barcelona, Ediciones Península, 1976; e O Direito à Cidade. São Paulo, Centauro, 2001. 11 5 mais na extração da mais-valia relativa através, p.ex., das transferências geográficas de valor e do desenvolvimento geograficamente desigual. Voltado obsessivamente para o consumo, o capitalismo cria incessante espaços abstratos onde impera o valor de troca — em detrimento do espaço vivido, que possui apenas valor de uso15. Assim, ergue-se um shopping onde antes era uma praça, um estacionamento põe fim a um campo de várzea. A impessoalidade, o não-contato e a permuta de mercadorias substituem a rua, o encontro e a troca de experiências. Afirma que “O espaço e a política do espaço ‘exprimem’ as relações sociais, mas reagem sobre elas”16. Em Lefebvre, as preocupações se manifestam de forma assaz plural: quando trata da classe trabalhadora, não se preocupa apenas com a exploração de sua força-de-trabalho, mas também com sua vida cotidiana, produto da alienação dado pela explosão do valor de troca; quando faz menção ao espaço, transita com facilidade tanto no plano epistemológico, criticando o espaço newtoniano-cartesiano vazio e desprovido de conteúdo social, quanto no plano da prática, reconhecendo a dimensão ideológica do planejamento racional e estratégico sobre o mesmo; ao refletir sobre a ideologia, capta com muita sensibilidade não apenas o caráter classista dos discursos dominantes, mas simultaneamente uma ideologia urbanística voltada para a neutralização do poder da manipulação do espaço, isto é, uma ideologia contida nos objetos materiais, onde espaços vividos cedem lugar aos espaços abstratos que garantem a reprodução das relações de produção. Sobre David Harvey, pode-se dizer que se apresenta como um geógrafo singular devido, principalmente, à sua inquieta trajetória intelectual: encantado com a filosofia positivista num primeiro momento, quando a Geografia inicia um processo de repúdio à linguagem lógico-matemática-acrítica, começando a se servir do materialismo marxista como referencial teórico de seus escritos, ele se mostrará um dos ícones desse movimento de renovação indo, destarte, contra a corrente de pensamento que ele mesmo abraçara. Sua posição de destaque no interior de uma geografia voltada para o materialismo merece que façamos aqui um breve resgate de suas principais concepções acerca do tratamento dado ao espaço e ao marxismo. Embora Derek Gregory declare que essa transição não tenha sido tão revolucionária assim, encontrando um positivismo residual em seus primeiros escritos “marxistas”17, hoje é consenso que Harvey se apresente como um dos mais importantes geógrafos marxistas contemporâneos, na medida em que, após ter apreendido e realizado as conexões essenciais entre o marxismo e a Geografia, admite uma séria lacuna a ser preenchida nas obras de Marx. Percebendo que as teorias sociais caracterizavam-se por uma ênfase secundária no espaço, seu intuito é o de espacializar o materialismo marxista, dando continuidade aos esforços pioneiros de Lefebvre de engendrar um materialismo histórico e geográfico. Todavia, a relação estabelecida entre Harvey e o espaço não é tão estreita como pode parecer num primeiro momento. O percurso desse autor até a definitiva espacialização de seu pensamento tem sido permeado por uma série de idas e vindas. Em seus primeiros encontros com o marxismo, sua postura era a de marxificação da Geografia, ou seja, de uma apropriação desmedida dos conceitos e categorias pertencentes ao marxismo; como este estava limitado a uma visão historicista dos fatos, ele acabou por reproduzir tal restrição, liderando esta marxificação. Tais fatos levaram Soja a defini-lo, nesse sentido, 15 Henri Lefebvre. La Production de l'espace. Paris, Anthropos, 2000. Henri Lefebvre. A Revolução Urbana. Belo Horizonte, Ed. da UFMG, 2002, p 26-27. 17 Gregory, op. cit, 1993, p. 103. 16 6 como “ambivalente”, além de ter sido meio que repreendido por alguns de seus melhores alunos em especial Richard Walker e Neil Smith18. Mas este último autor o considera o precursor na análise do espaço criado... como o princípio supremo da organização geográfica”19. Realizar uma reflexão sobre a Geografia Marxista sem sermos remetidos ao pensamento de David Harvey torna-se praticamente impossível. Para nós, sua maior contribuição situa-se entre a espacialização do marxismo e a consideração de que as mudanças das práticas econômicas, culturais e ideológicas, engendradas a partir da década de 1970 particularmente a relação modernidade e “pós-modernidade” e a transição do fordismo para o regime do que chama de “acumulação flexível” impõem, simultaneamente, uma mudança qualitativa em nossas concepções de tempo e espaço, e é nessa imposição que se encontram algumas das principais pistas para a construção de um materialismo histórico e geográfico20. 4. A Geografia Econômica em Tempos de Globalização Com o advento da globalização, a importância da geografia econômica tem sido evidenciada, seja no que se refere à valorização produtiva dos territórios, à mobilidade do capital e, ainda, no papel do trabalho humano. Quanto à primeira questão, embora haja um discurso que procura minimizar o papel do Estado-Nação como principal gestor do território, sabemos que isto não condiz com a realidade: a retórica neoliberal é incapaz de obscurecer, por exemplo, a força dos Estados Unidos e dos países centrais na geopolítica mundial, nem tampouco os documentos de organismos internacionais, que inevitavelmente evocam o papel jurídico e institucional do Estado na promoção das mais variadas políticas públicas. Além disso, o território continua sendo não somente a base imprescindível das atividades econômicas e da vida social em geral, mas temas como o desenvolvimento sustentável e a guerra dos lugares revelam o potencial inscrito nas riquezas naturais, nos tecnopólos de algumas cidades contemporâneas, nos novos modelos de urbanização (flexível, turística) e na fluidez das redes técnico-comerciais que se impõem como necessidade do capitalismo atual. Acerca da mobilidade do capital, se historicamente a geografia econômica assemelhava-se ao inventário dos fixos (tipos de indústrias, produções agrícolas, tamanho da mão-de-obra, vocação do território), em tempos de globalização há uma aceleração das mudanças, que gera a necessidade de apreender os movimentos fugazes e efêmeros das redes concretas e virtuais das finanças e negócios em escala mundial. Se o padrão fordista pressupunha uma rigidez locacional quanto à organização do espaço de circulação, nota-se atualmente uma superposição de lugares, atores e setores que permite combinações “imprevisíveis” como a deslocalização industrial21, a obsolescência da tradicional 18 Soja, op. cit, 1993, p. 68-75. Neil Smith. Desenvolvimento Desigual: natureza, capital e a produção de espaço. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil,1988, p. 139. 20 David Harvey. Condição Pós-Moderna. São Paulo, Loyola, 1992, e também, do mesmo autor: Produção Capitalista do Espaço. São Paulo, Annablume, 2005. 21 Immanuel Wallersteiin. “Mundialização ou Era de Transição? Uma Visão de Longo Prazo da Trajetória do Sistema-Mundo”. F. Chesnais, F Duménil, G. Leéy, I. Wallerstein. Uma Nova Fase do Capitalismo? São Paulo, Xamã, 2003 19 7 setorização econômica trinitária22 a transnacionalização e a diversificação do capital – observáveis na instabilidade constante da esfera financeira dos nossos dias, com destaque para a ciranda especulativa e sua debilidade concreta. Por fim, ainda que a aparência do modo de produção capitalista possa sugerir um decréscimo do trabalho e sua dissolução frente ao aparato técnico-científico, poucas coisas são tão indiscutíveis quanto à centralidade do mundo do trabalho23. A fragmentação industrial após a década de 70 que, por sua vez, conduziu a alterações na própria organização classista do proletariado, enxugando quantitativamente a mão-de-obra e sua participação sindical, não significa de maneira alguma a irrelevância qualitativa do trabalho humano. Ao contrário: este processo criou no trabalhador um caráter multifuncional que, no entanto, não foi acompanhado de benefícios diretos. Este “novo” trabalhador, ao ter sua importância questionada pela capacidade sedutora da técnica, como se a mesma fosse resolver todos os problemas da humanidade24, observa a diminuição de seus salários, a disputa brutal por postos de trabalho, as demissões em massa, a “falência” das garantias trabalhistas e mesmo um controle direto de seu tempo livre. Cabe ressaltar que, a despeito do que a ideologia neoliberal conclama, insistindo em incorporar o trabalho dentro do relicário conceitual das ciências sociais, não é possível conceber uma geografia econômica independente da ação humana realizada por intermédio do trabalho, tanto físico quanto intelectual. 5. Considerações Finais Ao mesmo tempo, há um discurso que prega o fim da geografia e do espaço como um todo. Há que se enfrentar esta questão, que é, antes de tudo, uma questão política. Como docentes, encaramos o ensino de geografia, sobretudo, como uma práxis que começa na sala de aula, mas que não se encerra na mesma. Problematizar temas como o desenvolvimento desigual e combinado, a reestruturação produtiva do capital, o bloqueio econômico a Cuba, a exclusão da África após séculos de exploração colonial, a globalização e a fragmentação do mundo contemporâneo fazem parte de uma estratégia de luta e contestação frente àquilo que Milton Santos chamou de pensamento único25. 22 José Eli da Veiga. “A Face Territorial do Desenvolvimento”. In: Encontro Nacional de Economia, 27.º, 1999, Anais. Belém, p. 1301-1318. 23 Ricardo Antunes. Os Sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a Afirmação e a Negação do Trabalho. 4. Ed. São Paulo, Boitempo Editorial, 2001. 24 Jurgens Habermas. “Técnica e ciência enquanto ‘ideologia”. In: Benjamin. Habermas. Horkheimer. Adorno. Seleção de Textos. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 25 Milton Santos. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro/São Paulo, Record, 2000.