Papel da Aprotinina na Estratégia Actual de Preservação do Sangue no Doente Cirúrgico Maria José Oliveira* * Assistente Hospitalar Graduada de Anestesiologia, H. S. João do Porto Revista SPA ‘ vol. 14 ‘ nº 2 ‘ Julho 2005 Aprotinina A aprotinina é um polipeptídeo composto por 58 aminoácidos, extraído do pulmão e do pâncreas do boi. Foi descoberta simultaneamente nos anos 30 por Kraut e Kunitz. Em 1959 foi comercializada com o nome de Trasylol® e utilizada como inibidor da tripsina nas pancreatites. O uso em cirurgia cardíaca teve início nos anos 60, na tentativa de diminuir a fibrinólise provocada pela circulação extracorporal (CEC), principal causadora, segundo se pensava na altura, da hemorragia pós operatória. Desde então a sua utilização tem sido estudada em outras áreas nomeadamente cirurgia hepática, vascular e ortopédica. plasmática, calicreína tecidular, plasmina, trombina, tripsina, elastase e uroquínase, o que faz com que a aprotinina, ao bloquear o receptor serina dessas proteases, actue sobre um vasto campo que se repercute na coagulação, fibrinólise e reacção inflamatória (fig1). Devido a esta ampla esfera de acção, e apesar de uma investigação muito extensa, o mecanismo pelo qual a aprotinina previne a coagulopatia não está completamente elucidado. No estado actual dos conhecimentos pensa-se que existirão vários mecanismos interrelacionados, o que não é difícil de aceitar dada a intrincada rede que liga o processo da coagulação, da fibrinólise e da inflamação e o jogo entre mediadores humorais e celulares. EFEITO ANTIFIBRINOLÍTICO FARMACODINÂMICA A aprotinina é um inibidor das proteases por bloqueio do receptor serina das mesmas. Forma complexos reversíveis inibindo a sua actividade de forma dose dependente. As proteases que possuem receptores serina na sua constituição integram vários sistemas enzimáticos, nomeadamente os da calicreína O efeito antifibrinolítico da aprotinina tem duas vertentes: inibição directa da plasmina e indirecta através da inibição da calicreína. Por este facto não está incluída no grupo dos antifibrinolíticos puros cuja acção se confina apenas à plasmina (11). A plasmina, enzima chave no processo de degradação da fibrina, provém da activação do seu Superfície estranha (negativamente carregada) Activação Factor XII (F. Hageman) Transformação Factor XI Factor XII Factor XII Activado CAPM CAPM Plasminogénio Factor XI Activado PréCalicreína Factor XII Activado CAPM CALICREÍNA Activador do Plasminogénio PLASMINA Pré-renina Renina Trombina CAPM Sistema da Coagulação Bradicinina Cininas (inflamação) C1 Sistema Angiotensina C1 Activo Sistema de Complemento Sistema Fibrinolítico percursor plasminogénio produzida por activadores endógenos denominados activadores do plasminogénio. Na prática clínica, a administração da aprotinina reduz a fibrinólise sobretudo pela inibição directa da plasmina. EFEITO NA FUNÇÃO PLAQUETÁRIA A aprotinina estabiliza a membrana plaquetária ao inibir as proteases serina (plasmina e calicreína), preserva os receptores plaquetários glicoproteína Ib, IIb, IIa e inibe a activação plaquetária provocada pela trombina nos receptores PAR-1 (protease activated receptor) das plaquetas (12). EFEITO NA RESPOSTA INFLAMATÓRIA A acção anti-inflamatória da aprotinina exercese em múltiplos pontos da cascata inflamatória: inibe a actividade da calicreína originando diminuição da bradicinina e da activação do complemento. Pode também produzir um efeito directo na activação da plasmina e regeneração do complemento. A aprotinina também inibe as citoquinas. Estudos in vitro e in vivo documentaram reduções da interleucina 6 (IL-6) e do factor da necrose tumoral α (TNF-α) (13-15). FARMACOCINÉTICA Administrada por via oral é inactivada no estômago, sendo por isso administrada por via endovenosa. A aprotinina é distribuída rapidamente para o compartimento extracelular após administração endovenosa. A concentração plasmática do fármaco diminui de forma bifásica com semi-vida de distribuição e eliminação de 0,32 a 0,5 horas para a primeira fase e de 5 a 8 horas para a segunda fase (16). A aprotinina é filtrada livremente pelos glomérulos renais sendo, reabsorvida de forma activa nos túbulos proximais onde é metabolizada gradualmente pelas enzimas lisossómicas (11). Nos doentes com insuficiência renal crónica, a sua depuração está reduzida e a semi-vida está aumentada, com consequente eliminação mais lenta. Apesar da inexistência de via de eliminação alternativa (só menos de 10% tem degradação extra-renal), a aprotinina não é nefrotóxica como têm demonstrado estudos em animais e no homem (17,18). A actividade da aprotinina é expressa em UICUnidades Inactivadoras da Calicreína. Uma UIC corresponde à quantidade de aprotinina que in vitro diminui em 50% a actividade de duas unidades biológicas de calicreína. Na sua forma comercial (Trasylol®),1mg de aprotinina equivale a 7,14 UIC. O frasco ampola de 50ml contém contém 70 mg de aprotinina i.e. 500.000 UIC. USO TERAPÊUTICO Cirurgia Cardíaca É a área onde tem sido mais extensivamente estudada e utilizada, o que não surpreende dado que neste tipo de cirurgia o risco hemorrágico é particularmente elevado. Para isso contribuem factores relacionados com o doente como seja o tratamento em curso com anticoagulantes, a insuficiência cardíaca direita, as cardiopatias cianóticas e factores relacionados com a técnica cirúrgica, entre os quais se salienta o recurso à CEC que pode provocar destruição mecânica dos factores de coagulação, disfunção plaquetária, trombocitopenia, inactivação incompleta da heparina, fibrinólise e reacção inflamatória (13,14). O trabalho publicado em 1987 por Royston contribuiu de forma decisiva para o conhecimento e uso da aprotinina na área da cirurgia cardíaca corroborando a hipótese já delineada por outros que a aprotinina tinha um efeito na poupança de sangue (19). A eficácia clínica da aprotinina quanto à redução da quantidade total de sangue gasto e à menor proporção dos doentes que necessitam de transfusões está comprovada em numerosos estudos de metaanálise randomizados multicêntricos (20-22). Cirurgia Não Cardíaca CIRURGIA HEPÁTICA A utilização da aprotinina no transplante hepático foi descrita quase concomitantemente à da cirurgia cardíaca. Também nesta área a hemorragia é de natureza multifactorial, concorrendo factores de natureza cirúrgica, desequilíbrio dos factores de coagulação, fibrinólise e libertação de substâncias Revista SPA ‘ vol. 14 ‘ nº 2 ‘ Julho 2005 vasodilatadoras como a bradicinina. O controlo intraoperatório da hemostase no transplante hepático, sendo essencial para o êxito do procedimento, justifica a utilização de adjuvantes farmacológicos entre os quais se incluiu a aprotinina. No entanto, nem todos os estudos iniciais demonstraram benefício, provavelmente pelas pelas baixas doses usadas e pela técnica cirúrgica utilizada (23). Estudos subsequentes, demonstraram uma redução na perda de sangue intraoperatória e na quantidade total de sangue gasto, com reduções de 37% da necessidade de transfusões de sangue quando é utilizada a dose alta e de 20% com a dose média (24,25). A sua utilidade foi também demonstrada em doentes submetidos a ressecção hepática por tumores malignos primários, metástases e tumores benignos do fígado em que se verificou uma redução significativa do número de transfusões (26). Além do efeito «pró-hemostático», a aprotinina parece ter um efeito estabilizador da hemodinâmica, especialmente depois da reperfusão do fígado transplantado, com redução da dose das aminas simpáticomiméticas o que foi explicado pela actividade anticalicreína da aprotinina (27). Para alguns investigadores, depois de demonstrada a sua eficácia em cirurgia hepática, a sua utilização no traumatizado hepático é uma progressão natural da utilização da aprotinina. CIRURGIA ORTOPÉDICA A cirurgia ortopédica é uma área onde se verificam perdas hemorrágicas acentuadas nomeadamente na cirurgia do joelho, anca ou coluna. A utilização de metilmetacrilato, um dos componentes principais do cimento ósseo, contribui para a activação local e sistémica da coagulação no per-operatório, com activação da fibrinólise. Perante estes factores, a poupança de sangue reportada em cirurgia cardíaca tornou a aprotinina muito atractiva nesta especialidade. A investigação levada a cabo nesta área forneceu resultados aparentemente contraditórios. Alguns trabalhos não mostraram benefícios consistentes na redução da necessidade de transfusões sanguíneas tendo outros trabalhos demonstrado o contrário (2831).A necessidade de recurso a terapêuticas alternativas para poupança de sangue em cirurgia ortopédica major obrigou a mais estudos tendo em consideração a dose de aprotinina e o risco/benefício da sua administração (32). Actualmente recomenda-se a utilização em cirurgias ortopédicas como a artroplastia total da anca com articulação infectada ou invadida por tumor, cirurgia do joelho e escoliose idiopática sendo preconizadas doses elevadas (33, 34). Em estudos randomizados, duplamente cegos, foi demonstrado que a aprotinina reduz o número de unidades de sangue administradas em cerca de um terço (35). Em síntese, segundo a vasta literatura relacionada com esta especialidade cirúrgica, e à semelhança das outras especialidades, quanto maior for o risco hemorrágico maior é a utilidade da aprotinina. CIRURGIA VASCULAR E CIRURGIA TORÁCICA NÃO CARDÍACA A cirurgia de aneurismas e de dissecções da aorta são o paradigma da utilização da aprotinina em cirurgia vascular. São cirurgias em que existe possibilidade de grandes perdas de sangue por vezes camufladas por um babar constante no campo operatório, sendo acompanhadas por deterioração subtil do estado hemodinâmico do doente, um aspecto ensanguentado das compressas cirúrgicas e sucção contínua efectuada pelos aspiradores cirúrgicos. Apesar de pouco exuberante, este tipo de hemorragia com carácter insidioso, pode originar perda abundante de sangue e ser simultaneamente consumidor de tempo cirúrgico, obrigando à aspiração constante do campo operatório, à hemostase por compressão (com consequente trauma dos elementos figurados do sangue e das proteínas da cascata da coagulação), activação de contacto e espoliação dos factores de coagulação. A utilização de aprotinina também tem sido recomendada em cirurgia vascular periférica (36). O custo/benefício nestes casos deverá ser ponderado uma vez que a sua utilização se justifica se o volume de sangue previsível ultrapassar as três unidades, se o doente apresentar patologia grave associada ou se for do foro oncológico. CIRURGIA PULMONAR A hemorragia associada à cirurgia pulmonar geralmente não é severa. No entanto, pode constituir um problema grave na doença pulmonar ou pleural inflamatória, descorticações, re-toracotomias por tumores recorrentes e nos transplantes pulmonares. Dois estudos randomizados demonstraram a redução em 50% das necessidades transfusionais (37, 38). APROTININA NO TRAUMA CIRURGIA ONCOLÓGICA No trauma, a anemia, hipotermia, acidose, hiperfibrinólise e a hemodiluição subjacentes, provocam uma coagulopatia complexa de natureza multifactorial. Não constituindo uma verdadeira coagulação intravascular disseminada, a coagulopatia de consumo induzida pela exposição do sangue induz efeitos semelhantes, activando a cascata da coagulação e o sistema fibrinolítico e originando consumo e degradação das plaquetas e dos factores de coagulação. Os agentes antifibrinolíticos têm neste caso um potencial de acção a considerar. A utilização da aprotinina no doente politraumatizado constitui um tema actual de investigação e debate. Até à data, existe um único estudo controlado e randomizado sobre os efeitos dos agentes antifibrinolíticos no grande trauma (39). Tem sido documentada a utilização da aprotinina em cirurgias do foro neoplásico, agressivas, como ressecção de metástases hepáticas de tumores colo-rectais, tumores pancreáticos, ressecção de carcinoma esofágico e em cirurgias em que há possibilidade de libertação de enzimas de actividade fibrinolítica como em algumas cirurgias urológicas e ginecológicas (46-51). NEUROCIRURGIA A maior parte das intervenções cirúrgicas de neurocirurgia podem ser efectuadas sem o recurso a transfusões sanguíneas. No entanto, os riscos de hemorragia intra e pós-operatória constituem um problema muito grave o que faz com que sejam requeridos meios efectivos de controlo. A aprotinina está indicada como estratégia farmacológica ao permitir ultrapassar uma crise hemorrágica não prevista (embora o seu efeito quando utilizada profilaticamente seja mais eficaz), ou logo no início da cirurgia em doentes seleccionados como por exemplo nas cirurgias para exérese de meningioma, tumores da base do crânio e tumores para-sagitais. O seu uso será também de considerar nos doentes medicados com aspirina ou anti-inflamatórios cuja cirurgia não possa ser deferida para um prazo aceitável, em doentes com história de diátese hemorrágica e nos doentes testemunhas de Jeová. Está também indicada em doentes pediátricos com grandes tumores (40). Trabalhos efectuados para avaliação da hemorragia peri-operatória após utilização da aprotinina em doentes submetidos a cirurgia cardíaca com CEC, demonstraram paralelamente redução significativa de acidentes vasculares cerebrais e da morbilidade neuropsicológica e neurológica (41-43). Esta evidência circunstancial fez despoletar o interesse pela sua u t i l i z a ç ã o e m n e u ro c i r u r g i a . O s e fe i t o s neuroprotectores parecem ser devidos à acção antiinflamatória (44-45). Via de Administração, Tolerância, Doses e Segurança A administração de aprotinina deve ser realizada através de cateter de grosso calibre. Não tem necessariamente de ser cateter venoso central. Em geral é bem tolerada no adulto e em crianças. Como se trata de uma proteína, podem surgir reacções alérgicas (≤0,1-0,6%) que são mais frequentes em doentes com exposição anterior ao fármaco, sobretudo se esta decorreu há menos de 6 meses, situando-se então a sua incidência entre 5-10% (52). Para despiste precoce das reacções alérgicas é aconselhável efectuar uma dose teste de 1ml, 10 minutos antes de administração da dose total. A dose teste deve ser efectuada cerca de 5 minutos depois de qualquer medicação dada ao doente, de modo a impedir a confusão com qualquer reacção provocada pelo agente administrado previamente. A dose de carga deve ser efectuada de preferência antes do início da incisão cirúrgica, durante um período de cerca de 20 a 30 minutos para que se tire partido de todo o seu efeito (19). A aprotinina tem sido usada em diferentes regimes de dosagens. Inicialmente foi usada em doses mais baixas sendo os seus efeitos menos satisfatórios. Royston debruçou-se no estudo de doses adequadas em cirurgia cardíaca tendo preconizado a administração de uma dose de carga, seguida de uma dose em infusão contínua para manter a concentração plasmática de aprotinina em valores relativamente constantes (esquema de Hammersmith) (19). A concentração plasmática da aprotinina necessária para inibir a actividade de calicreína é de 200 UIC/ml e de 50 UIC/ml para inibir a actividade da plasmina, valores que se obtêm quando é efectuado o regime de dose alta. No intuito de redução dos custos, têm sido estudadas doses mais baixas tendo-se concluído que a redução em 50% do regime de dose alta é também Revista SPA ‘ vol. 14 ‘ nº 2 ‘ Julho 2005 eficaz na maioria das cirurgias (16) - Quadro1. Cirurgia cardíaca com C.E.C. - Adulto Regime Dose Teste Bolus de Carga Infusão Contínua No Priming Dose Alta Dose Média 1 ml 1 ml 2.000.000 UIC280mg em 20-30 minutos 2.000.000 UIC em 20-30 minutos _ 2.000.000 UIC 2.000.000 UIC No adulto, as doses preconizadas nos doentes submetidos a Cirurgia Cardiaca sem C.E.C. são as constantes do Quadro II. Neste caso a Heparina a administrar consiste na dose recomendada para as cirurgias off pump - 100 a 150 U/Kg. Cirurgia cardíaca sem C.E.C. - Adulto Dose Teste 1 ml Bolus único 2 ml/KG ( 20.000 UIC/Kg ) Quadro II Em pediatria são usados esquemas baseados no peso - Quadro III. Cirurgia cardíaca com C.E.C. - Pediátrica Dose Teste Bolus de Carga No Priming Dose Alta Dose Média 1 ml 1 ml 30.000 UIC/KG 15.000 UIC/KG 30.000 UIC/KG 15.000 UIC/KG Quadro III No adulto também têm sido preconizados esquemas baseados no peso a fim de manter uma concentração plasmática mais constante (53,54) -Quadro IV. Cirurgia cardíaca com C.E.C. - Adulto Esquema de Acordo com o Peso Dose Teste Bolus de Carga Infusão contínua 1 ml 4ml/Kg ( 40.000UIC/Kg ou 5,6mg/Kg ) _ No Priming 4ml/Kg ( 40.000UIC/Kg ou 5,6mg/Kg ) Quadro IV Aprotinina em Cirurgia Não Cardíaca Regime Dose Alta Dose Média 1 ml 1 ml Bolus de Carga 2.000.000 UIC durante 20 minutos 1.000.000 UIC durante 20 minutos Infusão Contínua 500.000 UIC por hora 500.000 UIC por hora Dose Teste 500.000 UIC-70mg por hora durante toda a cir ur gia Quadro 1 Regime A dose de aprotinina aconselhada em cirurgia não cardiaca varia com o tipo de cirurgia a efectuar. Os valores indicados no Quadro V consistem em doses utilizadas mais frequentemente. Quadro V SEGURANÇA 1-Nefrotoxicidade-A eliminação renal da aprotinina levantou uma questão relacionada com o seu possível efeito nefrotóxico. A aprotinina origina aumento ténue da creatinina plasmática ( ≤ 0,5mg/dl), que volta aos níveis basais rapidamente. Estudos controlados por placebo não demonstraram aumento na incidência de disfunção renal pós-operatória estatisticamente ou clinicamente significativa (55,56). O aumento reversível e transitório da creatinina plasmática está relacionado com a dose administrada, o que leva alguns autores a preconizarem a redução para metade da dose (nos casos em que utilizam o regime de dose alta) em doentes com risco de disfunção renal, com diabetes mellitus, insuficiência renal e nos que tomam cronicamente inibidores da enzima de conversão ou nos que vão ser submetidos a hipotermia profunda (11). 2-Tromboembolismo- Estudos sobre a eficácia da aprotinina na diminuição da hemorragia em doentes submetidos a reoperações de by pass coronário geraram controvérsia provocada pelo aumento de oclusões dos enxertos e de enfarte de miocárdio peroperatório (57). Apesar de não serem estatisticamente significativos, estes dados levantaram problemas de segurança que obrigaram a estudos prospectivos com vista ao esclarecimento destes resultados, não tendo sido confirmada maior incidência de enfarte ou oclusão de enxertos nos doentes tratados com aprotinina (58, 59). Estudos in vitro têm avaliado a acção da aprotinina sobre as plaquetas, constatando que se comporta como um inibidor da activação plaquetária sugerindo um efeito antitrombótico (12,60). Foi equacionado o risco de tromboembolismo venoso em doentes ortopédicos apesar da manutenção da profilaxia habitual com heparina de baixo peso molecular. Num estudo multicêntrico, prospectivo, duplamente cego efectuado para avaliar o risco benefício das doses altas versus doses baixas de aprotinina em grande cirurgia ortopédica, foi efectuada venografia ascendente bilateral sistematicamente no 3º dia do pós-operatório não se tendo verificado aumento de trombose venosa profunda nem do embolismo pulmonar no grupo tratado com aprotinina (35). A ocorrência de acidentes tromboembólicos em doentes transplantados hepáticos veio, de igual modo, levantar esta questão. Contudo, até à data, nenhum estudo randomizado mostrou diferença significativa entre grupos em que foi ou não utilizada a aprotinina (61). Qualquer que seja a área cirúrgica a utilização da aprotinina não faz prescindir da profilaxia do tromboembolismo que deverá ser efectuada como está indicada para esse tipo de cirurgia e de doente. 3-Aprotinina e Tempo de Coagulação Activado - A aprotinina prolonga o tempo de coagulação activado (ACT) quando a activação de contacto é efectuada por meio de celite, podendo mascarar níveis de heparinização inadequados. Se esta análise se efectua com activação por meio de caulino não se dá esta interferência. Durante a cirurgia cardíaca em que se avaliam periodicamente os níveis de heparinização através do valor de ACT pelo Hemochron, é imprescindível que se tenha este facto em conta. Em cirurgia com CEC, se são usados tubos com caolino, o ACT≥450 está adequado. No caso de tubos com celite, o valor recomendado é ACT≥750 (11,62). No caso de cirurgia cardíaca off pump, os valores de ACT também terão de ser considerados conforme o reagente. São aconselhados ≥250 se usados tubos com caolino e ≥470 para os tubos de celite (63). Custo / Benefício Apesar de ser consensual que o fármaco é efectivo na redução da hemorragia, o seu preço tem levado a utilizar outros fármacos mais baratos, como a ácido tranexámico e o ácido épsilon aminocaproico. No entanto, tem sido demonstrado que a aprotinina é mais efectiva na redução das necessidades transfusionais, não acarreta o problema de efeitos pró-trombóticos e tem efeito anti-inflamatório, características que os antifibrinolíticos puros não possuem (10,64) . A avaliação dos resultados após terapêutica com aprotinina tem sido estudada em todas as áreas onde é utilizada (65,66). Em muitos casos não incide apenas na poupança de sangue e suas consequências, analisando-se o impacto noutras vertentes, como é o caso de estudos em que é avaliada a redução do tempo de ventilação no pós-operatório em cirurgia cardíaca pediátrica e da redução da necessidade de vasopressores nos doentes transplantados hepáticos (67-69). Ao ser equacionado o problema do custo, todos os autores são unânimes em referir que terá de se levar em linha de conta o custo do fármaco, os custos inerentes ás unidades de sangue (englobando todo o processo até à administração ao doente) e os custos relacionados com morbilidade e mortalidade da área cirúrgica em causa. A aprotinina revelou-se um fármaco altamente benéfico, melhorando os resultados do pós-operatório. No entanto, não pode ser considerada como uma panaceia para os problemas hemorrágicos ou como substituto de uma técnica cirúrgica cuidadosa. A estratégia de utilização será tanto mais optimizada quanto melhor se estabelecerem critérios para a sua utilização, identificando os doentes que beneficiam deste fármaco, quer devido à cirurgia espoliativa a que vão ser sujeitos quer à possibilidade de acidente vascular cerebral ou a outros factores a identificar em futuros trabalhos científicos. O papel da aprotinina, apesar da importância documentada, não estará no entanto confinado à economia de sangue. O conceito actual de que a resposta à agressão cirúrgica pode originar “uma excessiva resposta inflamatória tornando-se provavelmente a principal causa de muitos problemas no pós-operatório, nomeadamente dor, trombose e isquemia dos variados órgãos» abre um vasto campo de estudo encarando novas perspectivas na complexa interligação entre coagulação, processo inflamatório, neoplasia e polimorfismo genético(70,71). Segundo muitos autores o custo da aprotinina é provavelmente o aspecto que gera mais controvérsia. 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