Caracterização do comportamento multifuncional de fazer Marcia dos Santos Machado Vieira 1. Introdução Fazer revela, em muitos contextos lingüísticos, comportamento semântico-estrutural sistemático que o vincula, em maior ou menor grau, a categorias gramaticais e/ou discursivas. Em certos casos, chega a atuar como um instrumento morfossintático auxiliar na derivação de predicados complexos. Nesses contextos, merece ser funcionalmente descrito no âmbito da gramática do Português. Objetiva-se focalizar as predicações em que fazer tem comportamento sintático, semântico e discursivo regular, com o intuito de alcançar tal descrição. Com base em 2139 ocorrências desse verbo coletadas em textos do Português Brasileiro (PB) e do Português Europeu (PE)1, analisa-se sua multifuncionalidade para, então, determinar as características sintáticas e semântico-discursivas que diferenciam as predicações em que fazer tem estatuto lexical daquelas em que ele tem estatuto (léxico-)gramatical ou discursivo. Pretende-se: (i) apresentar a configuração básica de fazer como verbo predicador (Vpredicador) e, com base nesta, estabelecer suas extensões semântico-sintáticas; (ii) definir os fatores sintáticos, semânticos e/ou discursivos que co-determinam tal expansão de uso; (iii) configurar graus (mesmo com limites fluidos e/ou superpostos) de expansão que revelem o enfraquecimento de seu comportamento de Vpredicador (pleno ou não) em diferentes contextos; (iv) determinar parâmetros para identificar e caracterizar funcionalmente unidades compósitas com verbo-suporte (Vsuporte) em um continuum de (semi-)gramaticalização, que possam orientar construções lingüísticas com outros verbos de comportamento afim; e (v) concorrer para o refinamento de certos conceitos (como os de Vsuporte e marcador causativo) e de explicações para o fenômeno de formação de predicados complexos. 2. Enfoque funcionalista Um parâmetro teórico em que se pauta este estudo é o da correlação entre sistema gramatical e funcionalidade discursiva. As formas lexicais ou gramaticais e as regras que governam a constituição de expressões lingüísticas são examinadas em termos do significado que exprimem, do propósito para o qual são usadas e do contexto em que ocorrem. Pressupõe-se que os diversos tipos de fazer e de construções que ele integra se relacionam à manipulação criativa da língua acionada por diferentes motivações comunicativas. Outro parâmetro é o da possibilidade de formas lexicais se submeterem a um processo gradativo de especialização morfossintática, semântica e/ou discursivo-pragmática em determinadas condições de produção lingüística. Assume-se que esse é o caso de fazer em certas predicações. Para descrever e 1 Constitui-se a amostra de 1485 ocorrências de fazer no PB e de 654 no PE com base em: 30 entrevistas com brasileiros e 36 com portugueses; e 100 textos jornalísticos (editoriais e artigos de opinião/crônicas) brasileiros e 140 portugueses. As entrevistas foram selecionadas nos acervos dos Projetos NURC-RJ, APERJ e CRPC-Lisboa, com os quais contou o Projeto VARPORT para a composição de seu corpus oral. E os textos escritos, alguns dos quais integram o corpus escrito deste Projeto, foram coletados em jornais do período de 1901 a 2000. explicar sua polifuncionalidade segundo essa perspectiva, recorreu-se à Teoria da Gramática Funcional de DIK (1997) e ao enfoque de gramaticalização de HEINE et alii (1991). DIK (1997) orienta a representação lingüística e a explicitação teórico-explicativa das construções com fazer e das regras de formação e/ou expressão destas, com base em conceitos, como os de: predicação nuclear (cláusula constituída por predicado – de natureza verbal, nominal ou adjetival – e termo(s)); termo (elemento que se refere a uma entidade-participante do mundo biossocial); predicado (elemento com função de especificar uma organização semântica e formal de argumento(s) e de expressar propriedade de entidade(s)-participante(s) ou relação entre estas); restrição de seleção (condições semânticas impostas ao(s) termo(s)); operandum (auxiliar ou primário) e operador morfossintático2; funções semânticas3 e sintáticas; e estados de coisas (ação, processo, posição e estado, e subtipos). HEINE et alii (1991) norteiam a análise e a interpretação do processo de desenvolvimento de funções gramaticais ou pragmático-discursivas/textuais pelo qual passam unidades lexicais (ou menos gramaticais), ou seja, a configuração do continuum de auxiliarização ou discursivização a que fazer se mostra suscetível no português. Algumas construções com fazer que têm configuração sintático-semântica regular advêm, de acordo com DIK (1997), da aplicação de determinadas regras de formação e/ou expressão de predicados derivados complexos, produtivas no Português. As regras que permitem a ampliação do acervo de predicados básicos (armazenados no léxico) apresentam a seguinte configuração geral: {Operandum auxiliar/Operador [operandum primário/não-auxiliar]}Predicado Derivado Complexo 4 . Tais regras podem acarretar, entre outros efeitos, mudanças no estatuto categorial da “estrutura utilizada como forma input para expansão lexical”, incorporação de argumentos e/ou modificação das funções semânticas das posições argumentais. Com base no entendimento de HEINE et alii (1991) de gramaticalização como um processo gradual e contínuo de transferência de categoria lexical a categoria gramatical ao qual formas lingüísticas se podem sujeitar ao longo do tempo ou num mesmo recorte temporal, 2 Operandum corresponde a um item da língua fonologicamente especificado, que pode ser primário (pertencer ao léxico) ou auxiliar (localizar-se no eixo léxico-gramática e indicar uma informação léxico-gramatical, conforme certos “verbos (semi-)auxiliares”) e sobre o qual pode atuar uma regra de expressão lingüística. Operador responsabiliza-se por uma distinção gramaticalmente expressa na língua (marca de caso, gênero ou número; modalidade, voz ou aspecto verbal, por exemplo); consiste num elemento morfossintático (afixo, partícula gramatical, verbo auxiliar, entre outros) que influencia a forma de um constituinte da cláusula, como, por exemplo, num elemento auxiliar que opera sobre outro (forma input), formando com este uma unidade compósita, e que é responsável por uma distinção gramatical específica. 3 Papéis temáticos: Agente, Posicionador (entidade que controla uma posição), Força (entidade que não controla, mas instiga um processo), Paciente, Zero [∅] (entidade primariamente envolvida num estado), Meta/Alvo (entidade afetada ou efetuada por uma operação sob o controle de um Agente ou Posicionador ou sob a motivação de uma Força), Receptor (entidade para a qual algo é transferido), Localização (entidade em que algo se situa), Direção (entidade para a qual algo se move), Origem/Fonte (entidade a partir da qual algo se move), Referência (o segundo ou o terceiro termo de uma relação em referência ao qual a predicação se estabelece). 4 A atuação de um ou mais operadores ou operanda auxiliares sobre uma forma input (ou operandum primário/nãoauxiliar) gera uma determinada forma como output (predicado derivado complexo). concebe-se que o conteúdo/uso (semi-)gramatical de fazer coexiste com o conteúdo/uso nãogramatical (básico) pelo qual fazer exerce o papel de Vpredicador (predicado verbal com sentido básico plenamente transparente ou não) e do qual se desenvolveu como verbo funcional. No curso de transição categorial para verbo funcional (em que fazer adquire caráter auxiliar e/ou discursivo específico), há estágios intermediários que revelam comportamento ambíguo e acarretam processos de redefinição, em maior ou menor grau, de propriedades típicas de uma das (sub)categorias do continuum, tais como: enfraquecimento ou perda de significação lexical específica (abstração ou generalização semântica, dessemantização); especialização sintáticosemântica e/ou semântico-discursiva; destransitivização (redução do número de argumentos); descategorização (distanciamento da categoria-original/primária), recategorização (restauração de função semântica específica para formas morfossintáticas cuja função de partida não era essa) ou reanálise (reformulação sintática/semântica na estrutura de um elemento lingüístico que não afeta imediata ou intrinsecamente sua manifestação superficial). A análise e a delimitação das (sub)categorias a que fazer pode pertencer pautaram-se no conceito de categorização funcional delineado por TAYLOR (1995), segundo o qual categorização – atividade de observação de semelhanças na diversidade e dessemelhanças num continuum – se aplica a categorias gramaticais (lexicais ou morfossintáticas). Estas estruturamse em termos de um continuum (i) em que o significado de uma expressão participa do significado de outra e (ii) em que alguns membros partilham atributos associados tipicamente à categoria enquanto outros partilham atributos distintos ou quase não partilham propriedades. A categorização de fazer à qual se procede neste trabalho fundamenta-se, então, na concepção de que os membros de uma categoria lingüística (a) apresentam diferentes graus de saliência (uns são exemplares da configuração prototípica; outros, periféricos) e (b) se entrecruzam consoante similaridades parciais e se diferenciam segundo limites imprecisos. O nível básico de uma categorização corresponde ao membro de configuração sintática e semântica mais simples e, em geral, produtivo na língua ao qual os membros periféricos podem ser mais plausível e economicamente associados. Pressupõe-se, então, que, a depender do contexto morfossintático e semântico, determinados usos de fazer podem oscilar entre uma e outra categoria (primária ou secundária) e, no âmbito de uma mesma categoria, entre um nível e outro. O maior ou menor grau de gramaticalização do verbo fazer pode ser explicado por alterações de parâmetros da construção nuclear que resultam em comportamento mais ou menos semelhante ao das categorias de operandum (semi-)auxiliar ou operador. A rede de extensões de uso de fazer é constituída de um predicado básico (em que se situa o sentido-fonte) do qual se originam construções e ao qual estas se mantêm, gradualmente, relacionadas mediante alguma(s) propriedade(s). 3. O comportamento multifuncional de fazer 3.1 Verbo predicador O Vpredicador pleno fazer requer dois argumentos nucleares, que se manifestam como termos com as funções de Sujeito e Objeto. Constrói uma predicação que condensa as noções de ação e causalidade, pois envolve uma entidade animada controladora/responsável (agente), ou conceptualizada como tal, que determina se um certo estado de coisas ocorrerá ou não e uma entidade inanimada controlada (meta/efeito), ou assim conceptualizada, que muda de estado/condição ou passa a existir sob a ação daquela entidade sobre esta ou sobre a matériaprima com que a constitui. O evento ativo/causativo implicado por fazer é [+ controlado] e [+ dinâmico] e pressupõe dois subeventos (um processo de mudança e um estado final). A ação do agente e a alteração da meta constituem um único evento, que se pauta nas seguintes propriedades: intencionalidade (o agente objetiva alguma mudança no estado da meta), responsabilidade (o agente é o responsável pela mudança, a fonte de energia da ação), controle (o agente controla a ação), contato direto e físico do agente com a meta (o agente toca, com seu corpo ou com algum instrumento, a meta ou a matéria-prima com que a construirá), manipulação do estado físico ou da condição da meta (alteração física efetiva). Ex. 1:“(...) barco você faz de... com madeira né? Canoa você faz com um pau só.” (APERJ, FST144A)5 Ex. 2:"(...) tabatinga é um material que eles usa pra fazer tijolo... tijolos... mistura com o barro pra fazer tijolo né?" (APERJ, MAC110C) Você/Eles causa(m) a existência/forma de barco/canoa/tijolo(s). (1) Você/Eles atua(m) sobre madeira/pau/tabatinga e barro. (2) Você/Eles converte(m) madeira/pau/tabatinga e barro em barco/canoa/tijolo(s). Logo, barco/canoa/tijolo(s) passa(m) a existir. Essa configuração do nível básico de categorização de fazer é a que envolve, mais concretamente, participantes do mundo real (referenciais), possui a estrutura prototípica atribuída à predicação transitiva e representa a acepção estabelecida, geralmente, em primeiro lugar por lexicógrafos e outros estudiosos. Atua como um “denominador comum” ao qual as extensões de uso/sentido de fazer registradas no corpus podem ser associadas, em maior ou menor grau, por conta de alguma(s) propriedade(s) compartilhada(s). Existem exemplos com fazer nos quais não transparece, plena ou até parcialmente, o significado apresentado na construção básica, apesar de o verbo manter a sintaxe transitiva desta e funcionar como Vpredicador. Fazer ocorre, nesses casos, como “substituto” de predicado verbal específico, hiperônimo de verbos normalmente factivos. Sua configuração sintática é variável: o complemento pode ser um sintagma nominal ou preposicional, por exemplo. Seu conteúdo semântico também é variável e só pode ser recuperado mediante informações textuais e/ou situacionais. Evidenciam o caráter plurissignificativo do Vpredicador fazer os exemplos: 5 Indicam-se as fontes dos exemplos mediante as seguintes informações: (a) o arquivo sonoro e o número do inquérito (no caso de corpus oral); e (b) o título do periódico, a data de publicação e o título do artigo (no de corpus escrito). Ex. 3:“(...) Chico [Anysio] fazia o Santelmo, um garoto ingênuo que não percebia as cantadas que recebia da Lolita, interpretada por Mara Di Carlo.” (Jornal do Brasil, 19/03/2000, “Um colunista em busca de um personagem”) [≅ representava, atuava como] Ex. 4: “(...) um motor DCM-WM num barco que anda bem... ele faz oito... nove milha por hora” (APERJ, MAC171B) [≅ percorre] Ex. 5:“então tem um lugar no ( ) que é o SENAC... eles ( ) ... eles fazem um curso profissionalizante né... então pra garçon...(NURC, AC020) [≅ freqüentam; organizam; oferecem] Já que os termos relacionados a fazer não são compatíveis com as restrições de seleção de Vpredicador pleno, predicações como essas exigem a reinterpretação do significado desse predicado verbal para que haja compatibilidade entre ele e os significados comumente atribuídos aos argumentos ou os significados que estes adquirem no contexto discursivo. O enunciado 5 ilustra uma ocorrência de fazer cuja interpretação depende do conhecimento da situação discursiva: o referente do pronome “eles” é “professores” ou “coordenadores do curso”, e o significado desse verbo corresponde a “preparar, elaborar, organizar ou oferecer”; se o referente fosse “alunos”, o verbo já corresponderia a “freqüentar, assistir a”. Sintetiza os sentidos do Vpredicador fazer a noção geral de Atividade – processo cinético que conjuga ação-causalidade e corresponde ao nível superordenado, o mais saliente cognitiva e lingüisticamente e o que pressupõe elementos com atributos mais genéricos/abstratos. FAZER ⇔ Atividade ≅ A1 (A1 ): agir, realizar, proceder, executar, ... Vpredicador pleno Vpredicador (a1 B): criar, dar existência/forma a, (b A1 x): organizar, preparar, cozinhar, construir, fabricar representar, freqüentar, cursar, ... Sentido lexical básico [+ específico, + concreto] Extensão semântica A1 = noção geral de Atividade/Processo, concebida como cognitivamente fundamental a (quase) qualquer Verbo – domínio da atividade (física ou mental) de uma entidade B = Ação/Causalidade − domínio da criação/construção X = “Valor semântico variável”, sentido definido por informação situacional ou textual − domínio do discurso Representação entre parênteses: indica a conexão entre os diferentes sentidos (sentido focalizado/mais saliente em letra maiúscula; sentido não-focalizado em letra minúscula) Quadro 1: Relação entre o Vpredicador pleno fazer e suas extensões semânticas Existem ocorrências de verbo predicador fazer que representam extensões semânticas de caráter categorial fluido. Por exemplo: Ex. 6:“(...) mesmo os sonsinhos, sempre vão fazendo das suas (...)” (CRPC, 122) Ex. 7:“Uma empregada doméstica deve ser invisível. Quanto menos seja vista, melhor. Ela põe e tira a mesa, faz a comida e a cama, lava e passa, limpa, cuida das crianças. Mas sobretudo não deve ser vista, nunca.” (Jornal do Brasil, 14/03/2000, “Iluminando o invisível”) Fazer, além de Vpredicador (com sentido correspondente ao de “aprontar das suas” e “preparar a comida e arrumar a cama”, por exemplo), pode ser categorizado como Vsuporte que integra uma “unidade compósita” (segundo lexicógrafos, com o significado de praticar (alguém) mais um dos desatinos que lhe são habituais) ou um verbo funcional que fica na fronteira entre Vpredicador e Vsuporte prototípicos. As construções com fazer relacionam-se como (a) extensões semânticas, mais ou menos afastadas, do predicado verbal primário (forma lexical) ou (b) extensões de uso sintáticosemântico, (semi-)gramaticalizadas, desse predicado. Devido a necessidades comunicativas e à própria predisposição semântica de fazer (seu valor genérico de Atividade), ele se submete, em parte de seus usos, a um processo de enfraquecimento do seu sentido lexical de Vpredicador e de especialização morfossintática, semântica e/ou discursiva. O resultado é que certas expressões de que participa contêm acepções mais ou menos gramaticalizadas. Uma decorrência típica desse processo é a possibilidade de comportamento (quase) auxiliar quando em adjunção a elementos (não-)verbais na estruturação da cláusula, de modo a veicular função específica. 3.2 Verbo-suporte: operandum auxiliar ou operador de verbalização Verbo-suporte é um subtipo de verbo, mais ou menos esvaziado semanticamente, que opera sobre uma forma/unidade não-verbal (freqüentemente, de natureza substantiva), atribuindo-lhe função predicante na estruturação da cláusula, e, assim, auxilia a constituição de predicado complexo (Vsuporte + elemento nominal), cujo potencial léxico-semântico é definido principalmente pelo componente não-verbal. Ex. 8: “(...) Criar um grupo integrado por dez países industrializados e dez países em desenvolvimento, de modo a fazer contraponto ao G7, que reúne os sete países mais ricos do mundo (...)” (Jornal do Brasil, 20/03/1935, “Sectarismo improdutivo”) [≅ se contrapor] Ex. 9:“Aconselha-se, pois, o articulista a fazer a sugestão da alteração toponímica à respectiva Comissão da Câmara municipal de Oeiras...” (Diário de Notícias, 22/01/1975, “Os nomes das ruas de Lisboa”) [≅ sugerir] Ex. 10:“(...) Portugal, a quem a religião fez grande, feliz e imortal nas crônicas da própria humanidade.” (Jornal do Brasil, 20/03/1935, “Sectarismo improdutivo”) [≅ engrandeceu; “felicitou”; imortalizou] Ex. 11:“(...) então nós tínhamos um professor ... ele ... ele... ele debochava mesmo ... (...) de uma aluna ... ela era gordona ... já repetiu muitos anos ... né ... então ele ria dela ... fazia piada dela (...)” (NURC, 261) [≅ zombava/debochava] Ex. 12:“(...) Pois só quem não conhece a imensa vastidão daquele território, as suas florestas densas, os perigos sem número (...) pode não fazer idéia do que foi a tenacidade, a audácia, (...), o espírito de sacrifício de meia dúzia de homens que desbravaram o Brasil.” (Jornal de Notícias, 20/04/1955, “Irmãos”) Os exemplos mostram que: (a) é possível parafrasear uma construção com Vsuporte fazer por predicado verbal simples; (b) fazer apresenta comportamento léxico-gramatical, pois contribui com uma parcela de sentido6 (valor factivo/causativo, de dinamismo e/ou controle)7 para a formação semântica do predicado verbo-nominal/adjetival e, ao codificar as categorias verbais (tempo, modo, aspecto) da unidade que compõe, dá suporte gramatical ao elemento nãoverbal ao qual se alia; (c) fazer partilha com o elemento não-verbal a função de definir a estrutura argumental (que pode coincidir ou não com a do Vpredicador simples correspondente, em relação de paráfrase), de atribuir papel temático ao(s) argumento(s); (d) fazer pode 6 A contribuição semântica do Vsuporte fazer é menor que a do Vpredicador pleno fazer e maior que a de um Vauxiliar prototípico. 7 Segundo BARON & HERSLUND (1998), o predicado verbo-nominal tem, freqüentemente, uma leitura que relaciona dois estados de coisas – uma atividade/ação (factiva/causativa) e um estado/resultado (criação/mudança de algo) – que se revela iconicamente mediante uma construção de dois elementos Verbo + (pseudo-)objeto. articular-se a elemento substantivo ou adjetivo8; (e) há restrições quanto à estruturação morfossintática do constituinte/sintagma que se integra a fazer no âmbito do sintagma verbal; (f) o elemento não-verbal não é um termo pleno (cuja função é estabelecer referência, indicar especificamente uma entidade manipulável), mas, na verdade, um predicado ou pseudo-termo. O grau de unicidade entre fazer e o elemento não-verbal variará a depender das propriedades desses componentes. Das propriedades do elemento não-verbal pesquisadas, cinco influenciam, significativamente, a interpretação de determinadas construções com fazer como predicados complexos: (a) o tipo de item passível de incorporação (predicado ou pseudo-termo); (b) o grau de identificabilidade de sua entidade-referente; (c) seu caráter genérico ou específico; (d) sua função (classificatória ou não) em relação ao verbo; (e) sua configuração morfossintática (marcado ou não quanto à número formal, constituído ou não de determinante/modificador, e a influência semântico-discursiva dessa marca/forma). O elemento não-verbal incorporado pode ser um: 1. predicado nominal (cf. exs. 8 e 9) – possui marco predicativo que envolve pelo menos uma entidade-participante e indica um estado de coisas; [f2: predicado nominal (x1) (x2)Meta ... (xn)]9 [(xn) ≥ 0] – sugestão (x1) (x2)Meta (x3); 2. predicado adjetival (cf. ex. 10) – possui marco predicativo que envolve uma entidadeparticipante à qual atribui uma propriedade; [f2: predicado adjetival (x1)∅ ] – imortal (x1) ∅ ; 3. “pseudo-termo” (cf. exs. 11 e 12) – designa item sujeito à incorporação semântica que, embora se apresente tal qual um termo (com artigo/pronome, em certos casos), perde parcial ou totalmente seu caráter referencial e assume função predicante (que ele normalmente não tem); nessa condição, tem interpretação genérica; (g xi: termo não-pleno) – idéia. O predicado nominal é o que mais fácil e tipicamente se identifica como constituinte de predicado complexo, visto que tem certo grau de “verbalidade” inerente: expressa valor dinâmico e possui, no léxico, configuração especificada com relação ao número de argumentos e às restrições de seleção e funções semânticas destes. Já os predicados adjetivais, que também contam com marco predicativo no léxico, não têm valor dinâmico inerente, mas o adquirem sob a operação de um verbo de valor causativo tal qual fazer ou tornar. Há, nesse caso, alteração do estado de coisas expresso por tais predicados primários: de estado para processo. Os pseudotermos serão interpretados como parte de um complexo verbo-nominal/adjetival a depender da configuração das demais propriedades. O elemento que se associa a Vsuporte é, prototipicamente, não-flexionado, nãodeterminado e não-modificado (como é o caso dos exs. 8, 11 e 12), haja vista o fato de que, quanto mais referencial, menor sua contribuição para a composição do predicado derivado. 8 Ainda se relaciona a elemento adverbial, como em “Vamos embora, pois já se faz tarde/de noite.” Em DIK (1997), a variável f é usada para a indicação da unidade estrutural “predicado” e a variável x para “termo”. O símbolo g indica valor genérico. 9 A leitura incorporada é compatível com elementos não-verbais que ocorram formalmente no plural. Nesse caso, a idéia de quantidade é neutralizada, já que tais elementos não assinalam a oposição semântica entre singular e plural, mas a referência às propriedades gerais da categoria de entidades à qual remetem (cf. ex. 15, cuja pluralização do nome incorporado contribui para a expressão da nuança iterativa do evento). A leitura incorporada é ainda possível com elementos não-verbais que portem determinados adjuntos ao núcleo desde que estes não imprimam caráter específico (individualizado) e identificável (concreto) ao constituinte não-verbal do predicado complexo. 10 Dentre os elementos que podem ocorrer no sintagma que se integra a fazer na formação de uma unidade compósita, observam-se os seguintes: artigo indefinido (cf. ex. 18) ou definido (cf. exs. 9, 19 e 20) e/ou certos tipos de modificador, com função intensificadora11 ou não (cf. exs. 21 e 22). O artigo indefinido já é normalmente associado à não-identificação da entidade de que se fala. Os outros elementos podem ter sua função basicamente referencial neutralizada, assumindo, à semelhança de um artigo indefinido, o papel de não promover a identificação da entidade-referente do constituinte com o qual se combina fazer. Assim, o elemento não-verbal composto por adjuntos e passível de leitura incorporada será interpretado em função das propriedades essenciais que definem qualquer entidade/evento da natureza/classe à qual ele remete e não em função de um(a) entidade/evento em particular12. De qualquer modo, a presença de elementos determinantes e/ou modificadores na construção com Vsuporte contribui para que se oscile entre a interpretação genérica e a específica (dependendo do caráter mais ou menos abstrato do núcleo do elemento não-verbal) e, por conseguinte, para o reconhecimento de menor grau de incorporação do elemento não-verbal a fazer e para a categorização deste num continuum em direção à categoria de Vpredicador. A construção verbo-nominal/adjetival codifica um subtipo (mais específico) do evento geral indicado pelo Vpredicador fazer. Extensão semântico-sintática deste, o Vsuporte fazer comporta-se como um elemento que enseja vários “cenários” de ação/processo, que só serão (sub)especificados/qualificados pelo predicado ou pseudo-termo ao qual se adjunge. Então, o elemento não-verbal incorporado exerce, prototipicamente, função classificatória em relação a fazer. O foco semântico-discursivo não recai sobre a entidade à qual pode remeter o elemento não-verbal incorporado, mas sobre o processo verbal que este especifica. A depender do contexto lingüístico, sua função classificatória estará mais ou menos transparente. 10 Quando tratam de transferência categorial, HEINE et alii (1991) comentam a possibilidade de descategorização de substantivos, que passam a ter uso mais generalizado ao perderem, total ou parcialmente, propriedades nominais (como a habilidade de marcar valor referencial ou distinções de número) e se distanciarem de sua fonte lexical. 11 Por exemplo: “(...) o barco fica fazendo sempre muito movimento na água”. (APERJ, FST146C) 12 DIK (1997, v. 1: 176) já assinala que o valor genérico pode ser obtido tanto mediante termos definidos quanto termos indefinidos. Ambos podem ser utilizados para referência a entidades individualizadas ou, genericamente, a toda uma classe/categoria de entidades. Outros lingüistas também têm ressaltado que sintagmas de diferentes tipos (com ou sem artigo, com núcleo no singular ou plural) podem ter leitura genérica, a depender da situação discursiva. Outra propriedade típica das construções com Vsuporte é a correspondência entre o referente/sujeito gramatical do Vsuporte e o referente/sujeito do predicado nominal ou adjetival. Não é possível somar a esse predicado um complemento de + Nome humano que implique referência diferente da do sujeito do Vsuporte. Nota-se isso, comparando-se exemplos como: “(...) o articulista a fazer a sugestão (*de Rita) da alteração toponímica à respectiva Comissão da Câmara municipal de Oeiras.” “(...) o articulista a apresentar a sugestão (de Rita) da alteração toponímica à respectiva Comissão da Câmara municipal de Oeiras.” [apresentar = Vpredicador] Já que nem sempre o constituinte não-verbal é um predicado nominal ou adjetival, há construções em que esse parâmetro não se revela da mesma maneira: Ex. 13:“(...) tem um tipo de profissional que é o que faz a barba das pessoas (...)” (NURC, 023) Ex. 14:“essa professora deve ter feito a minha caveira... né? (NURC, 261) Apesar de em ambas existir elemento lingüístico que indique a inexistência de coreferência entre o sujeito de fazer e o elemento não-verbal “(semi-)incorporado”, “fazer a caveira” e “fazer a barba” – expressões citadas por lexicógrafos e suscetíveis de substituição por formas simples correlatas (“depreciar” ou “barbear”, por exemplo) – podem ser interpretadas como predicados complexos. Pelo fato de apresentarem propriedades (como elementos determinantes circunvizinhos, artigo definido e pronome possessivo ou de+Nhum) que aproximam o elemento não-verbal da categoria de termo e, portanto, favorecem uma leitura não-incorporada, podem ser, por outro lado, analisadas como: Vpredicador fazer (em uma de suas extensões) + termo (argumento complemento). Os enunciados 13 e 14 ilustram tipos de construção em que fazer pode ser associado às categorias de Vpredicador e Vsuporte. É bastante freqüente que fazer mantenha o valor factivo existente na estrutura com Vpredicador pleno, apesar de se apresentar dessemantizado (em maior ou menor grau, a depender do contexto lingüístico). O Vsuporte fazer confere valor abstrato, genérico e habitual de ação/atividade ao estado de coisas definido, principalmente, pelo elemento não-verbal e denota o envolvimento nesse evento de pelo menos uma entidade (em geral um sujeito ativo). Em geral, fazer imprime no elemento não-verbal traço de dinamicidade e/ou controle, o que acarreta uma relação semântica que envolve, pelo menos, uma entidade fonte com papel de Agente/Força/Causa. Assim, um nome que não denota ação/atividade passa a ter esse conteúdo semântico se for associado a fazer, como se verifica em “fazer (a) barba” (ex. 13) ou “fazer (a) feira” (ex. 20). Fazer não atua apenas como suporte de categorias gramaticais tal como ocorre com verbos auxiliares prototípicos. Uma evidência de que há a preservação de característica(s) da configuração semântico-sintática básica de fazer no predicado derivado é o fato de que a permuta dele por outro Vsuporte pode acarretar mudança de sentido. “Fazer consultas” é diferente, por exemplo, de “dar consultas”, como se nota em: Ex. 15:“[passamos] à constante verificação do mérito acadêmico, processo que, ademais, se completa com o envio dos pareceres sobre os cursos ao Conselho Nacional de Educação, para análise e deliberação, podendo as instituições manifestar-se em todo o processo, fazendo consultas e corrigindo distorções ou deficiências.” (Jornal do Brasil, 22/03/2002, “Supervisão e controle”). Esse exemplo revela efeitos discursivos decorrentes da regra de verbalização: (i) a redução de valência (destransitivização), processo, bastante freqüente no corpus, que contribui para tornar o enunciado genérico13; e (ii) a atribuição ao predicado input de valor reiterativo do evento por meio da pluralização do nome (cf. também ex. 17). Tendo em vista a co-atuação das propriedades anteriormente descritas que propiciam a reanálise de fazer + elemento não-verbal como um predicado complexo, configuraram-se sete níveis de integração ao longo de uma escala de similaridades e dessemelhanças relativas. O nível de maior grau de unicidade entre fazer e elemento não-verbal é aquele em que o predicado complexo já se apresenta lexicalizado. Ex. 16:“(...) a tentativa de fixar em África os que para lá tinham ido atirados para a guerra colonial redundou num tremendo fracasso. Em vez de ficarem para ali a constituir um (“lebensraum”) de pacotilha, os nossos soldados fizeram ouvidos de mercador às apregoadas amenidades da vida imperial, preferindo o regresso à pátria (...)” (Diário de Notícias, 21/01/1975, “Para lá do Império”) Em construções verbo-nome cristalizadas (“fazer vaquinha”, “fazer uma fezinha”), considera-se, diferentemente de NEVES (2000: 54), que: (a) fazer funciona internamente como um Vsuporte – o instrumento morfossintático responsável pela atribuição de caráter verbal ao predicado complexo formado – e (b) o elemento nominal é o principal responsável pela definição do sentido global da perífrase. Ocorre apenas que a unidade compósita “Vsuporte fazer + elemento nominal” alcança, em estágio posterior ao da formação/expressão de predicado complexo, especialização semântica, passando a representar uma extensão de sentido idiomática e a ser armazenada e descrita no léxico. Nesse sentido, entende-se que unidades semânticosintáticas gramaticalmente formadas por fazer podem submeter-se ao processo de lexicalização: ao perderem qualquer ligação com seu significado compósito e adquirirem conteúdo idiossincrático, unidades semântico-sintáticas, produtivamente derivadas de regras de formação/expressão, podem converter-se em unidades lexicais. O nível seguinte é o que reúne os predicados complexos cujo nome (substantivo ou adjetivo) incorporado não apresenta qualquer determinante ou modificador circunvizinho: (i) os constituídos a partir de predicados nominais (cf. exs. 8, 9, 15 e 17), que tipicamente propiciam leitura incorporada por conta de sua nuance de “verbalidade”/dinamismo inerente, e (ii) os formados a partir de predicados adjetivais ou pseudo-termos (cf. exs. 10 e 11). Um outro nível detectado, que até se pode superpor ao anterior, é o que contém predicados complexos cujo predicado nominal integrado a fazer é antecedido de artigo indefinido (cf. ex. 18) e continua a ter referente não-identificável e não-específico. Esses dois níveis de estruturação de predicados 13 A estrutura monovalente foi a mais produtiva no corpus (principalmente, no da modalidade oral). complexos são exemplares da configuração prototípica da integração entre fazer e elemento não-verbal e da extensão semântico-sintática mais gramaticalizada de fazer (como Vsuporte). Ex. 17:“Assim também é o costume japonês de se livrar dos maus escritores, fazendo-lhes reverências.” (Jornal do Brasil, 25/03/1945, “Malicia oriental”) Ex. 18:“O sr. Beirão (...) declarou que tencionava fazer uma interpellação sobre alcoces (...)” (Jornal de Notícias, 16/01/1901, “Escaramuças”) As construções relacionadas aos níveis intermediários de coesão (graus 4 e 3, cf. MACHADO VIEIRA, 2001) representam subcategorias em que os sentidos/usos de Vpredicador e Vsuporte se sobrepõem, com menor ou maior intensidade, respectivamente. Ex. 19:“vamos fazer o aproveitamento da área da Rio-Santos” (NURC, 135) Ex. 20:“ela faz a feira junto com a minha tia” (NURC, 328) Partilham características que as relacionam à categoria de: Vpredicador, como, por exemplo, certo grau de identificabilidade devido à presença do artigo definido no primeiro caso (no nível 4, cf. ex. 19) e devido à natureza de termo não-pleno do constituinte incorporado, além do artigo, no segundo caso (no nível 3, cf. ex. 20); Vsuporte, como a dessemantização de fazer, a função classificatória do estado de coisas exercida pelo elemento nominal (predicado ou pseudo-termo) articulado a fazer e, apenas nos casos reunidos no nível 4, o sentido dinâmico/predicante do nome deverbal (cf. ex. 19). A flutuação de fazer entre as categorias de Vpredicador e Vsuporte intensifica-se nas construções consideradas nos níveis mais baixos de integração (graus 2 e 1). Ex. 21:“No cárcere, [José] fez duas previsões, que resultaram certas. Anunciou que, três dias mais tarde, o primeiro tornaria às suas funções. E (...)” (Jornal do Brasil,01/03/1945, “Quando a história não se repete”) Ex. 22:“Aos homens que dirigem os destinos do paiz, fazemos um apello sincero e sentido, para que se empehem no engrandecimento da patria comum.” (Jornal de Notícias, 01/01/1901, “Século Novo”) Os elementos não-verbais que integram as construções reunidas nesses níveis revelam maior grau de identificabilidade e especificidade, explicitado pela adjunção de modificador, e comportamento duvidoso quanto ao seu papel classificatório em relação ao verbo. Apesar de previsões e apello terem, no léxico, função predicante e, por conta disso, até poderem ser interpretados como atributos diferenciadores da ação/atividade geral expressa por fazer (“previu duas [coisas]” e “apelamos sinceramente (...)”), a estrutura fazer e elemento não-verbal, principalmente no caso do exemplo 22 (nível 1), já se assemelha muito mais à de Vpredicador (não-pleno) e complemento. Para atribuir função predicante a um elemento não-verbal input, o falante conta, então, com uma regra de formação que pode ser expressa, na língua portuguesa, mediante Vsuporte (operandum auxiliar/(quase) operador de verbalização). Regra de formação de predicado verbo-nominal/adjetival derivado: Input: predicado nominal (x1) ... (xn) [n ≥ 0] predicado adjetival (x1)∅ pseudo-termo { Verbalização [predicado nominal/adjetival ou pseudo-termo] }Predicado Verbal Complexo Regra de expressão de predicado verbo-nominal/adjetival derivado por meio de Vsuporte: { Vsuporte [predicado nominal/adjetival ou pseudo-termo] }Predicado Verbal Complexo Output: { FAZER [predicado nominal/adjetival ou pseudo-termo] }Predicado Verbal (x1)...(xn) [n ≥0] Quadro 2: Formação e expressão de predicado complexo mediante verbo-suporte. A formação de predicado complexo é um mecanismo do sistema. Fazer é um Vsuporte “default” de que o falante dispõe para formar construções alternativas às já existentes ou renovar o acervo lexical e que o falante emprega, com freqüência, para a verbalização de nomes (de natureza substantiva ou adjetiva). Atua à semelhança de um afixo formador de verbo. Reforça esse comportamento a observação de MARTINOT (1996) de que a criança aplica fazer como uma espécie de super-suporte toda vez que hesita porque não se lembra do Vsuporte apropriado para a atribuição de caráter verbal a determinada forma input ou a desconhece. Sua produtividade na língua e a natureza quase irrestrita do sujeito do predicado verbonominal/adjetival derivado e do elemento não-verbal sobre o qual opera contribuem para sua interpretação no âmbito da gramática. A opção por predicado complexo possibilita a codificação de um sentido, muitas vezes não obtido com uma forma verbal simples (“o rapaz ‘fez uma soldazinha’ e cobrou uma nota preta”); permite ao falante fazer remissão textual (cf. ex. 21), prescindir de complementação (“vou ‘fazer compras’ mais tarde”), evitar clítico (“os pais se queixam/‘fazem queixa’ da professora”), intensificar o nome predicante em vez da ação/atividade (“o barco fica sempre ‘fazendo muito movimento’/movimentando-se muito na água”) ou atribuir valor reiterativo ao predicado por meio da pluralização do nome (cf. exs. 15 e 17), entre outros efeitos discursivos. 3.3 Marcador causativo: operandum ou operador de causatividade Como marcador causativo, fazer codifica, em maior ou menor nível de auxiliarização (dependendo do tipo de estrutura que integre), “causalidade/causação” – a relação entre um evento-causador e um evento-causado/efeito. Uma forma de manifestar essa relação é a opção pela estrutura analítica que pode ter duas configurações básicas. (1a) Fazer + predicado verbal no subjuntivo (precedido de “(com) que”) ou no infinitivo Ex. 23: “(...) acho que já chega de fazer com que vocês contratem um traductor português para ajudarlhes a ler-me hoje.” (O Globo, 30/01/2000, “Estou mesmo em fanicos”) Ex. 24: “Esse negócio de a Globo, em suas novelas, fazer as mulheres gritarem como desesperadas na hora do parto mostra como os dentes de suas atrizes são bem tratados.” (Jornal do Brasil, 12/03/2000, “A verdade no cinema americano”) Ex. 25:“Pouco basta para alegrar os espiritos infantis. Um brinquedo, ainda que simples faz-lhes bailar os olhitos, inconscientemente ansiosos de beleza, um agasalho, que os conforte, far-lhes-há esquecer os ásperos frios cortantes, e um vestidinho, então, será a possibilidade de realizar o passeio ambicionado, a visita que interessa ou mesmo a ida à escola.” (O Século, 20/11/1922, “O Natal das crianças pobres”) Nos exemplos 23, 24 e 25, o complemento é uma predicação (um outro estado de coisas resultante da ação do argumento sujeito) que se explicita, sintaticamente, por meio de Vpredicador pleno nas formas finita ou não-finita. Existem, portanto, duas fontes de energia (primária e secundária) que dão origem a dois estados de coisas e entre as quais há interação direta, dois sujeitos: um Causador (agente) e outro Causado (sujeito da predicação sobre a qual fazer opera; participante ativo e diretamente afetado; ponto final da energia despendida pelo sujeito Causador), que pode ou não estar expresso. O objeto é apresentado como dinâmico, e não como estático conforme aparece na configuração básica de fazer. Desse modo, uma entidade animada (agente, ex. 23) ou inanimada (instrumento, ex. 25) é concebida como responsável por um evento, por fazer com que um sujeito secundário, o Causado, realize determinado evento ou se submeta a um estado de coisas. Concebe-se, nessa construção, que o processo expresso no infinitivo ou no subjuntivo não teria ocorrido sem a ação, de natureza factiva ou coercitiva, de um sujeito externo ao processo. A causação pode ser (a) intencional/agentiva, quando o sujeito (agente) intencionalmente causa um efeito (cf. ex. 23) ou (b) acidental, quando o sujeito (autor/responsável) causa sem intenção um efeito (cf. ex. 25). Fazer, nesses exemplos, mostra-se ainda fracamente descategorizado: oscila, nos exs. 23 e 24, entre a categoria de operandum primário/não-auxiliar (Vpredicador não-pleno) e a de operandum auxiliar causativo; ou exerce este papel, no ex. 25. Relaciona-se à primeira categoria pelo fato de que retém propriedades de Vpredicador, como por exemplo a de ser o principal responsável pela atribuição de papel temático ao(s) seu(s) argumento(s) e de que – diferentemente das construções com Vauxiliar, em que auxiliar e auxiliado apresentam identidade de sujeito – envolve dois sujeitos distintos (Causador e Causado). Liga-se à segunda pelos motivos a seguir: codifica valor semântico específico (a “causativização” do (sub)eventoefeito) com base numa estruturação relativamente regular; governa uma predicação, transladando-a à condição de “complemento da oração matriz”; e pode implicar um participante sujeito Causador inanimado sem qualquer controle sobre a ação. Não obstante, a adjunção de fazer à estrutura completiva pode assumir o grau máximo de integração que se nota em predicados complexos do tipo fazer morrer (por “matar”) ou fazer saber (por “anunciar”, “comunicar”), à semelhança do que ocorre em: Ex. 26:“(...) a ‘sala dos Cavaleiros’ com a sumptuosa baixela de mesa disposta aburguesadamente num grande aparador, com lampadas electricas intercaladas a fazerem realçar as peças de prata...” (Diário de Notícias, 11/03/1910, “Cousas & Lousas – Rico paiz...”) [fazer realçar ≅ realçar] Ex. 27:“Os técnico-administrativos fizeram ver aos presentes que os procuradores simplesmente ‘opinam’ pela suspensão em seu parecer; eles não ‘determinam’, como Vilhena grafou em seu comunicado à comunidade.” (Jornal da ADUFRJ, 13/08/2001, “Consumi confirma 26,05% dos funcionários”) [fazer ver ≅ mostrar] A não-marcação de número e pessoa do sujeito causado no verbo no infinitivo bem como a posição e a estruturação do argumento (x1) projetado pelo verbo no infinitivo – (i) após o predicado verbal complexo, nos exs. 26 e 27, e (ii) com a aparência de complemento direto, no ex. 26, ou complemento indireto preposicionado, no ex. 27 – são dois fatores que favorecem a interpretação de que há perda de autonomia da estrutura subordinada e, por conseguinte, um vínculo sintático e semântico entre fazer e o predicado verbal no infinitivo que gera comportamento compatível com o de “perífrase verbal” (operador causativo fazer + Vpredicador não-finito). Ressalte-se que a opção pelos Vpredicadores “realçar” ou “mostrar” nos exemplos 26 e 27 encaminharia uma leitura de “evento ativo” em relação ao argumento sujeito, e não apenas de “evento causativo”. A opção pelo complexo verbal para a expressão da causatividade acarreta ao evento-resultado certa descontinuidade espaço-temporal em relação à causa, ao evento-causa: o agente/causa só indiretamente, por meio de um sujeito Causado, tem contato com o participante afetado (“os [indivíduos] presentes” e “as peças de prata”). As construções citadas, principalmente 25, 26 e 27, exemplificam casos de predicados causativos derivados expressos analiticamente, que resultam da aplicação das regras a seguir: Regra de formação de predicado causativo derivado: Input: predicado verbal (x1) ... (xn) [n ≥ 0] {Causativização [predicado verbal]}Predicado Verbal Complexo → Significado: (x0) causa que (x1) pred. verbal ... (xn) Regra de expressão analítica de predicado causativo derivado: { OP de causatividade factiva/coercitiva [predicado verbal] }Predicado Verbal Complexo Output: { FAZER [predicado verbal] }Predicado Verbal (x0)Causador (x1)Causado ... (xn) [n ≥ 0] ⇓ “Os técnico-administrativos fizeram ver aos presentes que os procuradores simplesmente ‘opinam’ (...)” Input: VER (x1: os presentes) (x2: que os procuradores simplesmente ‘opinam’) {OP de causatividade factiva [VER]}Predicado Verbal Complexo Output: {FAZER [VER]}Predicado Verbal Complexo (x0: os técnico-administrativos)Causador (x1: os presentes)Causado (x2: [que os procuradores simplesmente ‘opinam’]) Quadro 3: Formação e expressão de predicado causativo complexo Conseqüências da aplicação dessas regras são a manutenção da natureza verbal no predicado resultante e a expansão da estrutura predicativa input em um argumento: o que representa a entidade Causadora (x0). À função semântica do argumento-sujeito (x1) da predicação primária/input se atribui a função de sujeito Causado. O predicado derivado é constituído de um OP de causatividade. Este pode ser expresso, na língua portuguesa, por “verbo semi-auxiliar ou auxiliar causativo” (OP causativo, operandum auxiliar ou operador causativo), conforme exemplos já citados, e ainda por outros expedientes lingüísticos14 segundo os quais a causatividade é sintética e morfologicamente expressa. Fazer relaciona-se, então, desde a predicados minimamente dependentes, cujas informações de pessoa, número, tempo, modo, aspecto são marcadas (os das construções finitas, graus 1 e 2), até a verbos altamente integrados (não-flexionados). 14 Um desses expedientes é o afixo causativo em exemplos como: liqüidificar (“tornar/fazer ficar líquido”), solidificar (“fazer ficar sólido”). Tendo em vista que ainda revela muitas características semelhantes às que tem como Vpredicador (pleno ou não), o operandum causativo fazer em estruturas como a do exemplo 23 é o que menos se distancia daquela categoria-fonte. Entretanto, a partir do momento em que opera sobre uma predicação no infinitivo, fazer pode ser interpretado como um elemento que se associa às categorias extremas da cadeia de gramaticalização (de Vpredicador a Vauxiliar), revelando-se mais nitidamente um OPcausativo. Em estruturas como a do exemplo 27, beira a de auxiliar típico, mostrando-se como um expediente da língua do qual o falante dispõe para focalizar a relação de causalidade num predicado (complexo) de natureza verbal, em que o participante Causado (x1) se manifesta à semelhança de argumento objeto indireto. Existem, entretanto, construções em que o item se situa no continuum entre as categorias de Vpredicador pleno e operador causativo. Nesse caso, configura-se como uma espécie de operandum auxiliar de causatividade, mais ou menos gramaticalizado a depender da predicação a que se alie. Fazer revela-se, portanto, um elemento do sistema que propicia, no predicado derivado, a marcação semântico-sintática de causatividade do predicado input (operandum): uma força/fonte externa de algum modo determina que o estado de coisas expresso na predicação input ocorra. Dois elementos contribuem para que se postule que fazer alcança o estatuto de elemento gramatical(izado), oscilando entre operandum (cf. exs. 23, 24 e 25) ou operador causativo (cf. exs. 26 e 27), quais sejam: (i) a natureza não-restrita do seu sujeito e do predicado verbal sobre o qual opera; e (ii) a produtividade com que o falante recorre a esse expediente lingüístico para codificar a causativização de um operandum não-auxiliar/primário (predicado verbal) e, assim, ressaltar o valor de causalidade deste. (2a) Fazer + elemento adjetival ou nominal Ex. 28:“(...) Os deuses que fazem os homens fanáticos nunca foram crianças, (...)” (Jornal de Notícias, 09/01/1955, “Meditação sobre os ‘autos pastoris’ portugueses”) “Portugal, a quem a religião fez grande, feliz e imortal nas crônicas de própria humanidade.” (Jornal do Brasil, 20/03/1935, “Sectarismo improdutivo”) [cf. ex. 10] Ex. 29:“Perguntado um ichtyologo sobre se as armações faziam mal aos pescadores, aquelle respondeu: “As valencianas não lhes fazem mal nenhum, somente os obrigam a ir pescar mais longe.” (Jornal de Notícias, 29/04/1903, “Águas cançadas”) Ex. 30:“(...) não é com esta solução colocando tijolinhos vermelhos fracos que se vai fazer uma reforma no Rio de Janeiro... ” (NURC, AC018-H3) Em exemplos como esses, fazer é muitas vezes tratado como um Vpredicador não-pleno em que se percebe significado ligado ao domínio semântico da causalidade (tornar, sentido focalizado em 28 e 10; acarretar ou produzir, em 29 e 30), ou seja, apenas como uma extensão de sentido do domínio-fonte de ação/causalidade. No entanto, assume-se aqui que fazer é, nesses exemplos, uma extensão sintático-semântica do predicado verbal primário (operandum não-auxiliar) a qual tem comportamento (semi-)auxiliar coincidente em maior ou menor grau, por um lado, com o de OPcausativo e, por outro, com o de Vsuporte. Pode-se interpretar fazer como um OPcausativo caso se pressuponha uma pequena oração, ou cláusula mínima, na qual o verbo está elíptico (em geral, verbo-cópula e/ou Vsuporte: ser, ficar, tornar-se, ter, haver), posto que é semanticamente absorvido por fazer (cf. GIRY-SCHNEIDER, 1986): (28) “fazem os homens ficarem/serem/tornarem-se fanáticos”; (10) “a quem a religião fez ficar/ser grande, feliz e imortal”; (29) “faziam os pescadores terem mal/faziam haver mal aos pescadores”; (30) “fazer haver uma reforma no Rio de Janeiro”. Nos exemplos 28 e 10, fazer, com valor semelhante ao de “tornar”, atua sobre um predicado adjetival que tem função atributiva/modificadora e predicante, projetando um argumento (x1)∅ (com papel semântico ∅, característico de predicados que exprimem atributo/situação), entidade primariamente envolvida num estado. Esse tipo de construção causativa explicita sintaticamente o subevento processo de mudança: conceptualiza o ingresso de uma entidade (in)animada em um novo estado. Essa transição tanto pode ser acarretada por uma entidade animada quanto por uma entidade inanimada. A predicação é equiparável a uma cláusula completa (com verbo no infinitivo ou subjuntivo), em que (x1)∅ concorda com o elemento adjetival. Esses fatores concorrem para que fazer tenha estatuto de OPcausativo. O argumento (x1)∅ manifesta-se à semelhança de sujeito (antes do elemento predicante), no exemplo 28, e de complemento (introduzido por preposição), no exemplo 10, numa construção em que o verbo “ser/ficar” seja explicitado. Enquanto aquela estruturação aproxima fazer da categoria de OPcausativo, esta o relaciona à de Vsuporte. Nos exs. 29 e 30, fazer, com valor semelhante ao de “causar, acarretar”, opera sobre um pseudo-termo (elemento nominal que não projeta estrutura argumental e que perde, parcial ou totalmente, seu caráter referencial) no primeiro caso e, no segundo, sobre um predicado nominal, que já conta no léxico com uma estrutura argumental que relaciona dois participantes. Por conta disso, vinculam-se ainda mais fortemente à categoria de Vsuporte. Diferentemente da estrutura dos exemplos 28 e 10, a estrutura “fazer + elemento nominal (+ complemento)” focaliza não o ingresso do objeto num novo estado, mas a maior proximidade entre o causador (única fonte de energia) e o resultado da mudança. O sujeito é apresentado como participante direto do processo verbal: não é apenas a causa, mas o executor ativo do processo ou da atividade. Representa, sob a estrutura de “cláusula mínima” ou, mais precisamente, sob a forma de uma expressão verbal complexa15, a causa e o efeito num só evento16. Sob a segunda forma de representação, fazer, nos exemplos 28, 10, 29 e 30, é categorizado como operandum/operador de verbalização de elemento nominal/adjetival, com 15 O predicado verbo-nominal/adjetival existente em cada um dos exemplos (de 28, 10, 29 e 30) pode ser até substituído por uma forma verbal simples, cognata ou não: fanatizar; engrandecer, alegrar ou felicitar; imortalizar; prejudicar; reformar. 16 Designa o controle exercido pelo sujeito principal sobre todo o evento, e não sobre uma segunda fonte de energia. valor causativo, que acarreta a formação de predicado complexo (verbo-nominal/adjetival) resultante de uma regra de formação e expressão lingüística específica, sintetizada no item 3.217. A opção por cada um dos tipos de construção causativa reflete uma maneira particular de estruturar a relação causa-efeito. Na estrutura causativa formada sintaticamente por uma predicação, o processo causador e o processo causado são construídos e interpretados como um único evento ao passo que, na estrutura formada por duas predicações, a “cena” é construída e interpretada como representação de dois eventos. 3.4 Elemento de coesão: de Vpredicador a marcador de “foricidade” O Vpredicador fazer (cf. exs. 3, 4 e 5) aproxima-se de uma espécie de pró-verbo ou “Vsubstituto de outro mais específico”, sujeitando-se a diversas leituras (cf. quadro 1). Principalmente nos exs. 3, 4 e 5 não tem papel tipicamente endofórico/exofórico, mantendo-se no domínio da atividade. Porém, ao dessemantizar-se ainda mais e adquirir esse papel, chega a exercer o papel de elemento coesivo e, por conseguinte, passa ao domínio da dêixis discursiva. Nessa condição, é freqüente que se relacione a outro item (cf. ex. 32) ou expressão (cf. ex. 33) que também tenha função fórica. A coesão pode ser estabelecida com predicações do texto (cf. exs. 31, 32 e 33) ou só com estados de coisas mais ou menos recuperáveis na situação sóciocomunicativa ou no “conhecimento de mundo” (cf. ex. 34). Ex. 31: “Que irá fazer Guterres? Para já apóia o ministro do Ambiente. Mas pode, à boa maneira de Pôncio Pilatos, deixar o assunto morrer no Parlamento e lavar as mãos (...)” (Diário de Notícias, 22/05/2000, “Co-incinerações”) Ex. 32: “Em saúde e educação é preciso investir para progredir. Quem está fazendo isso no Brasil?” (Jornal do Brasil, 10/03/00, “Gastar em saúde e educação”) Ex. 33: “O direito de existência é o direito supremo, aquelle de onde emanam todos os outros, e que todos os outros nada mais fazem do que consagrar, direito absolutamente inalienável.” (Jornal do Brasil, 13/07/1920, “Patriotismo, nacionalismo, nativismo”) Ex. 34: “(...) os “portugueses”, que não estarão a compreender a “mensagem” dos ministros ou não sabem ver o que o Governo está a fazer: o autismo político aproxima-se de um grau de não retorno.” (Diário de Notícias, 28/04/2000, “Incompreendidos”) É comum também que fazer se associe a uma expressão que, além de promover a recuperação de alguma informação extra-textual ou textual, imprima no enunciado caráter intensificador, como é o caso do ex. 33. Em estruturas interrogativas (conforme a do ex. 31), fazer comporta-se como uma espécie de hiperônimo que se relaciona a variados elementos verbais específicos, ou seja, à semelhança de Vpredicador, visto que, nessa condição, também assume diversos significados que dependem dos argumentos com que se articula (de suas propriedades semânticas e sintáticas) e do contexto discursivo-pragmático. 17 Gramaticaliza-se principalmente na construção em que é seguido de elemento nominal/adjetival não-flexionado e sem determinante ou modificador, pois tem comportamento de auxiliar, funcionando como Vsuporte (com ou sem valor causativo) e constituindo com ele um predicado complexo que tem sentido mais específico (“engrandecer/alegrar/imortalizar” e “prejudicar”, cf. exs. 10 e 29). O exemplo 30, ainda que constituído de elemento nominal com artigo, revela alto grau de integração com fazer, visto que o nome incorporado já tem função e estrutura predicante no léxico. Por possuir significado bastante genérico (idéia de ação/atividade), a unidade compósita fazer + elemento coesivo (uma espécie de pro-sintagma verbal ou pro-predicado) permite a remissão a diversos estados de coisas (mais ou menos recuperáveis no texto ou na situação comunicativa). Como revela comportamento textual particular (remissão a uma unidade informacional) e apresenta uma formulação relativamente fixa/previsível, fazer já não pertence à categoria lexical de Vpredicador, mas a uma categoria funcional com conteúdo discursivopragmático. É uma extensão de valor discursivo do Vpredicador pleno fazer decorrente da atuação sobre este de um fenômeno discursivo-pragmático de gramaticalização: do domínio da atividade passa ao domínio do discurso. Especializa-se em codificar a retomada/substituição de um estado de coisas particular (de caráter [+ dinâmico]). FAZER ⇔ Atividade ≅ A1 (A1 ): agir, realizar, proceder, executar, ... Vpredicador pleno (a1 B): criar, dar existência/forma a, construir, fabricar Sentido lexical básico Vpredicador (b A1 x): organizar, preparar, cozinhar, representar, freqüentar, cursar, ... Extensão semântica Pro-forma verbal (b X a1): significado estabelecido por informação textual e/ou situacional Extensão (semântico-)discursiva Conteúdo: coesão referencial Menor Grau de especialização funcional Maior A1 = noção geral de Atividade/Processo, concebida como cognitivamente fundamental a (quase) qualquer Verbo – domínio da atividade (física ou mental) de uma entidade B = Ação/Causalidade − domínio da criação/construção X = “Valor semântico variável”, sentido definido por informação situacional ou textual − domínio do discurso Quadro 4: Relação entre as categorias de Vpredicador (pleno ou não) e Marcador de foricidade. Nessa transferência categorial do mundo da atividade para o mundo da dêixis textual, há um estágio intermediário de ambigüidade (o de verbo substituto/vicário/pró-verbo), em que a expressão lingüística partilha, simultaneamente, propriedades de ambos os mundos (cf. ex. 31). Nesse nível, fazer tem comportamento, por um lado, próximo ao de Vpredicador e diferente de um elemento tipicamente fórico e, por outro, próximo ao de operandum/operador de foricidade, haja vista seu alto grau de dessemantização e a forte dependência de seu significado com relação a informações situacionais e textuais ativadas na interação comunicativa. 3.5 Operandum auxiliar temporal: de Vpredicador a marcador de tempo cronológico Existem ainda algumas construções impessoais em que fazer funciona como um elemento semi-gramaticalizado (operandum auxiliar temporal) que atua sobre sintagmas nominais com sentido cronológico para a indicação do somatório de tempo a partir de dois pontos – inicial e final – (cf. ex. 35) ou para a localização de um evento no eixo temporal (cf. ex. 36). Ex. 35: “Amanhã faz muitos anos que nasceu Joanita.” (Jornal do Brasil, 07/03/65, “História de Joanita”) Ex. 36:“(...) comprei uma mezinha faz mais de um mês (...)” (O Globo, 30/01/00, “Estou mesmo em fanicos”) Fazer assume com o SN temporal (que não tem papel de “objeto afetado”, como ocorre na estrutura de Vpredicador pleno) uma unidade semântica com significado específico (de “ter passado um determinado lapso de tempo, desde certo fato”). Tem estrutura sintática e semântica previsível. Só pode ser substituído por certos verbos de comportamento funcional semelhante (como ter e haver) ou a ele semanticamente relacionados (perfazer, completar, somar). Esse tipo de construção impessoal revela que fazer pertence a uma categoria funcional híbrida (“marcador temporal”), que reúne propriedades que o relacionam às categorias de Vpredicador (predicado verbal da cláusula que se apresenta em uma de suas extensões de sentido), marcador causativo e constituinte gramatical de expressão adverbial. Sua relação com a categoria de Vpredicador pauta-se em parâmetros, tais como: (a) a relação de complementação entre o SN com referência temporal e fazer18; e (b) a possibilidade de parentesco semântico entre fazer impessoal temporal e certas ocorrências de fazer pessoal com referência a operações aritméticas (“Amanhã Joanita faz/completa dezoito anos amanhã”). Sua caracterização como constituinte gramatical de expressão adverbial temporal baseiase nestes indícios: (a) na configuração sintática relativamente fixa desse tipo de construção (“fazer + expressão nominal indicadora de período de tempo (+ que)”); (b) na mobilidade dessa estrutura no enunciado; (c) no fato de fazer não admitir todas as formas de flexão de pessoa e número, ocorrendo na terceira pessoa e, de acordo com a norma culta padrão, no singular; e (d) na indicação de significado específico (tempo decorrido). Seu vínculo com a categoria de marcador causativo advém da nuança causativa que fazer mantém, haja vista o conceito de que “o tempo é um efeito acarretado por uma causa” e a afirmativa de GIRY-SCHNEIDER (1986) de que, nas estruturas impessoais com referência temporal, esse verbo pode ser concebido como uma espécie de operador causativo menos típico que incide, na estrutura semântica, sobre cláusulas mínimas com verbo existencial “haver” ou “ter”, absorvendo-o. Fazer associa-se semanticamente a uma força da natureza não-explícita, mas subentendida como causa, que não tem caráter [+ animado] e [+ agentivo]. Afasta-se, entretanto, da categoria de OPcausativo, entre outros motivos, porque se especializa na indicação de transcurso de tempo (e não na de causalidade) e não focaliza a relação entre evento-causador e evento-resultante, mas apenas este. 4. Considerações finais A pesquisa determina propriedades responsáveis pela expansão de sentido/uso de fazer. Revela que certas estratégias empregadas para expressão lingüística de efeitos comunicativos se regularizam e passam a integrar a gramática da língua portuguesa. Entre as estratégias para a expressão da causatividade de elementos (não-)verbais e da verbalização de elementos 18 À pergunta “Faz muito tempo/quanto tempo que Pedro publicou o livro?” é pertinente uma resposta em que haja somente o SN temporal, como “Uns três meses”. nominais/adjetivais, está a aplicação de verbo (quase) auxiliar fazer, verificada tanto no PB quanto no PE. Operações regulares de fazer (semi-)gramaticalizado sobre pseudo-termos, predicados ou predicações sob certas condições discursivo-pragmáticas, semânticas e/ou morfossintáticas geram predicados complexos, que correspondem a distintos graus de unicidade. Embora fazer não tenha, em muitos contextos, comportamento lexical ou gramatical nítido, certo é que, quanto mais atributos normalmente associados aos auxiliares apresenta, mais se aproxima da configuração prototípica de auxiliar. Ao ter suas propriedades de Vpredicador minimizadas, descategoriza-se e renova-se semântica e gramaticalmente, assumindo função de marcador de verbalização, causatividade, coesão textual (foricidade) ou referência temporal. 5. Referências bibliográficas BARON, Irène. & HERSLUND, Michael. (1998) Support verb constructions as predicate formation. In: OLBERTZ, H., HENGEVELD, K. & GARCÍA, J. S. (eds.) The structure of the Lexicon in Functional Grammar. Amsterdam: Benjamins. p. 90-116. DIK, Simon C. (1997). Theory of functional grammar. Ed. por K. Hengeveld. Berlin: Mounton de Gruyter. 2 v. GIRY-SCHNEIDER, Jacqueline. (1986) Les noms construits avec faire: complèments ou prédicats? In: GROSS, G. & VIVÈS, R. (orgs.) Langue Française: Sintaxe des noms, 69: 4963. Paris: Larousse. HEINE, Bernd et alii (1991) University of Chicago Press. Grammaticalization: a conceptual framework. Chicago: MACHADO VIEIRA, Marcia dos S. (2001) Sintaxe e semântica de predicações com verbo fazer. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras. 362 fl. mimeo. Tese de Doutorado em Língua Portuguesa. MARTINOT, Claire. (1996) Prédicats et supports chez un enfant de trois ans. In: IBRAHIM, Amr Helmy et alii (orgs.) Les supports. Paris: Larousse. p. 73-90 NEVES, M. Helena M. (2000) Gramática de usos do português. São Paulo: UNESP. TAYLOR, John R. (1995) Linguistic categorization: prototypes in linguistic theory. 2. ed. Oxford: Calderon Press.