GRAUS DE INTEGRAÇÃO DE CLÁUSULAS COM VERBOS COGNITIVOS E VOLITIVOS 1- INTRODUÇÃO O trabalho consiste em verificar estágios de gramaticalização nos períodos compostos por construções com os verbos achar, ver, saber, mandar, querer e deixar com cláusulas completivas. Os itens achar, ver e saber são verbos que apresentam basicamente sentido cognitivo, enquanto os itens mandar, querer e deixar apresentam sentidos relacionados à vontade de um referente-sujeito. Desses grupos semânticos, esses foram os verbos mais freqüentes na amostra do Rio de Janeiro, que serviu de piloto para a tese. A linha teórica adotada é a do funcionalismo americano, que tem como um dos objetivos estudar a atuação do Princípio Universal da Iconicidade. Segundo esse princípio, as estruturas lingüísticas são determinadas pelas funções comunicativas do discurso. Essa linha teórica também aborda a gramaticalização, processo através do qual um item lexical passa a gramatical ou uma construção gramatical passa a ser ainda mais gramatical. A gramaticalização é um modelo de estudo de aspectos diacrônicos de uma língua. No entanto, é possível detectar, através dos princípios que regem a gramaticalização, estágios concomitantes no momento sincrônico. Além de focalizar itens do léxico e da gramática, o modelo da gramaticalização também aborda os fenômenos que ocorrem entre as cláusulas. No presente trabalho, foram obtidas escalas que permitem estabelecer graus de integração de cláusulas e verificar estágios de gramaticalização para um mesmo item lexical e para itens lexicais distintos. Também foi possível observar quais os usos em estágio inicial de gramaticalização (verbos plenos) e quais os usos em estágios mais avançados (verbos com vários traços de auxiliar). 9 Esta introdução está dividida em duas partes: a primeira parte trata da definição do fenômeno estudado e a segunda trata da classificação semântica adotada para os verbos analisados. Optou-se por apresentar a classificação dos verbos logo na Introdução, devido às dificuldades encontradas para a classificação dos mesmos e para a escolha de termos adequados, que não fossem ambíguos dentro da literatura lingüística. 1.1- Definição do fenômeno: descrição, objetivos e hipóteses O trabalho consiste no estudo de verbos transitivos do português seguidos de cláusulas completivas, sejam essas cláusulas substantivas desenvolvidas, sejam reduzidas. Dentre o grupo de verbos transitivos do português, focalizamse os verbos com sentido volitivo – no caso, os verbos querer, deixar e mandar e os verbos com sentido cognitivo – nesta tese, os verbos achar, saber e ver. Os verbos volitivos têm um sentido básico predominantemente ligado à vontade do referente-sujeito. Podem ter também um sentido manipulativo (ainda assim ligado à vontade, a um aspecto subjetivo, emotivo), quando o sujeito da cláusula complemento não é idêntico ao da principal, como ocorre no exemplo (1): nesse exemplo, os professores (sujeito da cláusula principal) mandam o referente-sujeito da cláusula subordinada realizar a ação de fazer pesquisa. Outros sentidos podem derivar-se do sentido original emotivo. (1) Eu acho minha escola legal tem vários banheiros inspetoras boas professores bons eles fazem de tudo para melhorar a nota mandam fazer pesquiza e um monte de trabalho para melhorar a nota. (CAR43, O,R, Esc) Outros tipos estruturais e semânticos que também estão sendo analisados são: (2) se você quiser escrever alguma coisa nessa folha pra sua colega ... é só escrever (NIL28, P,R) (3) “... minha avó não deixava que ela fosse pros bailes se divertir”(CRI26, R, R) 10 (4) acho isso... mas... olha... elas deixaram de falar comigo... por causa dessa bobeira... né? ontem mesmo a professora perguntou por que o motivo da... fofoca... q (ROS78, R?, R) No exemplo (2), o verbo querer está com complemento reduzido e o sentido manipulativo é muito brando (mas o controle do que é expresso na segunda parte da estrutura é maior), uma vez que o referente-sujeito da primeira cláusula é igual ao da segunda. No exemplo (3), o verbo deixar tem o sentido de ‘permitir’ e é manipulativo e em (4), com a gramaticalização, passa a ter um grau de auxiliaridade maior e expressa um aspecto terminativo. Os verbos cognitivos são aqueles que apresentam sentidos ligados à cognição, codificando certeza, incerteza, crença, percepção, conhecimento ou constatação como nos exemplos a seguir: (5) tinha que pegar um táxi... acho que andava por uns... uns... cinco... seis quilômetros de uma estradinha... chão batido... curvas assim... estreitas... aí tu chegava lá... tinhas que atravessar (VAN7, D, G) (6) Tem dia que eu passo horas e horas conversando sobre os estudos. Hoje mesmo eu passei a manhã inteira conversando sobre os estudos. Agora você vê porque eu gosto tanto de conversar sobre a escola. (JUL1,O,L,Esc) (7) porque eu era menina ... que ele queria um menino ... aí de/ mas depois que ele soube ... que a outra mulher ganhou... um menino ... aí ele quis ficar comigo (ANA 40, R, R) A linha teórica utilizada é a da Lingüística Funcionalista americana que tem como principais representantes Givón (1990 e 1995), Heine ( 1991 e 1993), Thompson (Hopper & Thompson, 1980), Hopper (1987 e 1991), dentre outros. No Brasil, essa Lingüística funcionalista é representada por Naro (1980, 1981, 1986), Votre (1992 e 1999), Rios de Oliveira (1994, 1996 e 2000), Martelotta (1994 e 2000) Martelotta, Votre e Cezario (1996), Furtado (1989 e 1996), Paredes da Silva (1988), Braga (1999) dentre outros. Os trabalhos de Givón (1990 e 1995) e de Heine (1993) apresentam os pressupostos teóricos mais importantes para esta tese. Givón contribui com as idéias a cerca de integração de cláusulas, demonstrando que há graus diferentes 11 de integração entre verbo e complemento, decorrente sobretudo das características semânticas do verbo da cláusula principal. Apresenta várias categorias que permitem verificar diferenças de usos de um mesmo verbo e diferenças de integração de cláusulas com diversos verbos no inglês atual. Heine mostra que cada língua apresenta, num dado momento, uma série de estágios de gramaticalização de verbos. Seu trabalho motivou esta tese no sentido de verificação dos estágios presentes no português atual e na verificação do aumento de freqüência de um dado estágio (cada verbo tem usos que ilustram mais de um estágio de gramaticalização) de um verbo. Os dados foram levantados de diferentes fontes do corpus Discurso e Gramática (corpus D & G): o corpus da cidade do Rio de janeiro, o corpus da cidade de Niterói, o da cidade de Juiz de Fora, o da cidade de Natal e o da cidade de Rio Grande. Essas fontes têm a mesma estrutura, possibilitando a comparação do uso de verbos entre os canais oral e escrito e entre diferentes tipos de textos: narrativa pessoal, narrativa recontada, relato de opinião, descrição e relato de procedimento. Para o português escrito contemporâneo, também foram coletados dados de cem editoriais do Jornal do Brasil. O uso do corpus JB foi feito para se tentar equiparar as versões oral e escrita, porque, no Corpus D & G, os textos escritos, principalmente os produzidos pelas crianças, são muito menores do que os orais. O objetivo de se levantarem dados de diferentes corpora foi principalmente o de se coletar o maior número de dados, uma vez que determinados verbos ou determinados usos de um verbo são relativamente raros. Também foi analisada uma pequena amostra do português medieval composta pelas 100 primeiras páginas do livro O Orto do Esposo. A hipótese geral desta tese é a de que o domínio da complementação verbal envolve graus de integração entre a cláusula principal e a cláusula subordinada. A integração é entendida como a incorporação ou fusão dos elementos morfossintáticos e semânticos de duas cláusulas. Tal integração pode ser tão forte que, num determinado estágio de uma língua, os estudiosos tenham dificuldades para classificar um dado verbo como transitivo ou auxiliar. Como 12 exemplos de tal dificuldade, podem ser citados os verbos poder, dever e querer, que têm provocado muita discussão quanto à natureza categorial (verbo pleno ou auxiliar). Tomou-se como um pressuposto a afirmação recorrente de que o auxiliar, num dado estágio da língua, era um verbo pleno e com o passar do tempo perdeu o seu conteúdo referencial, concreto e sofreu gramaticalização. A gramaticalização é entendida aqui como um processo de mudança lingüística que consiste tanto na passagem de um item lexical para um item gramatical quanto na passagem de uma construção gramatical para uma forma ainda mais gramatical (cf. Kurylowiscz, 1975; Heine et alii, 1991; Hopper e Traugott, 1993; Martelotta, Votre & Cezario, 1996). Um item, ao gramaticalizar-se, não apresenta apenas perda de aspectos semânticos, mas também apresenta ganho de noções gramaticais, como tempo, modo e aspecto. Admite-se também que o verbo auxiliar é uma categoria intermediária e está inserida num contínuo de gramaticalização que vai do verbo pleno até o uso do item como morfema flexional (como, por exemplo, o verbo haver, num de seus usos, formou os morfemas de futuro do português como em amar hei > amarei). Nesse contínuo, são identificados alguns estágios nos quais se poderiam inserir os verbos cognitivos e volitivos da língua portuguesa. Dessa forma, partese da hipótese de que há graus diferentes de integração sintático-semânticopragmática entre um verbo e seu complemento1. Essa hipótese divide-se em três partes: (a) verbos de grupos semânticos diferentes (verbos cognitivos X verbos volitivos) devem estar em diferentes estágios de gramaticalização; (b) verbos como deixar, mandar e querer, todos do mesmo grupo (verbos volitivos), devem estar em pontos diferentes do contínuo de gramaticalização; 1 O termo complemento será usado neste trabalho como um rótulo, uma parte da terminologia gramatical, englobando construções diferentes: SNs, cláusulas finitas, cláusulas reduzidas e os verbos chamados principais de locuções como “Tenho feito”, “Tentou sair”. 13 (c) um item verbal como, por exemplo, o verbo deixar tem diferentes usos no português sincrônico e cada uso pode representar um estágio de gramaticalização, como nos exemplos (3) e (4). Segundo Bolinger (1980), para se iniciar a gramaticalização, no âmbito da estrutura, basta que um verbo transitivo comece a ser usado com um complemento não-finito. Para Givón (1990; 1995), a gramaticalização começa antes disso: o uso do verbo subordinado, por exemplo, no modo subjuntivo já é um indício de que a integração entre as cláusulas está mais forte e o processo de gramaticalização se iniciou. A presente tese traz à tona a discussão a respeito da lista dos verbos auxiliares em português. De um lado, há estudiosos, como Said Ali (1957, 1964a e 1964b), que apresentam uma lista grande de verbos auxiliares, incluindo itens como querer, deixar e fazer, além dos mais consensuais ter, ser e haver. Por outro lado, há estudiosos, como Eunice Pontes (1973), que restringem a lista ao máximo a ponto de considerar apenas o verbo ter (e o uso variante haver) como auxiliar. Numa abordagem de caráter mais formal, Eunice Pontes procura abandonar o critério histórico para conceituar o verbo auxiliar. Constata-se que a abordagem histórica de autores como Said Ali e Mattoso Câmara Jr. é a mesma que os funcionalistas enfatizam: o auxiliar é uma forma provinda de um verbo pleno em que se iniciou (em alguns de seus usos) um processo de apagamento do seu conteúdo semântico (referencial). A visão assumida no momento a respeito da problemática que se verifica entre considerar um verbo pleno ou auxiliar envolve a idéia de contínuo e a noção de protótipo. Dessa forma, há o protótipo de auxiliar, que é o verbo ter, o protótipo de verbo pleno (vários deles como comprar, vender e exibir) e uma série de verbos em níveis intermediários. O auxiliar prototípico nada mais é do que o uso de um verbo mais gramaticalizado. O uso do termo “verbo auxiliar” ajuda na produção da metalinguagem, mas a realidade lingüística indica que mesmo o protótipo é apenas uma fase da 14 gramaticalização, que poderá ser superada por uma nova fase mais integrada à raiz do verbo principal, com a passagem do verbo auxiliar a morfema flexional. Esse último estágio não foi detectado no uso dos seis verbos estudados aqui. Para se determinarem os estágios de gramaticalização, deve-se atentar para os contextos de usos dos verbos e para fatores semânticos, pragmáticos e morfossintáticos que expressem a integração de duas cláusulas e a auxiliaridade de um dos verbos. Nesta pesquisa, está sendo utilizado um conjunto de categorias selecionadas de vários trabalhos sobre integração de cláusulas e sobre auxiliaridade. Algumas dessas categorias são “Sujeito idêntico/sujeito diferente”, “Tempo verbal” e “Controle”. Aproveitou-se parte da lista de categorias reunidas em Votre (1992) e as categorias controladas por Givón (1990). O capítulo destinado aos resultados mostra que se faz uso aqui de critérios quantitativos para atestar que certos verbos estão mais integrados à cláusula subordinada do que outros e para se comprovar também que um determinado uso de um verbo pode estar mais gramaticalizado do que outro uso. Os principais objetivos desta pesquisa são: (a) comparar, em termos estruturais e semânticos, os usos dos verbos volitivos com os usos dos verbos cognitivos; (b) estabelecer graus de integração de cláusulas e identificar os estágios de integração sintático-semântica nos usos dos verbos transitivos mais freqüentes nos corpora analisados: identificar os estágios de integração de um mesmo item verbal (por exemplo os usos do verbo deixar) e identificar os graus de integração entre itens verbais diferentes (querer, deixar, mandar, etc.); (c) comparar o emprego desses verbos em diferentes tipos de texto, a saber: narrativa experiencial, narrativa recontada, relato de opinião, descrição e relato de procedimento; (d) comparar as modalidades oral e escrita com relação aos usos de verbos transitivos seguidos de cláusula completiva; 15 (e) e testar o princípio da unidirecionalidade, relacionando-o com o Princípio Universal da Iconicidade (cf. cap. 3). As hipóteses gerais postuladas para a compreensão do fenômeno são: (a) os diferentes estágios de gramaticalização de um mesmo item lexical podem refletir diferenças semânticas no uso dos verbos (formas diferentes codificam funções diferentes); (b) diferentes modalidades podem ser derivadas de estruturas lexicais que expressam vontade ou cognição; (c) as estruturas com maior integração morfossintática são decorrentes de uma maior integração no plano conceptual; (d) e o processo de gramaticalização segue, em termos gerais, uma direção semântica, do concreto para o abstrato; e uma direção sintática, do menos integrado para o mais integrado. As hipóteses específicas relacionadas ao processo de auxiliaridade são: (a) o verbo auxiliar é um elemento presente no contínuo unidirecional que vai do verbo pleno até um morfema flexional; (b) é possível estabelecer os graus de auxiliaridade e de integração de cláusulas; (c) cada uso apresenta um conjunto de traços que o aproximam ou o afastam de uma categoria prototípica (de verbo pleno ou auxiliar). A seguir há a classificação de verbos transitivos adotada para a realização dessa tese. 1.2- Classificação dos verbos transitivos com complemento oracional Há diversas classificações semânticas para os verbos transitivos e os auxiliares. As classificações nem sempre agrupam os verbos da mesma forma. Desde o início da presente pesquisa, um dos problemas enfrentados foi o da escolha da terminologia para classificar os verbos. 16 A classificação adotada aqui é basicamente a utilizada em Givón (1990 e 1995), mas, como há diferenças fundamentais nos usos dos verbos transitivos do português e do inglês (como será mostrado no capítulo 3), fez-se uma adaptação da proposta givoneana. Também foi aproveitada a classificação presente em gramáticas latinas. Primeiramente, faz-se necessário apresentar as principais diferenças sintáticas encontradas. Os verbos transitivos seguidos de um complemento oracional podem ter esse complemento numa das seguintes formas: a) complemento justaposto, introduzido por um pronome (interrogação indireta): (8) comecei a ver como o ser humano tenta sujar o que ele tem de mais bonito, que é o amor (GIS3, N, L, Esc) (9) Você sabe como é quarto de menino. (JOR4, D, R,Esc) b) complemento introduzido por uma conjunção integrante e com verbo na forma finita: (10) eu acho que quando a gente cola a gente se prejudica (GIO4, P,G) (11) aí seu sei que minha tia se manchucou todinha (ROS3, N, L) c) complemento com verbo na forma não-finita com sujeito diferente: (12) a gente vê os coelhos correndo... isso é uma praia (VLA4, D, L) (13) aí ela deixou fazer a segunda chamada (ISA16, N, R) d) complemento com verbo numa forma não-finita com sujeito idêntico ao do primeiro verbo: (14) a macumba... propriamente dita... não deixa de ser uma forma de atingir a Deus ... (CIV2, O, L) (15) eu quero dar opinião sobre ... o voto brasileiro (VAN35, O, R) Propõe-se que a estrutura (b) seja mais gramaticalizada do que a estrutura (a), porque a conjunção que não exerce qualquer função na clausula subordinada, já a estrutura justaposta tem o pronome exercendo alguma função dentro de sua cláusula. Esta cláusula é mais independente, podendo ser apresentada numa interrogação indireta sem alterar a forma. A estrutura (c) é mais gramaticalizada 17 do que a estrutura (b), porque ocorre uma integração maior entre a cláusula principal e a subordinada, como pode ser visto pelo uso de termos da oração em comum (como o vocábulo me, que pode ser analisado como objeto do verbo deixar ou como sujeito do verbo sair, sendo codificado morfologicamente com um pronome oblíquo – ou seja, como objeto). A estrutura (d), por sua vez, é mais gramaticalizada do que a estrutura (c), porque a integração semântica e morfossintática é maior, havendo inclusive obrigação de se apagar o sujeito da cláusula subordinada. A discussão tradicional a respeito de verbo auxiliar recai sobretudo na estrutura (d), que, para certos autores, como Said Ali, contém locuções e não casos de subordinação. Como nesta tese se trabalha com a hipótese do contínuo de gramaticalização e com o pressuposto de que todo verbo auxiliar provém de um verbo pleno, os exemplos citados em (d) são casos provindos de uma estrutura “Verbo + complemento”. Partindo-se de uma orientação funcionalista, postula-se que essas diferenças sintáticas sejam decorrentes de diferenças semânticas e pragmáticas. No momento, não será feita uma relação entre forma e conteúdo, mas é conveniente adiantar que a classificação semântica apresentada a seguir terá como propósito principal explicar o contínuo de gramaticalização das estruturas citadas nos parágrafos anteriores desta seção. Semanticamente, os verbos transitivos podem classificar-se em: a) Cognitivos ou Proposicionais (relacionados à modalidade epistêmica): quando expressam percepção, cognição, atitude mental ou articulação verbal. Exemplos: pensar, achar , dizer, afirmar, etc. Seus complementos expressam uma proposição que pode ser estado ou ação (como nos exemplos 10 e 11). b) Volitivos (relacionados à modalidade da vontade): quando expressam atitude subjetiva de vontade ou desejo (exemplo 2). O sujeito desse tipo de verbo pode expressar manipulação, quando o complemento expressa um evento desempenhado ou a ser desempenhado pelo manipulado, como no exemplo (1) e (3). São exemplos de verbos volitivos os itens querer, desejar, deixar, pedir e 18 exigir. Dentre os verbos estudados aqui, os verbos mandar e deixar são também chamados causativos. c) Modais (relacionados à modalidade de obrigação ou necessidade) ou Aspectuais: quando expressam incepção, terminação, persistência, sucesso, esforço, intenção, obrigação, habilidade, dentre outras noções de modalidade (de obrigação ou de necessidade) ou noções de aspecto. Exemplos: começar, terminar, poder, dever, etc. Exige-se que haja identidade de sujeito e apagamento do sujeito da segunda parte da estrutura como em “Ele começou a (∅) estudar”. “Maria pode (∅)sair agora?”. Outra característica desse tipo de verbo é o fato de as duas partes da estrutura referirem-se a um só tempo. Os verbos querer e deixar têm usos como modais/aspectuais (exemplos 2 e 4). Os verbos modais/aspectuais são os mais gramaticalizados da lista. Derivam-se muitas das vezes dos verbos cognitivos ou dos volitivos. Um exemplo é o verbo saber, que é cognitivo em “Sei que ele virá” e torna-se modal em “Sei fazer boneca de pano”. Outro exemplo é o verbo querer, que é volitivomanipulativo em “Eu queria que você me descrevesse um local” e é modal com o sentido apenas volitivo em “Ele quis descrever o local de trabalho”. Outras subdivisões poderiam ser postuladas para se obter uma classificação semântica. No entanto, para esse trabalho essa classificação tripartida é assumida como ponto de partida. Nesta tese, os verbos volitivos mais freqüentes também têm usos mais gramaticalizados como modais/aspectuais. Os sentidos de desejo, de vontade, de manipulação da vontade de um referente permanecem, mas o referente manipulado não pode ser mais expresso morfologicamente, há uma fusão de cláusulas que se referem a um só referente-sujeito e geralmente a um só tempo. O princípio subjacente a todo esse processo de integração de cláusulas é o Princípio Universal da Iconicidade, segundo o qual a codificação morfossintática é determinada por fatores semânticos, pragmáticos e cognitivos. O Princípio da Iconicidade atua para iniciar a integração de cláusulas que antes codificavam dois eventos e que passam a codificar apenas uma unidade semântica. Em 19 conseqüência, morfossintaticamente, as duas cláusulas passam a ser codificadas como uma cláusula simples (verbo auxiliar seguido de verbo principal). Mas, se se observar uma dada fase da língua, o Princípio da Iconicidade parece deixar de atuar quando uma estrutura se torna “rotineira”, se torna parte da gramática e passa a ser aprendida pelas crianças como uma estrutura pronta, aparentemente estável e fixa. Nesse momento, tem-se a impressão de que a língua é regida pelo princípio da arbitrariedade. No entanto, sob o ponto de vista histórico, há um fluxo lingüístico contínuo, que vem a ser o discurso, de onde emerge a gramática. Dessa forma, a mudança não pára, os estágios do contínuo de gramaticalização são sobrepostos e formas lexicais e clausais começam a ser modificadas, devido a fatores semânticos e pragmáticos. Fatores puramente estruturais podem também atuar (como o uso repetido de dois itens justapostos), sem que um fator semântico-pragmático esteja envolvido, como ocorre com as composições por aglutinação. Esta tese compõe-se de 7 capítulos. O capítulo 2 faz uma revisão da literatura tradicional e formalista a respeito de verbos transitivos e auxiliares. O capítulo 3 trata dos fundamentos teóricos utilizados, apresentando as postulações principais da teoria funcionalista americana e do chamado paradigma da gramaticalização. O capítulo também delimita o que se entende por integração de cláusulas e gramaticalização de verbos a partir das contribuições dos trabalhos de Givón (1990), Hopper & Traugott (1993), e Heine (1993). O capítulo 4 apresenta a descrição do corpus, a metodologia adotada e as categorias controladas. O capítulo 5 traz a análise dos verbos cognitivos e volitivos e os resultados mais importantes para estabelecer os graus de integração de cláusulas e determinar estágios de gramaticalização a partir de usos do português contemporâneo. Também relaciona a proposta de graus de integração com os pressupostos gerais do funcionalismo através de uma pequena abordagem da história da subordinação completiva. Os capítulos 6 e 7 apresentam respectivamente as conclusões e a bibliografia. 20 Em termos específicos, esta pesquisa deverá contribuir para o aprofundamento de questões relativas à morfossintaxe e à semântica da língua portuguesa e poderá contribuir para análises futuras através da utilização da metodologia proposta para se estabelecerem graus de integração. Ainda contribuirá para aprofundar os estudos sobre subordinação completiva em diferentes tipos de textos. Em termos gerais, a pesquisa deverá contribuir para testar o princípio da iconicidade no que tange à integração de cláusulas e ao uso de determinados itens verbais, assim como permitirá observar a atuação de vários processos relativos à gramaticalização de verbos. 21 2- CONTRIBUIÇÕES DA GRAMÁTICA TRADICIONAL E DE ESTUDOS FORMALISTAS Na revisão da literatura, são destacadas as contribuições dos gramáticos da língua portuguesa a acerca da questão que envolve os verbos transitivos e os auxiliares. Além da visão tradicional, há um resumo das idéias do modelo formalista, com ênfase nós trabalhos de Pontes (1973), Lobato (1975), Perini (1977) e Santos (1984). Há diversos trabalhos acerca da questão do verbo auxiliar na linha tradicional e gerativa. Além dos que são resenhados aqui, pode-se obter muitas outras referências no livro de Pontes (1973) e na apostila de Macedo (1977). Esse último trabalho apresenta análises do tratamento do auxiliar no português e em outras línguas. A visão funcionalista será apresentada apenas no próximo capítulo. 2.1- Locução verbal Essa discussão a respeito do tema “Locução verbal” está presente em Pontes (1973). O primeiro problema encontrado no estudo de verbos auxiliares e de locuções verbais é a falta de definição rigorosa dos termos usados e, conseqüentemente, o emprego, por diversos autores, de termos idênticos com significados diferentes. Alguns autores, como Mattoso Câmara, designam locução verbal (LV) ou conjugação perifrástica, como sendo qualquer seqüência verbal com certa coesão interna, de tal modo que funcione como um verbo simples. Outros, como Gladstone Chaves de Melo (1968), separam os tempos compostos da LV (este também é o procedimento da NGB). A razão para a separação é a de que os tempos compostos fazem parte da conjugação verbal, têm cada qual seu nome (pretérito perfeito composto, futuro do pretérito composto) dentro da conjugação; enquanto as locuções verbais nascem das necessidade de 22 expressões complexas para representar diferentes aspectos verbais. Said Ali critica essa divisão, dizendo que os gramáticos decidiram dar nomes especiais às locuções com ter e haver e depois disseram que esses verbos fazem parte da conjugação normal, enquanto muitos outros verbos não fariam parte dessa conjugação porque não receberam denominações especiais. Para ele, a diferença entre “Tenho estudado” e “Estou estudando” é aspectual e não modo-temporal. Portanto, Said Ali não distingue tempo composto de locução verbal. Comparando o português com outras línguas e utilizando-se dos critérios semântico e funcional, o autor classifica os verbos em verbos nocionais e verbos relacionais. Segundo o autor, aqueles empregam-se com função predicativa (como chorar, girar, beber), com um sentido concreto e esses empregam-se combinados com um adjetivo para constituir o predicado, ou com alguma forma nominal de um verbo nocional. Auxiliar é, dessa forma, caracterizado como o verbo relacional combinado com o infinitivo, o gerúndio ou o particípio. Semanticamente, os verbos auxiliares “são aqueles cuja acepção própria se apaga ou modifica por virem combinados com outro termo originalmente anexo, ao qual transferem, ou com o qual dividem, o ofício de predicado da oração.” (1964a:158). A caracterização semântica do verbo auxiliar é baseada numa visão histórica. O autor classifica os verbos auxiliares em modais (como poder, saber, dever, ter de, querer, etc.), causativos (como fazer, mandar, deixar, etc.) e determinativos ou acurativos2 (como começar a , estar a, continuar a, acabar de, etc.). Ainda há outros verbos sem classificação: desejar, ousar, vir e gostar de . Para Said Ali, compete ao auxiliar denotar, dentre outros aspectos, aqueles que indicam (a) início da ação (começar a, pôr-se a), (b) duração (continuar, estar), (c) vontade ou desejo (como querer, desejar), etc. Todas as orações a seguir são períodos simples, portanto: “Quero sair.”; “Deixe Maria sair.”; “Continuou a fazer o exercício.”; “Acabou de fazer o exercício.”; e “ Tornou a 2 Indicam início, repetição, desenvolvimento ou término da ação. 23 estudar.”. Para ele, o verbo querer sempre é auxiliar, mesmo quando aparece sozinho. Neste caso, o verbo principal estaria omitido: a frase “Ele quer dinheiro” corresponde à “Ele quer ter dinheiro”. O uso do verbo ter como auxiliar é explicado pelo princípio da gramaticalização, embora a noção de gramaticalização ainda não é conceptualizada em termos de uma linha teórica para explicar os processos de mudança lingüística. Assim Said Ali se pronuncia a respeito do auxiliar ter: “Desta concepção primitiva de dois atos diferentes, expressados pelo verbo ter e o outro pelo anexo predicativo participial, originou-se uma forma verbal composta pelo esquecimento ou apagamento da noção concreta de ter ao mesmo tempo que vinha avultando o adjunto como conceito precípuo. Passou-se assim da justaposição de formas verbais simples, independentes e de igual valia, à subordinação de um elemento ao outro, considerando-se como verbo principal o particípio e ter como simples auxiliar.” (1964 a:160) A visão histórica também é a mesma em Eduardo Carlos Pereira (1909), segundo o qual “Na tendência analytica das linguas romanicas, os verbos ter e haver em conexão com o particípio dos verbos esvaziaram-se pouco a pouco de sentido, tornando-se meros verbos auxiliares ou abstratos, e indicando apenas relação de tempo. O particípio torna-se então invariável, e surgem os tempos compostos estranhos ao latim clássico.” (1901, XXI) Celso Cunha (1966), dentre outros, utiliza o critério semântico (e histórico) para detectar o auxiliar. Segundo ele, “Principal é o verbo que numa frase conserva sua significação pleno. Auxiliar é definido, em contraste, como aquele que perdeu seu significado próprio, ao se juntar com outro verbo”(Cunha, 1966: 26 e 27) Para Câmara Jr. (1984), o auxiliar é um verbo que sofreu gramaticalização. No seu dicionário encontramos a seguinte explicação para o termo gramaticalização: “Processo que consiste em transformar vocábulos lexicais ou palavras (v.) providas de semantema, em vocábulos gramaticais (v. 24 vocábulos). É em princípio a origem diacrônica de todos estes vocábulos.” Portanto, o verbo que guarda a sua significação não é auxiliar. De acordo com Mattoso Câmara, a LV é caracterizada como “reunião de dois vocábulos que constituem uma unidade significativa para determinada função”. A locução é entendida como sendo um sintagma, em que um elemento determinante cria um elo de subordinação com outro elemento, que é o termo determinado. O trabalho de Mattoso ainda demonstra que o verbo é considerado um item do léxico (por ser dotado de semantema) enquanto o verbo auxiliar é um item da gramática ( constituindo-se como um morfema propriamente dito). A lista de auxiliares diverge muito de autor para autor. Os verbos poder e querer, por exemplo, são considerados como auxiliares por Said Ali enquanto outros os tratam como verbos transitivos diretos. Para Oiticica (1919), o verbo querer em “Queríamos colher flores” pode ser interpretado como auxiliar ou pleno, dependendo da interpretação. A frase pode ser resposta das perguntas: O que vocês queriam fazer? (Queríamos/ colher flores). O que vocês queriam colher? (Queríamos colher/flores). No primeiro caso, o verbo querer não é auxiliar, enquanto no segundo caso já o é. Os auxiliares menos problemáticos são ter e haver (formam os tempos compostos) e ser (forma a voz passiva) . Com menos consenso, põe-se na lista o verbo estar. Os auxiliares causativos (incluindo aí os sensitivos como sentir, ver e ouvir) são os que aparecem menos nas listas dos estudiosos. Há incoerência no seu tratamento. Bechara (1963) afirma que a locução verbal é a combinação das diversas formas de um verbo auxiliar com o infinitivo. Ele denomina os verbos causativos/sensitivos de auxiliares, mas no capítulo destinado ao período composto por subordinação, eles figuram como verbos principais de orações subordinadas substantivas objetivas. Além do critério semântico, os estudiosos muitas vezes utilizam a técnica da transformação do segundo elemento em oração finita. Se puder transformá-lo, ambos os verbos são plenos (critério sintático), como nos exemplos a seguir em 25 que os verbos destacados devem ser concebidos, pelo critério citado, como verbo pleno e verbo auxiliar, respectivamente: (1 ) Prometo sair. Teste: Prometo que sairei. (2) Estou saindo. Teste: * Estou que sairei. 2.2- A gramática gerativa Esta seção é destinada à apresentação das principais idéias relativas a verbos transitivos e auxiliares no português em obras representativas da corrente gerativista. 2.2.1- Critérios para determinação do auxiliar em português Pontes (1973) procura responder a duas perguntas fundamentais: (a) Quais são os verbos auxiliares do português? (b) Quais são os critérios para distingui-los dos verbos plenos? Como foi dito, a autora deixa de lado a distinção tradicional estabelecida entre locução verbal e tempo composto, tratando ambos os casos como locução verbal. Seguindo uma orientação formalista, ela analisa os verbos auxiliares a partir de critérios fundamentalmente sintáticos que se aplicam à fase atual do língua. O critério semântico e histórico que define o auxiliar como um verbo pleno que perdeu sua acepção semântica principal foi deixado de lado. Para Pontes, o auxiliar tem papel apenas de indicar tempo ou aspecto, não devendo apresentar qualquer significação. Além disso, muitas vezes um verbo considerado como auxiliar não tem perda de significação. É o que ocorre com verbos como começar e acabar de (em “Comecei a estudar” e “Acabar de estudar”) que mantêm, segundo Pontes, os mesmos sentidos quando plenos. 26 Para a autora, o problema não é semântico, mas sintático. Por isso, apresenta uma série de critérios para detectar o verbo auxiliar, que assim se reescreve: Aux → Tempo (Modo) (Aspecto). A sua conclusão é a de que apenas o verbo ter (com a variante mais formal haver) pode ser considerado verbo auxiliar em português, porque tem um comportamento sintático muito diferente dos demais verbos, além de ter um significado próprio. Eis algumas das características desse verbo citadas no trabalho de Pontes: a- Ter tem uma posição fixa na seqüência verbal. “Pode preceder estar-ndo, mas não pode segui-lo; deve seguir o modal, não pode precedê-lo; seu lugar é entre os dois. Assim as seguintes seqüências não são permitidas”(p. 50): (3 ) a- * está tendo comprado. b- * tem devido comprar. b- O particípio de ter é invariável (exemplo 4), diferentemente do que ocorre com outros verbos ditos auxiliares (exemplo 5): ( 4 )Os meninos têm estudado. ( 5 ) Os meninos ficaram aborrecidos./ Foram roubados. / Estão amarrados. c - O advérbio modifica toda a LV com ter (exemplo 6), o que não ocorre com os causativos, dentre outros tipos (exemplo 7): (6 ) João tem estudado muito ultimamente. (7 ) João mandou você ir à escola todos os dias. A locução “todos os dias” modifica apenas o verbo ir. d- Para se constituir uma locução verbal, não se pode usar o advérbio de negação não entre o verbo auxiliar e o verbo principal: (8) João não tem estudado. *João tem não estudado. Mas o advérbio pode ser inserido em: 27 (9)Eu quero não ter que ficar aqui./ Eu gosto de não ter que levantar cedo. / Ele começou a não querer mais estudar./ Ele pode não ser simpático, mas é solidário. Em (9), o advérbio separa os dois verbos de cada frase, que não devem, segundo a autora, constituir locuções. e - A restrição de seleção do sujeito vigora entre este e o verbo principal. O auxiliar não pode interferir. Se uma frase como “A pedra quebrou” é gramatical, também o é “ A pedra tinha quebrado”; se outra frase como “* A pedra leu.” é agramatical, também o é “*A pedra tinha lido”, uma vez que o auxiliar não interfere na seleção do sujeito. A frase “A pedra quebrou” é gramatical, mas, com os possíveis auxiliares deixar, mandar, gostar, desejar, etc., deixa de ser: (10) A pedra * mandou quebrar/*deixou quebrar/*gosta de quebrar. Porém outros verbos como começar, poder e dever também não interferem na seleção.: (11) A pedra começou a quebrar/pode quebrar/deve quebrar. f - O verbo ter combina-se com qualquer verbo, inclusive impessoal (exemplo 12), o que, segundo a autora, não corre com os verbos mandar, querer e gostar (exemplo 13): (12 )Tinha chovido/ Tinha havido aula. (13 )* Mandou chover./ * Quer chover. / * Gosta de chover Mas há verbos como ter: (14 )Começou a chover./ Pode chover/ Deve chover. Portanto, os verbos causativos e sensitivos não são considerados por Eunice Pontes verbos auxiliares por vários motivos: não há identidade de sujeito, cada oração pode ser modificada por um advérbio, esses verbos selecionam sujeitos independentes do verbo da oração seguinte. 28 Dentre os modais, a autora dá destaque à análise do verbo querer. De acordo com Bechara, a função do modal é determinar com mais rigor o modo como se realiza ação verbal. (Cf. Bechara, 1963). Mas o verbo querer, ao lado de uma forma verbo-nominal, não muda o seu sentido, combinando-se com sujeito animado: "Se querer fosse um auxiliar e o segundo verbo o principal, a locução formada com os dois verbos teria de poder ocorrer nos mesmos contextos em que ocorresse o verbo simples. "(Pontes, 1973:4) Também não aparece com verbo impessoal (*Quer chover); e uma estrutura como "Queríamos colher rosas" não pode ser apassivada:: (15 ) *Rosas querem ser colhidas por nós. O auxiliar não pode impedir a passivização da oração. Ela conclui dizendo que a frase "Eu quero passear" tem a estrutura profunda (EP) " Eu quero/eu passear”, enquanto "Quero que você passeie" tem a EP "Eu quero/ você passear". O verbo saber é outro verbo descrito. Tem traços dos verbos sensitivos e dos modais, como nas frases: (16 ) Maria sabe agradar as pessoas. (17 ) Maria sabe que agrada as pessoas. A autora diferencia as duas frases, dizendo que apenas na primeira pode-se colocar a palavra como depois do verbo saber; e que somente na segunda frase o sentido do verbo é de 'perceber', 'ter conhecimento'. Para ela, o sentido de (18) parece igual ao de saber com infinitivo (16); e o de (19) parece igual ao de saber mais oração finita (exemplo 17): (18 ) Maria sabe de muita coisa. (19 ) Maria sabe muita coisa. Mas o verbo saber com infinitivo não é considerado auxiliar, porque, diferentemente de ter, pode aparecer no imperativo. Além disso, também apresenta restrições seletivas e não se combina com verbos impessoais (*”Saber chover”). 29 Para Pontes, a diferença entre os dois usos do saber tem que ser marcada no léxico, sendo este um verbo ambíguo. São dois usos de verbo transitivo. Ainda é importante destacar que, para ela, existe, no caso dos chamados auxiliares modais (como querer, desejar, prometer, etc.), uma distribuição complementar: quando o sujeito da segunda oração é diferente do da primeira, usa-se a oração com que; e quando o sujeito é o mesmo, usa-se o infinitivo. (20) Desejo sair./ Desejo que ele saia. Há alguns problemas na análise de Eunice Pontes quando se observa a língua do ponto de vista do uso e não se analisam apenas exemplos criados e prototípicos de cada verbo. Como será mostrado no capítulo 5, há usos dos verbos querer e deixar em que tais verbos combinam-se com diversos tipos de verbos e podem ter sujeitos inanimados também: (21) aí ele tentou tirar aquelas marcas... aí não queria sair do chão... ele tampou até com terra mas não queria sair do chão... aí chegou na noite... não choveu não (JAN19, R, J) (22) caminhão devia está na/ lá dentro com uma:: com uma quantidade de ar grande... querendo soltar né? dentro da do do baú lá do coisa do caminhão dele... aí ele pegou e:: estava soldando embaixo do caminhão... (JOS11, R, J) O verbo querer usado com verbo impessoal é construído com o auxiliar estar. Com sujeito inanimado também é comum o uso do auxiliar. Eunice Pontes também afirma que o auxiliar não deve interferir na restrição de seleção de sujeito (cf. categoria exposta na letra e acima). O verbo querer, em determinados usos, também não interfere na restrição do sujeito: (23) A pedra quebrou. / A pedra estava querendo quebrar. (24) * A pedra leu. / * A pedra está querendo ler. A autora cita o uso de querer com o verbo estar, mas o despreza na comparação com o verbo ter. Numa nota, ela o compara a outros verbos analisados como tendo uma oração como sujeito. Um exemplo é a construção “ter de”: uma frase como “João tem de sair” apresenta, segundo Pontes, a estrutura profunda João sair/ ter de. 30 O verbo deixar no uso “deixar de mais infinitivo”, assim como o auxiliar ter, não aceita a presença do advérbio de negação entre ele e o verbo principal. Esse verbo é causativo quando tem sujeito diferente na subordinada, mas muda seu sentido quando tem sujeito idêntico. Neste caso, passa a ter sentido de ‘parar’/ ‘terminar. O verbo parece não impedir a voz passiva: (25) a- Maria deixou de colher rosas. Teste- (?)As rosas deixaram de ser colhidas por Maria. Lúcia Lobato (1975) também apresenta vários critérios para delimitar a categoria verbo auxiliar em português. Seus critérios são praticamente os mesmos dos de Eunice Pontes, incluindo ainda o que é denominado pronominalização3. São diversos testes que colocariam ou não um verbo na lista dos auxiliares. Nenhum verbo atende a todos os critérios, mas os verbos que passam na maioria dos testes de auxiliaridade são ter, haver, ser e estar. Lobato considera importante o critério semântico que define o auxiliar como um elemento que tem traços semânticos modificados. A autora apresenta um série de afirmações ligadas à idéia de gramaticalização e conclui que a dificuldade de se trabalhar com o tema é decorrente do fato de estar aí envolvida uma graduação. Diz que há vários graus de perdas semânticas quando um verbo é seguido de forma não-finita, mostra a importância da freqüência (cf. capítulo 3 desta tese) na determinação do auxiliar; diz que há “complexos mais ligados” e “complexos menos ligados”, referindo-se ao que aqui se denomina ‘Graus de integração’; e se refere a essa expressão: “Essa procura de testes que ajudem a determinar de maneira formal os diferentes graus de integração das seqüências verbais é evidentemente válida, e, mesmo intuitivamente, percebe-se que há uma diferença entre os liames que unem “Tinha feito isso” e os que unem “Prometeu fazer isso” (p. 50). Ela ainda chama a atenção para o fato de “a integração entre auxiliante e auxiliado ser uma questão de grau sobre um eixo contínuo” (p. 51). 3 Quando a pronominalização é possível, há duas orações. As sentenças “Ela sabe ter razão” e “Ela crê ter razão” aceitam o teste: “Ela o sabe” e “Ela o crê”. Mas o verbo poder (numa das acepções) não aceita: “Ela pode chegar a qualquer momento”/ * Ela o pode”. Portanto, neste teste poder é auxiliar. Esse é apenas um dos testes ligados à pronominalização descritos no trabalho de Lúcia Lobato. 31 A linha funcionalista a partir da década de 80 vem apresentando trabalhos acerca de verbos, tendo como parâmetro as noções de contínuo e de integração. Portanto, a autora antecipa muitas das idéias que serão trabalhadas nas décadas seguintes. A lista sugerida por Lobato apresenta quatro verbos auxiliares; a proposta de Pontes é a de que só há um verbo auxiliar em português. A lista é reduzida a zero na concepção de Lemle (1982), que não dá um tratamento diferenciado aos auxiliares e não distingue verbo de auxiliar. Ela defende a idéia de que a locução formada pelo verbo ter (que forma os chamados tempos compostos) deve ser interpretada como verbo seguido de um advérbio deadjetival. Uma sentença como “Ela tem sofrido” equivale a “Ela recebe [descontado os impostos”] ou “Ela fala [enrolado]”. A autora também postula que os verbos no gerúndio devem ser concebidos como advérbios, como nos exemplos: (26) Ela está fazendo muitas viagens. (27) Ele ficou resmungando. Esse tratamento é dado a partir da análise de construções como “Ele fala dormindo”, em que está claro que o primeiro verbo não seja auxiliar. O verbo ir, que poderia ser considerado um auxiliar, tem, segundo Lemle, a mesma descrição que qualquer outro verbo seguido de infinitivo com sujeito obrigatoriamente apagado. Na presente tese, considera-se o verbo ter um auxiliar prototípico, devido ao aglomerado de traços que o caracterizam (os traços correspondem às descrições feitas por Pontes para esse verbo). A análise escalar proposta nesta tese será feita a partir dessa idéia de aglomerado de traços, que pode aproximar ou afastar um verbo da categoria do auxiliar. 2.2.2- Construções com infinitivo Perini (1977) trata dos períodos com infinitivo na função de complemento ou de sujeito. Aqui será destacado apenas o tratamento relativo a orações completivas. Dentre os seus objetivos, o autor ressalta a análise dos 32 complementizadores, a configuração sintática das orações subordinadas factivas em oposição às não-factivas e as condições gerais sobre a aplicação das transformações. A oposição entre subordinada factiva e subordinada não-factiva é ilustrada nos exemplos abaixo: (28) Maria ignora que está chovendo. Teste: * Maria ignora que está chovendo, mas não está. A oração “que está chovendo” traz uma informação factual e a sua negação através de outra oração leva a uma construção agramatical. (29) Maria diz que está chovendo. Teste: Maria diz que está chovendo, mas não está. A oração “que está chovendo” representa uma informação não-factual. A partir dessa oposição, Perini analisa o verbo ver (também objeto de estudo da presente tese). Os exemplos são do autor: (30) a- Vi João correr. b- Vi que João corria. Essa frases não são sinônimas: Em (a), ver significa ‘enxergar (com os olhos)’, ao passo que em (b) significa mais ou menos ‘compreender’. Além disso, a oração subordinada de (a) é não-factiva, enquanto a de (b) é factiva. Pode-se ver isso, por exemplo, negando o verbo principal (dado que a negação do verbo principal não afeta a factividade de um complemento): a- não vi João correr. b- não vi que João corria. (b) ainda pressupõe que João corria, ao contrário de (a), que não pressupõe nada a respeito. Quem diz (a) pode ou não acreditar que João de fato corria; quem diz (b) acredita que ele corria. (Perini, 1977:48-49). Para Perini, há dois verbos ver: ver1 com o sentido de ‘enxergar’ (percepção sensorial) e ver2 com o sentido de ‘compreender’ (percepção intelectual). O primeiro é feito com complemento com Inf (infinitivo) e o segundo com o complementizador que. O autor apresenta a árvore para o verbo ver1: 33 O1 SN Eu AUX [pass SV V SN O2 Perf] ver João SN João SV correr A regra denominada Supressão de Sujeito Idêntico elimina o sujeito de O2. A inserção de que está bloqueada, porque só se aplica a sentenças com sujeito. A inserção de Inf dá-se sempre quando as duas orações têm o mesmo tempo. A inserção de que dá-se quando as orações têm tempos diferentes. No caso, a EP de ver2 é igual a da árvore dada, sendo que o SV de O1 é composto apenas de V e O2. Como O2 tem sujeito, insere-se que. Perini analisa o verbo querer e diz que, em algumas situações, é possível separar o tempo desse verbo do tempo do verbo da subordinada: (31) Jacinto ontem queria partir dentro de 15 dias. (32) Jacinto ontem queria partir dali a duas horas. O autor não atribui qualquer diferença semântica entre ‘querer + que’ e ‘querer + Inf’: (33) Nós queremos dormir. (34) Nós queremos que você durma. Para ele, assim como para Pontes, há uma distribuição complementar na sintaxe. A frase “Nós queremos dormir” tem a seguinte EP: [Nós querer [nós dormir]]. A regra de Supressão de Sujeito Idêntico elimina a segunda ocorrência do sujeito. Quando o sujeito é idêntico, insere-se Inf; quando o sujeito é diferente, insere-se que e o modo subjuntivo. No capítulo 5 desta tese, será mostrado que no discurso real ocorre, embora muito raramente, sujeito idêntico com “querer que”. E essa produção também é encontrada no português medieval. 34 Um outro verbo analisado por Perini é mandar (também pesquisado aqui). Esse verbo tem complemento factivo e apresenta dois significados diferentes: um quando tem complemento finito; outro quando tem complemento no infinitivo: (35) O reitor mandou Lúcia subir no mastro. (36) O reitor mandou que Lúcia subisse no mastro. No primeiro caso, a ordem tem de ser direta, enquanto, no segundo exemplo, a ordem pode ter sido indireta: o reitor pode ter pedido para outra pessoa dar a ordem a Lúcia ou pode ter posto a ordem num cartaz. Perini comprova a sua hipótese dizendo que o sujeito de (35) só pode ser humano, enquanto o sujeito de (36) pode ser ou não humano. O uso de um sujeito nãohumano numa construção com Inf é considerada agramatical (exemplo 37), mas numa construção com que não o é (exemplo 38). (37) *O reitor mandou os livros ficarem no porão. (38) O reitor mandou que os livros ficassem no porão. Com isso, o autor propõe uma EP igual a de ver/enxergar para ‘mandar+Inf” e uma análise semelhante a de ver/entender para ‘mandar+que’. Em outras palavras, haveria, para Perini, duas entradas lexicais para o verbo ver e duas para o verbo mandar. Santos (1984), numa pesquisa também sobre o infinitivo, refuta a análise segundo a qual há uma distribuição complementar no uso de alguns verbos. As principais questões levantadas pela autora são: a- como se caracteriza o infinitivo?; b- quando a combinação de verbos é ou não locução verbal?; c- como explicar o fato de certos verbos como querer não admitirem ter oração subordinada desenvolvida com sujeito idêntico, enquanto outros como prometer já admitem tal construção?: (39) Quero que *eu vou. (40) Prometo que vou. 35 O infinitivo apresenta-se como uma forma dupla, capaz de desempenhar funções ora de verbo, ora de substantivo. Há também um contexto sintático específico. Para a autora, o infinitivo é uma outra categoria, outra classe, por combinar traços nominais e verbais. O infinitivo tem o traço [+nominal], porque normalmente pode ser precedido de um determinante ou pode se apresentar num Sprep, como em “O andar”, “Este saber” “O poder de voz” e “Gosto de ler”. Apresenta o traço [+verbal], pois admite o clítico (pronome pessoal oblíquo átono) que só aparece ligado a verbos e é modificado por “advérbio que aleatoriamente não constitui com ele sintagma, como em (41) e (42). Em (43), há os dois contextos sintáticos descritos: presença de clítico e de advérbio. (41) Dizer isto seria uma temeridade. / Dizê-lo seria uma temeridade. (42) É fundamental falar cuidadosamente. (43) Prometi trazê-los cuidadosamente. Há um contexto sintático peculiar ao infinitivo, em que ele ocorre precedido de preposição, num sintagma único, sendo característico de classes que possuem o traço [+nominal], e pode ser modificado por advérbio, ao mesmo tempo em que recebe um clítico, característico das classes portadoras do traço [+verbal](cf. Santos,1984:46), como em (44), em que o infinitivo é constituinte de SV: (44) Gosto de penteá-los cuidadosamente. Para se determinar se uma construção verbo + infinitivo é locução verbal, Santos propõe a observação de três fatores: a- a regularidade da relação entre o verbo auxiliar e o principal: estar + ndo; ser+do; haver/ter+do, ir+r; b- a não-incidência da negação entre os verbos auxiliar e o principal; 3- e a caracterização do auxiliar, o conteúdo nocional e a transitividade. Um verbo auxiliar pertence a uma categoria particular porque seu conteúdo nocional e sua sintaxe são alterados. O teste é feito através de uma pergunta. Quando houver LV, o significado básico muda: 36 (45) De que você gosta? Gosto de maçã./Gosto de viver. (46) De onde você vem? Venho da cidade. *Venho trazer o trabalho. O verbo vir na LV tem um significado diferente daquele fora de uma LV. O verbo gostar mantém o sentido básico, pois aparece sozinho ou seguido de Inf. como resposta de uma mesma pergunta. O primeiro verbo é caracterizado como auxiliar, enquanto o segundo não o é. O verbo querer também não altera seu sentido básico quando seguido de infinitivo: (47) O que você quer? Quero maçã/ Quero sair. O verbo pode ter um objeto oracional coordenado a outros objetos nominais: (48) “Quero o mar, o sol, tomar chuva no rosto e ter o vento na minha pele.” A coordenação não ocorre, por exemplo, com o infinitivo do auxiliar ir. A autora conclui que o verbo querer não forma LV. Comportamento semelhante tem os verbos gostar e precisar. As diferentes construções com poder, saber, dever e ter são consideradas, homonímias verbais. O verbo ter, por exemplo, deve, segundo a autora, apresentar dois verbetes, um para ter +SN e outro para ter que + infinitivo.4 A autora apresenta algumas idéias funcionalistas. Quando explica as diferenças entre o verbo querer e prometer, por exemplo, intui que a estrutura tem uma certa forma para codificar um sentido: “O verbo querer (...), ao ter bloqueada para sua subordinada a expressão de um sujeito igual ao seu próprio, parece evidenciar que o sujeito, dessa subordinada, agente da ação que ela representa e que é, portanto, o objeto de querer, deverá ser outra pessoa (ou ser) que não ele mesmo, como se aquilo que venha a completar semanticamente querer seja algo fora do alcance de seu agente. (...) Quando um falante diz “eu quero”, ele é agente do ato de querer, mas não será agente da ação que representa o que ele quer, salvo na expressão por infinitivo não flexionado.”(p.131- 133) 4 Na presente tese, de linha funcionalista, esses casos são considerados como uma parte do fenômeno da polissemia e não da homonímia (cf. capítulo 3) 37 Funcionam como querer os verbos tentar, aceitar, desejar, odiar, conseguir, gostar, e precisar, dentre outros. Há verbos que não exigem a dependência de outro ser para completar a ação expressa no seu conteúdo, porque a ação fica no âmbito do falante. É o caso do verbo prometer. Nos exemplos a seguir, “(...) a ação expressa no verbo tem seu agente no falante e não depende de “outro” para se completar. Seu conteúdo restringe-se ao campo de atuação do próprio agente. (...) O “outro” fica “sob condição”, de modo, normalmente, os verbos de suas subordinadas vêm no futuro do presente e do pretérito” ( 136-137), (49) Eu prometo que saio já. (50) Eu prometo que meu filho fará. (51) Eu prometi que meu filho faria. Sua conclusão é a de que devem ocorrer três condições ao mesmo tempo: (a) o verbo auxiliar deve ter alterado seu conteúdo nocional; (b) o verbo auxiliar deve ter alterada sua transitividade; (c) e, na LV, não deve ocorrer negação entre o verbo auxiliar e o principal. A análise de Santos, como a de Pontes, pode servir para lingüistas funcionalistas delimitarem o auxiliar prototípico. Além disso, sua tese não é rigidamente formalista, uma vez que a autora explica a distribuição complementar pelas funções interacionais exercidas pelo sujeito da oração principal. 2.2.3- Teoria do Comando A teoria gerativa utiliza a Teoria do Comando para descrever sentenças (nomenclatura da área) com verbos que expressam controle de um ser sobre outro e apresentam um complemento no infinitivo.5 Os exemplos a seguir ilustram sentenças desse tipo: 5 A Teoria do Comando interage com outra , a Teoria da Ligação, que também interpreta referentes, mas não está limitada às construções com infinitivo e não explica as construções com a idéia de comando ou manipulação. 38 (52) João prometeu a Pedro emprestar o computador (Joãoi prometeu a Pedroii PROi emprestar o computador); (53) João deixou Pedro usar o computador (Joãoi deixou Pedroii PROii usar o computador). Não há uma regra sintática que explique por que em (52) o referentesujeito de emprestar é João e eu (53) o referente-sujeito de usar é Pedro. A Teoria do Comando estabelece uma regra semântica (regra de controle) para identificar o antecedente de PRO nas “estruturas em que (1) se tem necessariamente um controlador; (2) esse controlador tem de estar na posição de sujeito ou objeto da sentença imediatamente mais alta; (3) não se poderia substituir PRO por um SN pleno, mantendo-se também a presença do sujeito ou objeto controlador (como em *João deixou Pedro [Maria usar o computador]) (Lobato, 1986 :309). Vale lembrar que a teoria gerativista identifica (a) a anáfora zero das sentenças infinitivas como PRO e (b) o pronome propriamente dito, assim como a anáfora zero das sentenças finitas (sujeito oculto) como pro. No exemplo (52), a interpretação do sujeito de emprestar (PRO) depende da informação lexical de que, com o verbo prometer, o controlador é o agente desse verbo, eliminando-se qualquer outra interpretação. Enquanto no exemplo (53), a informação lexical leva à interpretação de que o paciente do verbo deixar é o controlador do processo expresso na sentença subordinada. Portanto, o correferente de PRO é Pedro. Na presente tese, parte-se da idéia de que o fator Controle é um dos mais importantes para explicar usos da subordinação completiva e a Referência é um fator que ajuda a entender diversos fenômenos, contribuindo para comprovar aspectos relativos à iconicidade (cf. seção 3.1 desta tese). Os gerativistas admitem que esse fator semântico está determinando a forma de ser da sintaxe de referência em determinados casos, ao lado de regras sintáticas. 39 3- FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Este trabalho utiliza os pressupostos teóricos da corrente funcionalista americana assim como os princípios do modelo da gramaticalização. 3.1- A teoria funcionalista A abordagem funcionalista estuda a estrutura gramatical inserida na situação real de comunicação, considerando o objetivo da interação, os participantes e o contexto discursivo. Procura nesses elementos a motivação para os fenômenos investigados. Dessa forma, os funcionalistas não concebem a língua como uma entidade autônoma, uma vez que fatores sociais, cognitivos, históricos, dentre outros, podem influenciar na forma de se codificar a informação. Esta pesquisa insere-se na linha funcionalista porque procura explicar os usos com verbo transitivo seguido de cláusula completiva a partir de motivações semânticas e pragmáticas. A gramática é vista como uma estrutura aparentemente fixa, congelada, mas que é constituída por motivações comunicativas e cognitivas. Dentre as várias correntes funcionalistas, a linha utilizada aqui é a da lingüística funcionalista americana que tem como principais representantes, como foi dito na Introdução, Givón (1990 e 1995), Heine (1991 e1993), Thompson (Hopper & Thompson, 1980), Hopper (1987 e 1991), dentre outros. No Brasil, são representantes dessa corrente Naro (1980, 1981 e 1986), Votre (1992), Rios de Oliveira (1994 e1996), Martelotta (1994) Martelotta, Votre e Cezario (1996), Furtado (1989 e 1996), Furtado et alii (1999) e Paredes da Silva (1988), dentre outros. Segundo o funcionalismo, cada porção do comportamento lingüístico tem um propósito comunicativo específico que o ativa; (...) a forma é determinada por sua adequação para expressar esse propósito no interior da organização pragmática geral da comunicação (Votre & Naro, 1986: 454). 40 Essa motivação lingüística é regida pelo Princípio universal da iconicidade que atua nas escolhas lingüísticas feitas no momento do discurso. A freqüência do uso de determinadas estruturas levará a construções gramaticais, quando se estabelece uma regra de uso. O princípio da iconicidade possui os seguintes subprincípios: a) subprincípio da quantidade: quanto maior, ou mais imprevisível, ou mais importante for a informação a ser transmitida, maior será a quantidade de forma utilizada; b) subprincípio da proximidade: os conceitos que estão mais integrados no plano cognitivo também se manifestam com maior integração morfossintática; c) subprincípio da ordenação linear: a informação mais importante ou mais tópica tende a ser colocada em primeiro lugar.6 O segundo subprincípio foi reescrito por Givón (1995) sob o nome de princípio da adjacência, segundo o qual “a distância espaço-temporal no fluxo de fala tende a refletir distância conceptual” (Givón, 1995). Em outras palavras, as estruturas sintáticas mais integradas refletem maior integração no plano conceptual. Esse subprincípio é o mais importante para esta tese, porque engloba também os fenômenos relacionados à articulação de cláusulas, explicando alguns dos processos de gramaticalização de verbos transitivos seguidos de complemento oracional. Outro princípio geral, presente nas línguas, é o Princípio universal da marcação, segundo o qual existe uma oposição entre formas marcadas e nãomarcadas. Givón (1995) apresenta três critérios para distinguir uma forma marcada de uma não-marcada, a partir da observação de três parâmetros, que estão resumidos abaixo: a) complexidade estrutural: a forma marcada tende a ser mais complexa do que a não-marcada correspondente; 6 Este é um resumo bastante simplificado desse subprincípio, que tem vários desdobramentos. 41 b) freqüência de distribuição: a forma marcada tende a ser menos freqüente e, em conseqüência, cognitivamente mais saliente do que a categoria não-marcada; c) complexidade cognitiva: a forma marcada tende a ser cognitivamente mais complexa – em termos de esforço mental, atenção e tempo de processamento – do que a forma não-marcada. Nesta tese, o princípio da marcação merecerá pouco destaque, mas é utilizado para a compreensão de determinadas construções com os verbos analisados. O funcionalismo aqui admitido é moderado, porque se sabe que os fatos lingüísticos não são totalmente icônicos ou totalmente arbitrários. A arbitrariedade é constatada quando se analisam os fatos gramaticais de um ponto de vista puramente sincrônico, baseando-se nas regras da gramática aparentemente acabada. Mas, de um ponto de vista histórico, podem-se detectar motivações de ordem semântica e pragmática para se moldarem construções gramaticais ou para se criar um item lexical. O funcionalismo, nas últimas décadas, preocupa-se sobretudo com os fenômenos relacionados ao processo de gramaticalização para explicar tanto a iconicidade, que atua nos primeiros estágios da gramaticalização, como para explicar a arbitrariedade, que ocorre no fim do processo. 3.2- O paradigma da gramaticalização Um grande número de trabalhos apresenta o fenômeno denominado gramaticalização como sendo um processo de mudança lingüística segundo o qual itens lexicais passam a assumir funções gramaticais, ou elementos gramaticais passam a exercer funções ainda mais gramaticais (cf. Kurylowiscz,1975; Heine et alii, 1991; Hopper e Traugott, 1993; Martelotta, 42 Votre & Cezario, 1996).7 O verbo ir, por exemplo, sofreu uma mudança no sentido de passar a ser um marcador de futuro (categoria gramatical), como em “Vai chover”. O advérbio aí passou a desenvolver uma função de conectivo (categoria mais gramatical que a de advérbio), como no seguinte trecho de uma narrativa oral: (1) “eu estava num barzinho sentada ... no Leblon ... com vários amigos ... aí ... eu olhei pra frente assim ... e reconheci uma pessoa”(Raf) Em várias línguas, como o Hebreu bíblico, o Hitita e o Grego Antigo, conjunções integrantes (“complementizadores”) derivam-se de conjunções subordinativas (com diferentes valores como tempo, condição, dentre outros), o que demonstra que um elemento gramatical pode continuar o processo de gramaticalização, tornando-se mais abstrato e mais gramatical (cf. Cristofaro, 1998). Os trabalhos de Traugott & Heine (1991), Heine (1993) e Bybee (1994), demostram que não é um item particular que sofre gramaticalização, mas toda a construção com itens lexicais particulares é que se torna gramaticalizada. Bybee (1994 e 1999) postula que a freqüência de uso de uma dada construção tem um papel fundamental no processo de gramaticalização: Argumentarei a favor de uma nova definição de gramaticalização, aquela que reconhece o papel crucial da repetição e caracteriza-a como um processo pelo qual uma seqüência de palavras ou de morfemas usada freqüentemente se torna mais automatizada como um unidade de processamento único.8 Outros trabalhos também enfatizam que a freqüência de uso é fundamental para garantir a gramaticalização de formas. Krug (1999), por exemplo, estudando modais em emergência no inglês, verifica que há uma forte relação entre 7 A definição de Kurylowicz (1975) é repetida nas outras obras citadas: “ Grammaticalization consists in the increase of the range of a morpheme advancing from a lexical to a grammatical or from a less grammatical to a more grammatical status, eg. from a derivative formante to an inflexional one”. 8 “I will argue for a new definition of grammaticization, one which recognizes the crucial role of repetition in grammaticization and characterizes it as the process by which a frequently-used sequence of words or morphemes becomes automated as a single processing unit.”(Bybee, 199 :2) 43 freqüência discursiva de expressões verbais e status gramatical (cf. Krug, 1999:2).9 O processo de gramaticalização é decorrente, dentre outros fatores, da polissemia que ocorre em determinados itens do léxico ou da gramática. Na maioria das vezes, a função mais nova convive com a função mais antiga, sendo que cada uma delas tem seu contexto específico. Assim, o verbo pleno ir continua sendo usado no português atual, em contextos em que não se confunde com o auxiliar. E o mesmo ocorre com o advérbio ou conectivo aí. O modelo da gramaticalização não explica somente as mudanças já estabelecidas, mas também aquelas que estão em curso numa dada fase de uma língua. Na verdade, os estágios detectados no presente provavelmente sempre ocorreram na língua. Conforme afirmam Votre et alii (1998): “A abordagem da lingüística funcional atual tende adotar, juntamente com Labov (1995), uma formulação mais refinada daquela hipótese [a da unidirecionalidade da mudança], que pode ser encontrada entre os neogramáticos, segundo os quais os mesmos tipos de mudança ocorreram em todas as fases da história das línguas e tenderão a continuar ocorrendo. Nessa concepção, há um princípio uniformitário subjacente às mudanças lingüísticas. [...]. Assim, ao lado de processos de mudança atestados no curso do tempo, determinadas características e peculiaridades lingüísticas podem permanecer constantes. (p. 44). Os estudos citados neste capítulo apresentam geralmente dados diacrônicos, em tempo real, mas as informações também são relevantes para um estudo de mudança em curso cujos estágios estão presentes no português atual. Nesta tese, são estabelecidos graus de integração de cláusulas com os verbos achar, ver, saber, mandar, querer e deixar e seus complementos clausais. Através da descrição, é possível verificar a presença de várias construções em estágio de gramaticalização no português contemporâneo. Também é possível verificar a atuação do subprincípio da proximidade na graduação da integração de cláusulas. 9 Mais detalhes sobre o papel da freqüência podem ser vistos na seção 3.2.4. 44 3.2.1- História dos estudos sobre gramaticalização A gramaticalização, enquanto modelo teórico, surge na década de 80 para tentar dar conta de problemas que não foram resolvidos pelos modelos póssaussureanos. Esses últimos recaem nos seguintes princípios: 1- A descrição lingüística deve ser estritamente sincrônica. 2- O relacionamento entre forma e conteúdo é arbitrária. 3- A forma lingüística tem apenas uma função ou significado. Na língua ewe (ramo kwa da família Niger-Kongo), por exemplo, a forma ná é um verbo com o sentido de ‘dar’, que recebe flexões, e também é uma preposição com o sentido de ‘para’, sem flexão. Há contextos em que a forma ná é ambígua, podendo ser interpretada ora como verbo ora como preposição, como mostram Heine et alii (1991). De acordo com os autores, o verbo é a forma original, que derivou a preposição, e o uso ambíguo é uma forma intermediária. Trabalhos anteriores mostraram que existia aí um caso de homonímia. A pesquisa de Heine et alii constatou que os usos de ná formam um contínuo, que vai desde os usos verbais prototípicos até os usos preposicionais prototípicos. O uso ambíguo é um ponto no contínuo. Há muitos trabalhos anteriores em que a explicação das mudanças sintáticas é dada a partir da idéia de gramaticalização.10 Por exemplo, os chineses, no século X, notaram o processo quando disseram que os símbolos “vazios” foram inicialmente símbolos “cheios.” No século XVIII, Condilac e Rousseau postularam que a complexidade gramatical e o vocabulário abstrato são historicamente derivados de lexemas concretos. Condillac notou, ainda, que as flexões verbais (como os morfemas de tempo) derivam-se de verbos independentes. Horne Tooke (1847), considerado por alguns o pai dos estudos da gramaticalização, afirmou que o segredo das palavras está na etimologia, sendo uma noção chave para o seu trabalho a abreviação: substantivos e verbos 10 A descrição histórica dada aqui é baseada principalmente no que é apresentado na Introdução da obra de Heine et alii (1991). 45 são chamados palavras necessárias e são considerados como partes essenciais do discurso, enquanto outras classes, tais como a dos advérbios, preposições e conjunções, resultam da abreviação ou “mutilação” de palavras necessárias. Formas flexionais e derivadas são tratadas por ele como fragmentos de palavras independentes anteriormente aglutinadas à raiz da palavra (cf. Heine et alii, 1991:5). Humboldt, em 1822, num trabalho publicado em 1925, defendeu a tese de Tooke de que as classes de palavras como preposição e conjunção têm origem em palavras “reais” que denotavam objetos. Gabelents (1891) descreveu esse modelo com um enorme sintagma: “what- today- are-affixes- were- onceindepentent- gramatical categories paradigm”. Meillet, com a obra “L’evolution des formes grammaticales” (1912), é considerado o fundador dos estudos modernos sobre gramaticalização. Ele introduziu o termo e argumentou a favor da idéia de que existem dois caminhos para o surgimento de novas formas: via inovação analógica ou via gramaticalização. A primeira não interfere no sistema geral das línguas, enquanto a segunda leva à transformação do sistema inteiro por introduzir novas categorias para as quais não havia anteriormente expressões lingüísticas (cf. Heine et alii, 1993:9). Meillet considerava a existência de um contínuo do concreto ao abstrato. Até 1970, a gramaticalização foi vista como parte da lingüística diacrônica, como meio de analisar a evolução lingüística, de reconstrução da história de uma dada língua ou grupo de línguas, ou de relacionar estruturas lingüísticas atuais com estruturas mais antigas. Após aquela data, a atenção se voltou para o parâmetro explanatório da gramaticalização em relação à melhor compreensão da gramática sincrônica, porque as abordagens estruturalistas e gerativistas não deram conta da relação entre domínios cognitivos (como espaço, tempo e modo) e estruturas lingüísticas. A partir dos trabalhos de Givón (da década de 70 aos nossos dias), surge uma nova perspectiva de análise, sob a hipótese geral de que “a morfologia de hoje é a sintaxe de ontem”. No momento, essa hipótese está ampliada: “A 46 sintaxe de hoje é o discurso pragmático de ontem”. Dessa forma, o contínuo de gramaticalização é: discurso>sintaxe>morfologia>morfofêmica>zero>discurso. Heine e Reh (1984) observam que a gramaticalização afeta todos os níveis da estrutura lingüística, havendo processos funcionais (como a dessemantização), morfossintáticos (como a cliticização) e processos fonéticos (como a fusão, a erosão). Para Heine et alii (1991), a base da gramaticalização está fora da estrutura lingüística, porque os fatores responsáveis por ela são de natureza cognitiva e o princípio que explica o uso de conceitos concretos para expressar conceitos gramaticais é: “Princípio da exploração de meios antigos para lidar com novas funções”. Dessa forma, a mudança semântica pode ser interpretada como a resolução de um problema imediato de comunicação. O mecanismo é ativado quando se quer chegar a um determinado objetivo e a codificação não está disponível. Os conceitos que darão origem a conceitos mais abstratos são denominados conceitos originais (“source concepts”) e são compostos por objetos concretos, processos e localizações. É uma noção relativa, uma vez que um conceito é original em relação a um mais abstrato, que, por sua vez, pode ser original em relação a outros ainda mais abstratos. Como exemplo, Heine et alii apresentam a palavra back (‘costas’), que é original em relação a “three miles back “(‘três milhas atrás’) e esse conceito de espaço é original em relação ao uso temporal: “three years back” (‘três anos atrás’). As partes do corpo são fontes para as metáforas, ainda no nível lexical, e para derivação de conceitos gramaticais como os expressos por advérbios. O modelo da gramaticalização vem sendo utilizado, portanto, como forma de explicar diversos tipos de mudanças. Até metade da década de 1990, havia uma grande expectativa em relação à existência do princípio da unidirecionalidade da mudança, envolvendo diferentes domínios: do concreto para o abstrato, do léxico para a gramática, da gramática para aspectos mais gramaticais e do menos integrado para o mais integrado. No final da década de 47 1990, no entanto, a questão da unidirecionalidade da mudança vem à tona para se discutir se ela é ou não fundamental nos processos de gramaticalização; ou se existem casos de mudança em direção oposta ao que é normalmente estabelecido pelos lingüistas; ou ainda se a hipótese deve ser enfraquecida. Votre (1999), após estudar quatro verbos cognitivos em três sincronias – latim, português arcaico e português contemporâneo – conclui que a hipótese da unidirecionalidade deve ser enfraquecida. O autor observa que os verbos cognitivos achar, ver, pensar e saber já apresentavam em latim sentidos concretos e abstratos. Além disso, as estruturas sintáticas não tendem à integração, pelo contrário, a sintaxe do verbo achar é um exemplo de diminuição da integração, uma vez que, no português arcaico, o verbo podia ter complemento com o chamado infinitivo com acusativo e esse uso praticamente desapareceu. Apesar de a hipótese estar sendo enfraquecida, há muitos processos de mudança em que é notória a atuação do princípio da unidirecionalidade. 3.2.2- Reanálise A reanálise é um mecanismo que atua no eixo sintagmático, caracterizando-se por uma reorganização da estrutura do enunciado, e uma reinterpretação dos elementos que o compõem. Foi o que ocorreu na formação do futuro do presente do português, em que dois vocábulos formais foram interpretados como um único elemento: “amar hei”> “amarei”. O mesmo ocorreu com os advérbios em mente: a contigüidade do elemento mente junto a adjetivos levou a uma restruturação sintática (reanálise), em que mente funciona como um sufixo: “mente tranqüila”/ “tranqüila mente”> “tranqüilamente”. Neste caso, dizse a mudança deu-se através de um processo metonímico, que, nos estudos sobre gramaticalização, explica a mudança ocorrida numa determinada forma em função do contexto lingüístico (no caso, contigüidade posicional) em que está sendo utilizada. 48 Como exemplo, retoma-se aqui o verbo ir: a passagem do verbo a auxiliar é decorrente do fenômeno da reanálise, ao mesmo tempo em que ocorre transferência metafórica: (2) [João] [vai] [à escola]. (3) [João] [vai] [falar] [com o professor]. / [João] [vai falar] [com o professor]. (4) [João] [vai começar] [o trabalho] [amanhã]. No exemplo (2), o verbo ir expressa um movimento em direção a um objetivo espacial: a escola. No exemplo (3), o verbo é ambíguo, pois expressa (a) movimento e o objetivo é falar com o professor (“vai para falar com o professor”); ou (b) tempo futuro, sem movimento físico. Nesse caso, diz-se que o uso descrito em (a) gerou o uso descrito em (b). Provavelmente o processo de integração das duas cláusulas (a cláusula com o verbo ir e a cláusula final) iniciou-se no momento em que a preposição para foi omitida (“João saiu (para) trabalhar”). No exemplo (4), o item ir junta-se ao verbo começar, deixando de expressar movimento físico para atribuir à locução a noção de futuro. Na segunda interpretação de “vai falar” e em “vai começar”, ocorre o fenômeno de reanálise e o verbo ir deixa de ser principal, passando a se comportar como um auxiliar. Como se vê, há também uma transferência metafórica do domínio do espaço para o do tempo. O verbo ir não será objeto deste estudo, mas foi utilizado na exemplificação, porque a sua trajetória de gramaticalização é facilmente percebida. 3.2.3-Princípios que configuram a gramaticalização Hopper (1991) apresenta cinco princípios que configuram a gramaticalização e outros processos de mudança. Segue um resumo dos princípios com exemplos de fenômenos do português: 1- Estratificação (“Layering”): segundo esse princípio, há coexistência de formas com função similar, em outras palavras, há numa língua estratégias diferentes 49 para desempenhar a mesma função. Um exemplo do português é o caso da negação, conforme demonstram as pesquisas de Furtado (1996) no estudo do corpus de Natal. Essa função pode ser exercida por três formas com o advérbio não: a forma canônica com o advérbio não antes do verbo (“Com a luz acesa a gente não conseguia dormir”); a forma com dupla negativa, antes e depois do verbo (“Eu não tirei foto não”) e a mais recente com o advérbio apenas posposto ao verbo (“Se pegar [catapora] ... tem nada não”). 2- Divergência (“Divergence”): na gramaticalização, uma forma original permanece como elemento autônomo, sofrendo as mudanças comuns a outros itens lexicais da língua, independente de suas formas derivadas. Um exemplo é a história do verbo ter, que deu origem ao auxiliar de tempo (“Tinha feito”), mas que também permaneceu como verbo pleno com o sentido básico de posse. A divergência aplica-se aos casos em que um item lexical se torna gramaticalizado em um dado contexto, mas não em outro. (cf. Hopper, 1991: 24). 3- Especialização (“Specialization”): ocorre uma diminuição das possibilidades de escolha, podendo somente uma forma tornar-se obrigatória (no final do processo). Um exemplo é o caso do verbo achar com infinitivo e sujeito no acusativo, uso relativamente freqüente no português arcaico e quase desaparecido no português atual (cf. seção 5.1.2.1) 4- Persistência (“Persistence”): na gramaticalização, uma forma derivada mantém vestígios do significado original. Por exemplo, o advérbio de lugar aí do português, passa a designar tempo quando tem a função de seqüencializar eventos. O traço que se mantém é o relacionado à idéia de localização, que deixa de ser espacial e passa a ser uma localização no tempo (“neste momento”), como no trecho “aí eu peguei um... uma linha de ônibus que é muito assaltada... aí eu fui, né?... aí eu sentei no ônibus... aí sentou um camarada do meu lado...(RJ). 5- Descategorização (“De-categorialization”): conforme também está em Heine (1993), uma forma perde seu status categorial, pois determinadas características de sua classe vão sendo alteradas. A gramaticalização do verbo deixar é um exemplo. Enquanto pleno, com complemento oracional, exige um sujeito 50 animado (“Minha avó não deixava que ela fosse para os bailes” / “não queria deixar a gente namorar” - RJ), pois seu sentido básico é o de ‘permitir’. Na expressão “deixar de mais infinitivo”, com o verbo num estágio avançado de gramaticalização via auxiliar, essa restrição se perde e o item aceita sujeito inanimado (“A exploração política das favelas deixou de oferecer vantagens”CEM-JB). A restrição de seleção do sujeito fica dependente apenas do verbo principal . Os princípios propostos por Hopper podem ser utilizados para explicar a coexistência de diversos estágios de gramaticalização para um mesmo item verbal. Apenas não se tratará “camadas” como a presença de duas ou mais formas com a mesma função, uma vez que se acredita que sempre há alguma diferença de uso (função) dos vários estágios de gramaticalização de um item verbal. Pode-se dizer que as formas desempenham funções diferentes. Mas o termo continuará a ser usado aqui. 3.2.4- O papel da freqüência de uso nos processos de gramaticalização Bybee (1984 e 1999) postula que a freqüência de uso de uma dada construção tem um papel fundamental no processo de gramaticalização. Para Haiman (1991), “(..) a gramaticalização pode ser pensada como uma forma de rotinização da língua. Uma forma ou combinação de formas ocorre no discurso com freqüência crescente e, começando como uma forma não usual de fazer ou reforçar um ponto do discurso passa a ser um meio usual e não marcado de desempenhar esse papel. A freqüência com que tais expressões ocorrem será um fator que determina se a forma passa ou não a ser considerada gramatical pela comunidade de fala.” (p. 201. In: Hopper & Traugott, 1993) 11 11 (...) grammaticalization can be thought of as a form of routinization of language.. A form or a combination of forms occurs in discourse with increasing frequency, and from being an “unusual” way of making or reinforcing a discourse point comes to be the “usual” and unremarkable way to do so. The frequency with which such expressions occur will be one factor that determines whether or not they come to be regarded by the speech community as “grammatical”. 51 Furtado, Rios de Oliveira e Votre (1999) enfatizam a importância do parâmetro ‘freqüência’ nos estudos de gramaticalização: (...)do conjunto de fenômenos correlacionados que motiva a gramaticalização, e portanto, a regularização e fixação, a freqüência é considerada como um dos mais relevantes. Quanto mais freqüente a forma, mais gramaticalizada ela é. A freqüência textual de um item é, portanto, evidência empírica do seu grau de gramaticalização. (p. 91) A freqüência de uso leva a uma automatização das formas, que podem reduzir-se foneticamente e também costumam emancipar-se no sentido de preencher novas funções em novos contextos. Bybee (1999), estudando a história do verbo can, afirma que a freqüência de uso leva ao hábito, que, por sua vez, enfraquece a força semântica de uma construção, porque o organismo pára de responder da mesma forma a um estímulo repetido. Neste sentido, algumas construções dos itens verbais analisados nesta tese tornam-se mais gramaticalizadas do que outras. Tal fato deve-se, dentre outras razões, a um aumento de uso de determinados graus em detrimento de outros. O aumento na freqüência de uso de um item lexical também costuma levar a uma generalização ou opacidade de seu conteúdo semântico. Isso ocorre porque o estímulo perde seu impacto se ele ocorre muito freqüentemente. Nas palavras de Furtado, Rios de Oliveira e Votre (1999), “quando uma construção deixa de ser uma estratégia comum, previsível, a freqüência com que ela ocorre indica que ela passou a ser considerada pela comunidade lingüística como gramatical.” (p. 91). A repetição, para os estudiosos da gramaticalização, é um universal no processo de gramaticalização. Outros trabalhos também enfatizam que a freqüência de uso é fundamental para garantir a gramaticalização de formas. Krug (1999), por exemplo, estudando modais em emergência no inglês, comparou a freqüência de uso de verbos encontrados em textos escritos no período de 1650 a 1950 com o objetivo de ver se, numa média de 10.000 palavras, havia ou não aumento na freqüência de uso em épocas distintas da fala e da escrita do inglês. A construção “want to”, por exemplo, teve um aumento de uso de 10% entre 1750 e 1900. 52 Um item muito usado torna-se previsível, automático e geralmente tem sua forma fonológica reduzida (alteração denominada “efeito de redução” ou “erosão”). Além disso, devido à generalidade do uso do item, esse tende a conservar-se por mais tempo na história da língua (“efeito da conservação”). Krug (1999), citando Hopper & Traugott (1993), também chama a atenção para a necessidade de estudos estatísticos para melhor descrever os estágios de gramaticalização, principalmente os iniciais. O autor trabalha com o modelo dos protótipos, desenvolvido pela psicóloga Eleanor Rosch e trabalhada por diversos lingüistas. O modelo difere-se do modelo tradicional por definir as categorias através de um agrupamento de fatores. Será prototípica a categoria que possuir o agrupamento de fatores completo. As categorias semelhantes estarão mais distantes da prototípica à medida que apresentar um número menor de fatores. 3.3- Gramaticalização entre cláusulas Hopper & Traugott (1993), no capítulo intitulado “Grammaticalization across clauses”, seguindo a orientação de Givón (1990, 1995) ampliam o conceito de gramaticalização, incluindo nele os processos de combinação de cláusulas. Mostram que “a combinação de cláusulas pode ser considerada do ponto de vista de um contínuo unidirecional: da justaposição relativamente livre à integração sintática e morfológica dentro dos limites da estrutura da gramaticalização amplamente interpretada.” (p.168)12 Todas as línguas têm modelos diferentes para conectar cláusulas e formar períodos complexos. Estes podem conter cláusulas completivas (cláusulas substantivas), cláusulas modificadoras de SNs (cláusulas adjetivas ou relativas) e cláusulas com funções adverbiais (cláusulas temporais, causais, etc.). Nos 12 “(...) clause combining can be considered from the point of view of a unidirectional cline from relatively free juxtaposition to syntactic and morphological bondedness within the framework of grammaticalization broadly construed.”(p. 168). 53 períodos complexos, há um núcleo e há clausulas marginais (as subordinadas), que exibem diferentes graus de dependência. Existe um contínuo de integração de cláusulas, que é pensado a partir de três processos: (a) Parataxe ou independência relativa. (b) Hipotaxe ou interdependência, em que há uma cláusula nuclear e uma ou mais cláusulas marginais dependentes, mas não encaixadas. (c) Subordinação ou encaixe, em que toda a cláusula marginal é constituinte da cláusula nuclear. A trajetória de mudança é a seguinte (cf. p. 170): Parataxe > hipotaxe > subordinação -dependente + dependente. + dependente - encaixada -encaixada. + encaixada Hopper & Traugott partem da hipótese de que, na hipotaxe, as claúsulas construídas com um modelo sintático mais explícito e independente (como, por exemplo, as construídas com o conectivo que) estão correlacionadas com o mínimo de integração semântico-pragmática. Por outro lado, aquelas cláusulas construídas com modelos menos explícitos estão correlacionadas com o máximo de integração semântico-pragmática. (Cf. p. 171) Os autores propõem o seguinte esquema para representar o contínuo de combinação de cláusulas do ponto de vista da gramaticalização: parataxe ___________________________ hipotaxe ____________________________subordinação (independência) (interdependência) (dependência) núcleo __________________________________________________________________ margem integração mínima ___________________________________________________integração máxima conexão explícita máxima ________________________________________conexão explícita mínima Há contra-exemplos para hipótese da unidirecionalidade (no caso, no sentido da parataxe para hipotaxe). Dentre outros, pode-se citar o emprego da conjunção although ‘embora’ como se fosse however ‘entretanto’ no inglês de 54 estudantes universitários americanos e o uso do sufixo japonês –ga (com o sentido de “o contrário do que você está pensando’) como conjunção adversativa, conectando duas cláusulas. Para explicar o desenvolvimento de cláusulas complexas, os autores buscam a trajetória de uso do conectivo that em inglês. Esse conectivo origina-se de um uso do pronome demonstrativo (þæt) numa estrutura primeiramente paratática, depois hipotática e, por fim, encaixada. E o processo de gramaticalização pode continuar: duas cláusulas encaixadas podem-se integrar a ponto de se tornarem apenas uma cláusula. É o que ocorre com os chamados parentéticos epistêmicos. Os autores comentam a pesquisa de Thompson e Mulac a respeito dos usos de think e guess no inglês. O verbo pleno think pode ser usado como introdutor de uma proposição a respeito de uma certa crença mantida pelo falante ou uma questão referente ao estado de crença do ouvinte, como no exemplo “Do you think that the coup was planned by the CIA?”. Também pode usado para qualificar uma asserção: “a- I think Commander Dalgleish writes poetry. b- Commander Dalgleish writes poetry, I think.” Usando think parentético, “o falante não está assumindo uma posição epistemológica, mas sim indicando o grau de validação da afirmação, sugerindo que não há evidência direta para a mesma.” (p. 202).13 Neste caso, não há o conectivo that e o parentético recebe acentuação mais fraca do que o verbo principal. A expressão I think assemelha-se a um advérbio, não havendo normalmente restrição quanto à posição na frase. Neste caso, duas cláusulas são reanalisadas e passam a ter apenas um núcleo. A cláusula marginal passa a ser a nuclear e a cláusula principal “rebaixase” a um advérbio oracional (como evidently e apparently). Com o tempo, outros verbos que expressam atitudes proposicionais (verbos cognitivos, em outra 13 (...) the speaker is not taking out an epistemological position, but indicating the degree of validation of the statement by suggesting that he or she has no direct evidence for it. 55 nomenclatura) podem ser usados da mesma forma, tomando think e guess como modelos.14 Lehmann (1988), ao estudar a tipologia da conexão de cláusulas nas línguas, verificou que há vários processos envolvidos na gramaticatilização entre cláusulas. Dos processos que ainda não foram abordados neste capítulo, vale ressaltar os seguintes: a) a dessentencialização da cláusula subordinada: quando, em virtude da gramaticalização, a cláusula subordinada perde (em diferentes graus) marcas como as de tempo, modo e aspecto e se torna o verbo principal; b) a gramaticalização do verbo principal: o verbo que antes era o principal torna-se um morfema do verbo semanticamente subordinado e c) o entrelaçamento: elementos, como o actante, o tempo, o aspecto, dentre outros, podem ser comuns à cláusula principal e à subordinada. Na dessentencialização, a cláusula subordinada perde também a força ilocucionária. O resultado final de uma dessentencialização pode ser uma nominalização (“Eu ouvi o seu canto”). Vários autores fizeram estudos da gramaticalização entre cláusulas tendo como base a idéia de graduação. Dentre as várias propostas, são destacadas aqui as de Givón (1990, sobretudo) e Heine (1993). 3.4- Graus de integração: a proposta de Givón Como foi dito, o trabalho de Givón (1990) é um dos mais importantes para a tese, porque traz um estudo funcional da complementação verbal, partindo da hipótese de que existe um isomorfismo sistemático entre os sentidos dos verbos e a codificação morfossintática. Há a verificação de que quanto mais forte é a conexão semântica de dois eventos, mais íntima é a conexão sintática de duas proposições em uma única cláusula. O autor discute a variabilidade tipológica das construções com complemento. Alguns dos meios de codificação são baseados nos subprincípios 14 Mais detalhes sobre a pesquisa de Thompson & Mulac encontram-se no capítulo 5 desta tese. 56 universais da iconicidade, outros são mais gramaticalizados e específicos de uma língua. E é o verbo que determina o esquema semântico das construções com complemento oracional. O autor classifica os verbos transitivos em: (i) verbos cognitivos: know, think, say, etc. (ii) verbos manipulativos: make, tell, order, ask, etc. (iii) verbos de modalidade: want, begin, finish, try, etc. Há um contínuo na dimensão escalar no que se refere à conexão entre o verbo e a cláusula subordinada. Para Givón, as cláusulas são unidades sintáticas que codificam proposições mentais, que, por sua vez, codificam eventos ou estados concebidos. Os eventos ou estados podem ter certa relação com os eventos do mundo real. De acordo com essa dimensão escalar, os verbos cognitivos apresentam conexão mais fraca enquanto os manipulativos e os de modalidade apresentam conexão mais forte. A seguir são apresentadas as características das construções com cada tipo de verbo, segundo Givón. I- Características das construções com verbos cognitivos: a- a cláusula principal contém um verbo de percepção, cognição, atitude mental ou articulação verbal; b- a cláusula complemento codifica uma proposição que, por sua vez, representa um estado ou evento que é objeto da atividade mental ou verbal codificado pelo verbo principal. c- não há restrições correferenciais entre argumento da subordinada e da principal. (5) Eu falei “gente ... não precisa me pagar”(MON5, N,R)15 (6) Eu sei que o meu salário vai ser ruim (SUZ21,O,R) 15 Exemplos do corpus Discurso & Gramática. 57 II- Características das construções com verbos manipulativos: a- a cláusula principal codifica uma manipulação realizada por um agente sobre um outro agente potencial; b- o agente manipulador é codificado como sujeito da cláusula principal; o manipulado como objeto; c- o complemento codifica o evento desempenhado - ou a ser desempenhado pelo manipulado; d- o manipulado é sujeito-agente da cláusula complemento. (7) ah... eh:: sobre os meus pais... eles são... super::/ ah... eles não deixam eu sair... sabe? eu acho que::... é um bando de careta... não sei quê “que você não pode namorar::... porque você é muito no::va...” (PAT30,0,R) (8) aí foi... ele correu... conforme ele correu a polícia mandou ele parar... ele não estava ouvindo... aí... atirou nele... aí ele morreu... (AFONS, N,N) III- Características das construções com verbos de modalidade: a- o verbo principal codifica incepção, terminação, persistência, sucesso, esforço, intenção, obrigação ou habilidade - comparado com o estado/evento do complemento; b- o sujeito da cláusula principal é obrigatoriamente o mesmo do sujeito da oração complemento. (9) Eu não posso pagar (AND1,O,R) (10) Bom, eu sei lavar carro (MARC, P, N, Esc) A escala de verbos do inglês proposta por Givón é dada a seguir de forma simplificada. A escala contém verbos manipulativos e cognitivos (Cf. p. 529): 58 VERBOS MAIS INTEGRADOS À SUBORDINADA M “let go” - “She let go of the knife” A make - “ She made him save” N let - “She let him go home”. I have - “She had him arrested.” P cause - She caused him to switch jobs.” U tell - She told him to leave.” L ask - She asked him to leave.” A allow - She allowed him to leave.” Ç want - She wanted him to leave.” Ã O suggest - “She suggested that he should leave.” C wish - She wished that he would leave.” O agree - She agreed that he could leave.” G know – She knew taht he left.” N say- “She said taht he might leave later.” I Ç Ã VERBOS MENOS INTEGRADOS À SUBORDINADA O O autor demonstra com essa escala que os eventos mais integrados semanticamente são codificados por uma morfossintaxe mais integrada. Ele estabelece diferenças entre verbos de um mesmo grupo e diferenças entre verbos de grupos distintos. Dessa forma, os verbos manipulativos make e cause estão em pontos diferentes da escala com pequenas diferenças semânticas que se refletem na sintaxe: make tem complemento sem a marca de infinitivo to enquanto cause já exige tal marca: (11) She made him shave. (12) She caused him to switch jobs. A iconicidade é testada através de várias categorias, algumas das quais serão utilizadas nesta tese. 59 Verbos de grupos diferentes como make (manipulativo) e say (cognitivo) têm sintaxes de subordinação muito distintas. A do segundo verbo tem o mínimo de integração: o complemento de say pode ou não ter conectivo, o verbo tem uma forma finita, dentre outros fatores. Givón compara, em primeiro lugar, os verbos manipulativos entre si, depois os manipulativos com os cognitivos e por fim explica os usos dos verbos de modalidade. A disposição do resumo feito aqui é a mesma. 3.4.1- Categorias semântico-pragmáticas O autor testa algumas categorias para verificar a relação entre categoria semântica e pragmática, de um lado, e codificação lingüística, de outro lado. Algumas dessas categorias são destacadas a seguir: 1-Implicatividade, co-temporalidade e controle A base semântica da escala de complementação é rica, pois envolve fatores escalares: a- a força de intento e controle pelo agente manipulante; b- o grau de contato direto entre o agente e o manipulado; c- o grau de resistência pelo manipulado; ou a força da coerção que o manipulador deve usar. Na manipulação com sucesso, o agente que manipula impõe seu desejo sobre o manipulado. O manipulado mostra menos controle, menos liberdade de escolha, menos independência para agir; é mais paciente, menos agentivo. Ao contrário, o manipulado de um verbo não-implicativo apresenta poder de escolha e se assemelha a um agente prototípico (cf. p.521). (13) João acha que Maria não virá. (Achar é ‘não-implicativo’, Maria não é manipulada, João não tem controle de sua ação; os dois eventos não são cotemporais). (14) João fez Maria sair. (Fazer é verbo implicativo; Maria é manipulada, não tem controle total de sua ação; as duas cláusulas codificam um só evento).16 16 Quando inglês e português apresentam o mesmo contraste entre os verbos analisados, optou-se por apresentar os exemplos em português. 60 A co-temporalidade e o controle explicam os usos de make e cause, do inglês: (15) a- John made Mary quit her job. b- John caused Mary to quit her job. Teste: a- John made Mary quit her job finally yesterday. b- John’s behavior two years ago caused Mary to finally quit her job yesterday. Enquanto o verbo make requer co-temporalidade, o mesmo não ocorre com o verbo cause. Além disso, o uso com make é mais integrado, porque Mary tem menos controle na realização do evento subordinado. Um outro exemplo é o que ocorre com o verbo let. O uso co-lexicalizado “let-go” é diferente do uso “let somebody go”, pois, nesse último, o referentesujeito da subordinada tem ainda certa liberdade: (16) She let go of him. (17) She let him go where he wanted. Esses usos seguem os seguintes princípios (cf. p. 520-523): a- Se a cláusula principal é verdadeira, então o complemento também deve ser verdadeiro; b- Quanto mais dois eventos forem co-temporais, mais alta é a probabilidade de eles não serem independentes entre si; c- Quanto mais sucesso tiver uma manipulação, menos controle terá o manipulado e menos agentivo será. d- Se um manipulado está agindo sob sua própria motivação e retém controle, ele pode agir em seu próprio tempo. 2- Contato direto e separação espaço-temporal Comparando-se os verbos want e wish, é possível perceber que, na construção com o verbo want, a probabilidade de uma comunicação direta entre os dois referentes é maior do que a probabilidade com o verbo wish: (18) We had an argument, 61 a- I wanted her to quit smoking, but she said she wouldn’t. b- ? I wished that she would quit smoking, but she said she wouldn’t. (19) He left a week earlier. Now, sitting there all alone, a- she wished that he had come back. b- she wished that he would come back. c- ? she wanted him to come back. No uso de want, há necessidade de contato direto. No exemplo (18), o referente codificado como “I” disse para a outra pessoa que queria que ela parasse de fumar. Já no contato distante ou na falta de comunicação, ‘wish’ é preferível. No exemplo (19), os referentes “she” e “he” estão distantes. Em (18b) e (19c), Givón tem dúvidas sobre a existência das construções. 3- Resistência, esforço e independência Essas categorias são baseadas no seguinte princípio: “Se o manipulado tem poder e deseja resistir, então a- há chances para o controle do manipulador não estar firmemente estabelecido; b- o manipulador deve usar mais esforço para superar a resistência; e c- a probabilidade de sucesso da manipulação decresce.” (p. 525) (20) Ele forçou Maria a deixar o trabalho. (21) Ele fez Maria deixar o trabalho. O poder coercitivo expresso pelo verbo forçar é um indício de que há resistência à manipulação. Por isso, o uso com o verbo forçar é menos integrado. 4- Integração do evento: causação e implicação. A comparação é feita através da comparação dos usos de um mesmo item verbal: (22) a- Ela viu-o sair do teatro. b- Ela viu-o saindo do teatro. c- Ela viu que ele tinha saído do teatro. 62 Observa-se que há diferenças semântico-pragmáticas que explicam as diferenças morfossintáticas: os exemplos 22a e 22b são implicativos e cotemporais e o exemplo 22c não é necessariamente co-temporal e implicativo; nos exemplos 22a e 22b, o verbo ver tem sentido de percepção, enquanto no exemplo 22 o verbo expressa certeza epistêmica. 5- Integração referencial/ coesão O princípio aqui é: quanto mais referentes forem comuns às duas cláusulas, mais provavelmente seus eventos estarão integrados semanticamente como um só evento, e menos provavelmente o complemento será codificado como cláusula independente finita. (cf. p. 527). No exemplo dado acima, “Ela viu-o sair do teatro”, o sujeito da subordinada é objeto da principal; em “Ela viuo saindo do teatro”, o sujeito da subordinada pode ser objeto ou sujeito da principal e no exemplo “Ela viu que ele tinha saído do teatro” não há correferencialidade. Portanto, o último exemplo é menos integrado. 6- Da cognição para a declaração Há muitas similaridades entre cognição e construções com discurso indireto. No entanto, há diferenças sutis. a- Os verbos think e know requerem um comprometimento epistêmico, já o verbo say é livre desse comprometimento: (23) a- *She thought he left, though she knew/thought he didn’t . b- * She knew he left, though she knew/thought he didn’t. c- She said he left, thought she knew/thought he didn’t. b- O tempo do verbo da subordinada é livre para o verbo say e restrito para o verbo know: (24) a- I knew she was coming. b- *I knew she is coming. c- I knew she had come. d- *I knew she has come. 63 (25) I said she was coming/ is coming/ had come/ has come. (Todas as frases são gramaticais.) Os verbos de cognição apresentam integração mais forte do que os de declaração. Quanto aos verbos de modalidade, Givón os coloca no mesmo grau de integração dos verbos manipulativos e testa as mesmas categorias, comparando os verbos cognitivos com os de modalidade. Como as categorias são as mesmas não será feito aqui o resumo dessa comparação, mas serão mostradas diferenças de usos de um mesmo item lexical. O verbo de modalidade try pode ter complemento com infinitivo com to ou complemento com gerúndio. Essa diferença é determinada por um fator pragmático: o verbo seguido de complemento com -ing é implicativo e seguido de to não o é, como mostram os exemplos: (26) After everything else failed, a- John tried recinting a poem, but the child kept crying. (Implicativo) b- John tried to recite a poem, but no sound came out. (Não-implicativo). No primeiro caso, John tentou e conseguiu recitar o poema. No segundo caso, ele tentou, mas não conseguiu realizar a ação. Como forma de retratar essa diferença pragmática, a gramática inglesa apresenta o evento realizado codificado através de um verbo no gerúndio e o evento não-realizado através de infinitivo com to. A primeira estrutura é pouco mais integrada que a segunda. 3.4.2- Modelos sintáticos A diversidade tipológica da complementação verbal é descrita principalmente através de quatro modelos sintáticos, presentes em todas as línguas. Os modelos, iconicamente motivados, são dados a seguir: (a) co-lexicalização do verbo do complemento junto ao verbo principal; (b) marcação de caso no sujeito da cláusula complemento; (c) tratamento morfológico do verbo da cláusula complemento; 64 (d) marcadores de subordinação separando a cláusula principal da subordinada. O primeiro modelo é raro em inglês (e também no português), mas ocorre com alguma freqüência em outras línguas. Essa é a forma mais integrada, ocorrendo quando um dos verbos torna-se um morfema flexional. Em Ute, os verbos implicativos correspondentes a fazer/causar são colexicalizados, enquanto um verbo não-implicativo como dizer não o é: (27) a- mamaci ta’waci mulher-SUBJ homem-OBJ tuka-ti-puga comer-CAUS-REM ‘A mulher fez o homem comer. b- mamaci mulher-SUBJ ta’waci tuka-vaa-kw may-puga homem-OBJ comer-IRR-COMP say-REM ‘A mulher disse ao homem que comesse’. O segundo modelo refere-se às diferentes formas de codificar o referente da cláusula subordinada. Há uma hierarquia de formas da codificação. O princípio é dado a seguir: quanto mais as cláusulas estiverem integradas semanticamente, menos chances há de o sujeito da subordinada receber a marca de agente. Os exemplos (28) e (29) ilustram o princípio: o primeiro exemplo tem cláusulas menos integradas, com a subordinada tendo sujeito com marca de agente (pronome no caso reto); o segundo exemplo tem cláusulas mais integradas e o sujeito da subordinada é codificado como objeto (pronome no caso oblíquo): (28) Ele disse que ela virá. (29) Ele o mandou sair. A hierarquia da marcação de caso do sujeito da subordinada é: (i) agente> dativo>paciente>outros (ii) sujeito > objeto direto > oblíquo Eventos menos integrados são codificados com os sujeitos sendo independentes e marcados como agentivos. 65 O terceiro modelo agrega os casos em que a subordinada é codificada através de uma forma não-finita, com redução da marcação de tempo, aspecto e modo. Esse modelo permite verificar a integração através da forma como a cláusula subordinada é codificada, se de forma desenvolvida ou não-finita (numa das três formas nominais do verbo). A primeira forma é mais integrada e a segunda forma é menos integrada. No segundo modo de codificação, há redução da marcação de tempo-modo-aspecto. A forma não-finita congrega várias maneiras, mais ou menos integradas, de fazer a subordinação. O quarto e último modelo refere-se ao uso de diferentes conectivos para marcar a subordinação. Quanto menos integrados forem duas cláusulas (e dois eventos), maior chance há de a subordinada vir introduzida por um conectivo ou vir depois de uma pausa. Segundo Givón, a pausa é provavelmente o meio mais icônico de indicar o grau de separação entre cláusulas que codificam eventos. Ela representa um espaço de tempo, durante o qual o falante realiza determinadas mudanças em termos de tempo, espaço, referentes, verdades, etc. Muitas das categorias apresentadas neste trabalho de Givón também foram utilizadas na presente tese para se verificarem diferenças de usos de verbos de grupos semânticos diferentes, diferenças de usos de verbos do mesmo grupo semântico e diferenças de usos de um mesmo item lexical (cf. capítulo 5). Givón apresenta dois pólos de integração, tomando como ponto de partida o sentido do verbo da cláusula principal: no pólo menos integrado estão os verbos cognitivos e no pólo mais integrado estão os verbos manipulativos e os de modalidade. Nesta tese, consideram-se três níveis distintos de integração, sendo as construções com verbos cognitivos as menos integradas e as construções com verbos de modalidade (aqui chamados modais ou aspectuais) as mais integradas. As construções com verbos manipulativos (aqui considerados volitivos) estão num grau intermediário de integração. Há também diferenças de integração dentro de um mesmo grupo semântico de verbos e nos usos de um mesmo verbo. 66 3.5- Estágios de gramaticalização de verbos: a proposta de Heine Heine apresenta sete estágios diferentes de gramaticalização de itens verbais, tendo como base quatro fenômenos importantes para a compreensão do processo de gramaticalização: a dessemantização (esvaziamento de sentido lexical), a descategorização (mudança de classe gramatical ou perda de traços de uma dada classe gramatical), a cliticização (integração do item ao verbo principal) e a erosão (diminuição da intensidade e/ou de fonemas). Os estágios de gramaticalização detectados foram designados de Estágio A, Estágio B, etc. até o Estágio o G. Tais estágios caracterizam um contínuo chamado “Verb-to-TAM chain”17, que, na verdade, substitui as abordagens tradicionais que tratam as categorias como discretas. No estágio A, o verbo pertence a uma classe aberta, contendo uma lista enorme de itens. Nos estágios sucessivos, o número de itens vai diminuindo e no estágio final, há um número mínimo de ocorrências. As características de cada estágio e a exemplificação serão dadas a seguir. Estágio A: representa o estágio dos esquemas de origem (objetos concretos, processos ou localizações) em que os itens têm significado lexical e apresentam um complemento que é tipicamente um objeto concreto. Os exemplos a seguir representam localização, movimento, ação e volição, respectivamente: (30) Paulo está em casa. (31) O ônibus veio de Niterói. (32) Ele pegou o ônibus. (33) Meu amigo precisa de uma entrada para o cinema. Estágio B: aqui começa a auxiliaridade. O complemento do verbo é um evento. (34) Ele evitou pegar aquele trem. As características são: 17 TAM é Tempo, Aspecto e Modo. 67 a- seus complementos são verbos não-finitos; b- a identidade de sujeitos não é um requisito obrigatório; c- o complemento verbal apresenta-se de diferentes formas: gerúndio, particípio ou infinitivo; d- e o complemento também pode ser uma construção clausal finita: (35) expliquei direitinho... aí ela deixou fazer a segunda chamada... aí eu fiz a segunda chamada e até que eu tirei uma boa nota na prova... (ISA16, N, R) (36) a gente deixa que as pessoas nos ... nos iluda realmente (GLI3, O, L) Estágio C: o sujeito não está mais confinado a referentes humanos. O verbo passa a expressar apenas noções de tempo, aspecto ou modo. O verbo-complemento pode ter a mesma raiz do verbo gramaticalizado. Um caso existente no português oral é o uso do verbo acabar como em: “Ele acabou de acabar o exercício”. Exemplos em inglês, mais naturais, mais gramaticalizados do que o uso de acabar em português, podem ser lidos a seguir: (37) “He is to be here by noon.” (38) “Desmond keeps keeping dogs.” Os verbos chamados quase-auxiliares, semi-auxiliares e catenativos (denominação de Palmer (1965) para o verbos que formam uma locução, como em “I want to go”, mas não são auxiliares prototípicos) estão nesse estágio. As características dos verbos em processo de gramaticalização no estágio C são: a- o complemento é um verbo não-finito, havendo forte conexão entre os dois (como em “Ele começou a estudar”); b- a identidade de sujeito é um fator obrigatório; c- o verbo e o complemento referem-se ao mesmo tempo; d- o verbo normalmente não apresenta conjuntamente as distinções de Tempo, Aspecto e Modo (“TMA distinctions”), como o verbo parar em “Ele está parando de beber”, que marca o aspecto progressivo, mais do que um tempo ou um modo; 68 e- e o verbo e o complemento representam uma só unidade semântica. Estágio D: nesse estágio estão os verbos que perderam a habilidade de formar imperativos, de serem nominalizados ou de ficar na voz passiva. Seus complementos são sempre um verbo no infinitivo ou no gerúndio. Um exemplo poderia ser “Ele vai vir”. Estágio E: aqui o item não é mais considerado verbo. Ele perde sua capacidade de ser negado e de ser usado em diferentes posições na cláusula. Um item no Estágio E é híbrido, porque perde propriedades verbais, mas ganha outras propriedades. Aqui pode correr cliticização e erosão. Os modais do inglês como can, may, should e would estão nesse estágio. Estágio F: nesse estágio o verbo perde as características verbais remanescentes. É um elemento da gramática. Seu complemento passa a ser interpretado como verbo principal. O item verbal deixa de ser um clítico e passa a ser afixo, um morfema preso. No entanto, os resíduos morfossintáticos permitem indicar a estrutura original. Um exemplo pode ser encontrado na língua Swahili. Nela há um prefixo, ta, que é um marcador de futuro derivado do verbo taka ‘querer’: (39) a- taka kazi. 3.SG.- querer trabalho. “Ele quer trabalho” b) a- ta-ku-ja. 3.SG-FUT-INF-vir “Ele virá”. Estágio G: é o estágio final da gramaticalização: o afixo torna-se uma flexão, não apresentando tom ou intensidade diferentes do outro verbo. Segundo Heine, nos Estágios A e B, os verbos são lexemas ou verbos plenos; no Estágio C, os verbos são chamados semi-auxiliares ou catenativos. 69 Nos Estágios D e E, os verbos estão associados à noção de verbos auxiliares; em F os verbos são auxiliares ou afixos e em G são flexões. Como se trabalha com a noção de estágio, não se deveria usar o termo “verbo auxiliar” ou mesmo apenas “auxiliar”. No entanto, é difícil fazer uma descrição sem mencionar uma terminologia. É preciso que fique claro que a categoria chamada auxiliar envolve diversos estágios de gramaticalização. Para Heine, o auxiliar é “um item lingüístico que codifica um conjunto de usos ao longo do contínuo “verb- to –TAM” (verbo > flexão). (p. 70)18 Segundo Bolinger (1980:297), “O fato histórico precisa ser visto na sua estrutura sincrônica: as formas estão em transição (...). No momento em que a um verbo é dado um complemento não-finito, esse verbo começa a sua trajetória de auxiliaridade. Pode-se marcar não mais que um início ou pode-se percorrer toda a trajetória, A diferença entre “I plan to go” e “I will go” é uma questão de grau.”19 O auxiliar não é o elemento final do contínuo, mas uma categoria intermediária, havendo a possibilidade de se tornar um afixo ou uma flexão. Como sendo uma categoria intermediária, exibe características de estágios intermediários entre o verbo pleno e a flexão. Algumas características serão apresentadas a seguir (cf. Heine, p. 86-87): a- O auxiliar faz parte de um grupo de entidades usadas para expressar tempo, aspecto, modo, etc. b- O auxiliar apresenta morfossintaxe verbal. c- O verbo principal, historicamente complemento, é uma forma invariável, enquanto o auxiliar carrega as marcas gramaticais de pessoa, número, negação, etc. 18 19 An auxiliary is a linguistic item covering some range of uses along the VERB-to-TAM chain.” The historical fact needs to be seen in its synchronic frame: the forms are in transition (...).The moment a verb is given an infinitive complement, that verb starts down the road of auxiliariness. It may make no more than a start or travel all the way. The difference between “I plan to go” and “I will go” is one of degree. 70 d- O auxiliar, como resultado do processo de descategorização, ocupa um lugar fixo na cláusula e exibe um comportamento verbal reduzido, perdendo a capacidade de ser apassivado, de apresentar-se de forma imperativa, etc. e- Como resultado da erosão, o auxiliar não apresenta intensidade. Com base na proposta de Heine da existência de estágios diferentes de gramaticalização de verbos nas línguas, propõe-se, nesta tese, a existência de diversos estágios de gramaticalização no uso dos seis verbos escolhidos do português e mesmo nos usos de um mesmo item verbal, como será apresentado no capítulo 5. Medindo-se os graus de integração de cláusulas, é possível detectar estágios diferentes para os verbos estudados e para os usos de um mesmo verbo. Os usos estudados representam fases iniciais do processo de gramaticalização cujos estágios finais não necessariamente devam ocorrer. Um trabalho anterior à emergência dos estudos modernos de gramaticalização e que trata de escala envolvendo verbos do português é o de Kneipp (1980). Apesar de influenciada pelos testes do modelo gerativista e pelas suas categorias de análise, a autora faz um trabalho quantitativo pioneiro com relação à idéia de escala para apresentar pontos diferentes para a sincronia dos verbos. Ela estuda cerca de 50 verbos transitivos, procurando mostrar que há diferenças entre verbo auxiliar e modal, apresenta escalas em que os verbos são juntados em 4 grupos, um deles o grupo do verbo pleno prototípico estudado (o verbo exibir), dois grupos de verbos modais de diferente natureza e um grupo de verbos auxiliares. Não há no trabalho menção acerca de contínuo de mudança e a tese trabalha com a idéia de “uso possível” para um verbo, mas as escalas demonstram que é possível medir a distância entre verbos de natureza categorial diferente. 71 4- DESCRIÇÃO DO CORPUS E METODOLOGIA Este capítulo é destinado à descrição da amostra de língua portuguesa, com a apresentação das principais características dos canais oral e escrito e dos tipos de textos que compõem esta amostra. Há a apresentação da metodologia utilizada e a descrição das categorias lingüísticas e extralingüísticas controladas na pesquisa. 4.1- Corpus O principal corpus analisado é o denominado Corpus Discurso & Gramática, que é subdividido em cinco subcopora, a saber: corpus do Rio de janeiro com 147.690 palavras; corpus do Rio Grande com 31.890 palavras; corpus de Natal com 182.494 palavras; corpus de Juiz de Fora com 48.016 palavras; e corpus de Niterói com 25.575 palavras. Há um total de 435.665 palavras de língua oral e escrita produzidas por 166 informantes, que se distribuem segundo o quadro número (1). O corpus de Niterói, no momento da coleta de dados, ainda não estava completo , apresentando 14 informantes. Rio de Niterói Natal Rio Grande Juiz de Fora Total Janeiro o 3 grau 8 3 4 2 4 21 2o grau 16 2 4 5 4 31 a 12 3 4 4 4 27 a 4 série 34 3 4 4 4 49 Série inicial 23 3 4 4 4 38 93 14 20 19 20 166 8 série a (Alfa + 1 . ) Total Quadro 1 - Número de informantes por amostra. Cada informante produziu cinco textos orais e cinco textos escritos correspondentes quanto ao assunto. Os textos obedecem a uma tipologia pré- 72 estabelecida, que é: narrativa experiencial, narrativa recontada, descrição de local, relato de procedimento e relato de opinião. Dos cinco corpora que formam o grande Corpus Discurso & Gramática, o de Natal é o que se mostra mais diferente, porque os informantes falam mais e não obedecem muito à tipologia. Alguns começam a contar uma história e durante algum tempo (cerca de duas ou três páginas transcritas) dão opinião sobre algum fato. Outros fazem enormes narrativas como argumentos nos relatos de opinião. Como se vê no quadro (1), o corpus está dividido conforme o grau de escolaridade dos informantes: alfabetização, quarta-série, oitava série, terceiro ano do segundo grau e universitário. O corpus do Rio de Janeiro, diferentemente de todos os outros, apresenta informantes adultos na Alfabetização. O corpus de Niterói apresenta informantes crianças na 1a. série e não apresenta informantes na Alfabetização. Aqui os textos dos alunos da Alfabetização e os da primeira série foram computados juntos, formando o que se denominou “Série inicial”. O corpus JB é composto por 100 editoriais extraídos do jornal durante o segundo semestre de 1999. O uso deste corpus serviu para equilibrar o número de linhas produzidas na modalidade oral e na escrita e amenizar um dos problemas do Corpus Discurso e Gramática: há textos escritos muito pequenos, com apenas 1 linha. 4.1.1- Canal oral e canal escrito No corpus Discurso & Gramática, há 830 textos orais e o mesmo número de textos escritos correspondentes quanto ao tema, produzidos pelos 166 informantes, uma vez que cada informante produziu 5 textos orais e 5 textos escritos. Além disso, como foi dito, há mais 100 editoriais do corpus JB. O objetivo aqui é verificar se há diferenças entre os canais oral e escrito com relação ao uso de diferentes verbos transitivos e em relação aos diferentes usos de um mesmo verbo. 73 Serão apresentadas algumas informações que ajudam a entender os resultados referentes aos usos dos verbos aqui analisados. Adiantando os resultados da análise, pode-se dizer que há usos de um item verbal que são típicos de um canal como, por exemplo, os usos de “Deixa eu pensar”, “Deixa eu ver”, que são próprios da fala. As diferenças mais relevantes entre os canais oral e escrito, na língua portuguesa, são decorrentes da diferença de formalidade entre os dois. As diferenças semânticas e gramaticais são principalmente atribuídas à escala de formalidade existente. Além disso, há os diferentes tipos de textos, uns mais usados na língua escrita, outros mais usados na língua oral. Tudo isso leva à concepção de escalas com pontos de aproximação e de afastamente entre os dois canais. Os diferentes registros do canal escrito não se apresentam no mesmo nível dos registros do canal oral, uma vez que os registros da escrita são sempre mais formais que os correspondentes da oralidade (Cf. Kato, 1987 e Stubbs, 1982). Para Chafe (1982), há dois fatos responsáveis pelas diferenças fundamentais entre fala e escrita: a velocidade de processamento e a interação entre emissor e receptor. O primeiro fato diz respeito à velocidade mais lenta para o processamento da escrita, uma vez que o indivíduo tem mais tempo para pensar na estruturação das frases e pode integrar várias idéias com mais eficiência. Segundo o autor, o indívíduo, na fala, verbaliza uma unidade de idéia de cada vez. Por unidade de idéia ele entende o enunciado com um contorno entonacional coerente, limitado por pausa e possuindo uma estrutura sintática simples. Por causa dessa forma de verbalizar as unidades de idéias, a fala é mais fragmentada e entrecortada por períodos de pausa. A escrita, ao contrário, tende a ser mais coesa, obedecendo a modelos estruturais mais complexos e integradores, prescritos pela gramática normativa e costuma reunir várias unidades de idéia num mesmo período. O segundo fato diz respeito ao envolvimento mais direto ou mais indireto do emissor com o receptor. No canal oral, o falante e o ouvinte, na maioria das 74 vezes, interagem diretamente e dividem um conhecimento com relação ao contexto da conversa. O falante constrói o discurso atentando também para as reações do ouvinte, que, por sua vez, pode interromper o discurso do outro, pode fazer perguntas, fazer gestos expressando concordância, discordância, admiração, etc. Na escrita, o emissor deve apresentar estratégias para substituir a falta da interação face-a-face e tornar o seu texto claro e agradável. Essas estratégias (pontuação correta, elementos coesivos, criação da imagem do leitor, etc.) são aprendidas à medida que o indivíduo aumenta o seu grau de escolaridade ou de familiaridade com a escrita. Além disso, o texto escrito pode ser lido por várias pessoas em épocas e lugares diferentes. Os trabalhos de Tannen (1985) e Biber (1988) enfatizam a idéia da existência de um contínuo entre fala e escrita, não havendo características exclusivas para cada canal. A fala prototípica é face-a-face, tendo foco no envolvimento interpessoal e a escrita prototípica apresenta o mínimo de envolvimento interpessoal e tem seu interesse voltado para a informação. Para Tannen, há duas hipóteses que afastam a fala e a escrita no contínuo. Uma hipótese é relacionada ao contexto de produção: a fala é muito dependente do contexto; enquanto a escrita, ao contrário, depende pouco do contexto. Outra hipótese é relacionada à coesão: na fala, a coesão não é tão marcada pelo uso de conectivos, ao contrário do que ocorre com a escrita, em que as inferências são menores pois os conectivos estão mais explícitos. Outros recursos coesivos são utilizados na fala, como, por exemplo, os recursos suprassegmentais. 4.1.2- Tipos de texto Para a composição dos cinco tipos de textos presentes no corpus D & G, os entrevistadores foram treinados para fazerem perguntas ou pedidos que levassem o falante a produzir os tipos de texto que se queriam: a) conte uma história interessante que tenha ocorrido com você; b) conte uma história que alguém tenha lhe contado; c) descreva o lugar onde você mais gosta de ficar; d) 75 explique algo que você sabe fazer; e e) dê a sua opinião sobre X (escola, país, família, etc.). Os textos orais dos informantes de Natal são muito maiores do que os das outras amostras. Além disso, os informantes geralmente não ficam restritos à pergunta que estimula o tipo de texto pretendido. Os falantes misturam tipos de textos, como, por exemplo, quando descrevem um lugar e contam algo interessante que tenha ocorrido lá ou dão opinião sobre as pessoas que freqüentam ou trabalham naquele lugar. De qualquer forma, considerou-se o principal objetivo do falante, que seria o de responder a pergunta feita pelo entrevistador, em conformidade com as propostas de Swales (1990) e Paredes da Silva (1996a e b), que atribuem um peso grande à função/propósito para a classificação do gênero ou tipo de texto. Alguns autores distinguem ‘Gênero’ de ‘Tipo de texto’ (como Biber, 1988). O gênero refere-se às estruturas de organização lingüística existentes (como entrevistas, cartas, sermões, etc.) e o tipo de texto seria a concretização dessas estruturas em narrativas, relato de opinião, etc. Alguns autores utilizam somente um dos termos para se referir aos dois conceitos. Schiffrin (1994), por exemplo, adota a postura de se utilizar somente a expressão “Tipos de texto”. Nesta tese, não se fará distinção esses dois termos. Serão apresentadas algumas características dos tipos de textos. A base para as informações aqui contidas é dada a partir dos trabalhos de Paredes da Silva (1995, 1996a e 1996b), que são feitos, por sua vez, a partir da análise e crítica das pesquisas de autores como Biber (1988) e principalmente Schiffrin (1994). Algumas das características atribuídas às diferenças entre os canais oral e escrito podem ser, na verdade, diferenças decorrentes dos tipos de textos. Os autores que trabalham com gênero ou tipos de texto (a partir daqui esses termos serão tratados como equivalentes) afirmam que é difícil lidar com esse parâmetro, principalmente quando se leva em conta que os falantes fazem uma série de digressões e misturam os tipos de textos. Mesmo no canal escrito é 76 difícil determinar os traços distintivos. Nesta tese, no entanto, serão focalizados apenas os tipos de textos presentes no corpus analisado. Paredes da Silva (1996) apresenta duas visões a respeito da classificação dos tipos de texto: a da etnografia da fala e a da sociolingüística. A etnografia da fala preocupou-se com a classificação tipológica devido à necessidade de caracterizar textos orais provindos do folclore, como o trabalho feito por Fraz Boas e seus seguidores. No século XIX, os irmãos Grimm fizeram um trabalho pioneiro para classificar as histórias do folclore. Muitos dos que estudaram o folclore tinham como preocupação as organizações discursivas e os rótulos que eram utilizados dentro de uma comunidade discursiva. A partir de 1960, a etnografia destaca-se com Hymes, que procurou relacionar o conceito de gênero com atos de fala, eventos e situações de fala. Um sermão, por exemplo, é tipicamente usado na igreja, durante a missa (situação/contexto), mas se for levado para outro lugar poderá ganhar efeitos humorísticos. Segundo Paredes da Silva (1996b:6): Embora a definição de Hymes privilegie as atividades comunicativas onde se dá o discurso, o aspecto formal dos gêneros não é esquecido: para Hymes, a noção de gênero implica a possibilidade de identificar características formais tradicionalmente reconhecidas. Em outras palavras, o que define o gênero na perspectiva da etnografia da comunicação é a organização convencional de recursos e estruturas formais, em níveis que ultrapassam o da sentença, estruturas essas que “constituem esquemas de referência complexos para a prática comunicativa”(Briggs & Brauman, 1992:141 in Paredes da Silva, 1996a). A sociolingüística, a partir dos trabalhos de Schiffrin (1994), distingue de um lado as estruturas que organizam a informação (por exemplo, linearidade de eventos, predicados estativos, recursos expressivos, etc.) e de outro as unidades de discurso ou tipos de textos. Cada tipo de texto pode apresentar várias estruturas de informação, mas sempre há o predomínio de uma delas. Baseando-se nestas idéias e conjugando fatores formais e funcionais, Paredes da Silva propõe que se estabeleçam níveis para uma tipologia de textos. 77 Um dos níveis seriam as estruturas discursivas ou “modos de organização de informação, que representariam as potencialidades da língua, as rotinas retóricas ou formas convencionais que o falante tem a sua disposição na língua quando quer organizar o discurso.” (Paredes da Silva, 1996b:9) Aqui se destacam categorias como tempo/aspecto/modo, pessoa do discurso, unidade sintática básica, etc. Dos gêneros ou tipos de textos existentes na presente tese, eis algumas das suas características predominantes de acordo com esse nível proposto por Paredes da Silva: a) narrativas (estrutura narrativa)- verbo no pretérito perfeito em predicados de ação, em torno de eventos referentes à primeira pessoa (narrativa experiencial) ou referentes à terceira pessoa (narrativa recontada) e cláusulas apresentadas em ordem temporal. b) descrições de local (estrutura descritiva): verbos na forma não perfectiva, num predicado estativo em torno de entidades (normalmente de terceira pessoa sintaticamente centradas em estruturas nominais); c) relatos de procedimento (estrutura procedural): organização seqüencial (como também ocorre nas narrativas); uso de sujeitos genéricos (normalmente você, no corpus D&G); verbo no modo imperativo ou numa das formas do futuro ou no infinitivo e predomínio de cláusulas independentes. d) relatos de opinião (estruturas expressivas ou avaliativas e ainda as estruturas expositivas ou argumentivas): verbos geralmente no presente, predicados com verbos de opinião ou avaliativos ou subjetivos na primeira pessoa. e) editoriais (estruturas expressivas ou avaliativas e ainda as estruturas expositivas ou argumentivas): verbos geralmente no presente do indicativo, predicados com verbos dicendi e estruturas sintáticas complexas. Outro nível proposto por Paredes da Silva refere-se ao uso das estruturas em situações reais de comunicação. Os traços lingüísticos (estruturas discursivas) apontados no primeiro nível apresentam-se em unidades comunicativas que 78 ocorrem em contextos específicos. Esse segundo nível distingue muitos tipos de textos, pois leva em consideração as diversas atividades e os diversos locais. As estruturas lingüísticas são analisadas para se detectar a unidade comunicativa, que é um discurso organizado estrutural e funcionalmente numa piada, numa conferência, numa reportagem policial, num editorial, etc. Há ainda um terceiro nível – o que considera a função (função/propósito de acordo com Nichols, 1984) comunicativa. Verifica-se, neste nível, o propósito da comunicação, a força ilocucionária e a variedade de eventos comuncativos. Há aqui superposição como, por exemplo, uma história contada com o objetivo de se dar um conselho. Outros detalhes acerca dos diferentes gêneros e subgêneros podem ser vistos em Biber (1988), onde são mostradas as diferenças entre, por exemplo, conversa pessoal no telefone, conversa de negócio também no telefone, prosa acadêmica sobre Matemática, notícias, etc. 4.2- Metodologia de coleta e de codificação Foram coletadas todas as cláusulas com os verbos achar, ver, saber, querer, mandar e deixar com complemento oracional. Esse complemento pode ser uma cláusula desenvolvida ou uma cláusula reduzida. A seguir são expostos alguns exemplos dos dados relevantes a essa pesquisa: (1) Um amigo nosso deu um belo tapa no rabo da jumenta e ela saiu disparada e incontrolável em direção de uma árvore e eu cada vez mais achando que ela ia bater já que não conseguia guiá-la. (YUR24, N, R, Esc) (2) eu não costumo ir à igreja... porque eu acho que Deus não está em muita gente ali... (DIV2, O, L) (3) bom... eu acho que a história da vida do meu pai é uma história interessante... (ALC1, R, J) (4) teve que prestar socorro do cara lá né ... aí eu sei que ele fez os curativos lá no... no... no... cara (CAR1, R, L) 79 (5) existe circuito fechado... não sei se está funcionando, porque faz tempo que não vejo funcionar ( CAR1, D, L) (6) eu... eu sei fazer pizza... preparo desde a massa, né... (CAR9, P, R) (7) se você ler a bíblia profundamente ... você vai ver que Deus não é esse Deus a igreja protestante prega... (DIV2, O, L) (8) quando ele viu que o carro ia cair dentro do rio ... aí ele... colocou o carro num... (ROS3, N, L) (9) então eu vejo que todos têm assim uma certa confiança ... na minha responsabilidade (LEO10, D,J) (10) Ele mandava o policial prender ele mas o policial não prendeu (LUC3, R, L) (11) A diretora do maternal mandou chamar minha mãe urgentemente, e disse a ela que eu tinha sérios problemas psicológicos (MAG6, R, G) (12) a minha colega não parava de falar, então a diretora mandou que ela se calasse (PAT30, R, R) (13) minha mãe... quando... ela era adolescente... a minha avó não... deixava que ela fosse pro/ para os bailes se divertir... né? e a minha mãe detestava isso... (...) ela combinou com a minha tia... eh... de... a minha tia dizer pra... pra... minha avó... que ela estava no quarto dormindo... (VAN, R, R) (14) aí deixa ficar dez minutos cozinhando (JEA, P, R) (15) A exploração política das favelas deixou de oferecer vantagens depois de demonstrada a incapacidade de deter a ocupação desordenada e predatória dos morros (CEM, JB) (16) todo mundo queria que ele fizesse gol, mas ele só queria agarrar (FAB83, R, R) (17) Dois pivetes armados de canivete pararam os dois e queriam roubar o seu dinheiro, mas como tinham apenas as passagens de ônibus os garotos roubaram os tênis (DAN12, R, G, Esc) (18) e pensar no assunto...que você quer trabalhar com a criança (CIN7, P, J) Os dados que foram eliminados na análise são do tipo: 80 a) período com a subordinada com sujeito inexistente (o mais comum é o caso do verbo ter ou haver com sentido de existir): (19) aí quando ele soube que havia um antagonismo muito forte por parte da família (DIV2, N, L) b) períodos conclusivos com a expressão “eu acho que é isso”: (20) I: (...) está faltando mais integração das pessoas... né? na escola também ... e está/em geral... não sei ... está muito desvalorizado o ensino... E: das escolas? I: é eu acho que é isso... (FLA10, O, G) c) período com interrupções, falsos começos com relação ao sujeito da principal ou da subordinada: (21) eu acho que ela não... você não gosta dessa montanha por causa da cor... (ITA4, P, N) d) períodos com interrupções, falsos começos, hipérbatos, em qualquer trecho, criando confusão para a análise: (22) eu acho que a educação... qualquer problema ... social... que possa vir... tem que resolver primeiro o econômico (AND1, O, R) e) períodos com ambigüidade na referência do sujeito da cláusula principal ou na da subordinada (no corpus só houve ambigüidade com relação ao sujeito da subordinada: (23 ) olho na geladeira ... vejo se tem suco pronto (MARI, P, N) No exemplo (23), há uma ambigüidade: a cláusula completiva do verbo ver pode ter sujeito inexistente com o verbo ter com o sentido de ‘existir’; ou a cláusula completiva pode ter sujeito oculto com o referente sendo “geladeira”. Os dados foram analisados segundo um grupo de categorias lingüísticas e uma categoria extralingüística (Escolaridade), de modo que se pudessem obter os resultados através dos programas Makecell (para obtenção das freqüências) e Crosstab (para cruzamento de diferentes categorias). As categorias controladas são descritas neste capítulo. Os dados da língua oral são transcritos segundo a ortografia oficial. Os dados de língua escrita são apresentados exatamente como 81 os informantes escreveram, mantendo-se os erros ortográficos ou gramaticais. Os exemplos de língua escrita aqui apresentados são discriminados com as iniciais “Esc”, enquanto os de língua oral não apresentam identificação. Os verbos analisados podem ser, semanticamente, divididos em dois grupos: um grupo de verbos cognitivos (achar, ver e saber) e um grupo de verbos volitivos (mandar, querer e deixar).20 São codificações de duas modalidades, conforme demonstrado em Palmer (1986) e em Costa (1995), dentre outros. O conceito de modalidade é de difícil definição, havendo muitas variações entre os autores na forma de concebê-lo e subdividi-lo. Segundo Costa (1995), a modalidade “funciona como recurso do sistema para demarcar, em moldes convencionais e históricos, as atitudes que, de outra forma, seriam expressas de maneira particular e assistemática, as diferentes atitudes passam, então, a ser traduzidas pelos conceitos de realis e irrealis: realis – certeza, verdade factual; irrealis – hipótese, possibilidade, dúvida, condição, virtualidade. Na construção do enunciado, o realis é a categoria esperada, o membro não-marcado da distinção. Para expressá-lo, não são necessárias marcas lingüísticas específicas. Já o irrealis deve ser caracterizado como a expressão marcada da modalidade, porque tem uma função específica na constituição do ato discursivo. (Costa, 1995:7) Lúcia Lobato (1971) a define como sendo uma apreciação qualitativa enxertada sobre o enunciado mínimo, e que traduz ou uma tomada de posição do sujeito falante (reforço da ação enunciada, ou do seu caráter aparente, necessário ou provável), ou a manifestação da vontade, dos sentimentos ou do julgamento do sujeito gramatical. (p.99) Os principais tipos de modalidades apresentadas pela Lógica são descritos aqui de forma bastante resumida. Um tipo é a modalidade alética, que representa a indicação do necessário e do possível. Não é tratada nesta tese, porque os verbos aqui estudados não funcionam como operadores desta modalidade. 20 Na seção 1.2, foram apresentadas as dificuldades de classificação semântica dos grupos de verbos e as características de cada um dos grupos. Na seção 3.4, também há descrições sobre os grupos semânticos de verbos. 82 Um segundo tipo é a modalidade epistêmica, que representa o nível do raciocínio, do intelecto, da percepção e é responsável pela expressão de julgamentos, de certezas, de dúvidas e de crenças do falante. Aí figuram os verbos cognitivos analisados nesta tese achar, ver e saber. O terceiro tipo é a modalidade deôntica, representativa de um nível mais concreto relacionado a enunciados mais diretivos, avaliativos ou volitivos. Neste caso, um referente procura atuar sobre outro. Neste grupo, estão os verbos querer, deixar (só os usos com sujeito diferente) e mandar. Em Kneipp (1980), há mencionadas algumas divergências entre autores quanto à questão da divisão dos grupos de verbos que expressam modalidade. Muitas vezes, o verbo querer não se apresenta na lista dos deônticos, mas numa lista à parte, expressando vontade, junto com os verbos desejar, pretender, etc. (cf. Kneipp, 1980:23). Cervoni (1989) diz que, quando o sujeito de querer é diferente, há um vínculo com a noção de obrigação. Mas esse vínculo se apaga em outras construções com sujeito idêntico, como em “Ela queria ser bonita”, que expressa apenas um sonho. A modalidade pode ser expressa de várias formas: através de verbos plenos como o verbo achar, que pode representar a modalidade epistêmica; através de um auxiliar como poder, que pode representar a modalidade deôntica (num dos seus sentidos); através de um advérbio ou locução adverbial como talvez, às vezes; através de adjetivos como possível, necessário, dentre outros. Essas lexicalizações são chamados operadores modais ou modalizadores. Segundo Kock (1993), os modalizadores são os elementos lingüísticos ligados ao evento de produção do enunciado e que funcionam como indicadores das intenções, sentimentos e atitudes do locutor com relação ao seu discurso. Estes elementos caracterizam os tipos de atos de fala que deseja desempenhar, revelam o maior ou menor grau de engajamento do falante em relação ao conteúdo proposicional veiculado, apontam as conclusões para as quais os diversos enunciados podem servir de argumento. (p. 138) Como foi dito na seção 3.1, o princípio mais importante para a pesquisa é o da Iconicidade, sobretudo o seu subprincípio da Proximidade, que será aqui 83 direcionado para a integração de cláusulas: Quanto mais forte for a conexão semântica de dois eventos, mais forte é a conexão sintática de duas proposições em uma única oração. Como explica Braga (1999), baseando-se em Lehmann (1988), quando se testa o princípio da iconicidade e, mais especificamente, o subprincípio da proximidade, deve-se atentar para duas perspectivas: a da oração principal e a da oração encaixada: De acordo com o primeiro ponto de vista, interessa verificar se o verbo da oração principal está envolvido em algum processo de gramaticalização, processo que, ao provocar uma mudança no seu estatuto categorial, transforma-o em auxiliar, modal, aspectual, etc. e determina, igualmente, a perda de sua autonomia. De acordo com o segundo ponto de vista, isto é, do complemento oracional, cumpre investigar se esse está perdendo as propriedades das orações prototípicas, quais sejam, modo, tempo, aspecto e actantes distintos daqueles do verbo matriz. (p.16) Esse subprincípio é testado, nesta tese, através de 9 fatores que formam uma categoria maior: a categoria denominada “Graus de integração de cláusulas”. O subprincípio engloba fenômenos relacionados a processos de gramaticalização de verbos transitivos seguidos de complemento oracional. O Princípio da Marcação é testado sobretudo na análise da freqüência dos graus de integração de um item lexical particular. Por exemplo, a estrutura com um verbo seguido de uma cláusula desenvolvida, como no exemplo (5), é mais complexa do que a estrutura com o mesmo verbo seguido de cláusula reduzida, como no exemplo (6) (complexidade estrutural). A primeira estrutura tem sua distribuição menor do que a primeira (“Freqüência de distribuição”) e também é mais complexa cognitivamente, pois envolve dois eventos (“Complexidade cognitiva”).21 Um dos principais objetivos desta tese é o estabelecimento de estágios de gramaticalização para cada verbo estudado e para os usos de cada verbo, observando-se as relações entre a cláusula principal e a completiva. Portanto, 21 Cf. seção 3.1 desta tese. 84 entre os dois Princípios do funcionalismo, o Princípio da Iconicidade é o mais explorado aqui. Esse princípio permite-nos apresentar as três hipóteses principais da tese: (a) verbos de grupos semânticos diferentes (verbos cognitivos X verbos volitivos) devem estar em diferentes pontos de uma escala de integração; (b) verbos como deixar, mandar e querer, todos do mesmo grupo (verbos volitivos), devem estar em pontos diferentes da escala de integração. (c) um item verbal como, por exemplo, o verbo deixar tem diferentes usos no português oral sincrônico (ex. “Deixar que a menina saia”; “Deixar a menina falar”; e “Deixar de ser triste”) e cada uso pode representar um estágio de gramaticalização. A pesquisa permite testar também a premissa principal do Princípio da Iconicidade: cada função é codificada por uma forma. Outras hipóteses são apresentadas na medida em que as categorias controladas são expostas neste capítulo. Além disso, na seção 1.1, estão listados todos os objetivos e as hipóteses desta tese. 4.2.1- Categorias lingüísticas Como foi dito, das categorias lingüísticas controladas, 9 formam uma categoria maior denominada “Graus de integração de cláusulas”. Atribuiu-se uma pontuação para cada categoria e a soma de todas as pontuações das categorias totaliza um grau de gramaticalização, que por sua vez codifica um estágio de gramaticalização possível. Com o controle desses 9 fatores, há três possibilidades de análise: a) analisar o resultado de cada fator para cada verbo (verbos achar, ver, saber, mandar, querer e deixar); b) analisar e apresentar o grau de integração de cada dado relevante, através da soma dos fatores; 85 c) e comparar o comportamento sintático-semântico dos dois grupos de verbos, os cognitivos e os volitivos. Primeiramente, dar-se-á uma descrição dos fatores22 com a exemplificação e as expectativas quanto à contribuição de cada fator para análise da integração de cláusulas. Na seção seguinte, será apresentada a pontuação atribuída a cada fator. A- Modo da cláusula subordinada (análise sintática): verifica-se se o modo do verbo da cláusula subordinada é o indicativo (exemplo 24), o subjuntivo (exemplo 25) ou (c) um modo não-finito – gerúndio ou infinitivo (exemplo 26 e 27): (24) Não sei se me lembro bem dessa história (ERI3, R, R Esc) (25) eu não queria que ele corresse (ANG41, N, R) (26) eles deixam as escolas caindo aos pedaços” (SUZ21, O, R) (27) “a minha avó deixa eu fazer tudo que eu quero” (FLA48) A cláusula no modo indicativo é mais independente do que no modo subjuntivo. Como é sabido, no português, o subjuntivo (que é pouco freqüente na língua) raramente ocorre numa cláusula independente. No modo não-finito, há uma integração ainda maior entre a cláusula principal e a subordinada, a tal ponto que ambas podem tornar-se uma só cláusula, com um auxiliar seguido de um verbo principal (cf. seção 2.1). Como foi dito, a gramaticalização pode se iniciar quando um verbo transitivo começa a ser usado com um complemento não-finito. Para Givón (1990; 1995), o uso do verbo subordinado no modo subjuntivo, por exemplo, já é um indício de que a integração entre as cláusulas está mais forte e o processo de gramaticalização se iniciou. 22 A maior parte das categorias apresentadas encontra-se em Votre (1992), Givón (1990; 1995) e Rochette, (1988). 86 Os verbos cognitivos apresentam uma freqüência alta de dados com subordinada no modo indicativo. Os três verbos volitivos são mais gramaticalizados, apresentando quase todas as suas ocorrências com completiva no modo não-finito. Apenas o verbo querer é que tem um número relativamente significativo (10% de seus dados) no modo subjuntivo. Vem-se notando um uso do verbo querer com completiva no indicativo, principalmente na fala de crianças e de pessoas que não dominam o dialeto padrão. No entanto, no corpus analisado houve apenas 1% dos dados com o verbo querer nesse tipo de estrutura. B- Tempo do verbo da subordinada em relação ao tempo do verbo da principal: verifica-se se o tempo do evento/estado expresso na cláusula subordinada é (a) simultâneo ou (b) não simultâneo ao evento/estado expresso na cláusula principal23. (28) ... sabe ... eu acho o que as pessoas lá fora ... elas têm medo de ... de repente dizer que estão erradas ... né ... então elas preferem não crer (SOL4, O, L) (29) eu acho que eu era o único branco lá (VLA4, O, L) No trecho (28), a cláusula principal e a subordinada referem-se ao tempo presente, havendo, portanto, simultaneidade. No trecho (29), o falante no momento da enunciação expressa uma incerteza com relação ao fato expresso na cláusula subordinada, que é passado. Os tempos das duas cláusulas são diferentes. Segundo a análise de Givón (1990), quando o evento expresso na subordinada tem o tempo simultâneo, ocorre uma integração maior entre os eventos enquanto o tempo não simultâneo codifica um efeito contrário. Em inglês, há verbos diferentes para expressar a distância temporal, conforme pôde ser visto na seção 3.4. 23 Utiliza-se o termo evento para se referir ao que os falantes concebem como tal, geralmente correspondendo a um evento ocorrido no mundo real: “We will assume that clauses are the syntactic unit that codes mental propositions and that propositions in turn code cognized events/states. The latter have a 87 Os verbos cognitivos apresentam uma incidência maior que os verbos volitivos de apresentarem tempo não-simultâneo. C- Presença ou ausência do sujeito na subordinada: verifica-se se o sujeito da cláusula subordinada está (a) expresso (b) não expresso (sujeito oculto) ou é (c) zero obrigatório. (30) acho que ele era nadador... profissional (ERI3, R, R) (31) deixo ele cozinhar um pouco (AND1, P, R) (32) entro no carro ... deixo esquentar um pouquinho... dirijo devagar (AYDA, P, N) (33) eu queria fazer uma crítica (OLI29, O, R) (34) a gente nunca deixa de ir no veraneio (VLA4, D, L) Sujeitos expressos contribuem para aumentar a distância entre o verbo da principal e o da subordinada (exemplos 30 e 31) . Quando o sujeito da subordinada não está expresso, a ausência de massa fônica contribui para aproximar as duas cláusulas (exemplo 32). Pode ocorrer um aumento da freqüência de uso de dados com sujeito não expresso e, com isso, ocorrer uma gramaticalização, como aconteceu em “Deixa rolar” e como está acontecendo nos relatos de procedimento em que a completiva do verbo deixar geralmente tem sujeito oculto: “deixar fritar”, “deixar secar”, como no exemplo (32). No caso do zero obrigatório (exemplos 33 e 34), a integração entre as duas cláusulas está muito forte e a gramaticalização pode continuar unindo os dois verbos. As conseqüências finais do processo (se o processo chegar até o final) podem ser: a) o primeiro verbo torna-se um auxiliar como em “Tenho escrito muito” ou b) o primeiro verbo torna-se um morfema flexional como ocorreu com certain – sometimes systematic – relation to real-world events, a relation that philosophers, psychologists to characterize over since Aristotle” (Givón, 1990:515) 88 um dos usos do verbo haver, que se tornou morfema de tempo (amar + hei > amarei). Dos verbos analisados, os itens saber, querer e deixar (quando o sentido é de ‘capacidade’) têm usos com completivas com zero obrigatório como sujeito, como nos exemplos abaixo. (35) eu... eu sei fazer pizza... preparo desde a massa (CAR9, P, R) (36) ele queria fazer uma armadilha pra despistar Batman (EME9, R, L) (37) eu não conseguia deixar de namorar este rapaz (ROS3, N, L, ESC) D- Sujeito animado ou inanimado na subordinada: verifica-se se o sujeito da cláusula subordinada é um ser (a) animado ou (b) inanimado. Quando o sujeito é zero obrigatório, observa-se o sujeito da cláusula principal (exemplos 40 e 41): (38) eu sei que o cara escorregou quase caiu da cadeira (AND1, N, R) (39) eu sei que essa caixa aí é da Redley (ROB33, N,R) (40) O brasileiro se deixou levar pelo conceito dos outros (GLI3, O, L, Esc) (41) aí ele tentou tirar aquelas marcas... aí não queria sair do chão...(JAN19, R, J) Em (38), o referente-sujeito da subordinada é um ser animado e, em (39), é inanimado. Em (40) e (41), os referentes-sujeitos são idênticos aos das cláusulas principais, sendo o primeiro animado e o segundo inanimado. Um ser inanimado como sujeito da cláusula subordinada aumenta a integração entre os eventos codificados na cláusula principal e na subordinada. Diversos trabalhos na linha funcional demonstram que uma cadeia tópica não é quebrada com a entrada de um referente inanimado, porque a atenção continua voltada para o referente tópico, que é animado e agente. Paredes da Silva (1988) e Cezario (1994), por exemplo, ao trabalharem com a presença ou ausência de sujeitos no português, demonstram que referentes potenciais (animados) quebram a cadeia tópica e o informante tem de reapresentar um tópico como SN pleno ou um pronome; enquanto, os referentes inanimados geralmente não são capazes de 89 quebrar a cadeia tópica (a atenção não é desviada) e o tópico pode ser reapresentado por uma anáfora zero. E- Controle: verifica-se se o referente-sujeito da cláusula principal (a) controla, (b) controla parcialmente ou (c) não controla o referente-sujeito da cláusula subordinada, como respectivamente é apresentado a seguir: (42) “cadê minha filha? cadê minha filha?” o meu/ o... o... o meu pai... eh::... ele... quando acha/ achou... ela... ela... não... não... eh::... eh::... não... não... deixou a minha... minha mãe bater... e::... minha mãe tentou bater... mas não conseguiu... (BRU80, R, R) (43) ... minha mãe não deixa eu namorar... eu namorava escondido... se você for lá perto da minha rua... ela vai me ver contigo... aí vai depois brigar comigo...” (QUE32, R, R) (44) pois eu sabia que alguns estavam envolvidos com drogas (ISA5, R, G, Esc) Em (42), o referente-sujeito da primeira cláusula “meu pai” controla as ações do referente-sujeito da subordinada, “minha mãe”, e não permite que ela bata na filha. Em (43), a mãe controla parcialmente a informante, pois essa desobedece as ordens da mãe e namora escondido. Há ainda algum controle, porque a informante não namora às vistas da mãe. Em (44), não há controle. O verbo achar, assim como saber (com o sentido cognitivo) e ver, têm sempre sujeitos não-controladores, por causa da natureza semântica desses verbos. Segundo Givón, o fator semântico-pragmático ‘Controle’ é um dos principais elementos responsáveis pela integração de cláusulas quando a subordinada é completiva. Como foi visto no capítulo anterior, as diferenças de usos dos verbos make e cause são decorrentes do controle total envolvido nos usos do primeiro verbo e no menor controle envolvido nos usos do segundo verbo. O fator é importante para atribuir diferenças entre grupos semânticos de verbos e entre usos de um mesmo verbo. Os verbos cognitivos não apresentam sujeitos controladores. Os verbos volitivos podem ter sujeitos controladores e os sujeitos manipulados podem expressar uma reação (no caso de sujeitos 90 animados) ou podem ser totalmente manipulados (principalmente os sujeitos inanimados). Quando o sujeito era zero obrigatório e animado, considerou-se como um caso de controle, como no exemplo (45): (45) Quando eu tiro a pizza do forno enrolo em um plástico tendo o cuidado para não deixar ar, isso se eu quiser guardá-la. (CAR1, P, L, Esc) Mais informações acerca da categoria “Controle” foram apresentadas na seção 3.4. F- Implicação/causatividade: verifica-se se o evento/estado da cláusula subordinada ocorre ou não em função do que é pedido/ordenado/desejado na cláusula principal. Em outras palavras, observa-se se o conteúdo expresso na cláusula principal (a) implica ou (b) não implica a realização do que é expresso na subordinada. Ainda houve alguns casos em que se considerou uma implicação parcial. (46) - Um dia meu pai mandou eu ir comprar cigarro na São félix. Eu fui, mas na hora devoutar foi aquilo. Eu desci muito rápido aquela rua e no final BUM caí feio, todo mundo ficou olhando para min, Eu saí dali varado e todos riram. (FAB45, N, R, Esc)24 (47) eu estava lá no prédio... em cima... e ele embaixo... aí/ ele passou por debaixo do prédio... aí... foi/ ele gritou “Marcela...” e correu atrás de mim... porque não andava pra/ aque/ esses lugares... que eu era muito novinha... estava eu minhas colegas ( ) aí foi... ele correu... conforme ele correu a polícia mandou ele parar... ele não estava ouvindo... aí... atirou nele... aí ele morreu.... (MAR55, N,R) (48) Ela estava com uma blusa branca e ficou toda suja de sangue... aí ela começou a gritar pessando que o tiro tinha pego também nela foi um desespero total... aí o motorista quiz fechar a porta não deixando ninguém sair mais ela muito esperta arrastou dali sua cunhada e sua subrinha para fora do onibus e foram embora. (MAR77, R, R, Esc) No exemplo (46), o fato apresentado na cláusula subordinada é realizado em decorrência do que é expresso na cláusula principal, a ordem dada pelo pai. 24 A ortografia dos textos do corpus não foi alterada. 91 Este dado foi codificado como ‘implicativo’. No exemplo (47), o fato expresso na subordinada não se realiza, apesar de ser uma ordem da polícia, porque o referente-sujeito da subordinada não ouviu a ordem. Este dado foi codificado como “não implicativo”. No exemplo (48), o fato apresentado na subordinada realiza-se parcialmente: o motorista impediu que muitos passageiros saíssem, mas não conseguiu impedir que a conhecida da informante saísse com a cunhada e a sobrinha. Dados como esses são raros e foram codificados como “implicativos parciais.” Há alguns dados em que os informantes relatam uma ordem que é cumprida apenas na frente do manipulador. Neste caso, também a opção para a codificação foi de “implicativo parcial”, como no exemplo a seguir: (49) ... minha mãe não deixa eu namorar... eu namorava escondido... se você for lá perto da minha rua... ela vai me ver contigo... aí vai depois brigar comigo...” (QUE32, R, R) Este dado mostra que a filha acata a ordem da mãe na presença desta, mas que, na sua ausência, namora. O fato expresso na subordinada se realiza independentemente da vontade da mãe, mas a implicação seria total se a menina realmente não namorasse; a implicação seria totalmente nula, se a menina namorasse às vistas da mãe, desobedecendo às ordens dadas. Muitas vezes, só se pôde verificar se o evento se realizou ou não num contexto subseqüente distante do dado em análise. (50) Foi aquela algazarra na escola, todos queriam saber quem tinha provocado o incêndio, o professor como era muito meu amigo assumiu a culpa, pois ele sabia que não tinha como pagar. Houve uma coleta na escola para repor o material e até hoje não se sabe quem foi a causadora deste tremendo incendio. (DIV2, N, L, Esc) O dado (50) não é implicativo, porque o contexto subseqüente demonstra que, apesar de todos quererem saber sobre o autor do incêndio, não puderam obter essa informação. Para Givón, essa categoria é importante, pois, nos usos em que o evento da principal implica a realização do evento da subordinada, haverá uma 92 integração maior no plano perceptivo e também morfossintático. Ele exemplifica com o verbo try (cf. seção 3.4 desta tese): quando o evento é implicativo, é codificado com o verbo try mais um verbo no gerúndio e, quando o evento não é implicativo, o verbo try é seguido de infinitivo com to. Os verbos cognitivos são por natureza não-implicativos, enquanto os verbos volitivos são, na maioria das vezes, implicativos, uma vez que o que se deseja (ou se permite ou se ordena) é realizado no evento expresso na cláusula subordinada. G- Sujeito idêntico ou sujeito diferente: verifica-se se a cláusula subordinada apresenta (a) sujeito idêntico ao sujeito da cláusula principal ou (b) sujeito diferente da cláusula principal. Dos exemplos a seguir, (52), (54) e (56) têm sujeitos diferentes, enquanto (51), (53) e (55) têm sujeitos idênticos. (51) acho que eu até devia procurar me informar (MON5, O, R) (52) eu acho que a cozinha é o lugar predileto (REG7, O, R) (53) eu quero ... registrar o meu filho (LIS2, P, G) (54) queriam que eu tivesse presenteado eles com coisas mais horripilantes (ITA4, O, L) (55) os policiais militares deixam de policiar as ruas (SOL, JB) (56) só não pode deixar a dupla adversária perceber (DAN2, P, R) Na literatura lingüística há diversos trabalhos (Hopper, 1979, Givon, 1983; Bentivoglio, 1980; Givón, 1990; Gorsky, 1985; Lira, 1982, dentre outros) que utilizam a categoria “Sujeito idêntico/sujeito diferente”. Ela é importante para se estudar a continuidade tópica, a atenção, a marcação, a figura e o fundo, dentre outros temas. A troca de um referente-sujeito determina a quebra de uma cadeia tópica e também pode determinar a troca de planos – figura para fundo ou vice-versa. Uma anáfora-zero normalmente ocorre em cadeia de tópico, pois na cláusula precedente deve estar presente o mesmo referente para não haver problemas de ambigüidade. Nas línguas do tipo pro-drop (línguas que permitem apagamento do sujeito), as anáforas-zero ocorrem na continuidade de plano e os 93 pronomes ou SN tendem a ocorrer quando há mudança de plano (cf. Li & Thompson, 1979; Paredes da Silva, 1988; Cezario, 1994). Dessa forma, quando o referente-sujeito é idêntico, as duas cláusulas em análise estão mais integradas entre si, enquanto, quando os referentes-sujeitos são diferentes, a integração é menor. Como é sabido, para um verbo ter um uso como auxiliar, precisa estar numa locução com o mesmo referente-sujeito. H- Sujeito individuado ou não-individuado: verifica-se se o sujeito da cláusula subordinada é individuado (geralmente também é um referente velho ou inferível) ou não-individuado (geralmente também é um referente novo, indefinido e genérico): (57) Um belo dia ela soube que o pai dele trabalhava na bolsa de valores (MON5, R, R, Esc) (58) ela age ja tevi uma linda garota o pai dela acha que ela pegou no ofanato (JUC76, R, R, Esc) (59) não sei se ,,, daqui a uns tempos.... os seus filhos ... entendeu? de repente vão ter condições ... de estudar numa mesma faculdade que você (JOR4, O, R) (60) acho que ... eh ... as pessoas hoje só ficam grávidas quando querem ... entendeu (AND6, O, J) Os exemplos (57) e (58) apresentam subordinadas com sujeitos individuados, enquanto os exemplos (59) e (60) apresentam sujeitos nãoindividuados. Quando ocorre zero obrigatório, verifica-se o sujeito da cláusula principal: nos exemplos a seguir, o primeiro foi classificado como tendo sujeito individuado e o segundo, sujeito não-individuado: (61) como eu sei fazer (JOR4, P, R) (62) mas no meio evangélico existe ... existem muitas pessoas que querem se aproveitar ... querem se aproveitar do nome ... para conseguir alguma coisa né (SOL8, O, L) Novamente há aqui uma categoria utilizada na lingüística funcional para estabelecer diferenças entre os planos figura e fundo e entre marcado e nãomarcado. 94 Na literatura, os referentes individuados geralmente ocorrem nas cadeias tópicas em cláusulas figura, enquanto os não-individuados prevalecem nas cláusulas fundo. I- Inserção de material fônico: aqui se verifica se há inserção ou não de argumentos entre a cláusula principal e o sujeito da cláusula subordinada. A inserção pode ser um adjunto adverbial anteposto, uma cláusula adverbial ou um pedaço de cláusula. (63) não passo disso porque eu acho que... a partir das dez e meia a pessoa fica com sono (GO4, P, G) (64) Vamos ver se depois disso tudo o Brasil melhora. (JOS11, O, J, Esc) (65) acho que ... se eu ... tivesse na idade de votar já... eu votaria (JOS, O, R) (66) você acha que eu sou louco? (JOA1, R, G) (67) aí eles viram que era um monstro muito feio mesmo... (JAN19, R, J) (68) os brasileiros não sabem votar! (VAN35, O, R, Esc) Nos exemplos (63), (64) e (65), ocorre inserção de massa fônica (os trechos destacados) entre a cláusula principal e a subordinada, o que cria um distanciamento entre os dois verbos. Nos exemplos (66), (67) e (68), ocorre uma integração maior, porque não há inserção de material fônico. Há algumas considerações a fazer com relação a essa categoria. O que é considerado inserção de material fônico depende da própria estrutura da subordinação. Nos casos dos verbos seguidos de uma cláusula desenvolvida, considera-se material fônico uma cláusula adverbial ou um pedaço de cláusula ou um adjunto adverbial anteposto com três ou mais sílabas (exemplos 63 e 64, acima). Quando a cláusula subordinada é reduzida, considera-se material fônico qualquer elemento, mesmo aquele com uma ou duas sílabas, como nos exemplos: (69) aí põe no fogo ... deixa lá cozinhando o arroz (ROS78, P, R) (70) num queria mais ver a mulher e o cachorro (CAR1, R, F) 95 No caso de cláusulas reduzidas com sujeito expresso, considera-se o sujeito uma inserção de material fônico, independente do número de sílabas (exemplo 71). Essa decisão é tomada para distinguir um dado como esse daquele em que o sujeito do infinitivo ou do gerúndio não é expresso (exemplo 72). Com isso, marca-se uma diferença que gera determinadas estruturas em processo de gramaticalização, como é o caso do verbo deixar mais infinitivo com sujeito oculto, que é bastante comum nos relatos de procedimento. Os exemplos abaixo ilustram um caso de maior integração e um caso de menor integração, controlados pela categoria “Inserção de massa fônica”: (71) então o arroz tá quase pronto ... já tá sem água ... então eu retiro esse arroz da panela e coloco na forma e deixo ele esfriar bem socado ... né ... como eu já disse que é pra ele poder virar como bolo ... (DIV2, P, L) (72) I: tá ... bem ... macarrão ... aqui em casa num sabe? eu pego ... coloco água ... na panela ... claro ... só pode ser em panela (...) boto ... deixo ferver ... boto o sal num sabe? eu não coloco óleo ... não coloco ... não coloco (LUC3, P, L) Os verbos cognitivos podem ter inserções, enquanto os verbos volitivos geralmente não as têm. Esses são os fatores que integram a categoria “Graus de integração de cláusulas”. A pontuação atribuída a cada fator é apresentada na seção seguinte. 4.2.1.1- A categoria ‘Graus de integração’ A cada categoria apresentada atribuiu-se uma pontuação e a soma de todas as categorias determina o grau de integração dos períodos compostos. Assim uma categoria como a que verifica se o sujeito da segunda cláusula é animado ou não controlará com a pontuação 0 o caso de animado (menor integração) e com a pontuação 1 o caso de sujeito menos animado (maior integração). A freqüência de cada grau de integração ou estágio mostrará que tipo de uso tende a se gramaticalizar ou já está gramaticalizando-se. Dessa forma, a categoria “Graus de integração” se configura como um aglomerado de fatores. A soma das 96 pontuações atribuídas aos fatores define o grau de integração de cada dado analisado. Uma análise quantitativa semelhante a que é feita aqui foi proposta por Bybee et alii (1994) com relação às formas de se construir o futuro em várias línguas. Os autores demonstram, através da análise quantitativa,25 a relação entre redução fonética de forma e generalização semântica. No português, um trabalho semelhante ao que é proposto aqui como metodologia foi feito por Kneipp (1980), em que se utilizaram 10 categorias para se estabelecer uma escala que vai de verbos plenos a auxiliares, passando por modais em pontos intermediários. O verbo prototípico escolhido foi exibir (que não aceita complemento oracional) e o auxiliar foi o verbo ir. Os testes realizados juntaram os verbos (cerca de 50 itens verbais diferentes foram comparados) em 4 grupos: a) Grupo 1: isolar; b) Grupo 2: ir, dever 1 e dever 2; c) Grupo 3: :poder 2, ter que, poder 3, parecer, precisar, etc.; d) Grupo 4: ousar, dizer, lograr, prometer, deixar, querer, crer, ver, etc. Os resultados demonstram uma grande distância entre os verbos do grupo 1 e os outros grupos. Como auxiliares, figuram os verbos do grupo 2. Os do grupo 3 e 4 – todos considerados modais – vêm seguidos na ordem dada. Os testes demonstram que os modais e os auxiliares estão muito próximos. Mas há diferenças fundamentais entre o trabalho de Kneipp e o aqui apresentado, sobretudo porque a autora compara os comportamentos possíveis de cada verbo (através de testes), enquanto nesta tese procura-se descrever os comportamentos que realmente surgem no corpus e a sua freqüência de uso. 25 Os autores atribuem pontuação 0,1 ou 2 a cada categoria e fazem uma soma das categorias. Por exemplo: uma forma que está em via de se tornar morfema de futuro recebe 0 se tiver intensidade e recebe 2 se não tiver intensidade em cada enunciado. O grau mais alto obtido é o maior grau de gramaticalização. 97 Além disso, as categorias de Kneipp ainda estão muito influenciadas pela gramática gerativista (não só a terminologia como ela afirmou): “inseparabilidade pela negação; deslocamento de clíticos, coocorrência com os auxiliares stricto sensu, etc. O trabalho é, no entanto, pioneiro no que se refere à idéia de contínuo envolvendo verbos do português numa data em que os trabalhos modernos sobre gramaticalização ainda não tinham surgido no Brasil. Na seção anterior, foram descritos os fatores lingüísticos que formam a categoria “Graus de integração”. Aqui é estabelecida uma pontuação para cada categoria de acordo com as expectativas relativas a uma maior ou menor integração de cláusulas. Tais expectativas estão de acordo com os trabalhos de vários lingüistas funcionalistas, sobretudo Givón (1990; 1995), Hopper & Traugott (1993), Heine (1993) e Votre (1992): A) Modo da subordinada: Indicativo: 0 Subjuntivo: 0,5 B) Tempo: Não-simultâneo: 0 Não-finito: 1 Simultâneo: 1 C) Sujeito explícito na subordinada: Explícito: 0 Não-explícito: 0,5 Zero obrigatório: 1 D) Sujeito animado/não animado (cláusula subordinada) Animado: 0 Não-animado: 1 E) Controle do sujeito da principal sobre o da subordinada: Não controla: 0 Controla parcialmente: 0,5 Controla: 1 F) Implicação (Factividade) Não implica: 0 Implica parcialmente: 0,5 Implica: 1 G) Sujeito idêntico/sujeito diferente: Diferente: 0 Idêntico: 2 H) Sujeito individuado/não-individuado na subordinada: Individuado: 0 Não-individuado: 1 I) Inserção de material fônico entre a cláusula principal e a subordinada: 98 Presença: 0 Ausência: 1 O fator G recebeu um peso maior, porque, em vários trabalhos da linha funcionalista, a continuidade tópica se mostrou um fator importante para determinar a maior conexão entre as partes do discurso. Além disso, esse fator sobrepõe-se a vários fatores (e o peso 2 resolve alguns problemas), porque o que leva à maior integração dos verbos é a identidade de sujeitos e não os fatores listados a seguir: a) o fatore G sobrepõe-se ao fator D: uma oração como “Eu quero sair” recebe a pontuação zero (no fator D), uma vez que o sujeito da subordinada é animado. b) sobrepõe-se ao fator E: num dado como “A mortalidade deixou de afetar aquela região” não há controle do sujeito do verbo deixar sobre o do verbo afetar (a pontuação, portanto, é zero na categoria E ), porque o sujeito “A mortalidade” é inaninado. c) sobrepõe-se ao fator H: um dado como “Eu quero sair” recebe 0 por ter sujeito individuado na subordinada (que é o mesmo da principal). Os resultados apresentados aqui são decorrentes da soma dos fatores apresentados acima para se estabelecerem graus de integração de cláusulas. O sentido da integração é feito de acordo com o seguinte quadro: Graus: 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 maior integração Quadro 2- Direção da integração de cláusulas Os exemplos estão no quadro a seguir. As letras apresentadas na primeira linha correspondem às letras dadas para cada categoria: A- Modo; B- Tempo; CSujeito ausente/presente; D- Sujeito animado/inanimado; E- Controle; FImplicação; G- Sujeito idêntico/diferente; H- Sujeito individuado/não- individuado; I- Inserção de massa fônica. São quatro exemplos de cada verbo. 99 Contextos (73) ela saiu disparada e incontrolável em direção de uma árvore e eu cada vez mais achando que ela ia bater já que não conseguia guiá-la. (YUR24, N, R, Esc) (74) eu não costumo ir à igreja... porque eu acho que Deus não está em muita gente ali... (DIV2, O, L) (75) acho que a pessoa não deve pensar pequeno... (JOR4, O, R) (76) meu pai tem um gênio muito ... ele não gosta de ser mandado ... sabe? eu acho que eu tenho algumas coisas dele também ... (ROS3, N, L) (77)teve que prestar socorro do cara lá né ... aí eu sei que ele fez os curativos lá no... no... no... cara (CAR1, R, L) (78) existe circuito fechado... não sei se está funcionando, porque faz tempo que não vejo funcionar ( CAR1, D, L) (79) Não sei se me lembro bem dessa história (ERI3, R, R, Esc) (80) eu... eu sei fazer pizza... preparo desde a massa, né... (CAR9, P, R) (81) se você ler a bíblia profundamente ... você vai ver que Deus não é esse Deus a igreja protestante prega... (DIV2, O, L) (82) quando ele viu que o carro ia cair dentro do rio ... aí ele... colocou o carro num... (ROS3, N, L) (83) então eu vejo que todos têm assim uma certa confiança ... na minha responsabilidade (LEO10, D,J) (84) você faz a instalação toda ... aí é aprovar... você ... liga... vê aquela parada funcionando... né? (MAR18, P, R) (85) Ele mandava o policial prender ele mas o policial não prendeu (LUC3, R, L) (86) A diretora do maternal mandou chamar minha mãe urgentemente, e disse a ela que eu tinha sérios problemas psicológicos (MAG6, R, G) (87) a minha colega não parava de falar, então a diretora mandou que ela se calasse (PAT30, R, R) (88) Quem não se lembra até de bicheiros mandando instalar até aparelhos de ar condicionada na delegacia e na garagem (MAU,JB) (89) minha mãe... quando... ela era adolescente... a minha avó não... deixava que ela fosse pro/ para os bailes se divertir... né? e a minha mãe detestava isso... (...) ela combinou com a minha tia... A 0 B 0 C 0 D 0 E 0 F 0 G 0 H 0 I 1 TOTAL 1 0 1 0 0 0 0 0 0 1 2 0 1 0 0 0 0 0 1 1 3 0 1 0 0 0 0 2 0 1 4 0 0 0 0 0 0 0 0 1 1 0 1 0,5 1 0 0 0 0 1 2 0 1 0 0 0 0 2 0 1 4 1 1 1 0 1 0 2 0 1 7 0 0 0 0 0 0 0 0 1 1 0 0 0 1 0 0 0 0 1 2 0 1 0 0 0 0 0 1 1 3 1 1 0 1 0 0 0 1 0 4 1 0 0 0 0 0 0 0 0 1 1 0 0,5 0 1 1 0 1 1 5 0,5 1 0 0 1 0,5 0 0 1 4 1 1 0,5 0 1 1 0 1 1 6 0,5 1 0 0 0,5 0,5 0 0 1 3 100 eh... de... a minha tia dizer pra... pra... minha avó... que ela estava no quarto dormindo... (VAN, R, R) (90) aí deixa ficar dez minutos cozinhando (JEA, P, R) (91) muita gente se deixa levar pela emoção... né (GUS2, O, L) (92) A exploração política das favelas deixou de oferecer vantagens depois de demonstrada a incapacidade de deter a ocupação desordenada e predatória dos morros (CEM, JB) (93) todo mundo queria que ele fizesse gol, mas ele só queria agarrar (FAB83, R, R) (94) Eu queria que a relação entre o país e os filhos vossem deferente (ALE13, O, J, Esc) (95) Dois pivetes armados de canivete pararam os dois e queriam roubar o seu dinheiro, mas como tinham apenas as passagens de ônibus os garotos roubaram os tênis (DAN12, R, G, Esc) (96) e pensar no assunto...que você quer trabalhar com a criança (CIN7, P, J) Quadro 3- Exemplificação da codificação. 1 1 0,5 1 1 1 0 0 1 6 1 1 0,5 0 0 1 2 1 1 7 1 1 1 1 0 1 2 1 1 9 0,5 1 0 0 0 0 0 0 1 2 0,5 1 0 1 0 0 0 1 1 4 1 1 1 0 1 0 2 0 1 7 1 1 1 0 1 1 2 1 1 9 A soma mínima apresentada é 0 e a máxima 9, perfazendo um total de 10 estágios e uma graduação de 0 a 9, conforme a pontuação dada. Foram os seguintes os passos para estabelecer os estágios (conforme proposta metodológica sugerida por Anthony Naro e Conceição Paiva, em contato pessoal): 1o. analisou-se cada dado atribuindo a pontuação estabelecida; 2o. para cada dado, somaram-se os pontos de cada categoria, obtendo-se o grau de cada dado (0,5 só foi somado com 0,5); 3o. inseriu-se, no programa, cada dado com a sua pontuação (ou seja, seu grau estabelecido); 4o. fez-se um rodada através do programa Makecell26 para se obter o número de dado para cada grau de cada verbo (por exemplo, dos 509 dados com o verbo achar, 236 (47%) apresentam o grau 3); 26 Programa de análise estatística que estabelece percentuais de uso. 101 5o. utilizou-se o programa Crosstab27 para fazer cruzamentos entre categoria “Graus de integração” e outra a categoria “Sentidos dos verbos”. A utilização de um mesmo grupo de fatores para seis verbos diferentes é um procedimento muito útil e econômico. Houve, no entanto, um problema: alguns fatores não tiveram variação na codificação de alguns verbos. Isso ocorreu com os seguintes fatores: a) os fatores implicação e controle não se aplicam aos verbos ver e saber com sentido de ‘conhecer’ (ou seja, semanticamente, esses verbos não têm ligação com as idéias de implicação ou controle e na codificação receberam sempre zero nestes fatores); b) o fator “Sujeito Idêntico/sujeito diferente” sempre é codificado como “Sujeito diferente” nos dados com o verbo mandar (codificado sempre com 0,5); c) o fator “Sujeito animado/inanimado” sempre é codificado como “animado” nos dados com o verbo mandar (codificado sempre com 0). Mas essas características dos verbos são interessantes quando se faz a comparação com o comportamento de outros verbos, sobretudo do mesmo grupo semântico. Os resultados da análise dos graus de integração estão no capítulo 5. 4.2.2- Outras categorias Há mais quatro fatores lingüísticos que não integram a categoria “Graus de integração”, mas que são importantes para detectar algum processo de gramaticalização ou para se fazer cruzamentos e se obter uma descrição mais completa. O primeiro é gramatical, o segundo é semântico e os dois últimos são textuais. 27 Programa que permite cruzar categorias. Esse e o programa Makecell fazem parte do pacote Varbrul, utilizado na lingüística para obtenção de probabilidades e para determinação das categorias mais importantes. 102 A- Referência do sujeito da cláusula principal: observa-se se o referente do sujeito da claúsula principal é expresso (a) na primeira, (b) na segunda ou (c) na terceira pessoa, como se pode ver respectivamente nos exemplos a seguir: (97) sei que eles estavam armados (FLA10, R, G) (98) não deixa ela secar ao sol (YUR24, P, R) (99) o que Deus quer que nós façamos (SOL8, R, L) Quando o sujeito é idêntico, verifica-se a pessoa do sujeito da claúsula principal. Nos exemplos a seguir, os referentes das cláusulas com infinitivo estão na segunda e na terceira pessoa respectivamente: (100) você quer machucar ele (ROS 7, D, L) (101) ele queria fazer uma armadilha (EME9, D, L) Esta categoria está sendo analisada, porque muitos casos de gramaticalização nas línguas ocorrem numa das pessoas gramaticais. Em inglês, ocorrem as gramaticalizações dos verbos think e guess, sempre na primeira pessoa. B- Sentidos do verbo: alguns dos verbos analisados apresentam variações de sentido. Esses sentidos desempenham funções diferentes e devem ter diferentes graus de integração com as respectivas cláusulas subordinadas. Foram feitos cruzamentos entre esta e as categorias apresentadas nesta seção. C- Canal: Aqui a oposição é entre o canal oral e o escrito. A hipótese é a de que existam diferenças de usos do itens lexicais com relação a essa categoria. Para comprovar essa hipótese foi feito um cruzamento entre “Canal” e “Sentidos dos verbos” . D- Tipos de texto- Uma das características mais importantes do corpus Discurso & Gramática é a tipologia de textos, que se torna um fator controlável para qualquer pesquisa. Como já foi dito, cada informante contribuiu para apresentar cinco tipos de textos, a saber: relato de opinião, narrativa experiencial, narrativa 103 recontada, relato de procedimento e descrição. Aqui o objetivo é o de se verificar se um determinado uso de um verbo é mais freqüente num dado tipo de texto. A freqüência pode revelar gramaticalização e pode confirmar a hipótese de que a gramaticalização, pelo menos numa fase inicial, não se dá em todas as possibilidades de uso da língua. Apenas um fator extralingüístico foi controlado: A- Escolaridade- O corpus permite verificar se há diferenças quanto ao uso dos verbos em graus de escolaridade diferentes. A categoria está divida em 5 subgrupos com o número de informantes assimétrico: a) Série inicial (assim denominado porque inclui alunos da Classe de Alfabetização infantil e adulta e alunos da 1a. série do Ensino Fundamental) – com 30 informantes; b) 4a. série – com 49 informantes; c) 8a. série – com 27 informantes; d) 3a. série do 2o grau (Ensino Médio) – com 31 informantes; e) 3o grau (alunos em diferentes períodos do Ensino Superior e os autores dos textos do JB) – com 21 informantes do Corpus D & G e um número indeterminado do JB. A expectativa é a de que haja, nos diversos graus de escolaridade, diferenças de usos de mesmo item verbal e diferenças de usos dos estágios de gramaticalizações. Também há expectativas de que os verbos cognitivos sejam mais usados pelos informantes com mais escolaridade e também mais idade, pois o exercício de reflexão exigido pela escola e o que é natural da maturidade fazem o indivíduo necessitar mais de uso de expressões relacionadas ao campo da cognição. 104 5-ANÁLISE DOS DADOS O capítulo apresenta, em duas partes, os resultados da análise dos verbos estudados. A primeira parte contém a comparação entre os dois grupos de verbos – os cognitivos (achar, ver e saber) e os volitivos (mandar, querer e deixar), apresenta a descrição das estruturas sintáticas de cada verbo, os seus sentidos, as dificuldades de análise, os usos mais freqüentes e os idiossincráticos; também traz os resultados referentes ao cruzamento dos sentidos de cada verbo (quando foi possível determinar variação de sentido) com outras categorias. A segunda parte apresenta um pequeno estudo diacrônico desses verbos e dos modelos de subordinação completiva, focalizando a hipótese da unidirecionalidade semântica e sintática. 5.1- Análise dos verbos no português oral e escrito contemporâneo Essa parte contém a análise dos verbos a partir dos dados coletados do corpus Discurso & Gramática de cinco cidades brasileiras e do corpus JB. Em primeiro lugar, será feita uma comparação entre os dois grupos semânticos de verbos, o cognitivo e o volitivo. Depois será feita a análise dos verbos de cada grupo. 5.1.1 - Verbos cognitivos e verbos volitivos: atuação do princípio da iconicidade A hipótese é a de que os verbos do primeiro grupo apresentem graus de integração mais baixos do que os do segundo grupo, uma vez que os conteúdos da subordinada de verbos cognitivos estão mais distantes conceptualmente do que é expresso nas suas cláusulas principais. Seus complementos clausais expressam opiniões, interpretações, incertezas e os referentes-sujeitos dos verbos cognitivos não podem manipular os referentes- sujeitos das cláusulas 105 completivas. Já os verbos volitivos têm como complemento algo que é uma ordem, uma permissão dada pelo referente-sujeito ou um desejo. Este manipula ou tenta manipular um outro referente codificado como sujeito da cláusula completiva. Dessa forma, as principais diferenças entre esses grupos de verbos podem ser explicadas pelo subprincípio da proximidade (um dos subprincípios da iconicidade), segundo o qual os conceitos que estão mais integrados no plano cognitivo também se manifestam com maior integração morfossintática. Para se medir o grau de integração de cada dado criou-se, como mostrado no capítulo 4, uma categoria denominada “Graus de integração”, que é um aglomerado de 9 fatores. Cada fator recebe uma pontuação com o objetivo de medir a integração entre a cláusula principal e a subordinada. Depois, somam-se todos os fatores e obtém-se o grau de integração. A soma mínima é 0 (menor integração) e a máxima 9 (maior integração). Os fatores controlados são: Modo, Tempo, Sujeito ausente/presente, Sujeito animado/inanimado, Controle, Implicação, Sujeito idêntico/diferente, Sujeito individuado/não-individuado, Inserção de material fônico. O valor de cada fator consta na seção 4.2.1.1. Em toda a amostra analisada foram obtidos 1269 dados com os verbos cognitivos achar, ver e saber com complemento finito ou reduzido e 878 dados com os verbos volitivos mandar, querer e deixar também com complemento finito ou reduzido. Utilizou-se a categoria “Graus de integração” para medir a conexão entre a cláusula principal com tais verbos e as suas cláusulas completivas e para verificar a atuação do subprincípio da proximidade. Os resultados referentes a essa categoria estão na tabela a seguir: 106 Estágios O 1 2 3 4 5 6 7 8 9 TOTAIS Verbos cognitivos APLIC 20 188 315 385 114 10 0 1 0 1 1034 % 2 18 30 37 11 1 0 0 0 0 100 Verbos volitivos APLIC 0 4 16 62 102 80 163 152 219 80 878 % 0 0 2 7 12 9 19 17 25 9 100 Tabela 1 - Graus de integração de verbos cognitivos e de volitivos Para a computação, juntaram-se todos os dados com os verbos cognitivos achar, ver e saber – de um lado – e todos os dados com os verbos volitivos mandar, querer e deixar – de outro.28 Os números presentes na coluna da aplicação são as ocorrências dos dados com os graus estabelecidos. Por exemplo, houve 385 dados com verbos cognitivos no grau 3 de integração e 62 dados com verbos volitivos no mesmo grau. A exemplificação pode ser vista no quadro 3 do capítulo 4. Essa tabela é representada através do gráfico 1, que mostra o contraste entre verbos cognitivos e verbos volitivos: 28 Do grupo dos verbos cognitivos, foram retirados, apenas nesta tabela, os dados de saber com o sentido de capacidade (235dados), como em “comida eu sei fazer... (JOR4, P,R), por se tratarem de dados muito diferentes dos demais usos cognitivos (cf. a análise do verbo saber na seção 5.1.2.3). Por isso, o valor total dos cognitivos apresentados na tabela é de 1034. 107 Gráfico 1: Graus de integração de verbos cognitivos e volitivos 40 35 Percentuais 30 25 20 15 10 5 0 O 1 2 3 4 5 6 7 8 9 Graus Verbos Cognitivos % Verbos Volitivos % Observa-se que os dois grupos de verbos têm comportamentos muito diferentes: o ponto máximo dos verbos cognitivos é o grau 3 (com mais de 35% dos dados) e o ponto máximo dos verbos volitivos é o grau 8 (com 25% dos dados). A concentração de dados do primeiro grupo está nos graus mais baixos de integração, enquanto os verbos do segundo grupo distribuem-se por todos os graus, mas a concentração maior está nos últimos graus. Esse resultado é decorrente da diferença de uso dos verbos cognitivos e volitivos. Alguns dos fatores que formam a categoria maior “Graus de integração” demonstram essas diferenças: a) os verbos cognitivos têm 94% de seus dados com cláusulas completivas no modo indicativo29, enquanto os verbos volitivos têm 92% dos complementos no modo não-finito; 29 Vale ressaltar que, nesta seção, os dados de saber-capacidade não estão sendo considerados. 108 b) os verbos cognitivos apresentam 63% de seus dados com tempo simultâneo ao da completiva; e os verbos volitivos apresentam 95% de dados com tempo simultâneo; c) os referentes-sujeitos dos verbos cognitivos não são controladores dos referentes das cláusulas completivas, enquanto 66% dos referentes-sujeitos dos verbos volitivos são controladores; d) os verbos cognitivos são por natureza não implicativos, enquanto os verbos volitivos têm 67% dos dados implicativos; e) por fim, apenas 9% dos dados do grupo dos verbos cognitivos têm sujeito idêntico, enquanto 55% dos dados do grupo dos verbos volitivos apresentam a identidade de sujeitos. Os verbos transitivos têm diferenças de integração em virtude do que expressam semanticamente. Os verbos cognitivos apresentam nas cláusulas completivas opiniões, percepções, conhecimentos, idéias e essas noções acontecem ou existem independentemente da vontade dos referentes-sujeitos dos verbos cognitivos. Esses verbos expressam a modalidade epistêmica e, no caso de achar e ver, também são usados como estratégia para demonstrar distanciamento com o valor de verdade com as proposições que são codificadas como cláusulas completivas. Isso porque o emissor tem dúvidas a respeito da informação ou porque apresenta uma atitude de polidez, demonstrando que o que é expresso é um ponto de vista dentre outros que podem ser levantados. Dessa forma, pode-se verificar a atuação do Princípio da Iconicidade (especificamente, o subprincípio da proximidade): a morfossintaxe espelha o distanciamento entre o que é expresso na cláusula principal e o que é expresso na cláusula completiva. Os verbos volitivos são mais integrados às suas completivas, apresentando alguns estágios diferentes de gramaticalização. Do ponto de vista semântico-pragmático, os referentes-sujeitos desses verbos expressam suas vontades através de permissão, desejo ou ordem. Quando o sujeito da subordinada é diferente, pode haver manipulação do referente da cláusula 109 principal sobre o da subordinada.. Dessa forma, através da atuação do Princípio da Iconicidade, a morfossintaxe dos períodos com esses verbos é mais integrada, como uma forma de refletir, entre outros fatores, o controle do sujeito da cláusula principal sobre o da cláusula completiva. Quando o sujeito é idêntico, a integração ainda é maior, pois a gramática codifica esse controle do sujeito sobre ele mesmo. A partir daí podem surgir outras gramaticalizações como o uso de “deixar de + infinitivo”, em que não há restrição de sujeito (o sujeito do verbo pode ser animado ou inanimado) e não há referência à idéia de controle: (1) A exploração política das favelas deixou de oferecer vantagens depois de demonstrada a incapacidade de deter a ocupação desordenada e predatória dos morros (CEM, JB) Além disso, os verbos volitivos são geralmente implicativos, o que mais aproxima o evento da cláusula principal do evento da cláusula completiva. Nas próximas seções, serão demonstradas as diferenças de usos de cada verbo e a comparação dos graus de integração dos verbos de cada grupo separadamente. 5.1.2- Usos dos verbos cognitivos Os verbos cognitivos, como dito na seção anterior, codificam a modalidade epistêmica, que representa o nível do raciocínio e, através dessa modalidade, o falante expressa julgamento a respeito do que ele vê, do que compreende ou do que tenta compreender e explicar. Os verbos estudados nesta seção são modalizadores epistêmicos. São duas as hipóteses principais relativas a esse grupo de verbos: a) existem diferenças de graus de integração entre os usos (sentidos) de um mesmo verbo; b) e existem diferenças de graus de integração entre os três verbos analisados, demonstrando que os três estão em diferentes pontos do contínuo que leva à integração de cláusulas. 110 Os resultados demonstram que o verbo achar é o menos integrado à sua completiva, vindo em seguida o verbo ver e por último o verbo saber. As razões são apresentadas ao longo das próximas seções. 5.1.2.1- O verbo achar O objetivo dessa tese não é fazer uma análise semântica detalhada de cada verbo. Por isso, foram separados apenas os sentidos mais gerais e que, com mais facilidade, os falantes conseguem delimitar. Todos os dados foram classificados de acordo com os sentidos pré-estabelecidos. Classificação semelhante a esta é feita por Votre (1999; 2000). Os sentidos mais perceptíveis do verbo achar são: A) incerteza: (1)30 Quando aconteseu esse acidente eu acho que eu tinha um ano eu tava no parque (ROB33, O, R, Esc) (2) acho até que você sabe fazer macarrão (JOR4, P,R) B) opinião, julgamento, preferência: (3) um ... e um::... um garoto dentro de uma casa sozinhos... nove e meia da noite... não sei qual foi a reação dele... que... ele ficou:::... ficou irado... não sabe? ficou brabo... e começou a discutir... com a filha... a filha... achando que a coisa era mais nor/ a coisa mais normal do mundo... não tinha nada a ver... o namorado não era dela... era da amiga dela... e parecia... pelo que a minha mãe me contou... que o namorado estava so... sozinho no quarto com a::... com a::... amiga dela... ela (GIO4, R, G) (4) uma pessoa... coladora... por assim dizer... eu dou ma... mais cola do que colo... sabe? por isso que eu acho que se/ que eu acho que quando a gente cola a gente se prejudica... é aquela velha história... que a gente nunca acredita... só quando vai pro vestibular que a gente... eh::...né? bem aquela coisa... né? o sofrimento depois é maior do que na hora que a gente não está pensando... a (GIO4, P, G) C) advérbio ‘talvez’ (parentético epistêmico): (5) mas São Paulo foi que eu vi o sol nascer eu acho (ITA4, N, L) 30 Optou-se por reiniciar a numeração dos exemplos na análise de cada um dos seis verbos. 111 (6) passei o final de semana com eles porque eu cheguei num sábado eu acho... (ITA4, N,L) No trecho (1), o informante expressa que não tem certeza da idade que tinha quando ocorreu o acidente, porque era muito pequeno: tinha provavelmente um ano de idade. No exemplo (2), o informante acredita que o(a) entrevistador(a) saiba fazer algo considerado simples como fazer macarrão, mas ele não tem certeza disso. Nos exemplos (3) e (4), não há menção à dúvida, mas há a exposição de uma opinião. Esse tipo de uso ocorre principalmente nos momentos em que o falante está fazendo uma descrição ou uma conjectura do que ele acredita. Em (3), há uma discussão entre pai e filha, porque os dois tinham opiniões diferentes com relação ao problema apresentado: a filha ficar sozinha em casa com o namorado à noite. Para ela esse fato era normal. Em (4), a subordinada do verbo achar expressa uma opinião do informante acerca da cola, estando na subordinada um argumento contra a cola na prova. Os exemplos (5) e (6) ilustram o que Thompson & Mulac (1991) denominaram parentético epistêmico, funcionando como um advérbio de dúvida e diminuindo o comprometimento do falante com o que é expresso nas subordinadas, já que há uma dúvida a respeito do fatos. As cláusulas subordinadas são na verdade independentes da expressão “eu acho”, que está deslocada para o fim da construção. Neste caso, há uma junção de fatores semânticos e sintáticos para se determinar esse uso. Esse tema e os exemplos ainda serão retomados nesta seção. O sentido de opinião foi subdividido em (a) opinião propriamente dita e (b) sugestão ou conselho. Nesse último tipo, não é o item lexical achar isolado que tem o sentido de sugestão, mas toda a construção formada por esse verbo e seu complemento. Esse complemento apresenta sempre os verbos dever, poder ou ter de/que. Seguem os exemplos desse último tipo: (7) isso... como mesmo pra um desafio... pro aluno ir e provar pra ele... “olha... eu venci... entendeste?” então... é uma coisa assim... isso aí eu acho que ele... ele... deve continuar fazendo... porque a pessoa que entra/ ele faz isso com todo mundo... já conversei com colegas meus... então... aquele choque de entrada/ 112 porque não há mais um relacionamento... o irmão da biblioteca... por exemplo... (GIO4,N, G) (8) eu acho que cada um deles tinha que dar um trabalho um trabalho (...) pra ajudar na prova Dos 509 dados com o verbo achar, 275 apresentam o sentido de opinião propriamente dito, 160 apresentam o sentido de incerteza, 67 apresentam o sentido de sugestão e apenas 9 dados apresentam a função de parentético epistêmico. Portanto, o sentido mais comum para o verbo é o de opinião, em que o informante apresenta um argumento para uma tese. O uso como parentético epistêmico expressa sempre incerteza, mas foi separado desse grupo por ser uma construção gramaticalizada como um todo. Opinião/ ACHAR Incerteza Sugestão Parentético TOTAL percepção Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % 273 54 160 31 67 13 9 2 509 100 Tabela 2– Freqüência de usos do verbo achar. Nos verbos estudados, atribuiu-se um sinônimo que fosse uma paráfrase do verbo. Mas a paráfrase não fica bem estabelecida para o verbo achar. Portanto, foram escolhidos substantivos para distinguir os usos do verbo. Para o sentido de opinião, poderia apresentar-se um dos seguintes verbos: ‘opinar’, ‘pensar’, ‘julgar’, ‘considerar’ ou ‘perceber’; para o sentido de ‘incerteza’, a construção mais adequada deveria ser ‘estar incerto se’ ou o verbo ‘supor’; para o sentido de ‘sugestão’, poderiam apresentar-se os verbos ‘sugerir’, ‘aconselhar’ e, para o parentético epistêmico, o advérbio talvez. Esse último uso vem sempre deslocado da posição inicial. As análises feitas aqui demonstram que há estruturas morfossintáticas diferentes que codificam os diferentes sentidos do verbo achar. As categorias “controle” e “implicatividade” não se aplicam aos dois primeiros sentidos pela própria natureza dos usos. Pode aplicar-se ao sentido de 113 sugestão, porque uma pessoa poderia sugerir algo e alguém poderia executar uma ação em decorrência do que foi sugerido. Por exemplo, a mãe de um menino poderia dizer “Eu acho que você deveria estudar agora” e o menino poderia entender como uma ordem e estudar no mesmo instante. Neste caso, a mãe exerceria controle e o fato expresso na cláusula principal determinaria a execução da ação da cláusula subordinada. Mas esse tipo de dado não ocorreu, porque nas sugestões geralmente o sujeito do cláusula subordinada não é um ser manipulado ou manipulável. Dessa forma, o verbo achar recebeu, em todos os dados analisados, zero nas categorias “controle” e “implicatividade”. Há apenas uma exceção: é o caso de um enunciado em que o sujeito da subordinada é idêntico ao da principal, havendo “controle”, mas não “implicação”: (9) acho que eu até devia procurar me informar mais ... (MON5, O, R) O verbo achar comporta-se como sendo um dos mais independentes da lista, ou seja, sua subordinada apresenta um grau fraco de integração devido às características pragmáticas e semânticas de seus usos. Normalmente esse verbo apresenta uma proposição cujo evento existe independentemente da vontade do sujeito falante. As cláusulas com achar, geralmente, estão na primeira pessoa do sujeito reportando-se ao falante: “Eu acho que”. A fraquíssima integração da subordinada com a principal leva a uma riqueza de usos estruturais, uma vez que as restrições gramaticais são pequenas. Dos verbos transitivos estudados achar é o menos gramaticalizado, porque seus diferentes usos são ainda imprevisíveis se comparados com a rotinização causada pela gramaticalização de verbos como querer. Alguns exemplos do verbo achar são apresentados a seguir: (10) eu não costumo ir à igreja porque eu acho que Deus não está em muita gente ali... porque a igreja passa a ser um ritual... (DIV2,O,L) (11) mas São Paulo foi que eu vi o sol nascer eu acho ... já já na ... aterrissagem (ITA4, N,L) (12) então é... o ponto mais alto acho que dessa viagem... foi Esteios... (ITA4,N,N) 114 (13) Canguaretama ... um grupo animado ... né ... nós/ e ... teve a programação ... a programação encerrou ... acho que ...por ela começar tarde né ... devido o horário que a gente chegou ... encerrou já tarde lá a programação ... eu não lembro bem a hora ... e nós voltamos lá pro ... pro alojamento né ... (SOL4, N, L) (14) uma falta mesmo assim... eu acho que... uma crise de vergonha... geral... da população... eu acho que... eh... falta pro brasileiro... ter mais... eh... senso de responsabilidade... ter mais senso de justiça... ter mais senso de ética... então a gente enfrenta uma crise geral... eh... em todos os setores... da sociedade... eh... você vê... o setor médico está... terrível... está caótico... a (ALC1, O, G) (15) não dá... até gostaria de fazer... mas eu acho que o campo de tradução... pelo menos o campo de tradução do inglês e do francês... ele é muito restrito... quer dizer... há muita coisa pra ser traduzida... mas aqui em Juiz de Fora particularmente... quer dizer... você vai ficar traduzindo o quê? capítulos de livro pra professor... (RON3,O,J) A estrutura (10) é a canônica: sujeito + verbo achar + cláusula completiva. A estrutura (11) apresenta a cláusula principal depois da subordinada, numa espécie de afterthought. A estrutura 12 apresenta o verbo achar no interior da sua cláusula completiva. A sintaxe tradicional seria: “Acho que o ponto mais alto dessa viagem foi Esteios”. O exemplo (13) tem uma cláusula adverbial entre o verbo o achar e a sua completiva. No exemplo (14), o sujeito da subordinada é uma cláusula subjetiva reduzida. No exemplo (15), o sujeito da subordinada é retomado com o pronome ele. Cabe ainda um comentário a cerca da estrutura com o verbo achar posposto à cláusula completiva. Thompson & Mulac (1991) apresentam a hipótese de que as construções do inglês “I think” ‘Eu acho/penso’ e “I guess” ‘Eu acho/adivinho’ sem o conectivo that ‘que’ funcionam como expressões epistêmicas, representando o grau de comprometimento do falante. Essas expressões equivalem aproximadamente ao advérbio de dúvida maybe ‘talvez’. As seqüências “I think” e “I guess” deixam de atuar como cláusulas principais e se tornam livres, podendo ocorrer em diferentes locais da outra cláusula (que, antes, era a subordinada completiva). Os exemplos apresentados 115 pelos autores ilustram um caso em que “I think” é oração principal (exemplo 16) e dois casos em que “I think” é sintagma epistêmico (exemplos 17 e 18): (16) I think that we’re definitely moving towards being more technological. (17) I think 0 exercise is really beneficial, to anybody. (18) It’s just your point of view you what you like to do in your spare time I think. Quando se deslocam da posição inicial, as expressões “I think” e “I guess” têm um contorno entonacional diferente e funcionam cada qual como um adendo. São denominados “Parentéticos epistêmicos”, formando uma unidade que é uma gramaticalização provinda de oração: “Estes verbos epistêmicos, juntamente com seus sujeitos, comportam-se da mesma forma que morfemas unitários epistêmicos em outras línguas, a ponto de serem transportáveis para outras posições além da que poderiam ocupar se estivessem apenas funcionando para introduzir um complemento (...)” (p. 315).31 A freqüência de uso comprova a gramaticalização de think e guess como uma nova classe: esses verbos são mais usados no final da frase do que os outros cognitivos e a freqüência é muito alta na primeira pessoa do singular. Mesmo na posição inicial (como no exemplo 17), esses verbos, mais do que qualquer outro, são usados sem o complementizador that. Em português tem-se esse mesmo uso, só que menos freqüente do que na língua inglesa. Observa-se que, muitas vezes, o escopo do objeto de achar não é uma cláusula inteira, mas parte dela: (19) eu tinha vinte e três acho... vinte e três anos... vinte e dois... (ITA4, N. L) (20) passei o final de semana com eles porque eu cheguei num sábado eu acho (ITA4, N.L) No primeiro caso, a dúvida recai sobre o objeto direto do verbo ter: “vinte e três anos...vinte e dois”. No segundo, a dúvida recai sobre o adjunto adverbial “num sábado”. Dados como esses foram considerados apenas quando se podia ter 31 These epistemic verbs together with their subjects behave very much like unitary epistemic morphemes in other languages, to the point of being ‘transportable’ to positions others than that which they could occupy if they were only functioning to introduce a complement (...)”. 116 certeza de que havia uma cláusula completiva. A expressão “Eu acho” pode referir-se a um sintagma solto ou a uma cláusula com o verbo omitido. No exemplo a seguir, não é possível recuperar uma cláusula completiva para o verbo achar, portanto o dado não foi considerado na pesquisa: (21) fazer a ... a imagem como se fosse um quadro ... desse lugar ... certo? então vamo lá ...I: só ... só uma praia ... paradisíaca ... eu acho ... a casa onde eu fiquei ... num é minha ... é da minha tia ... Nubineuma ... é até irmã de Nubiacira ... aí é essa ... essa casa minha tia ... de vez (VLA4, D, L) O exemplo seguinte apresenta uma expressão “eu acho” dentro de uma cláusula completiva de outro verbo achar. Neste caso, só foi considerado o primeiro uso do verbo achar. Em português, o verbo também parece funcionar como um advérbio, tendo inclusive a mobilidade na estrutura frasal. (22) é... pra educação mesmo... doméstica... quer dizer... que não tem muita utilidade na... na vida... prática... né? de todo dia... eu acho que quem faz letras... se encaminha eu acho que... invariavelmente pro magistério... a menos as pessoas que fazem bacharelado em tradução... né? que aí você cria uma opção... aqui tem... né? já está tendo aliás curso de bacharelado... tanto em inglês quanto em francês... (RON3, O,J) Como só foram considerados os casos em que a cláusula completiva tinha sujeito, muitos dados com “Eu acho” não foram computados na pesquisa (como o exemplos 21 e 23), o que diminuiu muito o número de dados com esse uso: (23) era meia-noite e meia eu acho... ( ITA4,N,N) No caso de cláusulas com “eu acho’ semelhante ao uso inglês de “I think”, sem o conectivo, diminuiu-se um ponto na soma das categorias para se estabelecer o grau de integração, uma vez que a cláusula que seria a completiva está independente e a expressão “eu acho” funciona com um advérbio e não como um verbo que pede um objeto. Em alguns casos, foi difícil decidir se o sentido era o de incerteza ou de opinião, mas, na maior parte das vezes, levou-se em consideração a forma como o enunciado foi construído. O uso como ‘sugestão’ é mais fácil de distinguir, 117 uma vez que há pistas nas cláusulas subordinadas como um sujeito animado ou um verbo como poder ou dever (exemplos 7 e 8). Outro problema foi quando a dúvida (introduzida pelo verbo achar) não era a respeito da informação contida na cláusula subordinada substantiva, mas numa subordinada adverbial à completiva. (24) Canguaretama ... um grupo animado ... né ... nós/ e ... teve a programação ... a programação encerrou ... acho que ... por ela começar tarde né ... devido o horário que a gente chegou ... encerrou já tarde lá a programação ... eu não lembro bem a hora ... e nós voltamos lá pro ... pro alojamento né ... (SOL4, N, L) (25) ... também foi bom o congresso porque a gente conheceu muitas pessoas ... foi diferente dos outros ... porque o grupo que foi a maioria se conhecia né ... eu acho que por não ter ido tanta gente ... então foi interessante ... porque a gente conheceu praticamente ... falava com todo mundo ... conhecia todo mundo ... então ficou melhor né ... pra ... na união ... no envolvimento ... conheceu (SOL4, N, L) No exemplo (24), o verbo achar não indica uma dúvida a respeito do que é dito na cláusula completiva “encerrou já tarde lá a programação”. A dúvida é com relação à causa da programação ter encerrado tarde: “por ela começar tarde”. Há certeza com relação ao núcleo da cláusula completiva do verbo achar e há dúvida em relação a uma parte da cláusula completiva, que por sua vez é uma subordinada à cláusula com o verbo encerrar. O exemplo (25) apresenta o mesmo problema. O informante tem a opinião de que o congresso tenha sido interessante. Mas a causa desse fato talvez tenha sido o baixo número de participantes. Como classificar o verbo achar, neste caso: ele indica opinião/julgamento ou incerteza? No uso apresentado a seguir, o informante parece estar incerto a respeito da dispensa do jogador Careca. Ele diz que acha que Careca pediu dispensa, mas logo depois disse que todo mundo sabe que Careca pediu para sair porque tinha um bom contrato no Japão. Então o informante não tinha dúvidas de que o jogador havia pedido para sair: (26) como já aconteceu agora com... com Careca eu acho que ele pediu dispensa né pediu pra sair... pediu pra sair e.. todo mundo sabe... porque ele pediu pra 118 sair... porque ele já tem um bom contrato no Japão ... né? num vai ... num (CAR1, O,L) Nos três casos, optou-se pelo sentido de incerteza porque o escopo do verbo achar recai sobre uma informação em que há incerteza, mesmo que essa informação não esteja numa cláusula completiva ou mesmo que no discurso subseqüente o informante já mostre certeza com relação a informação dada. Casos como esses não são muito freqüentes. Um estudo detalhado sobre os usos do verbo achar é feito por Galvão (1999), que analisa o verbo de acordo com o modelo da gramaticalização. A autora separa os dados em quatro tipos: achar1 com o sentido de ‘encontrar’, tendo complemento na forma de um SN; achar2 com sentido de apreciação (igual o aqui estabelecido como opinião), tendo complemento oracional; achar3 com o sentido de ‘palpite’ (aqui ‘incerteza’), apresentando também complemento oracional; e achar4 com valor de advérbio (é o que Thompson & Mulac denominaram parentético epistêmico). O achar 2 tem uma subdivisão em que se insere um achar2’ com o complemento sem verbo como em “Acho muito legal Rondon” (p. 82). Esse tipo de dado é, segundo Galvão, um tipo de gramaticalização do achar com sentido de apreciação. Os usos de achar, com exceção do achar1, são considerados casos de gramaticalização, porque, dentre outras razões, o uso pleno (achar1) gerou modalizadores de opiniões e de incertezas (“Eu acho que...). Depois dessa análise qualitativa com a classificação do verbo, sua descrição estrutural e os problemas de análise, serão apresentados resultados referentes ao cruzamento da categoria ‘sentidos’ com outras categorias controladas. Aqui se procura testar o princípio da iconicidade, segundo o qual cada função tende a ser codificada por uma forma diferente. Como há diferentes sentidos e funções para o verbo achar, devem-se buscar diferenças formais (Pessoa gramatical), contextuais (Canal e Tipo de texto) e diferenças de nível de 119 escolaridade (Graus de escolaridade). Além disso, também há diferenças de graus de integração. Essa última é uma categoria que inclui fatores formais e semântico-pragmático. A- Pessoa gramatical Dos 509 dados com o verbo achar, 470 (92%) dos dados têm sujeito na 1a pessoa. Não houve diferença relevante no cruzamento entre sentido e pessoa do sujeito de achar (todos os sentidos concentram um número muito alto de dados na 1a pessoa). O uso como parentético sempre é feito na primeira pessoa do singular, como em inglês. O falante usa o verbo para modalizar a informação, procurando diminuir o grau de comprometimento com o que é expresso. Era, portanto, esperado esse resultado com o verbo referindo-se à primeira pessoa. B- Graus de integração Os resultados relativos a categoria “Graus de integração” (descrita na seção 4.2.1.1) estão expostos na tabela a seguir. O objetivo é estabelecer os graus de integração dos dados com o verbo achar: 120 Menor inte- Graus gração de Aplic % 0 3 1 1 65 13 2 144 28 3 236 46 4 58 11 5 3 1 6 0 0 7 0 0 Maior inte- 8 0 0 gração 9 0 0 TOTAL 509 100 _________ integração ACHAR Tabela 3 - Graus de integração dos usos do verbo achar. Os dados com esse verbo estão distribuídos apenas nos cinco primeiros graus da escala, sendo que a concentração atinge os graus 3 (46% dos dados), 2 (28%), 1 (13%) e 4 (11%). Isso significa que esse verbo tem uma fraca integração com sua completiva. Não há dados com mais de 5 pontos na escala, o que permite concluir que verbo achar comporta-se como um verbo pleno, recebendo poucos pontos nas categorias controladas: modo da subordinada, implicação, controle, etc. A tabela a seguir permite verificar se os sentidos atribuídos a esse verbo estão em graus diferentes de integração com as respectivas subordinadas. 121 Sentidos Opinião/ Incerteza Sugestão Parentético julgamento Graus Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % 0 3 1 3 2 0 0 0 0 1 22 8 34 21 6 9 3 33 2 58 21 55 34 26 39 5 55 3 151 55 58 36 27 40 0 0 4 38 14 12 7 7 10 1 11 5 1 0,5 1 0,5 1 2 0 0 273 100 160 100 67 100 9 100 TOTAL Tabela 4- Sentidos do verbo achar e Graus de integração. Todos os sentidos, exceto o parentético, apresentam maior número de dados no grau 3 e, logo a seguir, no grau 2. O uso como parentético não apresenta dados com grau 3 de integração. Dos 9 dados, 5 têm grau 2. Isso significa que esse uso é menos integrado do que a maioria dos dados com o verbo achar. De todos os sentidos, o sentido de opinião apresenta o maior número de dados com os graus 3 (55%) e 4 (14%), o que indica que esse uso é mais integrado do que qualquer um dos outros usos do verbo achar. C- Canal Como foi dito no capítulo anterior, os informantes produziram textos orais e escritos correspondentes quanto ao assunto. No entanto, o número de dados de verbos cognitivos dos textos orais foi quase quatro vezes maior que o número de dados dos textos escritos. As razões para essa diferença de produção de dados foram expostas na seção acerca das diferenças entre fala e escrita (seção 4.1.1). É claro que essa diferença muito grande de números de dados prejudica o cruzamento com outros fatores, uma vez que o percentual sempre é mais alto para a fala. No entanto, é possível verificar se há relação entre canal e sentidos de cada verbo. É o que pode ser vista através da tabela 5. 122 Sentidos Opinião/ Incerteza Sugestão Parentético TOTAL Percepção Canal Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % Fala 228 52 149 34 54 12 9 2 440 100 Escrita 45 65 11 16 13 19 0 0 69 100 Tabela 5- Usos do verbo achar na fala e na escrita. Houve apenas 69 dados (13%) de achar na língua escrita contra 440 (86%) na língua oral. O número baixo de dados na escrita era esperado, uma vez que os escritores evitam usar tal verbo na 1a. pessoa (92% dos dados estão na 1a. pessoa). Nas aulas de redação, o professor de Português costuma proscrever esse uso. Dos quatros sentidos encontrados, a língua escrita e a língua falada favorecem o sentido de opinião, mas, dentro do universo do canal escrito, esse uso é mais freqüente ainda (65% na escrita; 52% na fala). O segundo uso mais freqüente na língua oral é o de ‘incerteza’, enquanto na língua escrita é o sentido de ‘sugestão’ (ligeiramente mais alto que o de incerteza). O uso como parentético, uma forma mais gramaticalizada, está restrito à língua oral. D- Tipo de texto Aqui o objetivo é verificar se há verbos que ocorrem mais freqüentemente num dado tipo de texto. A alta freqüência de um item num dado contexto pode ser indício de gramaticalização. Por vezes, a gramaticalização não tem o sentido mais restrito (do item lexical para o item gramatical ou do item gramatical para o mais gramatical). O sentido aqui é o mais amplo: o verbo pode fazer parte de uma estrutura que codifica um tipo de texto. Também serão mostrados os resultados do cruzamento entre tipos de texto e os sentidos determinados para cada verbo: 123 Sentidos Opinião/ Incerteza Sugestão Parentético TOTAL Aplic % Aplic %32 Percepção Tipos de textos % Aplic % Aplic 42 45 44 47 2 2 5 5 93 18 28 57 21 43 0 0 0 0 49 9 172 56 68 22 65 21 2 1 307 60 16 59 10 37 0 0 1 4 27 5 Descrição 15 45 17 52 0 0 1 3 33 6 Total 273 54 160 31 67 13 9 2 509 100 Narrativa Aplic % experiencial Narrativa recontada Relato de opinião Relato de procedimento Tabela 6- Usos do verbo achar em diferentes tipos de texto. O verbo achar concentra seus dados nos relatos de opinião (307 dados – 60%), o que é previsível já que é um verbo que, basicamente, codifica a modalidade epistêmica que expressa conhecimento, opinião e crença. O sentido do verbo mais encontrado é obviamente o de ‘opinião’. O segundo tipo de texto mais favorecedor do uso do verbo é a narrativa experiencial (93 dados – 18%), mas agora ocorrem dois sentidos com a mesma distribuição: o sentido de opinião e o de incerteza, cada qual com cerca de 45% dos dados. Neste espaço, o informante representa a modalidade epistêmica expressando também incertezas com relação aos fatos ocorridos. Esse resultado está de acordo com os resultados da pesquisa de Votre (1999) acerca do mesmo verbo. O relato de procedimento e as narrativas recontadas também favorecem o sentido de opinião (59% e 57%, respectivamente, de dados com esse sentido). Nas descrições, prevalece o sentido de incerteza (52%). Há opiniões sobre o que é descrito e há trechos em que o informante demonstra incertezas com relação à posição dos objetos num local, ao tempo que leva uma viagem até o local descrito, dentre outras incertezas. Um resultado interessante é o relativo ao 32 Percentuais obtidos do total de dados do verbo (509 dados). 124 sentido de sugestão: esse sentido praticamente só ocorre nos relatos de opinião, pois é também um espaço propício para a manifestação de sugestões para uma mudança do que é criticado. O uso como parentético com seus poucos dados tem uma concentração maior nas narrativas experienciais (5 dados) e as demais ocorrências distribuemse pelos outros tipos de textos, exceto a narrativa recontada, que não apresenta dado como parentético. Mas o número baixo de ocorrências não permite fazer generalizações. Verifica-se que, nos relatos de opinião, o verbo é muito freqüente, porque o falante o utiliza como estratégia de polidez para expressar suas teses de modo que fique claro que ele não está expressando o conteúdo da subordinada como fato, mas como uma opinião ou ainda como uma proposição cuja veracidade pode ser questionada, pois o falante não tem certeza desse conteúdo. O verbo achar é um modalizador que serve (a) para introduzir uma opinião, permitindo que o interlocutor saiba que é apenas um ponto de vista; (b) para expressar incerteza e libertar o falante do comprometimento da verdade que poderia estar expressa na subordinada e (c) para expressar sugestão. Também neste caso, as regras de polidez estão presentes, pois o verbo indica, de forma atenuada, que se trata de uma sugestão, não de uma ordem. Segundo Brow & Levinson (1978:60), a descoberta dos princípios do uso da linguagem pode coincidir grandemente com a descoberta dos princípios segundo os quais as relações sociais, em seu aspecto interacional, são constituídas: dimensões de que se valem os indivíduos para se relacionarem com os outros de maneira particular.” O uso desse verbo faz parte dos recursos que os falantes, sobretudo os adultos, têm para preservar a sua imagem e manter uma boa relação com o interlocutor. Além disso, verificou-se, nesta tese, que os relatos de opinião que expressam temas mais pessoais, que constituem assunto do dia-a-dia dos informantes, temas mais interessantes para esses informantes, como “religião” e “violência”, têm uma freqüência menor do modalizador achar (principalmente na 125 primeira pessoa). O falante está tão seguro e tem o tema como algo tão constante que não se preocupa em marcar suas opiniões com modalizadores como “Eu acho que...”. Ao contrário, quando os informantes não se sentem à vontade com o tema ou têm insegurança para desenvolvê-lo (como os temas relacionados à economia do Brasil, à seleção para as universidades, às atitudes do presidente Clinton) utilizam muito mais o verbo achar. E- Escolaridade O objetivo é verificar se o grau de escolaridade influencia no uso dos verbos e, principalmente, se há diferenças nos usos dos sentidos dos verbos. Verificou-se a média de uso do verbo por número de palavras produzidas. Graus de escolaridade Ocor. MÉDIA Terceiro grau 170 14 Segundo grau (terceiro ano) 190 16 Oitava série 82 9 Quarta série 40 6 Série inicial (alfa + 1ª série) 27 6 Quadro 4 - Médias de ocorrências do verbo achar em cada 10.000 palavras e Escolaridade. Como era esperado o verbo achar com complemento oracional é mais usado na produção de informantes mais escolarizados. Os informantes menos escolarizados (também na maioria crianças) usam menos esse verbo porque não utilizam a estratégia de polidez envolvida principalmente na modalidade de opinião. A diferença, embora pequena, entre os usos do segundo e do terceiro grau deve-se à produção escrita. Os universitários usam menos esse verbo em seus textos escritos em decorrência do ensino de Redação. O uso do verbo diminui na escrita de informantes mais escolarizados e na escrita formal (não houve dado nos editoriais do JB) e aumenta na fala dos mesmos informantes, os mais escolarizados (e também mais velhos). O quadro seguinte permite verificar se há diferença nos usos do verbo achar quanto a esse fator extralingüístico: 126 Sentidos Opinião/ Incerteza Sugestão Parentético Percepção Escolaridade Ocor. Média Ocor. Média Ocor. Média Ocor. Média Terceiro grau 90 7,6 58 5 16 1,3 6 0,5 Segundo grau 110 9,5 55 4,7 22 2 3 0,2 Oitava série 39 4,5 26 3 17 2 0 0 Quarta série 18 2,5 14 2 8 1 0 0 Série inicial 16 3,4 7 1,5 4 1 0 0 (terceiro ano) (alfa + 1ª série) Quadro 5 - Médias de ocorrências dos sentidos de achar em cada 10.000 palavras Verifica-se que o uso de ‘achar-opinião’ tem as maiores médias e que este uso é mais freqüente a partir da oitava série, crecendo até o terceiro grau. O mesmo ocorre com o sentido de incerteza, mas a diferença entre as médias é menor. O uso como parentético epistêmico ocorreu apenas na fala dos informantes mais escolarizados: 6 dados no terceiro grau e 3 no segundo. Esse recurso para expressar a atitude de incerteza do falante deve se mais comum na fala de informantes mais maduros e mais escolarizados, assim como elementos desgramaticalizados como sabe? né?, tão importantes na argumentação elaborada de falantes escolarizados (cf. Martelotta et alii, 1996).33 5.1.2.2- O verbo ver Nos dados analisados, foram detectados os seguintes sentidos para o verbo ver: ‘enxergar’, ‘experimentar’, ‘ouvir’, ‘perceber’, ‘entender’, ‘constatar’, ‘descobrir’ e ‘pensar’. Ainda houve um sentido difícil de nomear, semelhante ao sentido do advérbio provavelmente: é o uso da expressão “vai ver que”. 33 Com um número tão pequeno de dados não é possível afirmar que esse uso de achar não ocorra na fala de pessoas com menos escolarização. 127 Como houve dificuldade de criar fronteiras objetivas para distinguir alguns dos sentidos acima, foi feito um amálgama com os sentidos mais próximos. Dessa forma, os sentidos encontrados foram: A) sentido de enxergar, experimentar (sentidos mais concretos diretamente ligados aos sentidos humanos): (1) fiz alguns quadros... já... pendurei nos meus quartos alguns quadros... meu tio também... ele faz quadros... [e isso...] E: [e como é que é?] que... você faz? I: bom... vejo... ele fazendo... né? aí depois ele vai me dizendo... como é que eu... tenho que fazer... contornar... como é que eu tenho que mudar a tinta de um pincel sem poder... (JOS27, P, R) (2) É que meu colega disse que vê você passando por aqui todos os dias (QUE32, N, R, Esc). B) sentido de perceber, entender, descobrir, pensar, concluir (sentidos mais abstratos ligados ao plano cognitivo): (3) Tem dia que eu passo horas e horas conversando sobre os estudos. Hoje mesmo eu passei a manhã inteira conversando sobre os estudos. Agora você vê porque eu gosto tanto de conversar sobre a escola. (JUL1,O,L,Esc) (4) Hoje em em dia eu vejo que uma pessoa entrando no mercado de trabalho tem muito menos chances de conseguir um resultado satisfatório do que meus pais tiveram a trinta anos atrás na década de sessenta. (DAN2, O,R, Esc) (5) Estava feita a família e ninguém conseguia destruir, era o amor brilhando nos olhos de cada um. A compreensão dominava a minha vida, comecei a ver como o ser humano tenta sujar o que ele tem de mais bonito, que é o amor. E quando ele assume a sua identidade de ser um humano e que precisa de outros, ele vai sendo liberto do egoismo da soberba da falta de compreensão, enfim, tudo muda. (GIS3, N, L, Esc) C) sentido híbrido: quando o sentido concreto e abstrato estão co-ocorrendo: (6) lembro assim totalmente ... só as coisa mais importante ... foi ... uma linda mulher ... eu assisti lá na casa do meu noivo ... era louca pra assistir ... uma amiga me recomendou ... né ... aí eu disse ... “vou ver se é bom mesmo” ... a história é muito boa mesmo (ROS3, R, L) 128 (7) compro a folha adequada pra fazer... depois eu recorto as figuras... colo... aí eu critico sobre as figuras... aí depois eu faço a capa... aí eu vejo... se ficou bom... (...) se não tiver bom eu faço tudo de novo... aí eu... entrego pra professora... (ISAB, P, N) (8) vê os cami::nhos e tal... então é impressionante... que de lá de cima a gente VE... assim... (a) a gente vê como a gente é pequenininho... entendeu? (b) vê como... tudo é fluido... é lá que eu gosto de ficar... é no alto das montanhas... E: e como é que é lá? (RAF6, D, R) D) sentido de verificar algo no futuro: esse sentido se expressa na estrutura “pra ver se...”, que se configura como uma gramaticalização do verbo em uma cláusula adverbial final: (9) eh:: todo mundo quer dinheiro pra isso... quer dinheiro pra aquilo... e que ele tem que.... segurar... se não não dá... e nisso vai lançar imposto pra ver se entra mais dinheiro... agora... a gente é que sofre... né? porque eles estão lá... tentando... segurar... uma... uma (RAF6, D,R) (10) disse pra... pra ela que se ela não... não desse os brincos... que ele ia::... que ele ia cortar ela... aí até que ela pegou e deu os brinco pra ele pra ver se... se eles deixavam ela quieta... né? e o velho pegou e::/ o velho pegou e... e disse que não entregaria o relógio... (KEL11, R,G) (11) lá no colégio falando que tava cansado ... isso e aquilo ... porque tava estudando ... pra batalhar ver se formava em Letras né ... conseguiu ano passado ... foi uma festa muito bonita ... (GER2, O, L) E- função de advérbio de dúvida (“vai ver que...”) (12) botando gelo... aí... nada de passar... a dor... aí minha mãe chegava “que houve? que houve?” “ah... ele chutou a parede... vai ver que torceu o dedo...” “ah... meu/ o dedo dele... o dedo está quebrado...” começou a confusão... (RAF61, N, R) (13) mas passou... eu não sinto mais nada por ele... só amizade... ele é um cara legal... tem nada demais... vai ver que... é tudo coisa da idade... passa... né? (a gente) diz que é amor... que vai parar de viver porque dele... nada ... bobeirinha... só atraçãozinha (MARI, N, N) Nos exemplo (1) e (2), o verbo ver refere-se unicamente à visão física. No exemplo 3, ver apresenta o sentido de ‘entender’: o informante conclui seu relato de opinião dizendo que, depois de sua argumentação, a entrevistadora deve 129 entender por que ela gosta muito de conversar sobre a escola. No exemplo (4), o informante conclui o que expressa na cláusula subordinada, que é a sua opinião sobre as dificuldades de emprego nos dias de hoje. O exemplo (5) apresenta o verbo ver com o sentido de ‘perceber’ ou ‘entender’: a partir do momento em que ela sentia amor e compreensão dentro de sua família, ela começou a perceber como isso é importante e como o homem tende a destruir o amor. Em alguns casos, é nítida a diferença entre os sentidos estabelecidos em B, mas, na maioria das vezes, dois ou mais sentidos poderiam substituir o verbo ver. O exemplo (6) é classificado como híbrido, uma vez que integra um sentido concreto relativo à visão e um abstrato relativo à percepção, à constatação ou à conclusão: uma amiga recomendou à informante o filme “Uma linda mulher” e ela responde que iria assistir e depois iria concluir se era bom mesmo. O exemplo (7) é do mesmo tipo, pois apresenta o sentido de constatar estando incluído o sentido da visão. O exemplo (8a) é muito interessante, pois nele vê-se nitidamente que o verbo apresenta, ao mesmo tempo, o sentido concreto (visão) e o abstrato (percepção ou compreensão, no caso). Trata-se de uma descrição de um lugar numa montanha de onde se vê a amplitude das coisas e se pode comparar o tamanho daquele cenário com o tamanho do homem. Temse aí o sentido concreto, pois a comparação é feita através da visão. No entanto, também é um momento em que o informante faz uma reflexão sobre a beleza e o poder da natureza e observa que o homem é pequeno, não só em tamanho, mas também o homem tem pouca força, é mais um elemento da natureza. No exemplo (8b), entende-se que o verbo ver, apesar de ainda híbrido, ganha traços mais abstratos, porque a conclusão de que tudo lá é fluído é algo subjetivo e que certamente não se pode ver, mas sentir ou concluir. Provavelmente, o informante está se referindo à vibração emanada daquele ambiente. Inclusive ele informa na escrita que o ambiente é um “maior astral” e é “sublime” (exemplo 14). O informante repete as idéias num outro trecho em que ele apresenta as duas cláusulas subordinadas coordenadas integrando o verbo ver. O trecho é transcrito a seguir: 130 (14) Em compensação, a chegada lá é indescritível: lindíssimo, paisagem perfeita, maior astral são palavras pequenas para aquele lugar tão sublime. Lá de cima se vê parte da serra do Mar e vê-se também [como o mundo é fluído] [e como nós somos pequenos.] (RAF6, D,R, Esc) Os exemplos 9, 10 e 11 apresentam o verbo dentro de uma cláusula adverbial final e o sentido é difícil de se definir, tendendo a ser algo como ‘verificar’. O mesmo sentido também pode ocorrer em outras estruturas diferentes de “pra ver se...”, mas isso é raro: (15) Paulo era um cara meio doidão... entendeu? era envolvido com... negócio de tó::xico... esses negócios... eu e o Jucinei tentávamos muito...ver se tirava ele de::ssa... porque eu achava que::... ele era/ não tinha nada a ver com aquilo... entendeu? que ele tinha nascido pra outras coisas... aí (JOR4, R,R) A estrutura “pra ver se...” pode ter um outro significado, relativo à visão. Neste caso, a classificação foi outra: foi a mesma dada para os exemplos com o sentido concreto de ver. (16) tem até as dunas atrás da casa ... que a gente num deixa de ir ... toda tarde a gente vai lá ... só pra ... só pra ver o sol se pôr ... só pra pegar (VLA4,D,L) Os exemplos (12) e (13) constituem uma gramaticalização do verbo ver com apenas duas ocorrências nos corpora analisados, mas bastante freqüente na linguagem do dia a dia, pelo menos na do Rio de Janeiro. Trata-se de um uso sem sujeito, com o sentido de advérbio de dúvida e cristalizado com o verbo ver: a expressão é “vai ver que...”. O sentido poderia ser parafraseado como uso do advérbio “provavelmente” ou do verbo “dever”: “Ele provavelmente torceu o dedo” ou “Ele deve ter torcido o dedo”; “Provavelmente é tudo coisa da idade” ou “Deve ser tudo coisa da idade”. O sentido de advérbio de dúvida é considerado aqui, mas os dados foram eliminados da análise quantitativa uma vez que não há sujeito na primeira cláusula, impossibilitando a análise de vários fatoeres que formam a categoria “Graus de integração”. 131 Desconsiderando-se, portanto, esse último uso, há, nas amostras, 194 dados com o verbo ver com complemento oracional. Desses dados, 77 têm o sentido mais concreto (‘enxergar’, ‘experimentar’, ‘verificar’); 42 dados têm o sentido abstrato (‘perceber’, ‘entender’, ‘descobrir’, ‘pensar’, ‘concluir’), 42 dados têm o sentido híbrido e 33 dados têm o sentido de ‘verificar algo no futuro’. VER ‘Enxergar’ Perceber/ Híbrido (concreto) compreender (concreto (abstrato) abstrato) Verificar TOTAL + Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % 77 40 42 22 42 22 33 17 194 100 Tabela 7- Freqüência de usos do verbo ver. Postula-se, tendo como base o princípio da unidirecionalidade, que o sentido de ‘enxergar’ é fonte para os demais usos, que foram gerados por transferência metafórica de um verbo que se refere ao sentido humano da visão e passa a codificar estados da mente (de percepção, interpretação, verificação ou dúvida). O sentido híbrido é considerado um uso intermediário entre o concreto propriamente dito e o abstrato. Quanto às estruturas possíveis, as cláusulas subordinadas do verbo ver podem ser: a) cláusula completiva desenvolvida e introduzida por conjunção integrante, como nos exemplos (4) e (6), mencionados nesta seção; b) cláusula completiva desenvolvida e introduzida por um pronome com função sintática dentro da subordinada, como no exemplos (3) e (5); c) cláusula subordinada com verbo no gerúndio e com sujeito, como no exemplo (1) e (17); d) cláusula subordinada com verbo no infinitivo e com sujeito, como nos exemplos (18) e (19). 132 (17) a gente vê os coelhos correndo... isso é uma praia ( VLA4, D, L) (18) e Jó, mais uma vez viu sua mulher morrer aos poucos ( VLA4, R, L) (19) eu ... tenho... participado de várias coisas... vejo várias pessoas falar sobre essa / as religiões (FLA15, O, R) Quando a subordinada é introduzida por pronome (considerada por Kury (1986) uma oração desenvolvida justaposta), não há encaixamento do tipo da “subordinação”, mas do tipo da “hipotaxe”, em que a integração é menor. O pronome exerce uma função sintática dentro da cláusula subordinada ao contrário das conjunções integrantes, sem função sintática e esvaziadas de sentido. A cláusula seguida de pronome teve sua pontuação diminuída em 1 ponto para indicar menor integração quando comparada a um período composto com cláusula completiva com as conjunções que e se. O verbo ver ocorre também na expressão “deixa eu ver”. Neste caso, foram considerados apenas os dados que tinham uma oração completiva após o verbo ver e o sentido atribuído a esse verbo foi o cognitivo (grupo B descrito acima): ver é ‘pensar’, ou ‘formar uma imagem na mente’, como no exemplo a seguir: (20) agora... deixa eu ver se eu esqueci alguma coisa... importante...sim (VLA4, P,L) Os dados eliminados da codificação são aqueles dos tipos apresentados na seção 4.2. Agora, conforme foi feito para o verbo achar, são apresentados alguns cruzamentos entre a categoria ‘sentidos’ e outras categorias. A categoria ‘Pessoa do sujeito’ não foi considerada relevante para este verbo, que não privilegia um tipo de pessoa do sujeito. 133 A- Graus de integração A tabela 8 apresenta os resultados da análise dos graus de integração dos usos do verbo ver: Menor inte- Graus gração de Aplic % 0 1 1 1 13 7 2 65 33 3 75 39 4 34 17 5 6 3 6 0 0 7 0 0 Maior inte- 8 0 0 gração 9 0 0 TOTAL 194 100 _________ integração VER Tabela 8- Graus de integração de cláusulas com o verbo ver. O verbo ver tem comportamento semelhante ao verbo achar: os dados distribuem-se nos 6 primeiros graus da escala. Também como o verbo achar, o verbo ver concentra seus dados nos graus 2 (33%) e 3 (39%). Apresenta 17% de dados no grau 4 e 3% no grau 5. Também é um verbo que, segundo a escala, tem a maioria dos dados com traços de verbos plenos. Não há diferenças importantes quanto aos graus de integração dos diferentes usos do verbo ver: os dados estão concentrados nos graus 2 e 3. Na verdade, o que vai determinar se a estrutura com o verbo ver é mais integrada ou menos integrada é o tipo de visão envolvida, se direta ou indireta. A visão direta normalmente está vinculada à idéia de ‘enxergar’, a visão indireta está ligada à percepção, à interpretação ou a verificação no futuro. Para controlar esse tipo de função, criou-se a partir do trabalho de García (no prelo) uma outra categoria 134 somente válida para o verbo ver (dentre o grupo de verbo analisados nesta tese). Essa categoria é descrita a seguir. B- Visão direta ou indireta García, ao estudar os verbos to find ‘achar’, to think ‘pensar’, to observe ‘observar’ e to see ‘ver’ na narrativa “As viagens de Gulliver”, verificou, entre outras coisas, que, em inglês, as estruturas com “that-clause” favorecem um interpretação indireta do evento (a percepção do evento é indireta), enquanto as estruturas com complemento não-finito codificam a percepção direta.34 Com o objetivo de se verificar se o mesmo fenômeno ocorre em português, os dados com o verbo ver foram codificados segundo o tipo de visão envolvida, se direta ou indireta, conforme é mostrado na exemplificação: a- Visão direta (21) aí eu plantei as mudas... elas estão crescendo ... eu tenho que molhar todo dia::a tenho que ver como é que está a terra... tenho que afofar... (RAF6, R, P) (22) Eu ainda não aprendi direito o caso é que eu vejo meu tio fazer e depois eu imito (JOS27, P, R, Esc) b- Visão indireta (23) se você ler a bíblia profundamente ... você vai ver que Deus não é esse Deus que a igreja prega ( DIV2, O, L) (24) A compreensão dominava a minha vida, comecei a ver como o ser humano tenta sujar o que ele tem de mais bonito, que é o amor. (GIS3, N, L) Os resultados da língua portuguesa foram muito semelhantes aos encontrados por García na língua inglesa, confirmando a hipótese de que existe um relação icônica entre a função (o tipo de visão envolvida na estrutura de subordinação) e a forma de codificação da subordinada (se desenvolvida com verbo no indicativo ou se reduzida de gerúndio ou infinitivo) A tabela seguinte apresenta esse resultado: 34 O autor mostra que a distinção entre visão direta e visão indireta nem sempre é clara, porque a visão indireta pode ser uma inferência feita a partir de experiências visuais. 135 Estrutura de subord. Visão Ver + conectivo+ Ver + cláusula não-finita TOTAL cláusula finita Aplic % Aplic % Aplic % Visão direta 55 52 51 48 106 100 Visão indireta 88 100 0 0 88 100 Tabela 9- Relação entre Visão e Modo da subordinada A visão direta pode ser codificada tanto por uma completiva com conectivo mais cláusula finita quanto por uma cláusula reduzida. Mas a visão indireta, a que codifica as percepções e interpretações, só pode ser codificada pela forma menos integrada, que é a completiva finita com verbo no indicativo. A tabela também mostra que todos os dados com completiva no modo reduzido codificam a visão direta, ou seja, a forma mais integrada está a serviço da idéia de visão direta. O subprincípio da proximidade explica, portanto, a variação estrutural do verbo ver : quando o evento codificado não é visto diretamente pelo referentesujeito da cláusula principal, sua subordinada é codificada através de uma cláusula finita com verbo no indicativo, um tipo de estrutura menos integrada. A estrutura mais integrada, com cláusula reduzida, sempre codifica um evento visto diretamente pelo referente-sujeito do verbo ver, de modo que o falante une mais na sua produção lingüística o que é visto diretamente. C- Canal Houve 33 dados na amostra escrita e 161 dados na amostra oral. A língua escrita privilegia o sentido de ‘enxergar’ (45% dos dados de língua escrita), enquanto a língua oral tem uma distribuição mais homogênea. Esse resultado era esperado, pois os sentidos de ‘perceber, ‘verificar’ e o chamado híbrido são mais subjetivos enquanto o sentido de ‘enxergar’ é neutro. O sentido de ‘perceber’, o mais abstrato, é um modalizador que introduz uma análise com base em 136 percepções e interpretações do referente-sujeito. Na escrita, esse tipo de modalização é evitada como um dos recursos de manter a objetividade (ensinada nas aulas de Redação). D- Tipos de texto A próxima tabela apresenta os resultados relativos ao verbo ver e seus sentidos. Sentidos ‘Enxergar’ ‘Perceber/ Híbrido (concreto) compreender (concreto (abstrato) abstrato) Tipos de textos Verificar TOTAL + Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % 21 38 12 21 15 27 8 14 56 30 20 40 8 16 14 28 8 16 50 26 16 39 13 32 4 10 8 20 41 20 11 37 6 20 11 37 2 7 30 15 Descrição 9 53 3 18 4 24 1 6 17 9 TOTAL 77 40 42 22 42 22 33 17 194 100 Narrativa experiencial Narrativa recontada Relato de opinião Relato de procedimento Tabela 10- Usos do verbo ver e Tipos de texto. A narrativa é o tipo de texto favorecedor do uso do verbo ver. Do total de uso, 106 dados (56% da amostra) estão nas narrativas, juntando-se aí os dados das narrativas experienciais (56 dados) e das narrativas recontadas (50 dados). Esse tipo de texto favorece o uso do verbo ver, porque o falante narra o que viu (enxergou ou percebeu) ou o que um conhecido vivenciou. Sabe-se que a verbalização de um fato não é a réplica da experiência real, mas o resultado de diversos fatores cognitivos, pragmáticos e estruturais. No entanto, essa verbalização é criada a partir da consciência do falante, que vive uma experiência 137 e que percebe (através do órgãos sensoriais, principalmente dos olhos) o que está ocorrendo a sua volta. Chafe (1980) compara as propriedades da consciência com os movimentos dos olhos: os olhos percebem cada ser/evento num dado tempo; as fixações são limitadas em duração; há uma área central que processa a informação com mais acuidade e outra periférica. O modo de perceber a realidade, fixando os olhos em determinados seres/eventos, é a forma como a consciência processa as informações, focalizando em alto grau uma pequena parte da informação e deixando na periferia uma grande parte desta. O indivíduo tem, portanto, consciência da realidade ora focalizando uma pequena parte da informação, ora outra. O que é deixado na periferia também está na consciência, só que de forma menos nítida (como na visão). Portanto, o ato de ver (tanto o ver/enxergar como o ver/perceber) é muito importante no formação do discurso narrativo. Em todos os tipos de textos, o sentido mais concreto é o predominante. Os relatos de opinião apresentam um número alto de dados com o sentido mais abstrato, porque é o tipo de texto propício para a interpretação de fatos. Os relatos de procedimento apresentam um número alto de dados com o sentido híbrido, porque neste tipo de texto os informantes relatam como realizar um dado procedimento e constatam se o que fizeram teve o resultado esperado. E- Escolaridade Como ocorre com o verbo achar, o número de dados com o verbo ver também cresce à medida que se aumenta a escolaridade (mas aqui as médias estão mais próximas): informantes da série inicial e da quarta série utilizam menos o verbo ver (médias de 2,6 e 2, respectivamente), enquanto os informantes das outras séries mais elevadas produziram um número maior de dados com esse verbo (médias acima de 4 dados em cada 10.000 palavras): 138 Graus de escolaridade Número de MÉDIA ocorrências em 10.000 palavras Terceiro grau 58 5 Segundo grau (terceiro ano) 48 4 Oitava série 52 6 Quarta série 19 2,6 Série inicial (alfa + 1ª série) 17 2 Quadro 6- Médias de ocorrências do verbo ver em cada 10.000 palavras e Escolaridade. Ao se analisar a relação entre sentidos do verbo e graus de escolaridade, verificou-se que todas as séries utilizam com predominância o uso mais concreto do verbo, exceto o terceiro grau que utiliza os sentidos concreto e abstrato na mesma proporção35: Sentidos ‘Enxergar’ ‘Perceber Híbrido Verificar Total Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % Terceiro grau 18 31 19 33 15 26 6 10 58 30 Segundo grau 20 42 14 29 9 19 5 10 48 25 Oitava série 21 40 6 12 7 13 18 35 52 27 Quarta-série 11 58 1 5 5 26 2 11 19 10 Série inicial 7 41 2 12 6 35 2 2 17 9 Total 77 40 42 22 42 22 33 17 194 100 Escolaridade Tabela 11: Relação entre sentidos do verbo ver e Escolaridade. A diferença entre as séries está no uso abstrato (‘perceber’, ‘entender’, ‘constatar’, etc.): como era esperado, as séries mais elevadas utilizam mais freqüentemente o sentido mais abstrato. O sentido de ‘verificação’ é mais usado na oitava série, uma série intermediária que propícia o uso mais informal do verbo. 35 Neste caso, optou-se por apresentar a freqüência de uso, ao invés da média em 10.000 palavras, porque as médias ficaram muito baixas. Mas, em ambos os casos, verificaram-se as mesmas tendências. 139 5.1.2.3- O verbo saber Os sentidos mais perceptíveis do verbo saber nos corpora analisados são: A) ‘conhecer’, ‘ter uma informação’ (modalidade epistêmica): (1) porque eu era menina ... que ele queria um menino ... aí de/ mas depois que ele soube ... que a outra mulher ganhou... um menino ... aí ele quis ficar comigo (ANA 40, R, R) (2) É roupa pra lá e roupa pra cá. Você sabe como é quarto de menino. (JOR4, D, R, ESC) (3) e precisava tirar cinco nessa prova... mas não sabia se ia tirar (FLA14, N, R) B) ‘ser capaz’ (modal de capacidade) (4) pô ...comida eu sei fazer... pô (JOR4, P,R) (5) eu sei fazer molho branco, bate no liquidificador (SUZ21, P, R, ESCR) (6) eu sei fazer uma florzinha de papel crepom... (ERI3, P,R) O primeiro sentido foi subdividido em ‘conhecer’ e ‘constatar’. Quando o sentido é de ‘constatar’, há uma gramaticalização na primeira pessoa do singular e sempre no presente do indicativo, como pode ser lido abaixo: (7) teve que prestar socorro ao cara lá né?... aí eu sei que ele fez os curativos lá no ... no... no cara todo ... era bem jovem o cara (CAR1,R, L) (8) “eu tô pronta pra ir”... eu sei que finalizou na hora agá mesmo ... meus pais num queriam deixar ... mas na hora agá... aí eu digo ... “não... eu vou” (GIS3, R, L) (9) eu num quero questionar isso.... mas eu sei que chegamos... sim... mas depois de São Paulo teve Santa Catarina (ITA4, N,L) (10) o carro ia cair no rio... aí eu sei que minha tia se machucou todinha ... que ela vinha no banco da frente... (ROS3, N,L) Esse uso ocorre normalmente quando o falante, no momento da enunciação, parece estar tirando conclusões de fatos passados ou parece estar 140 fazendo constatações. Geralmente, a cláusula principal com o verbo saber é pronunciada com menos intensidade que a sua subordinada. Além disso, há um esvaziamento semântico da cláusula principal com o verbo saber, que pode até ser omitida. Pelas características apresentadas, esse uso é considerado uma gramaticalização do verbo saber, semelhante àquela descrita a respeito da expressão epistêmica “I think” do inglês ainda na posição canônica, mas sem a mobilidade na frase. A integração com a sua cláusula considerada subordinada é pequena, porque esta é praticamente independente da parte “Aí eu sei ...” Comparem-se os dados apresentados com “eu sei que...”, considerado uma gramaticalização (exemplos 8, 9 e 10), com os dados a seguir (também na primeira pessoa do singular), em que o verbo saber tem uma intensidade maior e um sentido mais nítido relacionado com o conhecimento. Nestes casos, não há gramaticalização: (11) eu acredito em Deus... sei que existe um Deus vivo (FLA15, O, R) (12) ele falou assim “mentira... eu sei que essa caixa aí é da Redley... (ROB33, N,R) A seguir há um dado em que o verbo saber aparece na cláusula principal e na subordinada, que por sua vez é principal a outra completiva. O primeiro uso é semanticamente mais esvaziado do que o segundo: (13) quando ele saía ... né? sei que eu sabia... quando ele saía e tudo (ROS3,N,N) Constatou-se que o uso “eu sei que” (geralmente “aí eu sei que”) é muito mais freqüente no corpus de Natal. Todos os três sentidos têm um traço comum que é o de “ter conhecimento”, seja uma informação, uma conclusão ou uma capacidade, geralmente a capacidade de realizar uma prática. O verbo saber com o sentido básico de ‘conhecer’ foi o uso mais freqüente: 261 (46%) ocorrências em 565 dados. Em seguida, aparecem os usos de saber com o sentido de ‘ser capaz’ (235 dados – 41%) e os com o sentido de ‘constatar’ (69-12%). 141 SABER Conhecer/Ter Constatar certeza eu sei que” “Aí Ser capaz TOTAL Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % 261 46 69 12 235 41 565 100 Tabela 12- Freqüência de usos do verbo saber. No sentido de ‘conhecer’ ou ‘constatar’, as categorias “Controle” e “Implicatividade” não se aplicam. No sentido de ‘ser capaz’, a categoria “Controle” pode receber um ponto, porque o sujeito da primeira parte da “locução” é idêntico ao da segunda parte. Normalmente, nos dados analisados, houve controle da ação, a não ser no caso da negação, quando se marcou zero em todos os casos. (14) não sabia fazer absolutamente nada... aí resolvi voltar (RON3, N, J) O verbo saber com o sentido de capacidade tem uso muito diferente do verbo com sentido epistêmico. No primeiro caso, o modo do verbo da segunda parte da “locução” é sempre o infinitivo, o tempo de realização dos eventos é simultâneo, o sujeito é sempre idêntico, é quase sempre individuado e não há massa fônica separando as duas partes da “locução”. (15) I: eu sei fazer um coração... E: é isso aí... a gente vai começar então pelo... pelo coração (ELIZ, P, N) (16) Bom, eu sei lavar carro (MARC, P, N, Esc) Os usos com sentido de conhecimento têm características gramaticais e semânticas mais imprevisíveis, porém apresentam alguns usos que se repetem: o modo da subordinada é sempre o indicativo, não há controle e implicação. Essas características demonstram que esses usos são menos integrados. À mesma conclusão chega-se se se pensa nas demais categorias, com resultados imprevisíveis, pois o tempo pode ou não ser simultâneo, o sujeito da segunda parte pode ou não ser idêntico, etc. Há menos restrições semânticas, pragmáticas e estruturais, como pode ser visto nos exemplos: (17) eu acho que eu não andava muito legal ... sei que não gostei de Salvador queria continuar viajando (RON3, N.J) 142 (18) acho que era greve... uma greve... não sei ( ) sei que as duas pessoas eram de fora (RON3, N,J) (19) e falou que/perguntou se/ porque que/ se eu sabia por que que eles tinham brigado ... aí eu falei que não (SIL4, N, J) (20) eles sabem que não acontece nada com eles... continuam roubando (SIL4, O, J) (21) está caótica entendeu? não sei se ,,, daqui a uns tempos.... os seu filhos ... entendeu? de repente vão ter condições ... de estudar numa mesma faculdade que você (JOR4, O, R)] (22) aí eu disse... a “quem sabe eu não venho aí na tua rua... é tão fácil (ITA4, N, L) O exemplo (17) tem sujeitos idênticos e o (18) tem sujeitos diferentes. No exemplo (19), a subordinada é introduzida por pronome e ainda há um expletivo (que). No exemplo (20), a subordina está na ordem VS. No exemplo (21), há um adjunto adverbial deslocado, ficando entre a cláusula principal e a subordinada. O exemplo (22) apresenta uma completiva sem conectivo ou pronome. Quando a subordinada é introduzida pelos pronomes quando, quem, que, onde, etc. (ao invés de complementizador), adota-se na metodologia a mesma postura apresentada para o verbo ver: diminui-se um ponto na contagem final para se estabelecer o estágio de gramaticalização. Essa medida é tomada para se apresentar uma diferença de grau entre uma estrutura tipicamente subordinada e uma hipotática. O mesmo procedimento foi realizado quando não havia conjunção ou pronome e a cláusula subordinada estava justaposta à principal: (23) A minha professora chegou pra mim e falou que aprofessora estava gravida e o pai não sabia ela estava grávida so quim sabia que era a mãe dela. (JUC76, R, R, Esc)36 36 O dado “so quem sabia que era a mãe dela” não foi considerado na análise, porque “era a mãe dela” não complementa o verbo saber. As possilidades de análise são: a) só quem sabia era a mãe dela” ou só quem sabia que ela estava grávida era a mãe dela”. 143 Neste caso, a oração sem conectivo “ela estava grávida” complementa o verbo saber. Os dados com o verbo saber apresentaram menos problemas para a análise do que os dados com o verbo achar. Alguns dados, de natureza diferente dos apresentados na lista dada nas seções 4.2 e 5.1.2.1, foram deixados de lado aqui: 1) quando não foi possível ter certeza se a cláusula iniciada pela conjunção que era mesmo completiva ou se era uma explicativa: (24) ela diz que ela saiu... në? agora não sei... que sai com todo mundo... ela falou que saiu com ele (ADR72, R, R) 2) quando havia a forma por quê sem introduzir uma cláusula completiva, mesmo quando esta poderia estar anteposta à cláusula principal: (25) gostei mais ainda... sabem por quê ?... ele me agradou muito com seu jeito de ser (MAR77, N, R) 3) quando havia uma cláusula anteposta ao verbo saber e os pronomes isto ou disto poderiam estar elípticos: (26) devia ter saído na reunião que eu havia entrado... eu não ... não fiquei sabendo [disto] que eu tinha ido embora mais cedo ... pra ir na pizzaria ... aí eu ... subi um posto a mais... (LEO10,P,J) 4) quando o verbo da cláusula subordinada está elíptico: (27) Um belo dia, não sei se por causa dos contatos, ele passou em frente a delegacia e viu lá seu carro estacionado (RAF6, R, R, ESC) [não sei se isso foi/ocorreu por causa dos contatos] Um problema encontrado foi tentar estabelecer uma diferença entre as estruturas “saber como mais infinitivo” e “saber mais infinitivo”, como nos exemplos dados: (28) a- ... não sabia como tratar ele (GIO4, N,G) b- ...não sabia tratar ele. Na cômputo, o exemplo (28b) receberia uma pontuação maior, indicando um grau mais forte de integração. A presença de um pronome ou advérbio, como 144 em (28a), indica hipotaxe, portanto menor integração. Semanticamente, a diferença parece estar no escopo da segunda parte da “locução”: em (28a) uma ênfase maior é dada à palavra como, que funciona como adjunto adverbial de modo. No exemplo (28b), o referente-sujeito não tem a capacidade de tratá-lo, ou seja, o escopo é a ação de tratar e não a forma de fazê-lo. Propõe-se aqui uma direção para a gramaticalização do verbo saber, partindo dos dados em que a conexão entre a principal e a subordinada é menor para os dados em que a conexão é maior. Os exemplos inventados ilustram a análise na ordem dada, sendo (29b) uma estrutura intermediária: (29) a- Não sei como devo cozinhar peixe/ Não sei como ele cozinha peixe. b- Não sei como cozinhar peixe. c- Não sei cozinhar peixe. Há um dado em que o informante põe uma vírgula entre o verbo saber e a cláusula iniciada por como. Esse é um indício de menor integração: (30) Mas, não é só isso que vocês querem saber, né!? Vocês querem saber, como é que faz!? Pois eu falo: __ Pegue um prato e vidro, e deixe separado. (ANG41, P, R, Esc) Dada a análise qualitativa, serão apresentados os resultados do cruzamento dos sentidos do verbo saber com outras categorias: A- Pessoa gramatical Os usos dos verbos saber apresentam diferenças importantes neste cruzamento como pode ser visto na tabela 13, que apresenta os resultados relativos ao sujeito desse verbo. Recordando, três foram os sentidos atribuídos ao verbo ver: (a) ‘conhecer/ter certeza’, (b) ‘contatar’ e (c) ‘ser capaz’ . 145 Pessoa do suj. Sentidos 1ª pessoa Aplic 2ª pessoa 3ª pessoa % Dados % Aplic TOTAL % Aplic % Conhecer/Ter certeza 138 53 24 9 99 38 261 100 Constatar 69 100 0 0 0 0 69 100 Ser capaz 171 73 5 2 59 25 235 100 TOTAL 378 66 29 5 158 28 565 100 Tabela 13- Usos do verbo ver e Pessoa gramatical do sujeito. O sentido de ‘constatar’ (“aí eu sei que...”) – que foi descrito na acima como uma gramaticalização – apresenta todos os seus dados na 1a pessoa do singular, da mesma forma que ocorre com as expressões “I think” e “Eu acho”. O sentido de ‘conhecer’ apresenta 53% de seus dados na 1a pessoa, 9% na 2a pessoa e 38% na 3a pessoa, não havendo uma polarização. O sentido de capacidade apresenta 73% na 1a pessoa, uma vez que a maior parte dos dados com esse sentido são encontrados nos relatos de procedimento onde os informantes apresentam (na 1a pessoa) o que eles sabem fazer. B- Graus de integração Através da tabela a seguir é possível verificar os graus de integração dos usos do verbo saber: 146 Menor inte- Graus gração de integração Aplic % 0 16 3 1 110 19 2 106 19 3 74 13 4 23 4 5 10 2 6 42 7 7 167 29 8 16 3 9 1 0,1 TOTAL 565 100 Maior integração _________ SABER Tabela 14- Graus de integração de cláusulas com o verbo saber. Os dados com o verbo saber podem ter pouca integração com a subordinada (grau 1, 2 e 3) ou forte integração com a subordinada (grau 7). É imprescindível verificar os sentidos do verbo para explicar esse comportamento aparentemente estranho. A relação sentido e graus de integração pode ser vista na tabela a seguir: Sentidos Conhecer/Ter Constatar certeza eu sei que” Aplic % Aplic “Aí Ser capaz % Aplic % Graus 0 13 5 3 4 0 0 1 68 26 42 61 0 0 2 92 35 14 20 0 0 3 66 25 8 11 0 0 4 20 8 2 3 1 0,5 5 1 0,5 0 0 9 4 6 0 0 0 0 43 18 7 1 0,5 0 0 166 70 8 0 0 0 0 16 7 9 0 0 0 0 0 0 261 100 69 100 235 100 TOTAL Tabela 15: Usos do verbo saber e Graus de integração. 147 Dois usos do verbo saber têm comportamento semelhante aos verbos achar e ver: o sentido de ‘conhecer/ ter certeza’ e o sentido de ‘constatar’. Ambos são sentidos que se referem à modalidade epistêmica. São usos menos integrados à subordinada, concentrando seus dados nos graus 1, 2 e 3. O sentido de ‘constatar’ é ainda menos integrado, porque é usado no presente, no momento da enunciação, para apresentar conclusões, constatações a respeito de fatos ocorridos no passado. Há um distanciamento temporal e contextual entre o que é expresso na cláusula principal (“aí eu sei”) e o que é expresso na subordinada. O sentido de capacidade faz parte de cláusulas principais mais integradas às subordinadas (70% dos dados tem grau de integração 7). Seu comportamento sintático e pragmático se distancia dos verbos cognitivos e se aproxima dos verbos volitivos, principalmente do verbo querer, como poderá ser visto ainda neste capítulo. Com o sentido de capacidade, o verbo saber é um modal e, como tal, tem muitos traços de um verbo auxiliar prototípico. Na escala dada, os usos do verbo saber com o sentido de capacidade não apresentam qualquer dado com grau 3 ou menos. É possível simplificar a tabela 15 apresentando 3 grupos de graus de integração: primeiro grupo de 0 a 3; segundo grupo de 4 a 6 e terceiro grupo de 7 a 9. Sentidos Conhecer/Ter Constatar certeza “Aí Ser capaz eu sei que” Aplic % Aplic % Aplic % Graus 0, 1 ,2 e 3 239 91 67 97 0 0 Graus 4, 5 e 6 21 8 2 3 52 23 Graus 7, 8 e 9 1 0,5 0 0 188 77 261 100 69 100 235 100 Graus TOTAL Tabela 16- Usos do verbo saber e agrupamentos de Graus de integração. 148 O verbo saber codifica duas modalidades, uma epistêmica, e outra de capacidade, sendo que essa diferença é refletida na morfossintaxe dos usos: os usos como epistêmicos apresentam mais de 90% dos dados com pouca integração, enquanto o uso como modal de capacidade não apresenta dados no primeiro agrupamento (graus 0, 1, 2 e 3) e apresenta cerca de 80% de seus dados no último agrupamento (graus 7, 8 e 9). Dos três verbos cognitivos estudados, o verbo saber é o que mais permite verificar a atuação do princípio da iconicidade, sobretudo do subprincípio da proximidade: a) o uso epistêmico reflete uma crença do referente-sujeito, que pode ser verdadeira ou falsa; não há controle do sujeito da principal sobre o da subordinada; não há implicação de eventos; o sujeito da subordinada pode ser animado ou inanimado; pode ser individuado ou não e a subordinada pode apresentar eventos em qualquer tempo, independente do tempo do verbo saber. Tudo isso se reflete na sintaxe, codificada de modo que a cláusula principal e a subordinada tenham uma integração muito fraca: a subordinada é expressa no modo indicativo com um complementizador; o sujeito dessa subordinada pode ser ou não idêntico ao da principal; e é possível inserir outra cláusula entre a principal com verbo saber e a sua completiva. Dados com essas características foram codificados como estando no primeiro agrupamento de graus ( de 0 a 3). b) o uso modal codifica uma capacidade (na grande maioria das vezes, física) do referente-sujeito. Algo que ele aprendeu pela experiência ou reflexão. Essa capacidade não se refere a outros indivíduos, mas ao próprio referente-sujeito do verbo saber. Como reflete a capacidade do referente-sujeito e reflete algo que passa a ser característica desse ser, é esperado que a morfossintaxe também espelhe essa integração entre o verbo saber e a sua completiva (que codifica o que é sabido). Neste uso, a subordinada sempre tem tempo idêntico ao da principal, tem sujeito sempre animado e geralmente individuado, não há implicação (porque o verbo saber não é implicativo). Morfossintaticamente, o sujeito da completiva é sempre zero, o verbo está sempre no infinitivo e não há 149 inserção de elementos entre o verbo saber e a cláusula subordinada. Por todas essas características, o uso como modal é muito mais integrado à subordinada do que o uso como verbo epistêmico. C- Canal A tabela 17 apresenta os resultados da análise do verbo saber quanto ao canal: Sentidos Conhecer/Ter Constatar “Aí Ser certeza eu sei que” capaz TOTAL (capacidade adquirida) Canal Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % Fala 196 46 67 16 162 38 425 100 Escrita 65 46 2 1 73 52 140 100 TOTAL 261 46 69 12 235 41 565 100 Tabela 17- Usos do verbo saber na fala e na escrita. O verbo saber tem um número considerável de dados na modalidade escrita (140 dados - 25%). Não há diferenças percentuais no uso de saber com o sentido de conhecimento (46% em ambos os canais). O sentido de ‘constatar’ é muito mais freqüente na língua oral. Esse uso é bastante informal, está gramaticalizado na forma “Eu sei que”, sempre na primeira pessoa e no presente do indicativo. Sua cláusula subordinada normalmente refere-se a um fato do passado (vide exemplos 8, 9 e 10 desta subseção). D- Tipos de texto O verbo saber apresenta uma distribuição mais homogênea entre os tipos de texto: 150 Sentidos Conhecer/T Constatar “Aí Ser capaz TOTAL er certeza eu sei que” Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % 66 62 21 20 19 18 106 19 88 56 43 28 25 1 156 27 73 63 2 2 40 35 115 20 17 10 0 0 148 90 165 29 Descrição 17 74 3 13 3 13 23 4 TOTAL 261 46 69 12 235 41 565 100 Tipos de textos Narrativa experiencial Narrativa recontada Relato de opinião Relato de procedimento Tabela 18- Usos do verbo saber em diferentes Tipos de texto. Juntando os dois tipos de narrativas, verifica-se que 262 dados (46% da amostra) estão reunidos no gênero narrativo. O sentido epistêmico de ‘conhecimento’ ocorre mais freqüentemente em todos os tipos de texto analisados, exceto nos relatos de procedimento, em que o sentido mais freqüente é o de capacidade. Era esperado que esse sentido fosse predominante nos relatos de procedimentos, porque os informantes relatam os procedimentos do que sabem fazer, seja uma receita de um prato, uma pintura ou um jogo. Dos três verbos cognitivos, o verbo saber é o único que ocorre no JB (10 dados), porque é um verbo não-marcado pela subjetividade e pela informalidade. Dos seus usos, 9 dados têm o sentido de conhecimento e apenas 1 dado tem o sentido de capacidade. O predomínio do primeiro sentido é coerente com o fato de o texto se tratar de uma argumentação. E- Escolaridade O verbo saber comporta-se de forma semelhante ao verbo achar e ver: o número de dados aumenta à medida que aumenta a escolaridade. Mas aqui a 151 fronteira está entre a série inicial e a quarta série: os informantes menos escolaridade produziram um média de 7 dados, enquanto a partir da 4a. série a média praticamente dobra: Graus de escolaridade Número de MÉDIA ocorrências 10.000 palavras Terceiro grau 163 14 Segundo grau (terceiro ano) 177 15 Oitava série 100 12 93 13 32 7 Quarta série ª Série inicial (alfa + 1 série) em Quadro 7- Médias de ocorrências do verbo saber em cada 10.000 palavras e Escolaridade. Verificou-se se havia diferenças nos usos do verbo nos diferentes graus de escolaridade. A média de ocorrência de cada sentido em cada 10.000 palavras encontra-se no quadro a seguir: Sentidos Conhecer/Ter Constatar Ser capaz certeza Ocor. Média Ocor. Média Ocor. Média Escolaridade Terceiro grau 112 9,4 21 1,7 30 2,5 Segundo grau 77 6,7 34 3 66 5,7 Oitava série 40 4,6 14 1,6 46 5,3 Quarta série 26 3,6 0 0 67 9,4 Série inicial 6 1,2 0 0 26 5,6 (terceiro ano) ª (alfa + 1 série) Quadro 8 - Médias de ocorrências dos sentidos do verbo saber em cada 10.000 palavras e Escolaridade. A relação ‘sentidos do verbo saber’ e ‘escolaridade’ revela diferenças interessantes. Há dois grupos de escolaridade bem diferentes quanto aos usos do verbo saber: um grupo reunindo os informantes mais escolarizados (segundo e terceiro graus) com uma produção maior de dados com o sentido de conhecimento; e outro grupo com os informantes menos escolarizados (série 152 inicial e quarta série) com uma produção maior de dados com o sentido de capacidade. Esse resultado era esperado, porque o sentido de conhecimento (modalidade epistêmica) é mais abstrato e requer uma estrutura de subordinação mais complexa (verbo mais conectivo mais uma cláusula completa, com sujeito e verbo flexionado); enquanto o sentido de capacidade (modal de capacidade) é mais concreto e é codificado numa estrutura mais simples (verbo mais verbo no infinitivo). A oitava série é uma série intermediária e apresenta médias de ocorrências de dados com os sentidos de conhecimento e de capacidade muito próximas. Outro resultado interessante é o uso do sentido de ‘constatar’: os informantes com menos escolarização não apresentam qualquer dado com esse sentido. Esse uso, apesar de mais informal, requer uma experiência lingüística maior. Como foi dito no início desta seção, esse sentido ocorre quando o falante, no momento da enunciação chega a determinadas conclusões; há um esvaziamento semântico da cláusula principal, que recebe uma intensidade bastante reduzida; e a integração com a cláusula subordinada é pequena, porque esta subordinada é praticamente independente da oração com saber (cf. os exemplos de 7 a 10 desta subseção). Os informantes menos escolarizados devem utilizar menos os usos mais abstratos do verbo saber e as suas estruturas mais complexas. Esse resultado remete a um problema: se as estruturas mais integradas são derivadas das menos integradas, como afirmam os funcionalistas, então a construção de saber-ser capaz (codificada através de saber + Inf) seria derivada da construção saber- conhecer (codificada atrabés de “saber + que+ cláusula finita”). O sentido epistêmico serviria como fonte para o sentido modal. Mas, no caso do verbo saber, um sentido mais abstrato estaria gerando um sentido mais concreto, que envolve geralmente traços abstratos – ligados à cognição, ao armazenamento na memória – e envolve traços concretos – ligados ao tato, à manejo. Essa direção infrigiria o princípio da unidirecionalidade semântica. 153 Do ponto de vista sincrônico, há como considerar os diversos graus de integração, sem mencionar a direção da integração e da mudança semântica. Quanto ao ponto de vista histórico, o trabalho remete à discussão que vem ocorrendo desde o final da década de 90 com relação à existência de princípios relativos a qualquer tipo de unirecionalidade. Essa questão ainda será abordada na seção 5.2. 5.1.2.4- Graus de integração dos verbos cognitivos – conclusões parciais Para se comparar o comportamento dos verbos cognitivos na escala de integração proposta, serão representados no gráfico a seguir os resultados da análise de cada verbo: Gráfico 2: Graus de integração de cláusulas com verbos cognitivos 50 45 Percentuais 40 35 30 25 20 15 10 5 0 O 1 2 3 4 5 6 7 8 9 Graus ACHAR % VER % SABER % Os verbos achar e ver têm comportamento semelhante, apresentando, nas curvas, pontos máximos nos graus 2 e 3. Não há dados com grau 6 ou grau maior. Esse resultado comprova a hipótese de que a integração entre as cláusulas com esses verbos e suas completivas é fraca. O verbo ver é um pouco mais 154 integrado do que o verbo achar, pois ver tem uma freqüência um pouco mais elevada de dados do que achar nos grau 4 e 5: no grau 4, o verbo ver tem 17% dos seus dados, enquanto achar tem 11%; no grau 5, ver tem 3% de dados, enquanto achar tem 1%. Além disso, outras categorias também apontam para um estágio de maior integração para o verbo ver: quanto ao “Modo da subordinada”, o verbo ver têm 73% de seus dados no modo indicativo (que indica pouca integração com a subordinada), enquanto o verbo achar, ainda menos integrado, apresenta 98% de seus dados no mesmo modo; quanto ao “Tempo”, as cláusulas com verbo ver apresentam 83% de dados com tempo simultâneo, enquanto os dados com o verbo achar apresentam 63% com simultaneidade temporal. Essas pequenas diferenças de integração dão-se principalmente porque o verbo ver tem dados com completiva no gerúndio, formando uma construção mais integrada, formal e semanticamente. O verbo saber apresenta dados em todos os graus estabelecidos, mas os pontos máximos da curva apresentada no gráfico estão nos graus 2, 3 e 7. Os dois primeiros graus referem-se sobretudo às cláusulas com esse verbo que expressam conhecimento (intelectual e não prático), crenças e idéias e o último grau referese à modalidade de capacidade. Dos verbos cognitivos estudados, o verbo saber é o que apresenta dados com forte integração com a sua completiva. Quando usado no sentido de ‘capacidade’, aproxima-se do pólo em que está o verbo auxiliar prototípico ter; quando usado no sentido de ‘conhecer’ ou ‘constatar’ aproximase do pólo onde está um verbo pleno prototípico como exibir. As categorias apresentadas no capítulo 4 comprovam a maior integração do verbo saber em relação aos outros cognitivos: o verbo saber apresenta menos dados com modo indicativo; menos dados com sujeito explícito; maior freqüência de uso de sujeitos controladores; e maior número de dados com sujeito idêntico. Os diferentes graus de integração e conseqüentemente as diferentes estruturas com o verbo ver são determinados sobretudo pela iconicidade existente na forma de retratar a visão: quando o evento codificado não é visto diretamente pelo referente-sujeito da cláusula principal, sua subordinada é codificada através 155 de uma cláusula finita com verbo no indicativo, um tipo de estrutura menos integrada. A estrutura mais integrada, com cláusula reduzida, sempre codifica um evento visto diretamente pelo referente-sujeito do verbo ver. Dessa forma, o falante une mais na sua produção lingüística o que é visto diretamente. Os diferentes graus de integração dos usos do verbo saber são decorrentes sobretudo das diferenças entre saber com valor cognitivo (menos integrado) e saber com valor de modal de capacidade (mais gramaticalizado). As diferenças de graus de integração (embora poucas) entre os usos do verbo achar são devidas às distinções de sentido do verbo, que são codificadas na língua de forma diferente, sobretudo o que se chamou de sentido de ‘sugestão’ e o uso parentético. 5.1.3- Usos dos verbos volitivos Os verbos volitivos representam a modalidade deôntica que expressa, no caso específico, a vontade do referente-sujeito. Essa vontade pode ser uma ordem sobre outro ser (deixar, mandar e querer), pode ser um desejo que algo ocorra para o próprio referente-sujeito (querer), pode ser uma permissão (deixar) ou ainda um pedido (querer). Como foi dito no início do capítulo, a hipótese é a de que os verbos volitivos apresentem uma integração maior com as suas completivas do que os verbos cognitivos, por causa de uma série de fatores, dentre eles o ‘Controle’ e a “Implicação’, que tendem a ocorrer nos dados com verbos volitivos. Analisando somente os verbos volitivos mandar, querer e deixar, as hipóteses relativas aos graus de integração são: a) existem diferenças de graus de integração entre os usos (sentidos) de um mesmo verbo; b) e existem diferenças de graus de integração entre os três verbos analisados, demonstrando que os três estão em diferentes pontos do contínuo que vai do verbo pleno ao morfema flexional (“Verb to TMA chain”). 156 Os resultados demonstram que o verbo mandar é o menos integrado, em seguida está o verbo querer e, por último, o verbo deixar. 5.1.3.1- O verbo mandar O verbo mandar não apresentou variação de sentido nas amostras analisadas. Realiza-se com o sentido básico de ‘ordenar’. Dos três verbos volitivos estudados, é o menos gramaticalizado, assemelhando-se, em termos da análise escalar, aos verbos cognitivos. Além de apresentar grau de integração baixo, também se comporta como um verbo pleno no que tange à freqüência de uso. É o menos freqüente de todos os verbos estudados aqui, totalizando 93 dados. Desse total, apenas 3 apresentaram cláusula completiva desenvolvida, como em (1). Na maioria dos casos, ocorre um infinitivo flexionado com o chamado sujeito acusativo, como em (2): (1) era um policial à paisana... sem... sem farda... né? aí... de repente... eles... mandaram/ os rapa/ ele... esse... logo o quinto que entrou... mandou que os rapazes se levantassem... pra ver o roubo que eles tinham feito... porque já tinham assaltado as pessoas que estavam na fila do ônibus... aí... aí... diz que de repente... saiu um tiroteio... ( GIS3, R,L) (2) ele correu a polícia mandou ele parar... ele não estava ouvindo... aí... atirou nele... aí ele morreu... (AFONS, N,N) Em alguns usos o sujeito da subordinada é indeterminado e é omitido: (3) Ao final da pintura, seque-a na sombra e mande colocar moldura para colocar na parede (YUR24,R, P, Esc) Neste caso, aumenta-se o grau de integração, uma vez que os dois verbos estão muito próximos, não havendo inserção de material fônico entre eles. Também há casos em que o advérbio não ocorre entre os dois verbos (principal e subordinada), o que não ocorreu com os verbos querer e deixar: 157 (4) (...) Fomos pra lá dinovo o cara estava lá nós saimos correndo chamamos os garotos maiores, e eles foram e revistaram o cara e o cara tinha um canivete. Os garotos mandaram ele não subir mais nem mexer com a gente. Era no tempo de São Komes é São Damião no tempo de pegar doce e segui a gente a até o começo da rua depois não subiu. (ANA39, N,R, Esc) (5) Eu um dia estava andando de bicicleta eu bati de cara no muro e eu ralei a cara aí eu teria que tomar ponto a minha mãe disse pra não anda de bicicleta e aí logo na da que minha mãe mandar eu não andar de bicicleta eu gosto muito de anda de bicicleta e quando eu nelhorei eu comecei a andar de novo de bicicleta. (ART42, N, R, Esc) Observa-se também que o verbo mandar não necessariamente apresenta a cláusula subordinada com o tempo simultâneo ao tempo da cláusula principal, apesar de a subordinada apresentar-se no infinitivo. Pode ocorrer, primeiramente, a ação de mandar e, depois de horas, dias ou anos, pode ocorrer o evento expresso na oração subordinada: (6) A Justiça paulista mandou pagar 100 mil reais de Indenização a cada um dos antigos donos da Escola Base (JB. Cega sim, muda não). (7) Eu acho minha escola legal tem vários banheiros inspetoras boas professores bons eles fazem de tudo para melhorar a nota mandam fazer pesquiza e um monte de trabalho para melhorar a nota. (CAR43, O,R, Esc) Normalmente, o sujeito de mandar controla a ação do sujeito da oração subordinada. Também é comum haver a implicação: se alguém manda, alguém cumpre. Mas é possível haver uma ordem que não seja cumprida. Neste caso, o controle pode não existir, ou pode existir parcialmente. Se a ordem não foi cumprida, não houve implicação, como nos exemplos a seguir: (8) quando eu cheguei lá com o gafanhoto na mão ... ela mandou eu soltar ... aí eu não soltei (LUIZ, P, N) (9) Ele mandava o velho sair e o velho não saia aí ele matou o velho (LUC3, R, L, Esc) 158 O mais interessante é o que o verbo mandar pode ser usado num contexto com integração mínima, mesmo tendo o verbo da subordinada no infinitivo. Os escores podem ser 1 ou 2, o que o aproxima dos verbos cognitivos achar e ver: (10) Ele foi pegar um táxi ai o homem do táxi falou que morreu muita gente de noite, só que as meninas que estava contando esse filme disse que ele saiu correndo e que não queria que a namorada fosse atrás dele. Ele mandava o policial prender ele mas o policial não prendeu. Ai ele estava parado quando o amigo chamou ele para entra no cinema. (LUC3, R,L, Esc) No exemplo dado, não há simultaneidade temporal, não há controle do sujeito da principal sobre a subordinada (um cidadão comum não manda num policial), não há implicação da ação, os sujeitos não são idênticos, ocorre massa fônica entre os dois verbos, o sujeito da subordinada é individuado e é animado. A integração, portanto, é mínima. Sendo assim, o verbo mandar é usado como verbo pleno, com sentido lexical e é um verbo pouco freqüente, uma vez que o seu sentido está bastante relacionado a contextos específicos (em que um ser animado dá ordens a outro ser animado), o que não ocorre com um verbo mais gramaticalizado, que tem seu contexto de atuação ampliado. Quanto à categoria ‘pessoa gramatical’, o verbo mandar tem, na maior parte das vezes (86% dos dados), o sujeito na terceira pessoa. O falante apresenta normalmente um actante que manda um outro fazer algo. O verbo mandar costuma ser associado a uma idéia negativa, referindo-se a contextos em que haja arrogância ou delimitação de poder, e, portanto, relação de superioridade. Para evitar essa idéia negativa, outros verbos são usados (como pedir, solicitar, querer) quando o sujeito é a primeira ou segunda pessoa, como uma estratégia de polidez. A categoria ‘Graus de integração’ demonstra que esse verbo está numa posição intermediária na escala de integração, apresentando maior freqüência no ponto 4 (35%). No entanto, tem dados com grau 1 e 2, como os verbos cognitivos. 159 Menor inte- Graus de integração gração MANDAR Aplic % 0 0 0 1 4 4 2 8 9 3 15 16 4 33 35 5 22 24 6 11 12 7 0 0 Maior inte- 8 0 0 gração 9 0 0 TOTAL 93 100 _________ Tabela 19- Graus de integração de cláusulas com o verbo mandar. Através da categoria ‘Tipo de texto’, pode-se constatar que o verbo mandar é típico das narrativas, uma vez que esse é o espaço propício para situações que envolvem ordens e personagens com papéis diferentes na relação de poder: Narrativa Narrativa Relato de Relato de Descrição TOTAL experiencial recontada opinião procedimento Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % 32 34 35 38 15 16 5 5 6 6 93 100 Tabela 20- Distribuição dos dados com o verbo mandar em diferentes Tipos de textos. A categoria ‘Escolaridade’ revela que os informantes com menos escolarização, e, no caso da amostra analisada, os mais jovens utilizam mais o verbo mandar. A média de dados por produção de palavras traz resultados interessantes: 160 Graus de escolaridade Número ocorrências de Média em 10.000 palavras Terceiro grau 13 1 Segundo grau (terceiro ano) 16 1,3 Oitava série 23 2,6 19 2,8 22 5 Quarta série ª Série inicial (alfa + 1 série) Quadro 9- Médias de ocorrências de do verbo mandar em cada 10.000 palavras e Escolaridade. O número de dados com o verbo mandar diminui à medida que os informantes aumentam a escolarização. As crianças usam cinco vezes mais o verbo do que os adultos do terceiro grau. Isso ocorre porque as crianças ainda não compreendem determinadas estratégias de polidez em que se amenizam os termos relativos ao poder, ao controle e não entendem a idéia negativa associada a esse verbo. Muitas vezes, o adulto corrige a criança que diz algo como “Eu não mandei você pegar água para mim?” ou “Mamãe mandou você ligar para ela”. O adulto diz “Mandou, não. Pediu”. 5.1.3.2- O verbo querer Foram encontrados 551 dados do verbo querer com complemento finito e não-finito. Será dada primeiramente uma descrição das estruturas sintáticas com esse verbo e, num segundo momento, uma descrição semântica. Nos corpus analisado, foram utilizadas as seguintes estruturas: a) verbo mais infinitivo (399 dados): (1) aí todo mundo fica falando dasaforo ( ) aí volta aquela vidinha ... novamente que todo mundo acha:: chato ... né ... pronto ... é isso que eu queria falar dessa cidade ... Espírito Santo (GLI3, D, L) (2) Dois pivetes armados de canivete pararam os dois e queriam roubar o seu dinheiro (FLA10,R,G) b) verbo mais cláusula desenvolvida introduzida pelo conectivo que ( 61dados): 161 (3) dizia pra ele que queria ... que um príncipe... um princípe ... um princípe encantado viesse buscar ela num cavalo branco (ROS7, R, N, Esc) (4) ... porque num queria que ele visse é ::a mulher dele lá (CAR1,R,L) c) verbo mais gerúndio com sujeitos diferentes (1 dado): (5) deu tudo normal ... mas é um fato que eu não quero que aconteça ... graças a deus eu não vi... nem quero... nem longe acontecendo comigo (AND1,R,R,) O uso do verbo seguido de infinitivo é muito mais freqüente do que outros usos do mesmo verbo, totalizando cerca de 90% das ocorrências. Das construções com conectivo, 57 dados (10%) tem o verbo da cláusula subordinada no modo subjuntivo e apenas 4 dados (1%) tem o verbo da cláusula subordinada no modo indicativo. E ainda há 1 dado com gerúndio (exemplo 5). Além desses usos, há um outro que não foi encontrado no corpus, mas que é muito comum, pelo menos na fala cotidiana carioca. É um uso composto pelo verbo estar mais querer no gerúndio com complemento no infinitivo: (6) A pedra está querendo cair. (7) Estou querendo ficar gripada. (8) O tempo está querendo melhorar. (9) Está querendo chover. Pode-se observar que a seleção do sujeito não é determinada pelo verbo querer e que sujeitos inanimados podem combinar-se com essa expressão “estar + querendo+ -r”. Até mesmo orações sem sujeito são usadas, como no exemplo (9). Os sujeitos das cláusulas (6) e (8) poderiam ser considerados personificações, como geralmente é dito. Neste caso, os referentes poderiam ter vontade e poderiam querer algo. Mas a personificação não explica o uso da oração sem sujeito. Do ponto de vista funcional, é mais plausível interpretar esses dados como uma gramaticalização que fixou o verbo estar junto com o verbo querer e eliminou a restrição de seleção de sujeito. Há três dados no corpus que poderiam ser considerados uma fase intermediária, que gerou a expressão com o verbo estar. Esses usos apresentam 162 sujeitos inanimados: no exemplo (10), o sujeito é “aquelas marcas”; e no exemplos (11), o sujeito inanimado é uma “quantidade de ar” (que é uma anáfora-zero na cláusula com o verbo querer): (10) aí ele tentou tirar aquelas marcas... aí não queria sair do chão... ele tampou até com terra mas não queria sair do chão... aí chegou na noite... não choveu não (JAN19, R, J) (11) o caminhão tombou... acabou com o caminhão também... aí ele consertou todo o camin/ o caminhão todo... aí ele estava parado no posto já vazio... o caminhão devia está naq/ lá dentro com uma:: com uma quantidade de ar grande... querendo soltar né? dentro da do do baú lá do coisa do caminhão dele... aí ele pegou e:: estava soldando embaixo do caminhão... (JOS11, R, J) Quanto ao sentido, não foi possível determinar, com objetividade, significados diferentes para o verbo querer. O Novo Dicionário Aurélio da língua portuguesa enumera mais de 20 sentidos para esse verbo, como ‘ter vontade de’, ‘desejar’; ‘ter a intenção de’, ‘projetar’, ‘tencionar’; ‘desejar possuir ou adquirir’; ‘ordenar’, ‘exigir’; ‘ambicionar’, ‘cobiçar’; ‘pretender’, ‘solicitar’; ‘ameaçar’; ‘ter afeição’ e ‘gostar’, dentre outros. Mas, quando o verbo apresenta complemento oracional, é difícil determinar diferenças entre os usos. Verifica-se um sentido mais relacionado com a idéia de manipulação (no Aurélio, ‘ordenar’, ‘exigir’, ‘solicitar’) sendo a estrutura “querer + cláusula desenvolvida” e um sentido mais emotivo, mais modal (no Aurélio, ‘pretender’, ‘ambicionar’, ‘tencionar’, ‘desejar’ etc.) quando a estrutura é querer + infinitivo. No entanto, a estrutura com complemento desenvolvido também pode expressar os sentidos de ‘pretender’ e ‘tencionar’. Além disso, ocorre uma distribuição complementar determinada pela categoria ‘Sujeito idêntico/diferente’: quando o sujeito é diferente, usa-se a cláusula desenvolvida como complemento; quando o sujeito é idêntico, usa-se o infinitivo. Mas essa regra não é categórica como afirmam os estudiosos da Gramática Gerativa (cf. capítulo 2). Dos 61 dados com conectivo, ocorreu um dado em que o sujeito era idêntico: (12) mas ele não queria daquele jeito ... uma coisa ... mecânica ... né? ele queria que no/ que:: no passar do tempo ... começasse a sentir alguma coisa por ela e 163 ela por ele ... aí ela começava acariciar ele mas ele num queria nada com ela (ROS7, R, L) Pode-se adiantar que a categoria ‘Sujeito idêntico/diferente’ é o principal fator que determina as diferenças estruturais dos usos do verbo querer e, conseqüentemente, as diferenças nos graus de integração entre cláusulas. O processo de gramaticalização está avançado, pois cerca de 90% dos dados são codificados na estrutura “querer + infinitivo”. Há ainda duas construções derivadas de gramaticalizações do verbo querer, que está bastante integrado ao que seria a cláusula subordinada. Uma delas é o uso da expressão “quer dizer”, com função de marcador discursivo (exemplo 13); e outra construção é feita com o verbo saber (‘querer saber de’), que está menos cristalizada (exemplo 14): (13) na parede tem muitos diplomas... meus... quer dizer... muitos que eu acho... né? tem doze diplomas mais ou menos de curso de estética... que eu já fiz... (ALC1, D, J) (14) ... também (quando)/ (quando) a professora... eh.../ quando tem... assim... eh... três horas... aí... (a ) a gente quer saber só de aula... (b) não quer saber de ir embora não... que é tão bom ficar na aula... agora quando às vezes assim... não dá vontade de ir... aí tem que ir que tem que estudar... (FLAV , O, N) A expressão “quer dizer” com valor de marcador não foi estudada aqui, pois se trata de um outro processo denominado desgramaticalização ou discursivização, segundo o qual um elemento sai da gramática e passa a exercer funções mais discursivas. No caso do marcador “quer dizer”, houve uma erosão fonética, a expressão tem intensidade fraca e não é possível separar semanticamente os dois elementos “quer” e “dizer”. Sua função principal é a retificação de algo que foi dito (Rêgo, 1997). No entanto, foi considerado dado relevante o enunciado “quer dizer” com sujeito animado (como nos exemplos 15 e 16), no sentido de alguém querer algo e esse algo é dizer ou expressar alguma coisa. Essa construção contribuiu para a criação do uso como marcador. 164 (15) E: mas você num acha ... assim ... que a pena de morte também é uma forma ... um crime? você tá tirando a vida de outra pessoa ... né? mas que que você acha disso? tem muita gente que fala ... né ... “ah você tá brigando pela vida de uma pessoa ... mas tá matando outra ...” I: não ... mas isso num ... eu num pensaria dessa forma ... matou tem que morrer ... num é que ... eu sei que você tá querendo dizer ... que não vai trazer a pessoa de volta matando o assassino ... mas pelo menos é uma forma de justiça ... (ROS7, 0, L) (16) não que eu não acredite no arrependimento (...) o que quero dizer é que não é dizendo que está arrependido e pronto está salvo. (DIV2, O, L) Esses usos do verbo querer juntamente com o “complemento” no infinitivo tem função metalingüística. Essa função, segundo Jakobson (1969), é codificada por elementos que fazem referência à própria atividade lingüistica. Tao (no prelo) amplia essa idéia ao estudar o verbo remember ‘lembrar-se’: para ele, a função metalingüística também está presente naqueles momentos de interação em que o falante chama a atenção do ouvinte para o que ele está comunicando, utilizando entre os recursos disponíveis o verbo remember (usado em construções intercaladas ou no fim da frase).37 Foram encontrados 62 dados (10% dos dados) com o verbo querer em construção metalingüística. Esses dados podem referir-se ao discurso precedente, tendo, portanto, função retrospectiva (exemplo17); ao discursivo subseqüente (os mais freqüentes), tendo função prospectiva(18); ou ainda pode ter valor retrospectivo e prospectivo ao mesmo tempo (19). O verbo no infinitivo geralmente é o item dizer, mas outros podem ocorrer, como falar, criticar, perguntar e descrever. Vale ressaltar que não é o verbo querer que tem a função metalingüística, mas a perífrase que é formada por ele mais o infinitivo (com seu complemento desse infinitivo). (17) I: ( ) quem trabalha muito com isso aqui em Natal é Lavoisier ... 37 “The notion meta-linguistic device here refers to the function of using a form to focus explicitly on the interaction between participants. This notion is close to what Bateson (1972) and Ruesch and Bateson (1951) have called the meta-communication function of language.”(TAO, 1999: 21). Os exemplos dados são: (1) “ You mean, within the district or the state? Because, remember, there’s no data that comes back to the Federal Government for this test.” (2)” I don’t know if you remember when we were first thinking about trying to do the intertextual stuff on the IGA”. (3)” The chapter is becoming two chapters. Remember?” (p. 21) 165 E: Lavoisier seu professor ... I: não ... quero dizer Lavoisier não ... é ... Josué Flor ... (ITA4, P, L) (18) bom eu quero dar opinião sobre o voto do Brasil (VAN, O,R) (19) entendeu... o que que eu tô querendo dizer? se você ler a bíblia profundamente ... vai ver que Deus não é esse Deus que a igreja protestante prega... (DIV2,O,L) Há ainda um outro uso, derivado do último descrito, que está sendo considerado aqui na análise qualitativa, mas que foi eliminado na quantitativa. É o uso de “quer dizer” com sujeito inanimado (normalmente o sujeito é o pronome indefinido “isso”), sendo que não mais se mantém o significado individual dos verbos querer e dizer. Aqui os verbos formam um nome composto com o sentido de ‘significar’, como pode ser visto a seguir. A função da composição também é metalingüística: (20) que o bispo usa... o anel... que é o símbolo de::... de::... vamos dizer... importância dele... de superioridade dele... superioridade assim... entre aspas... né? não quer dizer que ele é superior a nós... né? mas um símbolo assim... de::... E: da hierarquia... (LEO10, D,J) (21) às vezes não... não é... não adianta... então... aumenta cada vez o número de votos brancos e nulos... isso quer dizer o quê? ganha aquele que tiver pelo menos um ou dois votos... então... fazer o quê? (GIO4, O, G) Esses usos não são comuns. Foram apenas quatro dados em todo o corpus do português contemporâneo. É possível apresentar uma trajetória evolutiva da gramaticalização de querer seguido de dizer: 1- Ele quer algo: ele quer dizer algo 2- Com essas palavras/atitudes, ele quer dizer algo 3- Isso que ele falou/fez quer dizer algo (significa algo) 4- Quer dizer (tudo o que foi falado quer dizer algo) 5- ... quer dizer... (com função de marcador para correção, para manter o turno, etc), como no exemplo (13) desta seção. 166 Será descrito agora o uso de “querer saber”. Esse tipo de uso foi computado na análise uma vez que a gramaticalização não está tão consolidada como o uso de “quer dizer” com o sentido de ‘significar’ ou como marcador. A expressão “querer saber” significa ‘importar-se’, ‘interessar-se’, mas os verbos querer e saber ainda estão independentes (ao contrário de “quer dizer”). Há nas amostras somente 15 dados, dentre os quais estão os seguintes: (22) acho que o governo devia fazer alguma coisa ... porque eles só ... eles só querer saber de imposto... imposto na/ imposto disso (CRI26, O, R) (23) estava tudo bonito... com flores ... garfos ... aí eu acho que já fiquei já meio... irritada ... aí eu já... não queria mais saber de etiqueta ... fui logo pegando os talahares...(ELIA, N,N) (24) ... também (quando)/ (quando) a professora... eh.../ quando tem... assim... eh... três horas... aí... (a ) a gente quer saber só de aula... (b) não quer saber de ir embora não... que é tão bom ficar na aula... agora quando às vezes assim... não dá vontade de ir... aí tem que ir que tem que estudar... (FLAV , O, N) Sabe-se da ocorrência da expressão “só querer saber de”: “Ele só quer saber de estudar”; “Ele só quer saber de brincar”. Mas há um enunciado de uma informante no corpus de Niterói que fala a expressão sem o advérbio só: (25) Ela quer saber de ficar deitada com a perna para cima (MARI, P,N) Há outro enunciado com o advérbio estando no complemento do verbo saber, é o exemplo (24a), mencionado. O uso da expressão “querer + saber + complemento”, com suas pequenas variações estruturais, ocorre nos trechos em que o evento codificado como objeto do verbo saber não é considerado normal, por ser incorreto (por não seguir regras estabelecidas), exagerado ou estranho, como demonstram os exemplos acima. Além desses, há ainda a expressão “querer nem saber”. Aqui a gramaticalização está mais avançada, pois nem mesmo é necessário um complemento para o verbo saber, como no exemplo a seguir: (26) aí falei até com meu namorado... pra ver se ele se mancava... sabe? mas aí ele pegou... e continuo olhando... quis nem saber... (QUE32, N, R) 167 Vê-se que há diferença entre os usos acima e o apresentado a seguir, em que a independência entre querer e saber é maior: (27) é um apartamento legal... meu pai comprou... pra mim e pro meu irmão... é pequeno... não é grande... tem dois quartos... está sendo decorado ainda... não terminou ((riso)) a decoração.... e::... pô... o que que tu quer saber? eu não sei... (DAN2,, D,R) (28) ... e se você quiser saber o que Fernando Henrique vai saber... é só você ter lido o jornal da Argentina de um ano e meio atrás... ou de dois anos atrás... que tudo foi assim... ou:: no México também... ele não tem (AYDA, O, N) A seguir são apresentados os resultados relativos aos graus de integração detectados para os dados com o verbo querer: Menor inte- Graus gração de integração QUERER Aplic % 0 0 0 1 0 0 2 7 1 3 22 4 4 25 4 5 19 3 6 73 13 7 139 25 Maior inte- 8 194 35 gração 9 72 13 TOTAL 551 100 _________ Tabela 21- Graus de integração de cláusulas com o verbo querer. Através dessa categoria, vê-se que a maior parte dos dados com o verbos querer está concentrada nos graus 7 e 8 (60% de toda a produção). Além disso, há uma grande incidência de verbos no último grau estabelecido:13%. Isso demonstra que o verbo querer é um modalizador (para expressar vontade) que está bastante gramaticalizado e, no contínuo que vai do verbo pleno ao morfema 168 flexional, passando pelo auxiliar prototípico, esse é um item próximo do auxiliar. O termo verbo modal pode ser usado aqui, pois, além de expressar uma modalidade, esse verbo ocorre majoritariamente em perífrases. Além disso, sabese que há usos de oração sem sujeito (“Está querendo chover”) e usos de sujeito inanimado (“A mancha não quer sair”). Os dados com graus mais baixos são geralmente aqueles codificados com complemento introduzido por conectivo. Dos 61 dados com conectivo (“querer + que”), 7 dados apresentam grau 2, 21 dados apresentam grau 3, 24 dados, grau 4 e 9 dados, grau 5. E, repetindo, a integração mais fraca desse uso é definida principalmente pelo sujeito diferente. Os graus de integração mais altos apenas apresentam as construções de querer com infinitivo. As diferenças de graus de integração detectadas para esses graus mais altos são decorrentes sobretudo do fator ‘Implicação’. Segundo Givón (1990), as construções implicativas são mais integradas, porque o evento codificado na cláusula principal determina a realização do que é codificado na cláusula subordinada. Dessa forma, as indivíduos interpretariam de forma mais integrada as duas idéias. No capítulo 4, foi descrita a categoria ‘Implicação’ e apresentados os exemplos que ilustram a categoria. Aqui será feito um cruzamento entre essa categoria e os graus 2 (o mais baixo detectado para o verbo querer), 7, 8 e 9 (os mais altos): GRAUS DE INTEGRAÇÃO DADOS DADOS NÃO- TOTAL IMPLICATIVOS IMPLICATIVOS Aplic % Aplic % Aplic % 2 0 0 7 100 7 100 7 54 39 85 61 139 100 8 160 82 34 17 194 100 9 70 97 2 2 72 100 Tabela 22- Relação entre Implicação e Graus de integração Os dados com conectivo (grau 2) são todos não-implicativos. O grau 7 apresenta um aumento bastante considerável de dados implicativos: 39%. No 169 entanto, nos graus 8 e 9, o número de dados implicativos é muito maior: 82% e 97%, respectivamente. No último grau, os dados são quase categoricamente implicativos. Portanto, os eventos desejados são realizados, o que justifica uma das versões de um provérbio: “Querer é poder”. As categorias controladas demonstram que o uso de querer está equilibrado. Em todas os graus de escolaridade, a média de dados com o verbo por palavras é praticamente a mesma: cerca de 12 dados em 10.000 palavras. Ocorre uma média um pouco mais alta na 8a. série (15 dados), sem que qualquer motivação fosse detectada. Não há um tipo de texto que seja o espaço mais propício para esse verbo: 31% dos dados ocorrem nos relatos de opinião, 29% nas narrativas recontadas, 22% na narrativas experienciais, 11% nos relatos de procedimento e 6% nas descrições (que apresentaram valores baixos para todos os verbos). Os relatos de opinião tem um percentual maior, porque nesses textos, além de os informantes expressarem sua opiniões, também dão sugestões e expressam seus desejos de mudança do país, da escola e do sistema penal; ou expressam a opinião do que acham que os governantes, religiosos, etc., objetivam (querem) fazer a partir de determinadas atitudes. Os relatos de procedimento e as descrições são textos mais objetivos, com verbos específicos, em geral não havendo uso da modalidade que expressa desejo. Como o item querer está próximo de um elemento gramatical na trajetória verbo pleno > auxiliar > morfema, seu uso é freqüente e se equilibra na produção lingüística de informantes homens e mulheres de diferentes graus de escolaridade e nas narrativas e relatos de opinião. Os usos do verbo querer em construções com função metalingüística38 (cf. exemplos) apresentam o mesmo comportamento que os outros usos sem essa função. No entanto, ao se separarem os dados com função metalingüística (62 dados ou 11%) dos demais usos, duas diferenças importantes são detectadas: (a) o uso metalingüístico é feito geralmente na primeira pessoa, como forma de o 38 Vale ressaltar que não estão computados os casos de “quer dizer” como marcador discursivo ou com o sentido de ‘significar’. 170 falante se referir a sua própria atividade lingüística de dizer, criticar, opinar, descrever, etc., enquanto os dados sem essa função são produzidos geralmente na terceira pessoa; (b) o uso metalingüístico é muito mais freqüente no terceiro grau, o que é coerente com a idéia de que os informantes mais escolarizados têm mais recursos lingüísticos para expressar diferentes funções, principalmente a metalingüística. A tabela a seguir apresenta o resultado da média de ocorrência dos dados em 10.000 palavras: Função Metalingüística Média em 10.000 palavras Graus de escolaridade Terceiro grau Segundo grau (terceiro ano) Oitava série Quarta série ª Série inicial (alfa + 1 série) Com FM Sem FM 2,3 12 1 13 1,5 15 0,5 11 1 10 Quadro 10- Relação entre construção com Função Metalingüística (FM) e Graus de escolaridade. A média de uso do verbo querer em perífrases com função metalingüística dobra da Série inicial para o 3o grau, enquanto a média de uso do verbo com valor neutro mantém-se praticamente a mesma nestes dois graus. Esse uso determina a criação do marcador discursivo “quer dizer”(já com fusão das duas palavras), que tem principalmente a função metalingüística de ratificar ou parafrasear um trecho do discurso precedente. 5.1.3.3- O verbo deixar Em toda a amostra analisada, foram coletados 249 dados com o verbo deixar seguido de complemento. Os sentidos atribuídos aqui ao verbo deixar são: A) permitir, consentir: 171 (1) eu vou contar a história da minha mãe... a minha mãe... quando... ela era adolescente... a minha avó não... deixava que ela fosse pro/ para os bailes se divertir... né? e a minha mãe detestava isso... (CRI26, R, R) (2) eh:: sobre os meus pais... eles são... super::/ ah... eles não deixam eu sair... sabe? eu acho que::... é um bando de careta... (PAT30, O, R) B) aguardar, esperar: (3) um copo... de mais ou menos... duzentas e cinqüenta gramas de leite... e despeja numa panela... e bota pra fi/ pra esquentar... né? aquecer... aí você deixa aquecer até uma certa temperatura mais ou menos... e aí despeja o fermento biológico... né? aquele fermento quadrado... aí você dissolve o fermento ( CAL9, P, R) (4) aí tu vai... bota um pouquinho de óleo... aí depois tu põe o macarrão lá... aí deixa ficar dez minutos... cozinhando... você tira o macarrão... põe no escorredor... abre a torneira... (JEA17, P,R) C) causar, fazer: (5) Pegou a mão da irmã, passaram a roleta, não pagaram e pediram ao motorista que parasse, saltaram e deixaram todos sem entender nada, até o ladrão.Isto em questão de segundos. (CRIS11, R, R,ESC) (6) Pego uma estopa passo numa pasta branca e esfrego no painel, tirando todas as manchas, deixando-o brilhando. (JOS11, P, J,ESC) D- parar, terminar: (7) namorado... de colega minha não... eu acho (covardia)... QUER sair com o cara ou com o namorado... a gente mesmo tem que arranjar... né? concorda comigo? ((riso)) eu acho isso... mas... olha... elas deixaram de falar comigo... por causa dessa bobeira... né? ontem mesmo a professora perguntou por que o motivo da... fofoca... (ROS78, R, R) (8) e acho que a família deve ser preservada ... uma sociedade sem esses ... sem esses ... princípios básicos ... a família eu acho que é sagrada ... se ela deixar de existir a humanidade vai ... vai sucumbir ... entendeu? que existam suas variações ... seus é ... é ... discordâncias é ... pessoas cheguem a se separar ... mas que não seja uma tendência ge/ geral ... (ITA4,0,L) E- evitar: (9) Como não poderia deixar de acontecer, os dois parceiros desconsiderados (PSDB e PFL) entraram em ação e contestaram a ganância do PMDB (SOL, JB) 172 (10) Como não poderia deixar de ser, criou-se um déficit descomunal na previdência do servidor público, muito superior à dos trabalhadores privados (ORD, JB) O sentido de ‘permitir’ tem duas acepções: a) permitir que um outro referente-sujeito faça algo; b) permitir ser controlado por um outro referente. Os exemplos dados em (1) e (2) são do primeiro tipo, em que o referente-sujeito do verbo deixar exerce algum controle sobre um outro referente-sujeito apresentado na cláusula subordinada. Os exemplos dados a seguir ilustram o segundo tipo, em que ambas as cláusulas (a principal e a subordinada) têm o mesmo referente. O controle é feito pelo referente que está codificado através de um sintagma preposicional com função de agente da passiva: (11) O então candidato do PDT se deixou levar pela pressão corporativa dos 13 mil empregados da CEDAE (JB. Solução tardia) (12) olha ... é um assunto bastante polêmico ... né ... um dos mais polêmicos e que ... você tem que analisar ... friamente ... muita gente se deixa levar pela emoção ... né ... você tem que ver coisa por coisa ... eu sou totalmente contra a pena de morte ... (GUS2, O,L) No exemplo (11), o referente “o candidato” sofre manipulação através da pressão corporativa dos 13 mil empregados da CEDAE. Em (12), o informante afirma que a opinião de muita gente é construída através da emoção; e dessa forma opinam a respeito da pena de morte. Esse tipo de sentido não é feito com a subordinada introduzida pelo conectivo. A comparação a seguir deixa claro que há diferenças conceptuais: (13) Ela se deixa levar pelo namorado. (14) Ela deixa que o namorado a leve. No exemplo (14), o sentido de levar é mais concreto, tendo como sinônimo o verbo ‘carregar’ ou ‘conduzir’, enquanto no exemplo (13), com infinitivo e o sintagma preposicional, o sentido é mais abstrato, expressando algo relacionado a atitudes e pensamento. Uma paráfrase poderia ser “Ela segue as idéias do namorado”. 173 Foram apenas 9 dados como os exemplos (11) e (12), que estão incluídos no sentido de ‘permitir’. Dos 249 dados, 105 dados têm o sentido de ‘permitir’, 88 dados têm o sentido de ‘aguardar’, 40 dados têm o sentido de ‘parar’/’terminar’, 5 dados têm o sentido de ‘evitar’ e 5 têm o sentido de ‘causar’/’fazer’, como mostra a tabela a seguir: Permitir/con- Aguardar Parar/terminar Evitar Causar/fazer TOTAL sentir DEIXAR Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % 105 42 88 35 40 16 5 2 11 4 249 100 Tabela 23: Usos do verbo deixar. Optou-se por juntar os dados com o sentido de ‘parar’ com os com o sentido de ‘evitar’, que tem uma freqüência muito baixa. A junção dá-se porque ambos os sentidos são codificados com a mesma estrutura – “deixar de mais infinitivo” – e geralmente nos dados com o sentido de ‘parar’ também está implícita a idéia de ‘evitar’. A partir daqui só haverá referência aos termos ‘parar’/ ‘terminar’. Com exceção do sentido de ‘parar’/‘terminar’, todos os outros estão relacionados à idéia de manipulação de um ser. O sentido ‘parar’/ ‘terminar’ é, como foi dito, sempre codificado pela estrutura “deixar de mais infinitivo”, tendo sujeito idêntico. É o uso mais gramaticalizado do verbo deixar, que passa de núcleo da cláusula principal para marcador de aspecto terminativo. Passa a um grau mais próximo a de um auxiliar prototípico. Aceita inclusive sujeito inanimado como em: (15) A exploração política das favelas deixou de oferecer vantagens depois de demonstrada a incapacidade de deter a ocupação desordenada e predatória dos morros (CEM, JB) A ocorrência de deixar com o sentido de ‘aguardar’ é geralmente atribuído aos usos do verbo nos relatos de procedimento em que um ser deve realizar 174 alguma ação que durará algum tempo para se conseguir o efeito desejado. Mas o sentido de manipulação, de permissão, ainda está presente. Nos exemplos dados para o sentido B, o verbo deixar poderia ser interpretado como “permitir que o evento codificado na cláusula completiva aconteça” ou “aguardar que o evento aconteça”. O sentido de ‘esperar’/’aguardar’ durante um tempo é predominante. Geralmente, esses usos vêm acompanhados de expressões de tempo, como ‘depois’, ‘durante algum tempo’ e ‘durante alguns minutos’. O uso está relacionado a uma etapa do procedimento, que normalmente dura algum tempo para que se possa realizar a etapa seguinte, como nos exemplos dados. Em todos os dados classificados como tendo o sentido de ‘aguardar’/’esperar’, o ser manipulado (objeto do verbo deixar e sujeito do verbo da cláusula completiva) é inanimado e o verbo da cláusula subordinada sempre está no infinitivo. O sentido de ‘não se importar’ também tem na subordinada um sujeito inanimado. Já o verbo deixar com o sentido de ‘permitir’ tem seu complemento com um sujeito animado. A oração completiva, neste caso, pode ser reduzida ou desenvolvida (como nos exemplos atribuídos ao sentido A, acima). O referente-sujeito da cláusula com deixar controla total ou parcialmente as ações do sujeito da cláusula completiva, como será mostrado com os exemplos: (16) porque... “mas a gente não pode/ você não pode levar a gente porque nós/ eu/... minha mãe não deixa eu namorar... eu namorava escondido... se você for lá perto da minha rua... ela vai me ver contigo... aí vai depois brigar comigo...” (QUE32, N, R) (17) nunca tinha acontecido isso comigo... a minha mãe falou “ah... vai lá... fala com a professora que você não... não estava colando... não teve culpa...” aí no dia seguinte eu voltei lá... falei com a professora e... resolvi tudo... expliquei direitinho... aí ela deixou fazer a segunda chamada... aí eu fiz a segunda chamada e até que eu tirei uma boa nota na prova... (ISA16, N, R) Dados como o expresso no exemplo (16) têm o sentido de ‘permitir’, mas na verdade o referente da cláusula principal não controla totalmente a ação expressa 175 pela subordinada, porque, pelo próprio contexto, se sabe que a informante namora independentemente da vontade da mãe. Já no exemplo (17), a professora controla a ação expressa na cláusula subordinada e manipula o sujeito, que só pôde fazer a prova depois da autorização da professora. Usos com controle parcial são mais comuns: (18) I: é... né? porque... aí... ele era/ porque ele era mais novo do que eu... ele era mais novo do que eu ( ) não queria deixar... a gente namorar... mas não adiantava nada... a gente namorava escondido assim mesmo... (ADR72, N,R) (19) Ela estava com uma blusa branca e ficou toda suja de sangue... aí ela começou a gritar pessando que o tiro tinha pego também nela foi um desespero total... aí o motorista quiz fechar a porta não deixando ninguém sair mais ela muito esperta arrastou dali sua cunhada e sua subrinha para fora do onibus e foram embora. (MAR77, N,R,ESC) (20) e essa garota foi sem o emblema da escola no bolso e sem a estrelinha... que é um brochinho que a gente usa pra indicar de qual ano que... que... é... né? então ela foi sem isso e o diretor barrou... não deixou ela subir... pra ir assistir à aula... e ela ia fazer prova... então o diretor foi até a coordenação... pra pegar um papel e dar advertência... quando ele foi na... coordena... na... coordenação pegar esse papel... a garota subiu:: e entrou dentro de sala de aula... ele ficou procurando ela pela escola sem saber (SUZ21, R, R) Nestes casos, foi considerado que o controle e a implicação eram parciais, atribuindo-se 0,5 ponto para cada categoria. A integração dos verbos numa espécie de locução verbal indica uma integração semântica forte. Em “minha avó não deixava que ela fosse para os bailes”, por exemplo, há duas unidades conceptuais: o fato de a mãe não permitir algo e a ida ao baile. É possível separar as duas unidades, a ponto de a filha sair independentemente da vontade da mãe. Já em “elas deixaram de falar comigo ... por causa dessa bobeira”, não há como separar os dois eventos. Não é possível separar deixar e falar como duas unidades conceptuais e o verbo deixar ganha um sentido gramatical, que é o de indicar aspecto terminativo. O uso de “deixar de mais infinitivo” é predominante nos textos do corpus JB, o que indica que essa gramaticalização está ocupando os meios mais formais e provavelmente vem aumentando a sua freqüência em ambas as modalidades: 176 (21) Mesmo o trabalhador industrial (...) que está deixando rapidamente de ser o eixo central da classe trabalhadora não conseguirá boa produtividade (...) se não se atualizar constantemente (JB.Porta da Frente) (22) Governos que espalham incerteza deixando de honrar o que devem, apenas contribuem para anuviar o horizonte. (JB. Banco dos Bancos) O sentido de ‘causar’/ ‘fazer’ é atribuído aos casos em que o sujeito de deixar modifica o estado do referente-sujeito da cláusula subordinada, mas não tenta manipulá-lo. O sujeito do verbo pode ser inanimado: (23) Pego uma estopa passo numa pasta branca e esfrego no painel, tirando todas as manchas, deixando-o brilhando. (JOS11, P, J,ESC) Na maior parte dos casos, após a determinação desses quatro sentidos básicos, não houve dificuldades para a codificação dessa categoria. No entanto, há um tipo de dado de difícil interpretação: quando há um advérbio de negação, o sentido da locução “deixar de + infinitivo” é uma afirmação do verbo que está no infinitivo: (24) que mostra Deus mais acessível ... que as pessoas tenham mais condições de se aproximar dele ... você pode ... você pode até se questionar e você obtem resposta ... se você parte para o candomblé ... né ... a macumba ... propriamente dita ... não deixa de ser uma forma de atingir Deus ... porque eles também falam em Deus ... só que sob outro aspecto ... o candomblé também é dividido ... (DIV2, O, L) [a macumba é uma forma de atingir a Deus] (25) sabemos que existe ainda ... feudos de dominação ... sociedade de dominação ... é:: dentro do nosso país ... do que uma novela daquela ... mas se bem que num deixavam de ter seus personagens feudais como o Senhorzinho Malta era? não é ... aquele lá o Lima Duarte e a ... e a ... Renata Sorah ... eram senhores feudais mas ... diluídos dentro de um tema (ITA4,O,L) [uma novela daquela bem que tinha seus personagens feudais] Ainda há um outro sentido do verbo quando ele aparece na expressão “deixa eu ver”. Aqui ocorre um amálgama e não é possível a separação entre as orações com deixar e ver. A expressão serve como um marcador discursivo usado nos momentos em que o informante precisa de tempo para se lembrar de 177 alguma informação, mantendo o turno com esse marcador. O sentido original pode ser ambíguo: “permita-me ou espere-me ver”, com o verbo ver usado metaforicamente como pensar (ver no plano mental). (26) eu descrever... né? é um quarto de pi::so ((riso)) antes era uma cama beliche... aí meu irmão mais velho casou... eu tirei a cama beliche... ficou com a cama de baixo... deixa eu ver... meu lençol é azulzinho... minha mãe... vire e mexe está trocando... né? minha mãe é muito vaidosa... é uma pessoa muito vaidosa... (JOR4, D, R) (27) I: E: tá... me explica então como é que faz... I: ((riso)) eh... pega... deixa eu ver... três cenouras... médias... descasca e corta... picadinha... pequenininha... bota no liqüidificador... pega um copo de óleo... três ovos... bate tudo (FLA15, P, R) Há usos intermediários em que se percebe como esse marcador está sendo gerado. Neste caso, a expressão “deixa eu ver” não está estrutural e foneticamente separada do contexto seguinte: (28) ... e quando eu chego ele se torna uma zona... porque minha mãe tem aquele trabalho todo de arrumar o quarto e quando eu chego volta aquela bagunça toda... deixa eu ver o que que tem mais no meu quarto... tem uma televisão... tem um vídeo... tem uma estante... tem uma escrivaninha... (JOR4, D, R) (29) tem o meu quarto... que... eu passo bastante tempo... o que mais? ah... a área externa ((descrição da área externa)) e::... deixa eu ver dentro de casa... dentro de casa tem... meu quarto e a cozinha... eu acho que a cozinha é o lugar predileto ((risos)) de todo mundo... né? (REG7, D, R) Como marcador ou mesmo nesses usos intermediários, o informante não pede autorização para pensar. Na verdade, ele se dá um pequeno espaço de tempo para lembrar o que há ainda para falar e, dessa forma, completar uma descrição, por exemplo. As ocorrências com “deixar eu ver” não foram computadas nesta análise, uma vez que o uso já está gramaticalizado ou em fase bastante avançada de gramaticalização em que o verbo deixar com sujeito na segunda pessoa juntou-se ao verbo ver com sujeito na primeira pessoa. As categorias que determinam o grau de integração levam a analisar separadamente a cláusula principal da subordinada e somariam um grau baixo de integração se se analisasse 178 separadamente deixar e ver, porque o sentido básico é o de ‘permitir’ e as cláusulas têm sujeitos diferentes. Mas essa não é a realidade. Portanto, foi preferido eliminar esses usos da análise quantitativa. Usos como “deixa eu pensar” e “deixa eu lembrar” foram considerados na análise quantitativa, porque (a) estão numa fase menos avançada de gramaticalização, havendo normalmente complemento para os verbos pensar e lembrar; (b) são mais raros que “deixa eu ver”; (c) podem não apresentar a mesma erosão fonética que a expressão “deixa eu ver” ([∫o’vê]). Alguns dos dados considerados na análise são exemplificados em (30) e (31): (30) num precisava matar ... então se matar pra defender vai morrer os dois ... porque um ... por exemplo assim ... matar pra defender ... deixe eu dar um exemplo ... e se morrer os dois na hora ... um matar ... o outro mata também ((riso)) ... os dois se matarem ... (ROS3,O,L) (31) E: quantas pessoas ficavam no quarto? I: lá no meu quarto ... no quarto que a gente ficou ... quantas? deixa eu contar ... tinha o grupo lá ... três ... quatro pessoas né aqui da igreja ... na faixa de nove pessoas no meu quarto ..SOL4,N,L) As estruturas encontradas foram: a) cláusula com o verbo deixar mais uma cláusula completiva com conectivo e verbo no modo subjuntivo (exemplo 1, desta seção): apenas 4 dados ( 2% da amostra). b) cláusula com o verbo deixar mais uma cláusula completiva com sujeito e verbo no modo não-finito, podendo ser o infinitivo ou gerúndio (exemplos exemplos 2, 3, 4 e 6): 200 dados ( 80% da amostra). c) cláusula com o verbo deixar com a preposição de mais infinitivo, (exemplos de 7 a 10): 88 dados (35% da amostra). As duas primeiras estruturas apresentam sujeitos diferentes e a última sujeito idêntico. A hipótese é a de que em cada estrutura o verbo tenha um sentido diferente e o grau de integração espelhe diferentes estágios de gramaticalização 179 para o verbo deixar. Essa hipótese é confirmada através dos resultados apresentados a seguir. Antes, porém, cabe uma observação: na análise quantitativa, foram eliminadas as construções com sentido de ‘causar/fazer’, pois o número de dados é muito baixo (menos de 5% de dados amostra). Portanto, o total de ocorrências passa a ser 238 dados. A- Pessoa gramatical Não há uma pessoa gramatical que retenha grande parte dos dados. Mas há uma diferença entre os usos: os sentidos de ‘permitir’ e ‘parar’ apresentam a maior parte de seus dados com sujeito na terceira pessoa; o sentido de ‘aguardar’ é o único entre os três que é utilizado na segunda pessoa numa freqüência alta: 60% dos dados com esse sentido tem sujeito na segunda pessoa. Isso porque o informante refere-se ao entrevistador ou a um referente genérico, você, no momento em que está explicando as etapas para se realizar alguma atividade descrita nos relatos de procedimento. B- Graus de integração Os resultados referentes à categoria ‘Graus de integração’ encontram-se na tabela a seguir: 180 Menor inte- Graus gração Maior integração _________ de integração DEIXAR Aplic % 0 0 0 1 0 0 2 1 1 3 25 11 4 47 20 5 39 16 6 80 34 7 13 5 8 25 11 9 8 3 TOTAL 238 100 Tabela 24- Graus de integração das cláusulas com o verbo deixar. A soma das categorias apresentadas no capítulo 4 permite que se chegue à conclusão de que esse verbo tem um número maior de dados no grau 6: 33% dos dados. Mas há um número considerável de dados nos graus intermediários 4 e 5 e nos graus mais altos de integração. Uma análise dos usos do verbo permite verificar que o uso com o sentido de ‘parar’/’terminar’, como era previsto, é o mais integrado dos três usos. Mais do que isso, o uso com esse sentido é o mais gramaticalizado de todos os usos analisados para todos os seis verbos: 181 sentidos Permitir Aplic % Aguardar Parar/terminar Aplic Aplic % Aplic Graus 0 0 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 2 1 1 0 0 0 0 3 24 23 1 1 0 0 4 45 43 2 2 0 0 5 13 12 26 30 0 0 6 18 17 57 65 5 11 7 3 3 2 3 8 18 8 1 1 0 0 24 54 9 0 0 0 0 8 18 105 100 88 100 45 100 TOTAL Tabela 25- Usos do verbo deixar e Graus de integração. O sentido de ‘parar’/’terminar’ tem 54% dos dados com o grau de integração 8 e 18% com o grau 9. Isso significa que o verbo deixar, neste uso, está muito próximo de um verbo auxiliar prototípico, no contínuo de gramaticalização. O uso com o sentido de ‘parar’/ ‘terminar’ está distante do sentido do verbo pleno e a sua função principal deixa de ser lexical para ser gramatical, expressando aspecto terminativo. Quanto aos outros usos, o sentido de ‘permitir’ é o menos integrado, tendo maior freqüência nos graus 3 e 4 (estando a maior parte neste último grau). O sentido de ‘aguardar’ concentra seus dados nos graus intermediários 5 e 6, tendo 65% neste último grau. Como era esperado, cada sentido do verbo deixar é codificado na língua através de uma forma diferente e está em diferentes estágios de gramaticalização no português contemporâneo. O uso menos integrado, aquele com o sentido de ‘permitir’, pode ser expresso pela estrutura “Sujeito (animado) + verbo + que + cláusula finita” (apenas 2% dos dados) e principalmente pela estrutura “Sujeito + verbo + cláusula não-finita com sujeito (no acusativo). O sentido de ‘aguardar’ é 182 uma gramaticalização que está ocorrendo com sujeito na segunda pessoa principalmente e a cláusula completiva sempre no modo não-finito. Além disso, na amostra a maioria dos sujeitos da completiva vêm apagados, como em “Deixa ferver”, “Deixa fritar” e “Deixa secar”. O sentido de ‘parar’ é codificado somente por “deixar de mais infinitivo”, podendo ter sujeito animado ou inanimado. O passo seguinte é a aceitação do critério “Sujeito inexistente”, que talvez já seja uma realidade: uma frase como “Deixou de chover por aqui” não soa de forma estranha. C- Canal, Tipo de texto e Escolaridade. A formalidade do uso de deixar de mais infinitivo explica os resultados das categorias ‘Canal’, ‘Tipo de texto’ e ‘Escolaridade’. Verificou-se que o sentido de ‘permitir’ é mais usado na língua oral, porque é o mais subjetivo dos três e porque é informal. A escrita apresenta outros itens mais formais que o substituem como os itens consentir e permitir. O uso mais gramaticalizado tem três vezes mais incidência na língua escrita, principalmente a mais formal (aqui representada pelos editoriais). Esse uso não tem a subjetividade da construção com o sentido de ‘permitir’ e tem suas restrições contextuais reduzidas, porque aceita sujeito inanimado. Sentidos Permitir Aguardar Parar/terminar TOTAL Aplic % Aplic % Aplic % Aplic % Fala 85 53 56 35 20 12 161 100 Escrita 20 26 32 42 25 32 77 100 Canal Tabela 26- Usos do verbo deixar na fala e na escrita. O sentido de ‘permitir’ está distribuído em todos os tipos de textos analisados. Como era esperado, o sentido de ‘aguardar’ é típico dos relatos de procedimento, com 98% de ocorrências. Esse uso está se gramaticalizando neste tipo de texto, tendo a função de marcar os momentos em que se deve aguardar 183 um determinado período para a realização de um procedimento antes de passar para a etapa seguinte. Como foi dito, o sujeito dessa construção geralmente está na segunda pessoa, referindo-se ao entrevistador ou a um você genérico. O sujeito da cláusula completiva está oculto numa grande parte dos dados. O sentido de ‘parar’ ocorre mais freqüentemente nos relatos de opinião, principalmente nas textos mais formais. Sentidos Permitir Aguardar Parar/terminar Aplic % Aplic % Aplic % 23 22 0 0 5 11 24 23 1 1 4 9 38 36 1 1 28 63 13 12 86 98 2 5 7 7 0 0 6 14 105 100 88 100 45 100 Tipos de textos Narrativa experiencial Narrativa recontada Relato de opinião Relato de procedimento Descrição TOTAL Tabela 27- Usos do verbo deixar em diferentes Tipos de texto. Quanto à escolaridade, o quadro das médias de uso dos sentidos de deixar mostra que o sentido de ‘parar, terminar’ é mais freqüente na produção dos informantes do terceiro grau. A quarta-série não apresenta esse tipo de dado e a série inicial só produziu um dado: Escolaridade Permitir Aguardar Parar/terminar Ocor. MÉDIA Ocor MÉDIA Ocor. MÉDIA Terceiro grau 33 2,7 25 2,1 27 2,2 Segundo grau 15 1,3 19 1,6 6 0,5 Oitava série 29 3,3 14 1,6 11 1,2 Quarta série 15 2,1 22 3,1 0 0 Série inicial 13 2,8 8 1,7 1 0,2 Quadro 11: Médias de ocorrências dos sentidos de deixar em cada 10.000 palavras. 184 A explicação é a mesma dada para os fatores Canal e Tipo de texto: esse uso de deixar é mais formal. Pode ser substituído por uma cláusula negativa e o advérbio: “Ela deixou de estudar/ Ela não estuda mais” ou “ A UNE deixou de ser importante/ A UNE não é mais importante”. Mas aqui há um problema quanto à questão da freqüência. A literatura diz que a gramaticalização costuma ocorrer com os itens mais freqüentes, que são normalmente os mais informais. No caso de ‘deixar-terminar’, a gramaticalização está se processando com um sentido mais formal e menos freqüente. Pode ser que seja porque a gramaticalização ainda esteja no seu início quanto à formação de um marcador de aspecto terminativo. Mas sintaticamente a integração é muito maior do que a que ocorre com os outros dois sentidos. 5.1.3.4- Graus de integração de verbos volitivos – conclusões parciais. O gráfico a seguir representa os graus de integração dos três verbos volitivos estudados: Gráfico 3: Graus de integração de cláusulas com verbos volitivos 40 35 Percentuais 30 25 20 15 10 5 0 O 1 2 3 4 5 6 7 Graus MANDAR % QUERER % DEIXAR % 8 9 185 A hipótese é a de que cada verbo apresente diferentes graus de integração com a subordinada em decorrência de fatores estruturais, semânticos e sobretudo pragmáticos. O verbo mandar é o menos gramaticalizado desta lista, apresentando muitos dados com escores iguais aos dos verbos cognitivos. Pelo gráfico, vê-se que o ponto máximo desse verbo está no grau 4, havendo uma queda na freqüência nos outros graus. Não há dados com graus mais altos (7, 8 e 9).O verbo mandar é pouco integrado à subordinada principalmente porque o evento codificado na subordinada pode ou não ocorrer em função do que é ordenado. O referente-sujeito da subordinada tem a opção de se negar a fazer o que é ordenado. O exemplo (11) da seção 5.1.3.1 é um caso em que não há simultaneidade temporal, não há controle do sujeito da principal sobre a subordinada e não há implicação da ação. Nesse exemplo, os sujeitos não são idênticos, ocorre massa fônica entre os dois verbos, o sujeito da subordinada é individuado e é animado. A integração, portanto, é mínima. O verbo querer está muito integrado à subordinada, apresentando, no gráfico, o ponto máximo no grau 8. Há ainda 13% de dados no grau mais alto. Esse verbo tem a maior parte de seus dados num estágio avançado de integração em decorrência de vários fatores, sendo estes os principais: a) os dados geralmente são implicativos; b) o sujeito é geralmente idêntico e c) as duas cláusulas têm tempo simultâneo. No entanto, o sentido básico do verbo não é alterado. O verbo deixar concentra seus dados no grau 6. Pelo gráfico, parece que o verbo querer é mais integrado à subordinada do que o verbo deixar. Mas o uso do verbo deixar com o sentido de ‘parar’/’terminar’ é o mais gramaticalizado da lista como pode ser visto pelo gráfico 4, em que estão somente os usos de deixar com o sentido de ‘parar’/ ‘terminar’ (além dos outros verbos). 186 Gráfico 4: Graus de integração de cláusulas com verbos volitivos e o uso de deixar gramaticalizado. 60 Percentuais 50 40 30 20 10 0 O 1 2 3 4 5 6 7 8 9 Graus MANDAR % QUERER % DEIXAR - 'parar' % Através desse gráfico, verifica-se que deixar tem uma freqüência mais alta nos graus 8 e 9 do que o verbo querer. O uso de deixar com o sentido de ‘parar’ é aquele expresso na forma “deixar de + infinitivo”. Esse uso é o mais gramaticalizado, tendo sempre sujeito idêntico e referindo-se ao mesmo tempo. Além disso, o sentido dessa construção é muito diferente do sentido de ‘permitir’ ou dos sentidos do verbo quando seguido de SN. Sua função principal é a de marcador de aspecto terminativo. As variações de estruturas das construções com o verbo deixar são formas de codificação das diferentes funções expressas pelo verbo, principalmente a função relativa à volição (expressa por ‘deixar-permitir’); a relativa à marcação de um tempo para se realizar um procedimento (expressa por ‘deixar-esperar’) e a referente à marcação de um aspecto terminativo (expressa por ‘deixar-parar’). De acordo com Heine (1993), há uma série de esquemas cognitivos capazes de gerar os auxiliares presentes nas línguas. Esses auxiliares descrevem determinadas noções como localização, movimento, atividade, desejo, etc. O esquema de movimento é responsável pelo aproveitamento do verbo deixar como 187 marcador de aspecto terminativo. Esse verbo, quando seguido de SN, tem o sentido básico de movimento, como em “Maria deixou a sala.” e “Deixei o livro sobre a mesa”. O esquema de volição gerou o modal querer. Além do modal, o mesmo esquema gerou o marcador ‘quer dizer”. Em outras línguas esse esquema gera auxiliares de tempo, como o verbo inglês will, que passou a auxiliar de tempo futuro através desse esquema de volição. Chega-se ao fim da análise do português contemporâneo com vários dos objetivos da tese atingidos: a) compararam-se os grupos de verbos cognitivos e volitivos entre si; b) analisaram-se os usos de cada verbo; e c) compararam-se os comportamentos dos verbos de um mesmo grupo semântico. As hipóteses principais foram confirmadas, no sentido de se comprovar a atuação do subprincípio da proximidade na subordinação do português. Na próxima seção, o último objetivo da tese será cumprido: comparar o português atual com fases anteriores para verificar se a hipótese da unidirecionalidade se aplica à história dos seis verbos e à história do período com claúsula completiva. Dessa forma, pretende-se inserir o trabalho nas discussões mais amplas da lingüística teórica. 5.2- Integração de cláusulas e os princípios da gramaticalização Nesta última seção, será apresentada uma pequena análise diacrônica da integração de cláusulas substantivas e dos sentidos dos verbos estudados com o objetivo de verificar as hipóteses relativas à unidirecionalidade da mudança de sentido – do concreto para o abstrato – e relativas à integração de unidades – da construção menos integrada para a mais integrada (cf. capítulo 3). Para isso, foram usadas as informações contidas em gramáticas históricas, em dicionários etimológicos e no trabalho de Votre (1999), que trata dos verbos 188 achar, saber, ver e pensar.39 Mesmo com o inconveniente de se trabalhar com dados descontextualizados (presentes nas gramáticas e nos dicionários), é possível fazer algumas constatações com relação ao modelo da gramaticalização. Para o português arcaico, além dos dados presentes em Votre (1999), também foram coletados dados das 100 primeiras páginas do livro O Orto do Esposo. Portanto três momentos são considerados aqui: latim, português arcaico e o português atual. Para cada verbo é feita uma análise da amostra do português arcaico e em seguida a trajetória do latim ao português. O quadro a seguir apresenta o número de dados (com complemento oracional) encontrados nas 100 primeiras páginas do livro O Orto do Esposo (OE). Esse livro escrito provavelmente no fim do século XIV ou início do século XV é um sermão com o objetivo de mostrar ao leitor as vantagens de se levar uma vida cristã e os perigos da vida pagã. O tipo de texto predominante é a argumentação, mas há alguns trechos descritivos em que se apresentam detalhes do que seria o paraíso e há também, ao longo do livro, diversas narrações para ilustrar milagres ocorridos com pessoas de muita fé. As descrições e narrações são utilizadas como ilustrações das argumentações. Verbos Número de dados Achar 10 Ver 16 Saber 16 Mandar 21 Querer 66 Deixar 21 Quadro 12: Número de dados no livro O Orto do Esposo. Alguns exemplos são dados a seguir: 39 A amostra latina analisada por Votre foi Anfitrião de Plauto e a amostra do português arcaico é composta pelos seguintes textos: Demanda do Santo Graal, O livro de Vita Chisti, Crestomatia Arcaica, Boosco Deleitoso, Antalogia Arcaica, Livro dos Ofícios, Um tratado da cozinha portuguesa do século 189 (1) Ay, que triste e chorosa mudãça que o home, morador do parayso, senhor da terra, cidadãão do ceeo e domestico do Senhor Deus, jrmãão dos spiritus bemaueturados e herdeyro cõ elles, cõ hua mudaçõ tam arreuatada achou-se jazer eno esterco! (OE, p. 84) (2) quando virõ que nõ queria perdoar (OE, p. 9) (3) ca aquele que sabe fazer o bem e nõ o faz, peccado ha (OE, p. 74) (4) E mãdou-lhe que cada dia e cada noyte rezase o salteyro per aquelles cem dias (OE, p. 24) (5) e elle nõ quis perdoar per nehua maneyra (OE, p.9) (6) nõ leixou elle de fazer uida de hermitam, em quanto podia (OE, p. 71) O número de dados é pequeno, mas é possível fazer algumas generalizações. Foram encontrados 10 dados com o verbo achar. Somente 1 dado tem o sentido de ‘incerteza’ e os demais têm o sentido de ‘encontrar’’. O dado com sentido de incerteza é feito com a estrutura igual a atual: com a completiva introduzida por uma conjunção integrante (exemplo 7). Dos 9 dados com sentido de ‘encontrar’, 7 têm as completivas justapostas e são, portanto, menos integradas (exemplo 8). Os outros 2 dados apresentam as completivas com infinitivo com sujeito, como no exemplo (1), acima. (7) os antigos astroligos acharõ que emno ceeo ahia huu tal sinal (OE, p. 68)40 (8) ca em este liuro (...) o ffamiinto achara com que sse mãtenha. Lea per este liuro o estudioso e achara cõ que se delyte (OE, p. 2) Optou-se por considerar a construção exemplificada em (8) como uma construção com completiva justaposta como foi feito com o verbo saber ( “saber como....”). Hoje a construção poderia ser “O faminto achará como se manter” e “O estudioso achará como se deleitar”. O uso de achar como sugestão (achar + dever/ter que) não ocorre na amostra analisada aqui e na analisada por Votre (1999). XV, Historiadores Quinhentistas, Peregrinação, Crônica de Dom Fernando, Crônica de Dom Pedro I e Bíblia Medieval. Portuguesa. 40 Na amostra atual, não foram considerados os dados com completiva sem sujeito. 190 Segundo consta em vários dicionários etimológicos (como Saraiva, 1993; Machado, 1967 e Nascentes, 1955), o verbo achar, do latim afflare, tinha o sentido original de ‘soprar para ou contra’, ‘bafejar’. A direção da corrente de ar podia ser inversa: ‘inspirar’. O verbo também era usado na caçada para se referir ao momento em que o cão cheirava caça. Daí o sentido de ‘encontrar’, ‘localizar’. Por extensão do sentido de ‘inspirar’ ou ‘soprar’, tem também ainda em latim o significado de ‘ser atingido por uma emanação’, ‘ser inspirado’, ‘sofrer a influência de um astro’, segundo Saraiva (1993) e Torrinha (1937): (9) Afflare sidere. ‘Sofrer a influência de um astro’.(Plinius) (10) Afflare divino spiritu. ‘Ser inspirado pelo sopro divino. (Cicero) Vê-se que esses últimos sentidos deram origem ao sentido português de ‘perceber’, ‘ter uma opinião’. Por inspiração, o homem perceberia algo ou elaboraria uma opinião. O uso de ‘soprar’/inspirar’ é fonte para o sentido de ‘encontrar pelo faro’ e para o de ‘opinar’ e ‘avaliar’. Os sentidos concreto e abstrato são derivações independentes. Através da análise do trabalho de Votre (1999) acerca de verbos cognitivos e de vários dicionários etimológicos, constata-se que os usos modalizadores (‘percepção’ e ‘incerteza’) não estavam presentes no latim clássico. O uso mais integrado do verbo achar com infinitivo do português arcaico praticamente desapareceu no português atual. Nessa estrutura, o verbo achar tinha um sentido mais concreto, tendo como sinônimo o verbo ‘encontrar’. Quanto ao verbo ver, na amostra arcaica foram encontrados os sentidos de ‘enxergar’ (9 dados) e ‘perceber’ (7 dados). Vê-se que os sentidos concreto e abstrato estavam presentes no português arcaico e provavelmente o sentido híbrido também lá estava, mas a amostra não apresentou esse tipo de dado. Os usos mais gramaticalizados “pra ver se” e “vai ver que...” não foram encontrados. No entanto, são usos típicos da língua oral, o que não permite chegar à conclusão de que não existiam no português arcaico. 191 Há uma diferença interessante quanto à integração de cláusulas: no português atual há 76% de dados com esse verbo seguido de cláusula completiva no modo finito e 26% no modo não-finito. Já no português arcaico, a diferença na freqüência de uso do modo finito é menor: 9 (56%) dados no modo finito e 7 (44%) dados no modo não-finito. A estrutura menos integrada teve, portanto, a sua freqüência de uso aumentada.41 Esse resultado parece ser contrário à expectativa da unidirecionalidade da mudança em direção à maior integração. No entanto, há outro fator atuando: o aumento de freqüência da estrutura com cláusula finita dá-se porque ocorre um aumento de uso da forma modalizadora do verbo ver, em que predomina a visão indireta sobre algo que é codificado na cláusula completiva (cf. tabela 9). O uso com completiva no modo não-finito apresenta o verbo ver no sentido mais concreto, relacionado à visão direta de eventos. Os dicionários etimológicos trazem os seguintes sentidos para o verbo latino videre: ‘ver’, ‘avistar’, ‘descobrir’; ‘olhar’, ‘estar voltado para’; ‘ouvir’, ‘perceber’ (por um dos sentidos), ‘certificar-se’; ‘notar’, ‘compreender’; ‘ver’ (em sonho); ‘examinar’. Tanto os sentidos concretos como os abstratos estavam presentes no latim. As estruturas com completiva desenvolvida e com infinitivo também já eram usadas: (11) Vidit se magno fore periculo. Viu que corria grande perigo. (Cornelius Nepos) (12) Mugire videbis sub pedibus terram. Verás (ouvirás) a terra mugir debaixo dos pés. (Virgilius) Com relação ao verbo saber, foram encontrados, na amostra arcaica, o sentido de ‘conhecer/ter certeza’ e o uso mais gramaticalizado ‘ser capaz’. O primeiro uso é mais freqüente (12 do total de 16 dados). No português contemporâneo, os dois sentidos têm freqüência de uso muito semelhante: 261 dados (46%) com o sentido de ‘conhecer’ e 235 (41%) com o sentido de ‘ser 41 O resultado deve ser testado em amostras maiores, porque o número de dados é muito pequeno. 192 capaz’. O segundo sentido é codificado através de uma estrutura mais integrada: sujeito sempre idêntico e modo não-finito. O grau de integração sintáticosemântico- pragmático é alto (geralmente grau 7). Poder-se-ia falar em aumento de integração e no aumento do uso modal no português contemporâneo. No entanto, esse uso costuma ocorrer com predominância nos relatos de procedimento (cf. tabela 18). Como a amostra medieval não apresenta esse tipo de texto, não se pode afirmar que esse uso era pouco freqüente naquela época. O uso gramaticalizado “aí eu sei que...” não foi encontrado na amostra medieval. Como foi dito, esse uso é praticamente ausente nos textos escritos do português atual e pode constituir um uso mais recente na língua. O verbo saber tem seu sentido fonte ligado ao sentido humano do paladar (do latim sabere): ‘ter sabor ou gosto’ (exemplo 13), ‘ter bom paladar’, ‘experimentar’. Ainda em latim, passou também a significar ‘ter senso’, ‘ter discernimento’, ‘ser sensato’, ‘compreender’ e daí ‘conhecer’ (exemplo 14). A pesquisa de Votre (1999) e os dicionários etimológicos pesquisados não trazem evidências de que o uso de saber com complemento oracional já era conhecido no latim. Esse tipo de construção era feito com o verbo scire ‘saber’ com complemento finito (exemplo 15) ou no infinitivo (exemplo 16). (13) Sapere mare. ‘Ter sabor de mar’. (Seneco) (14) Recte rem meam sapio. ‘Entendo bem das minhas coisas’ou ‘Sei bem dos meus negócios’. (Plautus) (15) Scire uelim num quid necesse sit . ‘Desejaria saber se é obrigatório’. (Cicero) (16) Nescibam id dicere illam. ‘Eu não sabia que ela disse isso’. (Terrentius) O verbo mandar tem o mesmo comportamento em termos de graus de integração ao se comparar o português arcaico com o contemporâneo. Não há diferença também no sentido, que desde o latim (mandare) é ‘encarregar’, ‘ordenar’ (também tinha o sentido de ‘confiar’). Quanto à sintaxe, há uma diferença que evidencia uma maior integração no português atual: na amostra 193 atual, 97% dos dados são codificados com a completiva no modo não-finito com sujeito, enquanto no português medieval há 14 dados codificados desta forma num total de 21. Mesmo com um pequeno número de dados na amostra arcaica, pode-se dizer que hoje há uma tendência maior para usar o verbo mandar com completiva no modo não-finito. O uso do infinitivo com sujeito é um resíduo da sintaxe latina, que permanece para alguns usos de determinados verbos como mandar, ver e deixar. O verbo querer tem o mesmo comportamento semântico e sintático na amostra do português arcaico. O sentido predominante é o de ‘desejar’ e os graus mais integrados compreendem o maior número de dados. No entanto, há uma diferença com relação à integração de cláusulas: no português arcaico 15% (10 em 66 enunciados) dos dados tem inserções de material fônico entre a cláusula com o verbo querer e a cláusula completiva e no português contemporâneo esse percentual cai para 7% (39 em 551 dados). Isso pode indicar um início de uma restrição sintática. No latim, o sentido básico desse verbo era ‘procurar’, ’buscar’, ‘andar à busca de’ (exemplo 17). Mas os sentidos usados hoje lá estavam presentes: ‘pretender’, ‘desejar’ e ‘exigir’. Esses últimos são extensões do sentido de ‘procurar’: se procura aquilo que se quer, se deseja. As estruturas com completiva desenvolvida e com infinitivo também já eram usadas no latim (exemplos 18 e 19). (17) Quaerere mortem in acie. ‘Querer (Buscar) a morte no campo de batalha’.(Plinius) (18) Quaeris ut suscipiam cogitationem. ‘Queres (Pretendes) que eu pense.’ (19) Mutare sedes quaerebant. ‘Queriam (Desejavam) mudar de local’. Com relação ao último verbo da lista, o verbo deixar, verifica-se que, na amostra arcaica, ele tem uma freqüência relativamente alta de dados com o grau 8, enquanto no português atual o grau mais freqüente é 6. Mas essa diferença acontece porque o uso de “deixar de mais infinitivo” (na forma leixar) é muito freqüente no texto arcaico, com 16 dados num total de 21. O uso de “deixar de 194 mais infinitivo” tem 11 dados com o sentido de ‘parar’/’terminar’ e 5 dados com o sentido de ‘evitar’ ou ‘afastar-se’. Apenas 5 dados do total de 21 têm sentido de ‘permitir’, enquanto no português atual o maior número de dados tem esse sentido. Neste caso, o uso menos integrado (aquele com o sentido de ‘permitir’) teve sua freqüência aumentada. A construção considerada mais gramaticalizada já se encontrava no português arcaico e com freqüência mais alta que o uso de ‘permitir’. A hipótese é a de que a estrutura “deixar de mais infinitivo” tenha se derivado diretamente do uso de deixar com objeto direto nominal. O uso de ‘permitir’ é uma outra derivação. As derivações são independentes e partem de uma mesma fonte. No latim, os sentidos denotativos do verbo laxare eram ‘afrouxar’, ‘relaxar’. ‘desapertar’ e ‘abrir’. Os sentidos mais abstratos eram ‘abrandar’, ‘aliviar’, ‘diminuir’ e ‘divertir’. No latim, os sentidos concretos relacionavam-se a um corpo (normalmente humano) que exercia energia em outro (normalmente inanimado) para mudar seu estado ou condição: (20) a- Fidiculas laxare. ‘Afrouxar as cordas do violão.’ (Valerius Maximus) b- Laxare rudentes. ‘Soltar as amarras.’(Virgilius Maro) c- Laxare vincula epistulae. ‘Abrir uma carta’. (Cornelius Nepos) O sentido básico está relacionado com o ato de deixar livre. O sentido de ‘permitir’ é uma extensão do sentido básico, pois relaciona-se com a idéia de libertar, permitir que alguém faça algo, deixar livre para agir. O sentido de ‘evitar’ e ‘parar’ são criados por extensão do mesmo grupo de sentidos básicos, sendo algo como ‘afastar-se’ ou ‘desapertar’. Os demais usos do verbo deixar (‘aguardar’, ‘causar’ e ‘não se importar’) não foram encontrados na amostra arcaica. O primeiro sentido, bastante freqüente no corpus atual, é uma forma de codificação usada nos relatos de procedimento e dessa forma não era esperado que ocorresse na amostra arcaica. Os demais sentidos são raros na amostra atual, que é muito maior que a arcaica. Portanto, não é possível afirmar que não existiam em outras fases do português. O uso de “deixa eu ver” é derivado do sentido de ‘permitir’ e é típico da oralidade. 195 Também não foi encontrado na amostra arcaica. Quanto à sintaxe, não há evidências de que o verbo deixar era usado no latim com complemento oracional (com infinitivo ou com verbo finito). Portanto, para os verbos achar, saber e deixar é possível falar em ganhos de sentido e numa trajetória do concreto para o abstrato se se analisar a história do português. Quanto aos outros verbos, é inconveniente apresentar conclusões, pois os sentidos diferentes estão determinados pelo canal escrito/oral no português atual ou pelo tipo de texto. 5.2.1- Modelos de subordinação e gramaticalização A análise dos modelos de subordinação completiva não permite concluir que a mudança geral é em direção à integração de cláusulas, pois, no decorrer da história, uma estrutura menos integrada pode ter a sua freqüência de uso aumentada. Em latim, a subordinação completiva era feita de diferentes formas, o que demonstra que a estratificação (coexistência de formas com função similar, segundo Hopper, 1991) da complementação verbal estava presente lá. Todavia, constata-se que determinadas estruturas desapareceram completamente; outras se mantiveram para uns itens verbais (são os chamados vestígios) e desapareceram para outros. A oração subordinada completiva podia ser feita das seguintes formas em latim: com a oração subordinada no subjuntivo sem conectivo (justaposta à oração principal); b) com a oração subordinada desenvolvida introduzida por conjunção integrante; c) com a oração subordinada constituída por interrogação indireta (introduzida por pronome ou partícula interrogativa); d) com a oração subordinada reduzida de infinitivo com sujeito no caso acusativo; e e) com a oração subordinada introduzida por quod. A estrutura menos integrada, a justaposta no modo subjuntivo, tem sua freqüência diminuída no latim arcaico e clássico. As orações justapostas que são 196 interrogações indiretas também são menos integradas do que as introduzidas por conjunção integrante. As interrogações indiretas são sintática e semanticamente mais independentes da oração principal. Estas continuam a ser usadas no português de forma similar ao uso latino. Outra estrutura que desapareceu no português foi a construção com sujeito de infinitivo quando o sujeito era idêntico ao da oração principal, mas que ainda se encontra no português arcaico, como no exemplo 21. Esse uso era regular quando o verbo era declarativo ou quando expressava sentimento. Hoje é possível encontrar o sujeito idêntico no caso oblíquo com o verbo no gerúndio, mas os usos soam de forma literária: “As vezes, me acho pensando nele”; “Eu me vi saindo daquele lugar”. No português atual, os usos com sujeito idêntico são codificados normalmente com cláusula completiva desenvolvida (exemplo 22) ou no modo não-finito, mas o sujeito apagado (exemplo 23): (21) E mãdou vijnr cõmigo hua muy honrada dona diaconyssa, per nome chamada Romana, a qual, quando ueo, achou iazer aos pees do sancto bispo Nono Pelagia, com gran planto e doo”.42 (22) aí eu já sei que eu posso jogar uma carta alta (DAN2, P, R) (23) eu sei fazer molho branco (SUZ21, P, R, Esc) Os verbos saber e deixar podem ter sujeito idêntico na subordinada com infinitivo, mas sempre apagado. Os verbos achar, ver, saber e muito raramente querer podem ter sujeitos idênticos explícitos, sendo a cláusula subordinada desenvolvida. O verbo mandar exige sujeito diferente, assim como deixar com os sentidos de ‘permitir’ (com completiva desenvolvida ou reduzida), de ‘aguardar’ e de ‘causar’. Os verbos cognitivos achar e saber, com sujeitos diferentes, apresentam a subordinada sempre desenvolvida no corpus atual analisado. No corpus arcaico, 42 Esse é um dos 7 dados (20%) de achar com infinitivo de um total de 35 dados (com esse verbo) com complemento oracional na amostra do português arcaico pesquisada por Votre. No Orto do Esposo foi apenas 1 dado em 10. 197 encontra-se achar mais infinitivo com sujeito. Os verbos mandar e deixar (exceto o uso “deixar de + infinitivo”) têm sempre sujeito da subordinada diferente (codificado com o caso oblíquo ou, mais freqüentemente na língua oral, com o caso reto). Através dessas análises, observa-se que, no latim, havia várias camadas (ou estratificação) para expressar a complementação e que havia variação de uso para um mesmo item lexical. Vê-se que dois usos não são utilizados no português (houve especialização, um dos processos expostos por Hopper, segundo o qual ocorre uma diminuição das possibilidades de escolha): a) a oração completiva no subjuntivo sem conectivo e b) a oração completiva com sujeito explícito no acusativo idêntico ao sujeito da oração principal. O primeiro uso é menos integrado do que o uso encaixado com o conectivo integrante; e o segundo uso é menos integrado do que aquele com sujeito zero obrigatório. A maioria dos verbos transitivos deixou de apresentar complemento com sujeito acusativo, mesmo quando este era diferente do sujeito da oração principal. A variação “Verbo + cláusula não-finita com sujeito no acusativo” e “Verbo + cláusula finita”, que ocorre hoje nos usos dos verbos estudados, tem explicação funcional: no caso do verbo ver, foi constatado que a primeira estrutura codifica apenas os casos de visão direta, enquanto a segunda estrutura codifica todos os casos de visão indireta e casos de visão direta; no caso do verbo mandar, quando a cláusula completiva é infinitiva (“Mandei Maria sair”), a ordem é dada diretamente ao referente-sujeito desta subordinada; quando a completiva é desenvolvida, (Mandei que Maria saísse) a ordem pode ser dada direta ou indiretamente ao referente-sujeito desta subordinada, como demonstrou Perini (1977).43 Ao se comparar o português arcaico com a amostra do português atual, podem-se apresentar os seguintes resultados (no entanto diversas ressalvas 43 O verbo deixar também tem essa variação, mas não foi possível detectar a motivação, porque o número de dados com complemento desenvolvido é muito pequeno (apenas 4 dados). 198 devem ser consideradas como as já apresentadas quanto aos tipos de textos e à modalidade oral): a) a ausência de uso de achar com infinitivo com sujeito na amostra do português atual; b) o aumento de ver como modalizador epistêmico no português atual; c) aumento de uso de saber como modal de capacidade; d) a diminuição de inserções entre o verbo querer e a completiva no infinito; e) e o aumento da freqüência do verbo mandar com completiva no infinitivo (uso praticamente categórico na amostra atual). Os usos como modalizadores dos verbos achar e saber não existiam no latim, porque esses verbos não eram usados com complemento oracional. Também não havia os usos de deixar com complemento oracional. Dos verbos cognitivos estudados, apenas o verbo ver tem o uso como modalizador no latim (exemplos 11 e 12), segundo as informações obtidas através de dicionários etimológicos, gramáticas e do trabalho de Votre. Dos verbos volitivos, apenas o verbo deixar parece não ter uso com completiva no latim (não tendo, assim, os sentidos de ‘permitir’, ‘parar’ e ‘aguardar’).44 Os estágios de gramaticalização estão presentes em todas as fases da língua desde o latim. Todos os estágios são camadas para codificar a subordinação formada pela cláusula principal e a completiva. Os verbos transitivos que aceitam cláusula completiva utilizam várias dessas camadas e podem ter, de uma fase da língua para outra, um aumento de uso dos graus de integração detectados. Pode ocorrer que um dos estágios de gramaticalização desapareça ou quase desapareça como ocorreu com o verbo achar mais infinitivo com sujeito, que ocorria no português arcaico. Ou pode ocorrer que o uso de um estágio ainda não detectado numa dada fase passe a ter dados numa outra fase, 44 Ainda há poucas pesquisas com textos latinos para verificação de fenômenos relativos à articulação de cláusulas. 199 como ocorreu com o verbo deixar, que passa a ter complemento oracional no português arcaico. Verifica-se que nem sempre a direção do aumento da freqüência é no sentido da maior integração. O uso de achar de percepção provavelmente serviu como fonte para o uso de incerteza. Isso não significa, contudo, que o segundo uso seja mais integrado à subordinada que o primeiro. Por causa da dificuldade de se comprovar a direção das derivações é que Votre (1999) questiona a existência do principio da unidirecionalidade e propõe que não existam nem mesmo derivações. Após estudar os usos dos verbos cognitivos achar, ver, pensar e saber no latim, no português arcaico e no português contemporâneo – o autor não encontrou evidência de que esses verbos se tornaram mais abstratos em sua trajetória no tempo e no espaço. À mesma conclusão chegou Ferreira (2000a e b) com relação ao verbo poder. Para Votre, as estruturas e os sentidos (tanto concretos como abstratos) estão todos disponíveis para um item verbal, quando este é usado pela primeira vez. Esse mecanismo é denominado por Votre “Princípio de extensão imagética instantânea”. Alguns sentidos e algumas estruturas podem estar submersas, mas podem emergir a qualquer momento, substituindo ou não outros sentidos e construções: Segundo esse princípio, as tendências presentes num momento da história da língua atuaram no passado, atuam no presente e continuarão a atuar da mesma forma, indefinidamente. A hipótese de trabalho é que a faculdade metafórica da linguagem opera de modo instantâneo, no sentido de que todas as suas virtualidades e potencialidades se tornam disponíveis na mente das pessoas que interagem na comunidade discursiva, ancoradas no contexto situacional de cada interação. Portanto, em vez de falarmos em derivação de sentido, estaremos enfatizando relações entre diferentes níveis de abstração dos sentidos, sem garantir qual resultou de qual (Votre, 2000:72). Postula-se nesta tese que cada sentido tem a sua história no que se refere à integração com a subordinada. Em outras palavras, o uso fonte pode gerar usos que vão se tornar mais integrados e pode gerar outros que se manterão menos 200 integrados à completiva. Há evidências de que alguns verbos ganharam sentidos mais abstratos e diferentes estruturas ao longo da história do português (como o verbo achar e deixar) e outros se mantiveram com os mesmos sentidos (como o verbos ver) e as mesmas estruturas (como o verbo querer). Numa pesquisa futura, a análise de um corpus do latim e de um corpus maior de diferentes fases do português possibilitará verificar se houve aumento de freqüência de uso dos graus mais integrados de subordinação. 201 6- CONCLUSÃO Ao longo do último capítulo foram apresentadas várias das conclusões da pesquisa sobretudo nas seções 5.1.2.4 e 5.1.3.4 e no final do seção 5.2. Aqui serão feitas algumas considerações finais. Através da análise dos verbos transitivos achar, ver, saber, mandar, querer e deixar no português atual (a principal pesquisa desta tese) com complemento oracional foi possível verificar que as construções com verbos cognitivos são menos integradas que as com verbos volitivos. Na escala de integração proposta, os verbos cognitivos concentram seus dados nos graus mais baixos enquanto os verbos volitivos têm grande número de dados nos graus mais altos. A integração é tanto morfossintática como semântico-pragmática. Foi possível verificar, com base nos pressupostos funcionalistas, que é principalmente o subprincípio da proximidade que atua para determinar as diferenças entre os dois grupos de verbos. Foi visto que os conteúdos da subordinada de verbos cognitivos estão mais distantes conceptualmente do que é expresso nas suas cláusulas principais. Os complementos clausais expressam opiniões, interpretações, incertezas e os referentes-sujeitos dos verbos cognitivos não podem manipular os referentessujeitos das cláusulas completivas. Já os verbos volitivos têm como complemento algo que é um desejo, uma ordem, uma permissão dada pelo referente-sujeito. Este manipula ou tenta manipular um outro referente codificado como sujeito da cláusula completiva. Além disso, grande parte dos dados são implicativos e têm as cláusulas principal e subordinada com tempo simultâneo. Como forma de refletir essas diferenças, a morfossintaxe das construções com verbos volitivos é mais integrada. Há diferenças de integração também dentro de cada grupo de verbos. Do grupo dos verbos cognitivos, saber tem usos menos integrados – quando seu sentido é basicamente cognitivo – e usos mais integrados – quando funciona como modal de capacidade (física ou intelectual). O verbo ver é mais integrado 202 do que o verbo achar, pois tem usos como complemento numa forma não-finita. Essa construção expressa visão direta e não é um uso cognitivo prototípico. O uso que expressa percepção, compreensão – ou seja, uma visão indireta sobre os fatos – tem o mesmo grau de integração do verbo achar, apresentando uma distância conceptual sobre o que é expresso na cláusula subordinada. Com os verbos ver e achar, os informantes marcam um ponto de vista pessoal e diminuem o comprometimento com a informação que é apresentada na cláusula subordinada. A morfossintaxe reflete esse distanciamento através de cláusulas com o mínimo de integração. Os verbos volitivos também têm muitas diferenças entre si. O verbo mandar é o menos integrado de todos (os volitivos). Um dos principais motivos para isso é o fato de apresentar referentes-objetos animados e com força para reagir ao controle expresso pelos referentes-sujeitos. O verbo querer tem uma freqüência muito alta como modal para expressar vontade e no corpus é usado principalmente nos contextos em que o objeto de desejo (expresso por uma cláusula no infinitivo) é conquistado, é realizado (como foi feito pela análise da categoria Implicação). Várias gramaticalizações são detectadas com esse verbo: a) união de querer com verbos como falar e dizer, com função metalingüística; b) amálgama de querer e dizer, formando um marcador discursivo; c) união de querer com saber expressando os sentidos de ‘importar-se’, ‘interessar-se’; e d) união de estar com querer mais infinitivo para expressar algo que está na iminência de ocorrer. O verbo deixar é bastante polissêmico e tem seus dados em diferentes pontos da escala. O uso como ‘permitir’ é o menos integrado. Há um uso num grau intermediário de integração (derivado do anterior) que está se gramaticalizando nos relatos de procedimento e significa ‘aguardar’. O uso de “deixar de mais infinitivo” é o mais integrado, sendo um uso mais formal que os demais. Aqui o sentido do verbo está bastante alterado, tratando-se de uma gramaticalização para expressar principalmente um aspecto terminativo. 203 Ao se falar em gramaticalização, deve-se atentar sempre para o fato de esse fenômeno ser bastante relativo. No caso dos verbos achar e ver, pode-se dizer que seus usos com complemento oracional (no caso do verbo ver mais complemento oracional finito) são gramaticalizações que desenvolveram operadores modalizadores epistêmicos. São gramaticalizações se a comparação for feita a partir do uso com objeto nominal (SN). Mas não o são se se pensar no contínuo verbo>auxiliar>afixo, mostrado ao longo da tese. O uso de ‘deixaresperar’ foi considerado uma gramaticalização que auxilia no modelo de formação de textos procedurais se for comparado ao ‘deixar-permitir’ com estrutura semelhante, mas sem função numa tipologia textual. A valorização da freqüência de uso permite constatar que há sempre algum tipo de elemento de ordem morfossintática ou semântico-pragmática que se repete para distinguir usos. O uso de ‘deixar-permitir’ e ‘deixar-aguardar’ podem ter sintaxes idênticas, mas o primeiro tem o referente-objeto de deixar sempre animado e o segundo, sempre inanimado. Seus referentes-sujeitos são sempre animados. Mas no uso com ‘deixar-parar’ os referentes-sujeitos podem ser inanimados. O trabalho de Heine (1993) e o de Givón (1990 e 1995) inspiraram a pesquisa com a utilização de uma escala para os verbos. Mas os estágios propostos por Heine não são detectados na sua maioria, porque ele trata do contínuo que vai do verbo pleno com complemento SN até o uso do morfema flexional. Os usos estudados aqui se inserem apenas nos estágios por ele denominados estágio B e estágio C. No estágio A estão os verbos com complemento SN e nos estágios B e C começa a auxiliaridade. Os usos de deixar e ver com complemento com sujeito ilustram o estágio B. O uso de “deixar de + infinitivo” e de “saber mais infinitivo” ilustram o estágio C. O uso dos verbos com completiva desenvolvida com verbo finito também está no estágio B, segundo Heine. Como foi apresentado no capítulo 3, no estágio B a) os complementos são verbos não-finitos; b) a identidade de sujeitos não é um requisito obrigatório; c) o 204 complemento verbal apresenta-se de diferentes formas: gerúndio, particípio ou infinitivo; d) o complemento também pode ser uma construção clausal finita . No estágio C, a) o complemento é um verbo não-finito, havendo forte conexão entre os dois; b) a identidade de sujeito é um fator obrigatório; c) o verbo e o complemento referem-se ao mesmo tempo; d) o verbo normalmente não apresenta conjuntamente as distinções de Tempo, Aspecto e Modo (“TMA distinctions”); e e) o verbo e o complemento representam uma só unidade semântica. À medida que essas estruturas tornam-se mais gramaticalizadas, novas formas menos sintéticas, mais livres, surgem para dar conta de funções não mais codificadas pelas formas antigas. A proposta de uma escala de graus de integração feita a partir do controle de categorias morfossintáticas e semântico-pragmáticas (como a feita nesta tese) é adequada para percepção de pequenas diferenças entre usos de um mesmo verbo e de verbos distintos. O trabalho de Givón, assim como o de Votre (1992), foram importantes por trazerem uma série de testes relativos à atuação do subprincípio da proximidade. Muitas das categorias controladas por eles foram utilizadas aqui tanto numa análise basicamente qualitativa quanto na medição dos graus de integração. A permanência de traços originais em novos usos como o uso de ‘acharparentético’ provindo do ‘achar-incerteza’ é explicada pelo princípio da persistência, segundo o qual, no processo de gramaticalização, uma forma derivada mantém vestígios do significado original. Com relação à pequena análise diacrônica feita aqui, poucas constatações podem ser apresentadas devido às diferenças dos corpora, mas o trabalho sugere algumas possibilidades de pesquisas. O estudo dos verbos realizado não permite comprovar a hipótese da unidirecionalidade de mudança sintática (menor integração > maior integração) porque cada item verbal tem uma história diferente: em alguns itens (como o 205 verbo mandar) verifica-se a maior integração ao longo da história do português, em outros (como o verbo achar) houve um aumento de estruturas menos integradas. Há itens como o verbo ver e querer que parecem ter desde o latim a mesma sintaxe. Quanto ao sentido, é possível dizer que houve derivações nos usos de achar, deixar e saber, mas parece ter-se mantido uma estabilidade nos sentidos de ver, querer e mandar. Os sentidos de ver e querer que não ocorrem nas amostras do passado são típicas do português oral atual. Os fatos enumerados a seguir são apenas indícios de mudanças que poderão ser estudados em outras pesquisa: a) o (quase) desaparecimento do uso de achar com infinitivo com sujeito; b) o uso de “pra ver se”(‘verificar algo no futuro) e do advérbio de dúvida “vai ver que”; c) aumento de uso de saber como modal de capacidade; d) o uso de “ai eu sei que”(‘constatar’); e) a diminuição de inserções entre o verbo querer e a completiva no infinito; f) e o aumento da freqüência do verbo mandar com completiva no infinitivo (uso praticamente categórico hoje). Além disso, os itens achar, saber e deixar não tinham completiva clausal no latim. Com uma metodologia adequada e com ampliação das amostras será possível dizer se esses resultados são decorrentes de diferenças de canal ou de tipos de textos, apontando para variações da língua presentes em diversas épocas, ou se de fato são mudanças. A escala proposta nesta tese para se medir a integração é um meio de se verificar os estágios de gramaticalização dos verbos tanto no português contemporâneo como em diferentes fases do português. Para o estudo da sincronia, verificam-se os graus mais freqüentes e faz-se uma comparação entre usos e entre verbos. Para o estudo de diferentes fases, é possível medir o aumento ou a diminuição da freqüência de determinados usos dos verbos. Nestes termos, outras pesquisas poderão ser feitas principalmente no sentido de verificar alterações nas freqüências de uso. 206 7- BIBLIOGRAFIA AARTS, J. & AARTS, F. Find and want: a corpus-based case study in verb complementation. IN: AATS, B. & MEYER, C. (eds). 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