UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE EDUCAÇÃO ELISABETH BUENO DE CAMARGO O pensamento musical e a prática docente: as demandas da contemporaneidade no ensino da música São Paulo 2007 0 ELISABETH BUENO DE CAMARGO O pensamento musical e a prática docente: as demandas da contemporaneidade no ensino da música Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em Educação, à Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, área de concentração Psicologia e Educação. orientadora: Profa Dra Rosa Iavelberg São Paulo 2007 1 ELISABETH BUENO DE CAMARGO O pensamento musical e a prática docente: as demandas da contemporaneidade no ensino da música Dissertação apresentada como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em Educação, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, área de concentração Psicologia e Educação. Aprovada em _______________________________________________ BANCA EXAMINADORA _____________________________________________________________________ Prof. Dr. Nílson José Machado Universidade de São Paulo – Faculdade de Educação – FEUSP _____________________________________________________________________ Profa Dra Mirtes Cristina Marins de Oliveira Faculdade Santa Marcelina – FASM 2 A meus pais, Camargo (in memoriam) e Neusa 3 AGRADECIMENTOS À Profa Dra Rosa Iavelberg, pela oportunidade, pela força e pelos ensinamentos. A meu marido, Pedro, pela preciosa ajuda e pelo apoio incansável. A meu filho, Felipe, pela compreensão, pela paciência e pelas horas roubadas. A meus pais, pelo amor, apoio incondicional e também pelos valiosos ensinamentos ao longo da vida A Eliana Fontana, minha primeira professora de música. Às queridas professoras Silvia e Cecília, que me apresentaram aos saberes e sabores da antropologia filosófica. Aos professores Nílson Machado e Mirtes Marins, pelas observações e críticas construtivas. A Eliana Pougy, pelas longas conversas e pelo grande incentivo. Aos professores, por me ajudarem a descobrir o que é ser professor. A meus alunos, por me ajudarem a redescobrir o que é ser professor. 4 RESUMO A presente dissertação propõe uma nova perspectiva de construção do conhecimento musical a partir de um olhar mais amplo para a própria música, com o intuito de buscar soluções para os desafios da prática pedagógica contemporânea. A dificuldade de sustentação da música nas escolas como conhecimento e a distância entre a música ensinada na escola e a consumida fora dela nos levaram a discutir as metodologias e tendências presentes na escola atual, percorrendo a evolução do conceito de música e seu papel na educação desde a Grécia Antiga, quando era considerada matéria especulativa e relacionada à metafísica. As relações entre música e aluno mediadas pelo professor e centradas na experiência criativa e pessoal passam pela concepção de inteligência, de conhecimento e novamente pela concepção de música. Quando esta deixa de ser um mero produto ou objeto e torna-se um âmbito, possibilita a interação e o encontro, conforme o pensamento do filósofo Alfonso López Quintás. Assim, este trabalho apresenta concepções e conceitos que, esperamos, possam enriquecer a prática pedagógica, considerando as demandas contemporâneas e o papel formativo da educação musical. Unitermos: educação musical, música, prática de ensino, antropologia filosófica, contemporaneidade. 5 ABSTRACT The present essay proposes a new perspective in developing musical knowledge from a wider view to music itself, aiming to search solutions to the challenge of a contemporary pedagogical practice. The difficulty of maintaining music as a source of knowledge and the gap between the music taught at school and the one available out of its premises led us to discuss methodologies and trends in present school system, ranging over the evolution of the concept of music and its role in education since ancient Greece., when it was considered a theoretical subject related to metaphysics. The connections between music and the student mediated by the teacher and centered in creative and personal experience go through the conception of intelligence, knowledge and, once more, the conception of music. When it stops being a mere product or object and becomes an ambit, a field of action, it enables the interaction and the meeting, according to the thought of the philosopher Alfonso López Quintás. Therefore, this essay introduces conceptions and concepts which we hope may enrich pedagogical practice, considering the contemporary demands and formative role of musical education. Keywords: music education, music, practice teaching, philosophical anthropology, contemporary nature. 6 A música nasceu livre e seu destino é conquistar a liberdade. Ferruccio Busoni 7 ÍNDICE 1. Introdução 10 1.1 Introdução ao problema .............................................................................................. 10 1.2. Em busca de novas concepções no ensino musical .................................................... 16 1.3. Justificativa ................................................................................................................ 18 2. A música na escola: metodologias e tendências 19 2.1. O panorama inicial: impasse ...................................................................................... 22 2.2. A educação musical nas escolas: propostas musicais a partir da década de 1930 ..... 25 3. A música como conhecimento: uma projeção histórica 29 3.1. A música na Antiga Grécia: a arte das musas ............................................................ 29 3.2. A música na Educação Escolástica: trivium e quadrivium na Idade Média .............. 36 3.3. A música e os ideais do Renascimento ...................................................................... 38 4. Música na contemporaneidade 41 4.1. Música hoje ................................................................................................................ 41 4.2. Música e contemporaneidade ..................................................................................... 42 4.3. Música: em busca de definições ................................................................................. 44 4.4. Falar em pós-moderno ............................................................................................... 50 4.5. O pós-moderno na música .......................................................................................... 52 4.6. A música pós-televisão .............................................................................................. 57 5. Música e educação 60 5.1. O contraponto entre a música e questões educativas eminentes ................................ 60 5.2. Saberes e sabores musicais ........................................................................................ 62 5.3. A teoria cognitivista na aula de música ..................................................................... 64 6. Concepção de inteligência 67 6.1. Uma abordagem dinâmica dos conceitos de inteligência .......................................... 67 6.2. Outras inteligências .................................................................................................... 69 6.3. Inteligência coletiva ................................................................................................... 70 7. Concepção de conhecimento 74 7.1. O conhecimento em rede ............................................................................................ 74 8. O conhecimento musical: revendo meios e conteúdos ............................................. 82 8.1. Grandes temas da educação musical sob uma nova ótica .......................................... 82 8.2. As novas tecnologias e sua aplicabilidade no ensino musical ................................... 90 8 8.3. A criação musical no contexto pedagógico ................................................................ 97 9. Uma visão antropológica e filosófica da arte musical .............................................. 101 9.1. Filosofia e arte ............................................................................................................ 101 9.2 Âmbitos ....................................................................................................................... 111 9.3. Encontro: entrelaçamento de âmbitos ........................................................................ 114 9.4. A arte como possibilidade de encontro com a realidade ............................................ 115 10. Considerações finais .................................................................................................. 118 11. Bibliografia ................................................................................................................ 122 9 1. Introdução 1.1. Introdução ao problema Como produto final que conhecemos, a música faz parte da vida cotidiana, mas, à medida que esse “produto” se torna mais acessível e, portanto mais próximo das pessoas, paradoxalmente, aumenta a dificuldade de sustentação da música nas escolas enquanto conhecimento. Entre outras razões, isso acontece porque essa acessibilidade não garante pleno usufruto ou participação ativa na produção artística musical. Há uma dicotomia entre a música ensinada na escola e a consumida fora dela. A educação artística musical é encarada por muitos alunos como algo penoso, desinteressante e desnecessário, ao passo que, fora da escola, concebe-se como fonte de prazer e interesse. Embora essa constatação não seja exclusiva dessa disciplina, encarar essa situação é o primeiro passo em direção a uma transformação no que tange à música na escola. Não se pretende aqui propor uma metodologia, mas lançar um novo olhar sobre o processo de ensino e aprendizagem musical, com foco na construção de conhecimento e no desenvolvimento de valores, atitudes e habilidades que permitam ao educando melhor compreender, apreender, tornar-se competente e crítico. Por muito tempo, a educação musical pautou-se na repetição e na memorização de conteúdos, partindo as propostas de trabalho exclusivamente das escolhas e do conhecimento do professor. Embora sejam indiscutíveis o papel do professor em sua sala de aula e sua responsabilidade pedagógica quanto à escolha das informações e às abordagens do conhecimento, devemos considerar também que a grande quantidade de informações e produções artísticas nos leva a questionar a existência de respostas únicas e certezas absolutas – é humanamente impossível um indivíduo reter sozinho e se apropriar dos conhecimentos acumulados durante algumas centenas de anos e ainda dar conta do fluxo de novos conhecimentos. Segundo alguns autores, o cotidiano pós-moderno se caracteriza pela fragmentação, superficialidade e velocidade das informações. As circunstâncias contemporâneas – como as aceleradas mudanças sociais, a globalização, as novas tecnologias e a crescente oferta da música nos veículos de informação – fizeram com que a música da escola, baseada em 10 métodos e repertórios tradicionais, soasse aos ouvidos das novas gerações como inadequada e obsoleta. Tocar ou cantar melodias como Frère Jacques, Marcha, soldado, Cai, cai, balão é quase um insulto para alunos a partir do 2º ano do ensino fundamental. Eles são consumidores de uma música muito mais atraente, que inclui poucas canções antigas. Nos métodos tradicionais, os conteúdos são encadeados de acordo com seu nível de dificuldade e, assim, por sua complexidade, a música erudita e a música popular mais elaborada não são incluídas no repertório de performance. Quando muito, são apenas apreciadas ou acompanhadas por instrumentos de percussão de fácil execução. Tocar um tema de filme ou novela, por exemplo, é privilégio restrito aos mais avançados, pois exige um certo nível técnico de performance e conhecimentos teóricos como armadura de clave e fluência na leitura das notas. Assim, a música desejada está geralmente fora do alcance técnico do aluno, e a que ele pode tocar não atende à sua expectativa estética, desmotivando-o. O aluno que conquista esse repertório é aquele que aprende por conta própria ou em cursos extracurriculares. A esse respeito, observa Amaral (Amaral, 1991:17): “Toda a história da educação representa uma dinâmica expansão de oportunidades e metodologias adequadas ao interesse do maior número possível de estudantes. Entretanto, tratando de educação musical, verifica-se um exagerado apego ao tradicionalismo do ensino, quer teórico, quer instrumental.” Estaria a perpetuação dos métodos tradicionais ligada à falta de pesquisas experimentais na pedagogia musical? Podemos afirmar que não. Nos últimos anos, vários pesquisadores, inclusive alguns não diretamente ligados à educação musical, vêm discutindo e refletindo sobre o assunto. Mas, por alguma razão, essas pesquisas – acessíveis em livros, teses ou debates – não chegam ao professor, ou, quando chegam, não o atingem a ponto de promover uma revitalização de seus métodos e concepções didático-musicais. Um dos objetivos e desafios deste estudo é, então, atingir e sensibilizar esses professores. Alem disso, na modernidade, vimos surgir a especialização e o aprofundamento dos saberes, assim como sua conseqüente fragmentação, que isola os objetos para melhor conhecê-los. Como um desses fragmentos, a música ganhou e perdeu com a especialização, se a considerarmos o contexto escolar. À medida que o estudo se tornou mais direcionado e, portanto, mais profundo, desenvolveram-se e evoluíram áreas como, por exemplo, a 11 musicologia, a semiótica, a regência e a técnica vocal, mas ainda não se pode dizer o mesmo sobre a educação musical. A limitação imposta aos conteúdos e aos procedimentos didáticos – encarados como fins em si mesmos – tem contribuído para que a música perca a identidade e a legitimidade na educação formal. Os valores atribuídos ao ensino musical reforçados pela mídia perdem-se no utilitarismo e na prática destituída de significado. Não é raro que estudos “comprovem” que a música favorece o raciocínio matemático ou a coordenação motora, que a concentração melhora com a prática musical, que tocar um instrumento aumenta a inteligência e assim por diante. Sem entrar-lhes no mérito, essas afirmações, quer como objetivos, quer como justificativas para o ensino musical, enfraquecem e descaracterizam o papel formador da música. Ensinar música não se resume a ensinar a cantar ou a tocar, e benefícios como os mencionados não são exclusivos do ensino musical. Nesse sentido, é ponto pacífico entre os educadores musicais a necessidade de um remapeamento dos saberes musicais. Revisar conceitos e concepções arraigadas na pedagogia musical nos permitirá melhor compreender e articular o ensino e a aprendizagem em música num contexto contemporâneo, e isso implica também lançar um novo olhar sobre os conteúdos vislumbrando novas possibilidades educativas. Para desenvolver esta reflexão, trilharemos nosso caminho a partir da figura do professor de música, pois, em última análise, ele é o grande responsável pelas decisões pedagógicas em música – inclusive a estrutura curricular, o planejamento e as seqüências didáticas1 –, quando atribui ou não ao conhecimento musical significado, validade e utilidade, três aspectos indispensáveis a qualquer conteúdo educacional. Além desses, para que o professor possa realmente construir novos paradigmas para a educação musical, é indispensável que se discutam: • a concepção de música: elaboração de um conceito contemporâneo de música, tendo em vista sua natureza ontológica e a abrangência do conhecimento musical; • a concepção de inteligência e suas implicações na atividade docente; 1 A instituição escolar pouco exige ou interfere na seleção dos conteúdos musicais, limitando-se em geral a requerer uma apresentação musical em que parte dos alunos sejam preparados e dirigidos pelo professor de música, muitas vezes restrita ao sentido performático, festivo e até econômico. 12 • o conhecimento em rede, que se contrapõe ao conhecimento linear e sobreposto, considerando-se a natureza sincrética do pensar humano; • o conhecimento musical e seus conteúdos, revisitando os grandes temas da educação musical como história da música, o ensino de instrumento e canto, a notação e a teoria musical, discutindo sua significação, validade e utilidade; • o uso das novas tecnologias e sua aplicabilidade no ensino musical; • uma visão antropológica e filosófica da arte musical, entendida como possibilidade de encontro com a realidade; • o prazer da descoberta artística e suas implicações filosóficas e estéticas; Apresentados esses pontos, vejamos resumidamente sua relevância e como serão desenvolvidos aqui. Em nossa prática pedagógica como formadora, capacitadora e assessora em arteeducação, concluímos que a concepção de música afeta diretamente a atuação profissional do professor de música. Muitos autores falam numa crise na educação musical2, apontando, entre muitas, falhas como a formação deficitária do professor, a política educacional passiva e a deslegitimação da música como linguagem. Esses mesmos autores propuseram uma série de diretrizes e ações educativas, que muitas vezes não passavam de paliativos, chegando a mascarar os sintomas de conflitos mais profundos. Pouco se pesquisou ou discutiu a raiz do problema, cujas principais ramificações, para nós, são a concepção de música, a concepção de conhecimento em música e, podemos dizer, a própria concepção de professor de música3. Depois de conceituar e definir nosso objeto de estudo, apresentamos as razões pelas quais acreditamos que a música deve ser ensinada sob nova perspectiva. Para isso, não seria suficiente redefinir as origens conceituais do conhecimento musical, mas aquilo que entendemos hoje por inteligência, tanto individual quanto coletiva. A idéia de uma inteligência mensurável (obtida, por exemplo, em testes de QI) é encarada atualmente com 2 Penna classifica o ensino musical como uma situação de emergência (1990: 72); Swanwick afirma que a educação musical não é problemática até que esteja no contexto escolar, onde passa a considerá-la como subcultura da música na escola (2003: 50); para Souza, a situação da aula de música nas escolas, quando não ausente, é catastrófica. (2002: 20) 3 Muitas vezes, ao me apresentar como professora de música, logo me perguntam que instrumento eu ensino, e, quando respondo “nenhum”, algumas pessoas ficam chocadas. Esse é um exemplo muito claro da concepção vigente de música, de conteúdo musical e de professor de música. 13 maior desconfiança, ao passo que a perspectiva de haverem competências ou inteligências múltiplas começa a ter mais sentido para os educadores, trazendo outra visão sobre a formação e a ação da inteligência e para a discussão mais ampla da epistemologia. Ainda dentro dessa questão e a partir da constatação de que existe uma inteligência coletiva, pretendemos discutir os saberes característicos de nossa sociedade imanentes da contemporaneidade. Considerar a inteligência humana sob esse ângulo permite entendermos o conhecimento como um conjunto de saberes a valorizar em diversos níveis, que não pode ser simplesmente transferido de uma pessoa para outra. Tomando cada uma como um complexo de vivências, preferências, crenças e valores construídos na interação com o ambiente, é forçoso admitir que há uma aprendizagem que ocorre fora dos muros da escola, onde dialoga com outros saberes. Para falar sobre a inteligência coletiva, o espectro das inteligências e as inteligências múltiplas, utilizaremos como referência teórica as considerações de Jean Piaget, Pierre Levy, Nílson José Machado e Howard Gardner. Olhando a questão a partir do professor, propomos uma revisão nos conceitos de conhecimento em música e de inteligência, construindo esse conhecimento desde competências individuais e coletivas. Depois, seguimos para uma revisão conceitual a partir do aluno, tendo em vista as características da sociedade contemporânea. Nesse sentido, desenvolvemos também a idéia de Machado4 do conhecimento em rede, que atende nossos anseios quanto à demanda educacional do atual contexto social e cultural e está mais próximo das necessidades e da realidade do educando. Dedicamos ainda um capítulo ao conhecimento musical e seus conteúdos, principalmente aos chamados de grandes temas da educação musical, selecionados por sua relevância e larga utilização no contexto educacional, de que fazemos uma análise crítica com base no novo paradigma. Entre eles, a história da música, o ensino de instrumento e canto, a teoria e a notação musical. Quanto aos recursos, a demanda educativo-musical nos leva a considerar o emprego das novas tecnologias disponíveis como instrumentos didáticos e pedagógicos. Mergulhados num mundo globalizado e tecnológico por excelência, não podemos desconsiderar o uso desses meios não só como ferramentas a serem incorporadas ao arsenal do professor de 4 Nílson José Machado (2002: 31) Propõe uma noção que se veja o conhecimento sem hierarquias, mas “como uma rede de significações em um espaço de representações, uma teia de relações”. 14 música, mas também, e principalmente, como introdução dos conteúdos da contemporaneidade na escola. Interessa-nos discutir sobretudo a tecnologia musical como meio de produção de conhecimento, ou seja, a possibilidade de uma abordagem pedagógica contemporânea da fruição, da cognição e do conhecimento musicais que o computador e seus meios permitem. Depois, retomamos uma abordagem antropológico-filosófica da música, tendo em vista o encontro do homem com a arte, segundo o conceito de Alfonso Lópes Quintás. Consideraremos também os referenciais teóricos propostos pelo filósofo Josef Pieper, que justifica a proximidade da arte com a filosofia – inúteis, do ponto de vista utilitário, mas indispensáveis –, ambas caracterizadas pelo mirandum5 e pela busca do significado da existência humana. Assim, podemos considerar que o papel funcional da arte “encontra-se na idéia do conhecimento, onde o efeito é expresso como choque, como catarse”. (Tarkovski, 1990: 38) O pensamento quintasiano oferece um referencial teórico importante para enfrentarmos os questionamentos e desafios do homem contemporâneo no campo da educação e da estética. Seu método educativo considera a formação integral do ser humano a partir de descobertas significativas, as quais podem oferecer subsídios para a compreensão de si mesmo e da realidade em que se insere o homem. Sua contribuição envolve conceitos originais como âmbito e encontro. Para Quintás, o homem e as realidades que o cercam são âmbitos e não meros objetos. Nessa concepção, “âmbito é toda realidade dinâmica, aberta, capaz de estabelecer diálogo com outras realidades, originando novas e irredutíveis realidades.” (Brandão, 2003: 6) O encontro existe quando duas realidades (ou âmbitos) se entrelaçam e se enriquecem mutuamente. Tais conceitos ampliam nossa análise sobre música e ensino artístico e, por sua vertente antropológica, diversificam as possibilidades educativas. Finalizamos nosso estudo retornando ao ponto de partida, agora considerando a música desde uma visão mais abrangente − portanto, não mais objeto, mas âmbito música −, com possibilidades de transcendência e de encontro com a realidade. Pensamos que assim seja possível caminharmos das nossas reflexões e especulações até a sala de aula e a produção de conhecimento. 5 Segundo São Tomás de Aquino, citado por Josef Pieper, o filósofo se parece com o poeta porque ambos se ocupam do mirandum, ou seja daquilo que suscita o pasmo e o estupor. (Pieper, 1981: 6) 15 1.2. Em busca de novas concepções no ensino musical Propomos uma nova concepção em educação musical, que privilegia a pesquisa e a seleção de informações de modo que o conteúdo não seja mais visto como um fim em si mesmo, mas como um meio que possibilite o desenvolvimento integral do aluno. Diante disso, precisamos pensar de forma mais ampla, promovendo, além dos conhecimentos previamente estipulados, a competência pessoal relacional e cognitiva, para que o aluno possa realmente participar de seu processo de desenvolvimento, através da produção, criação e análise reflexiva. A produção artística envolve resolução de problemas, escolhas e interação com sujeitos, situações e objetos, exigindo que o aluno tome decisões com base em conhecimentos e informações anteriores, mas também com as informações imediatas. Em arte, exigem-se imaginação, criatividade e originalidade, qualidades que não são ensinadas em livros, cds ou partituras, mas que existem potencialmente nos indivíduos e cujo desenvolvimento depende da prática artística e das oportunidades educativas. Um dos desafios do ensino musical é interagir com uma gama variada de informações que não se restrinjam ao plano mnemônico, mas se expandam aos planos sensorial e intelectual. Assim, as informações processadas pela ação reflexiva e pela ressignificação podem se transformar em conhecimento. Além de transmitir e cobrar informações, deve-se incentivar a disposição para a pesquisa, criando situações de aprendizagem que possibilitem a discussão, valorizando as dúvidas e a busca de soluções e ações em conjunto, elementos que também motivaram esta pesquisa. O professor deve ser um mediador que provoca, instiga e instrumentaliza, indicando novas possibilidades e pontos de vista, articulando conhecimento e vida cotidiana, indicando a razão e a finalidade do ensino. Esse é um fator motivador para o aluno, pois valoriza seus interesses e suas indagações e oferece espaços e situações de aprendizagem que ultrapassam os conteúdos e conceitos inicialmente projetados pelo professor. É importante que o professor construa seu planejamento selecionando e organizando seus conteúdos a partir de uma sondagem, explorando o que os alunos já sabem ou gostariam de saber sobre o assunto a ser estudado e pesquisado. Entendendo a aprendizagem como um processo contínuo, em que a informação só passa a ser conhecimento quando o aluno − pela 16 reflexão, análise e manipulação dos conteúdos − percebe o significado do conhecido e o relaciona com outras informações e com sua própria vida, é evidente que o professor deve reavaliar suas intervenções pedagógicas, promovendo interações com seus pares e incentivando a produção autoral. O relatório produzido pela Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI para a UNESCO postula que o ambiente educativo em constante ampliação deve se apoiar em quatro pilares (Delors, 2001: 101, 102): “Aprender a conhecer, combinando uma cultura geral suficientemente vasta com a possibilidade de trabalhar em profundidade um pequeno número de matérias. O que também significa: aprender a aprender, para beneficiar-se das oportunidades oferecidas pela educação ao longo de toda a vida. Aprender a fazer, a fim de adquirir não somente uma qualificação profissional, mas, de maneira mais ampla, competências que tornem a pessoa apta a enfrentar numerosas situações e a trabalhar em equipe. Mas também aprender a fazer, no âmbito das diversas experiências sociais ou de trabalho que se oferecem aos jovens e adolescentes, quer espontaneamente, fruto do contexto local ou nacional, quer formalmente, graças ao desenvolvimento do ensino alternado com o trabalho. Aprender a viver juntos, desenvolvendo a compreensão do outro e a percepção das interdependências – realizar projetos comuns e preparar-se para gerir conflitos –, no respeito pelos valores do pluralismo, da compreensão mútua e da paz. Aprender a ser, para melhor desenvolver sua personalidade e estar à altura de agir com cada vez maior capacidade de autonomia, discernimento e responsabilidade pessoal. Para isso, não negligenciar na educação nenhuma das potencialidades de cada indivíduo: memória, raciocínio, sentido estético, capacidades físicas, aptidão para comunicar-se.” Esses pilares dizem respeito a uma educação global do indivíduo, que envolve quatro dimensões a serem simultaneamente observadas pelo professor e pela escola em todos os aspectos do desenho curricular, inclusive a música. Nessa concepção, incluem-se o desenvolvimento de competências para enfrentar situações e trabalhar em equipe, a compreensão mútua, a autonomia, o discernimento e o alerta final para “não negligenciar na educação, nenhuma das potencialidades de cada indivíduo”. 17 1.3. Justificativa O presente estudo nasceu da constatação de que a educação musical, quando inserida no currículo escolar, tem resultado em um bom número de fracassos. Diferentemente de outras áreas do saber, a música, como disciplina do currículo escolar, tem-se mostrado obsoleta e estagnada quanto às suas propostas de conteúdo e de seqüências didáticas. Vemos hoje que a complexidade dos fenômenos educativos levou a pedagogia a redefinir sua identidade, estender seus limites a outros territórios e questionar seus eixos epistemológicos. O saber pedagógico-educativo se pluralizou e tem agregado disciplinas como a psicologia, a sociologia, a antropologia e a filosofia, permitindo observar questões e problemas educativos antes ignorados. As ciências humanas vieram contribuir para esse processo de adequação às novas exigências sociais, políticas, culturais e sua crescente demanda. A educação musical, porém, pouco evoluiu nos últimos 50 anos, no sentido de se constituir como um novo saber pedagógico-musical, mais investigativo, mais problematizador, mais aberto à própria evolução. O ensino musical muitas vezes apresenta-se “fechado” em sua concepção, preocupado com o ensino técnico, mecânico, baseado na transmissão de conceitos, ou, por outro lado, demasiadamente “aberto”, trabalhando apenas a experimentação, a livre expressão, a “musicalidade natural” e, com isso, relegando objetivos mais pontuais e desequilibrando objetividade e subjetividade. Ainda não há uma equalização entre essas duas tendências, assim como também não há uma disponibilidade reorganizativa dos especialistas e da instituição escolar diante da linguagem música. Assim, questão a ser discutida é como articular pensamento musical e prática docente num contexto atual, de modo que os alunos não apenas gostem de música, mas gostem de aprender música, como podemos articular música e educação, validando sua presença no currículo preservando seu valor intrínseco “como construção humana, como patrimônio comum a ser apropriado por todos”. (Iavelberg, 2003: 9) 18 2. A música na escola: metodologias e tendências Embora os Parâmetros Curriculares Nacionais atribuam às artes uma função tão importante quanto a das outras disciplinas no processo de ensino e aprendizagem, em grande parte das escolas se ignora o fato de que a música pode ser componente da grade curricular como modalidade de ação em arte e negligenciam a música como um saber ou como profissão. A expressão Educação Artística, ainda em vigor, na maioria das vezes refere-se às artes visuais, com menor incidência em teatro, música e dança. Estas últimas constituem um diferencial para algumas escolas e, não raro, aparecem no currículo apenas em determinadas séries ou ciclos ou sob a forma de curso extracurricular, em que o especialista, nas palavras de Salles, se torna quase que uma micro-ong. Mais comum ainda é o uso pseudo-interdisciplinar da música. Por exemplo, nas aulas de língua portuguesa ou inglesa, apresentam-se canções para motivar a leitura e a escrita, e muitos professores usam a música como um recurso mnemônico e para tornar suas aulas mais ricas e interessantes (em alguns casos, talvez fosse melhor dizer “menos pobres e desinteressantes”). Na cidade de São Paulo, a música é freqüente no primeiro ciclo do ensino fundamental, ou seja, de 1ª a 4ª série, nas principais escolas particulares. Em escolas públicas, a oferta costuma estar relacionada a um envolvimento da comunidade, professores e gestores. Para exemplificar, temos o caso da Escola Municipal de Ensino Fundamental Desembargador Amorim Lima, no Butantã, que, através da Associação de Pais e Mestres e parcerias com empresas privadas, implementou no currículo oficinas de música, capoeira e teatro. Quando falamos em fracasso, referimo-nos, entre outras coisas, à dificuldade de a música6 ser linguagem permanente no currículo escolar. Verificamos que, nas escolas particulares de São Paulo, se existe música no desenho curricular, esta é quase sempre suprimida a partir da 5ª série. Coordenadores e diretores de escolas apontam alguns fatores determinantes para o distanciamento da música da estrutura curricular: o desinteresse de muitos jovens – que preferem aulas individuais de instrumento (bateria, guitarra, violão, teclado) às aulas de música em classe –, a falta de “serventia” da matéria em concursos vestibulares (excetuandose, é claro, o vestibular para a carreira de música) e as dificuldades de se encontrarem professores que atendam aos critérios da escola e de se estruturarem planejamentos. 6 Educação Artística – Música, nomenclatura ainda em vigor no Estado de São Paulo. 19 Constatamos que, ao invés de refletir sobre a raiz do problema, as instituições escolares têm buscado como solução a inclusão de cursos extracurriculares de instrumento e de canto coral – de caráter não obrigatório –, em vez da construção de um conhecimento musical integrado às áreas do currículo. A inserção da música na rotina escolar é resolvida com a oferta dos cursos livres, justificada por qualidades difundidas pela mídia7 − como aumentar a inteligência, capacitar o estudante a compreender conceitos matemáticos, estimular o cérebro8 etc. −, sem, no entanto, que a escola se responsabilize ou se preocupe com os conteúdos musicais a serem desenvolvidos e trabalhados. Em outras escolas, acredita-se que não é preciso uma aula específica de música, pois ela aparece em quase todas as disciplinas: ensina-se língua estrangeira com música, usa-se música nas aulas de educação física, canta-se muito nas aulas de português e há música em todas as datas comemorativas. Essa concepção é muito comum em muitas escolas de Educação Infantil. Confunde-se interdisciplinaridade com algo como uma “introdisciplinaridade”, em que a música é introduzida em alguma disciplina. Nesse caso, a música não é vista como uma disciplina com conteúdos específicos que a caracterizam − ela se anula em prol de conteúdos e objetivos de outra matéria. Ademais, nas escolas onde se tem acompanhado a tendência pedagógica de humanização do currículo e os responsáveis se mostram seriamente preocupados com a formação artística e musical de seus alunos (no sentido mais amplo), há dificuldades em contratar um professor de música capacitado para esse fim. A dificuldade começa já na entrevista, porque os coordenadores ou diretores não sabem, na maioria das vezes, exatamente o que exigir do profissional, já que música se tornou assunto tabu. Muitas vezes ouvimos, em tom de álibi: “Eu gosto muito e acho importante, mas não entendo nada de música.” Assim, a música, arte do tempo, como a chamou Stravinsky, se torna cada vez mais impalpável e abstrata, idéia sustentada por grande parte dos educadores. Para piorar a situação, a bibliografia em educação musical é escassa e quase sempre sumamente técnica, voltada para o ensino de um instrumento específico. Isso dificulta o aprofundamento de 7 Não é o caso de mencioná-las pontualmente, mas não são raras as matérias a esse respeito na imprensa falada e escrita que invariavelmente “recomendam” a música por seus presumidos benefícios “secundários”, freqüentemente ignorando sua própria essência. 8 Em 2002, a Associação Brasileira da Música (ABEMÚSICA) distribuiu um livreto intitulado A Importância da Música para as Crianças, que consiste numa coletânea de pequenos artigos sobre os supostos benefícios de se estudar música. 20 educadores e coordenadores em seus conhecimentos sobre ensino musical a fim de desenvolverem um projeto pedagógico bem fundamentado. Ao analisarmos alguns planejamentos de música de escolas de ensino fundamental, observamos que o conteúdo é praticamente o mesmo de 1ª a 4ª série. Em muitos casos, não levam em consideração o momento conceitual9 do aluno, não estabelecem um diálogo com o conteúdo de outras disciplinas (geralmente o planejamento gira em torno do calendário festivo escolar), nem sempre buscam uma adequação à faixa etária proposta e, na maioria dos casos, desconsideram o interesse e a bagagem cultural dos alunos. Quanto à questão do ensino profissionalizante, o conteúdo musical oferecido nas escolas não vem suprindo as necessidades daqueles alunos que almejam o ingresso em cursos profissionalizantes e a música como profissão. Assim, o ensino musical não está contribuindo para a formação humanística e artística do indivíduo, muito menos para uma formação profissional. Em muitas escolas, não se considera a arte musical como um conhecimento e tampouco como uma profissão: duplo equívoco. É preciso discutir a forma como a música está inserida no currículo, assim como a elaboração de um planejamento adequado, e é preciso repensar os cursos de licenciatura em música, os cursos superiores de magistério e pedagogia, pois não há currículo sem professor. Acreditamos que os cursos de licenciatura em música deveriam enfatizar mais a formação voltada para a atuação do professor em classes de ensino regular. As disciplinas oferecidas nesses cursos têm priorizado a formação musical dos alunos, preparando o futuro professor muito mais para o ensino de um instrumento ou para o ensino regular, focalizado na teoria musical. É triste constatar que muitos graduandos migram do curso de bacharelado em instrumento para o curso de licenciatura apenas para aliviar as exigências das disciplinas do curso de origem, e não por verdadeira vocação. Lembramos também a visível a insuficiência, nos cursos de licenciatura, de matérias pedagógicas capazes de preparar o professor para ser educador e que o habilitem a fazer a transposição didática do conhecimento adquirido. Já os cursos de pedagogia, em geral, desconsideram o ensino musical e, quando não o fazem, tratam-no apenas superficialmente, ou seja, acabam faltando, ao professor de música, 9 O momento conceitual no processo de musicalização remete às diferenças cognitivas, afetivas e sociais de cada indivíduo. O objetivo é avaliar essas diferenças e trabalhar com elas de modo que cada um possa construir seu conhecimento musical acrescentando novas experiências às anteriores. 21 embasamento teórico das questões educativas e, ao professor do ciclo básico, o conhecimento do objeto música. Para melhor compreender essa situação, analisemos as metodologias e tendências mais comuns na prática pedagógica musical. Veremos como a música está inserida no contexto escolar e tentaremos entender por que tem ficado à margem do currículo. Trataremos de algumas propostas musicais praticadas e oficializadas a partir do Canto Orfeônico na década de 1930, para entender as origens conceituais no ensino musical brasileiro, e faremos uma brevíssima descrição da evolução do conceito de música, de músico e de seu papel na educação desde a Grécia Antiga, para entender a transformação da música como conhecimento, desde quando era considerada matéria especulativa e relacionada à metafísica até passar a ser considerada de cunho prático e artístico. 2.1. O panorama inicial: impasse Para abordar a questão metodológica do ensino de música nas escolas, faremos uma pequena análise comparativa entre métodos didáticos tradicionais e métodos ativos, a partir das definições de Cintra, tendo, de um lado, a escola tradicional e, de outro, a escola nova. Nos cursos de licenciatura em música, observamos uma mescla de orientações e práticas didáticas calcadas em diversos métodos. Cabe ressaltar que, para o professor de música em formação, é difícil identificar os conceitos teóricos e pedagógicos implícitos nas orientações e práticas didáticas. Em geral, as matérias pedagógicas (Psicologia da Educação, Didática e outras) são ministradas por professores sem qualquer formação musical, e as matérias relacionadas às especificidades do ensino musical (Prática do Ensino de Música, Canto Coral, Estruturação Musical e outras) são em geral ministradas por professores que só têm formação musical. Em muitos casos, o licenciando tem que fazer sozinho a ligação entre esses dois mundos e a dissociação entre música e educação torna-se um problema para os professores de música recém-formados, que se sentem inseguros diante da responsabilidade de conduzir e administrar suas aulas em um ambiente escolar. Para entender e situar a pedagogia musical praticada nos dias atuais, vejamos como os métodos didáticos tradicionais e os métodos ativos encaram a criança e sua aprendizagem. 22 A metodologia ativa firmou-se no início do século XX, em função das transformações sociais e econômicas, do desenvolvimento científico e do processo de industrialização. Naquele momento, vários movimentos questionavam o objetivo da escola, a finalidade da educação e os meios para atingi-los. As mudanças na vida familiar, sua repercussão na vida escolar, a influência das idéias filosóficas e das ciências humanas como um todo contribuíram para a nova maneira de se encararem a escola, seus objetivos e métodos. Segundo Cintra (1987: 19-28), os métodos tradicionais encaram a criança como uma miniatura do adulto, cabendo à educação conformá-la o mais rapidamente possível aos modelos adultos. A escola dita tradicional faz uma “doação” dos conhecimentos acumulados ao longo dos tempos. Para Piaget, essa é uma relação educativa que funciona na base da pressão e da recepção, centralizada na autoridade do professor, tendo como fim a acumulação do saber e na qual apenas um dos termos do processo da educação é ativo. Os conhecimentos que se tinha sobre a criança e sua forma de aprender, levando-se em conta sua grande capacidade de memorização e seu sincretismo, justificam o ensino livresco de repetição e de memorização utilizado no ensino musical das escolas até os dias de hoje. Esse ensino leva à dissociação entre exposição verbal e realidade, levando à memorização de conceitos que não foram incorporados à vivência e à experiência; valoriza as matérias de estudo de modo a torná-las o centro do trabalho escolar, ou seja, um fim em si mesmas. É o caso do ensino de teoria musical e de história da música quando desligados da experiência de escuta e análise, produção e contextualização e, portanto, destituídos de significado. Segundo Cintra (1987: 19-28), os métodos ativos consideram a infância como uma fase no processo geral do desenvolvimento do homem e a criança como sendo funcionalmente igual ao adulto e qualitativamente diferente, cabendo aos educadores escolares conduziremna, através de um processo contínuo de construção do conhecimento por sua experiência pessoal e por sua atividade reflexiva na área. Estabelece-se assim uma relação de reciprocidade, em que há interação entre indivíduo e meio, impulsionando-se um processo de troca e enriquecimento. Para Cintra, as bases psicológicas que norteiam os métodos ativos são: • psicologia genética: ajusta as estruturas mentais particulares de cada etapa do desenvolvimento da criança às técnicas educativas; • psicologia funcional: fundamenta-se nas necessidades da criança, recorrendo à atividade espontânea e criadora; 23 • psicologia diferencial: leva em conta a individualidade da criança, reagindo contra métodos coletivos de ensino e lições uniformizadas, que anulam o indivíduo. Entre os professores de música − seja o que trabalha em casa, ensinando um instrumento, seja o da escola que oferece cursos livres de música, seja o que leciona a disciplina música em escolas regulares −, é unânime a preocupação com a qualidade de seu trabalho. Todos concordam que as concepções didáticas devem ser repensadas periodicamente e que as atividades padronizadas não funcionam mais, pois não despertam o interesse esperado nos alunos. Os chamados métodos ativos são mais atraentes, por levarem em consideração a individualidade do aluno, seus interesses, seu cotidiano e seu momento conceitual. É curioso que professores particulares ou de escolas livres de música venham adotando posturas pedagógicas cada vez mais reflexivas e abertas, atentas às necessidades dos alunos, e, por outro lado, os professores de música das escolas regulares venham mostrando grande dificuldade de lidar com os desafios impostos pelas mudanças sociais e tecnológicas e com o ambiente escolar cada vez mais globalizado culturalmente. Nesta pesquisa, trataremos justamente da escola regular. Embora tenha de lidar com o problema da evasão dos alunos, o professor de instrumento ou de escolas de música em geral não sente dificuldade de planejar suas aulas, escolher conteúdos ou optar por procedimentos didáticos, haja vista suas atuações mais pontuais, voltadas para o ensino de técnicas específicas. O objetivo de seu ensino é claro e delimitado: ensinar a tocar um instrumento, alfabetizar musicalmente, aperfeiçoar a interpretação. O aluno, por sua vez, também tem um objetivo muito claro e, geralmente, procura essas aulas por vontade própria. O aluno cobra do professor aquilo que ele julga necessário para um desenvolvimento musical satisfatório, via de regra voltado para uma prática instrumental ou vocal. Na escola regular, a situação é mais complexa, exigindo uma reflexão mais profunda, inclusive com respeito aos objetivos do ensino musical e o papel da música na educação. Para isso, faremos inicialmente uma reflexão histórica, situando melhor nosso objeto de estudo. 24 2.2. A educação musical nas escolas: propostas musicais a partir da década de 1930 Pelo Decreto n° 19.890, de 18/4/1931, o canto orfeônico passava a compor o currículo escolar, com o maestro e compositor Heitor Villa-Lobos assumindo a função de orientador de música e canto orfeônico. O ensino musical acontecia com canto coletivo e solfejos, para se trabalharem senso rítmico, consciência melódica, entonação de intervalos etc. Criaram-se materiais didáticos específicos para esse fim. Ermelinda Paz (2000: 18-19) descreve o conteúdo do programa oficial do canto orfeônico, composto de elementos gráficos (EG), elementos rítmicos (ER), elementos melódicos (EM) e elementos harmônicos (EH): Curso Primário 1ª série EG: gráfico das cantigas de roda, clave de sol, pauta e notas ER: unidade de movimento e declamação rítmica das cantigas de roda EM: exercícios de entoação dos sons da escala EH: intervalos 2ª série EG: clave de sol, pauta, valores e cópias de canções a serem estudadas ER: unidade de movimento, suas subdivisões e múltiplos e ditados rítmicos EM: primeiros exercícios de solfejo, nomenclatura e graus da escala EH: intervalos 3ª série EG: cópia de melodias fáceis e canções a serem estudadas e pausas ER: compassos simples, declamação rítmica e ditados rítmicos E.H: intervalos 4ª série EG: acidentes, ligadura, linhas suplementares, cópias de canções a serem estudadas e sinais de intensidade 25 ER: declamação rítmica, leitura métrica, compassos simples e ditados rítmicos EM: escala Maior e suas armaduras, intervalos, solfejos, intensidade e ditados cantados EH: tonalidade e acorde de três sons Os conteúdos teóricos norteavam a prática de ensino, que se voltava para o domínio tecnicista da música ocidental (de caráter folclórico, cívico e de exaltação), não havendo espaço para as vivências musicais, muito menos para criação, discussão ou reflexão. O canto orfeônico perdurou por 30 anos, até ser substituído pela educação musical, instituída pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, de 1961. Rosa Iavelberg (2003: 111-112), em seu livro Para gostar de aprender arte, comenta a situação do ensino de arte nesse período: “(...) enfatizava-se o ensino de conteúdos, e o produto da aprendizagem era a reprodução, e não o processo. Os conteúdos, conhecimentos e valores sociais eram considerados como verdades absolutas a serem repassadas para os alunos. A aprendizagem era receptiva e mecânica, com práticas de repetição, exercício da vista, da mão, da memória e do senso moral. O currículo, estruturado sem vínculo com a realidade social dos alunos, não levava em consideração as diferenças individuais. Os métodos eram a exposição verbal e a demonstração da matéria. Na relação didática, predominavam a autoridade do professor, a disciplina imposta, o silêncio e a atenção. A avaliação incidia sobre habilidades manuais, hábitos de precisão, organização, limpeza e capacidade de reproduzir conteúdos.” Diante disso, é fácil entender por que as aulas de canto orfeônico desagradaram tantos alunos da época. O ensino tradicional não dava à criança a oportunidade de questionar, descobrir e criar. A teoria musical era imposta, e o aluno era obrigado a assimilar todo aquele conteúdo através da repetição maçante e do estudo privado de significações. A leitura da partitura e as entonações melódicas e intervalares, destituídas de seu propósito natural, eram vistas como um fim em si mesmas, impondo barreiras a qualquer ato criativo ou interpretativo. Estudar música era sinônimo de sofrimento e tédio. Os erros não eram admitidos e os conteúdos tornavam-se cada vez mais complexos, devendo ser assimilados rapidamente pelos alunos. Embora tal atitude nos pareça retrógrada e inaceitável, diante de todas as teorias da aprendizagem e do desenvolvimento infantil, muitos professores ainda adotam esse modelo de ensino, mas com uma roupagem mais moderna, usando jogos coloridos das figuras musicais, 26 quadros magnéticos com notas musicais, bingos musicais e outros recursos atraentes, para tornar o estudo da teoria musical mais digerível. No entanto, não percebem que o grande equívoco está em apresentar os signos e a grafia num contexto inadequado e reducionista. Na década de 1960, parte do ensino tradicional deu lugar ao experimentalismo, ao espontaneísmo. Principalmente em cursos livres, cursos de reciclagem e nas chamadas oficinas de música, a criatividade era a tônica. Trazidas pelos ventos do modernismo, da psicologia, da música contemporânea e de sua influência sobre os músico-educadores, principalmente dos EUA (John Cage), Canadá (Robert Murray Schafer) e Inglaterra (John Paynter), as oficinas trouxeram a possibilidade da criação livre e coletiva como forma de vivência e aprendizagem informal. O aluno era incentivado a experimentar diversos materiais sonoros, observar diversas paisagens sonoras10, improvisar livremente a partir desses elementos e às vezes criar sua própria partitura. A vivência sonora e a subjetividade passaram a ser altamente desejáveis para o ensino musical. Mais uma vez, veremos o comentário de Iavelberg (2003: 113) sobre o período: “A ênfase era colocada no processo e na expressão, compreendida como dado subjetivo e individual: portanto, auto-expressão, com forte influência dos paradigmas da arte moderna, das disciplinas do começo do século XX: a psicologia, a psicanálise, a antropologia e as teorias da criatividade e as proposições da arte moderna. A palavra de ordem era a criatividade, compreendida como a criação do novo, com ênfase na originalidade, na flexibilidade, na fluência e na iniciativa do aluno. No Brasil, houve muita deformação na assimilação dessas propostas. Qualquer mudança que não for acompanhada por formação continuada de professores tende a ser deformada na prática educativa. Assistimos, nas escolas brasileiras, a um excesso de psicologização no ensino da arte, com práticas espontaneístas de sensibilização, principalmente em expressão corporal, sem estruturar os conteúdos internos mobilizados.” Mas a espontaneidade, a experimentação e a livre expressão, desprovidas de estruturação ou alicerce em seu conteúdo, podem produzir uma pseudoliberdade improdutiva. É natural e significativo o fato de que as crianças têm vontade e desejo de experimentar, explorar os materiais sonoros à sua volta, assim como é importante salientar a contribuição que essas propostas trouxeram ao pensamento musical e ao ensino da música, mas a construção do conhecimento só é possível por intermédio de uma estruturação dessa vivência 10 Murray Schafer cunhou as expressões material sonoro e paisagem sonora. 27 musical, com objetivos bem delineados pelo professor, a fim de se oferecer a possibilidade de alargamento e continuidade. De qualquer modo, foi um momento histórico importante para a educação musical, em que a ruptura com conceitos estagnados permitiu novas aberturas para o pensamento sobre o ensino. Mas recuemos um pouco no tempo, a fim de compreendermos melhor o papel da música na educação. 28 3. A música como conhecimento: uma projeção histórica 3.1. A música na Grécia Antiga: a arte das musas Para discutir o papel da música na educação ocidental, devemos entender a evolução de sua concepção. A história da música confunde-se com a história da própria humanidade. Longe de estar isolado, “o pensamento musical coincide, em parte, com várias áreas do estudo histórico − como a história da filosofia ou da ciência –, e isso ocorre porque a música apresenta como traço peculiar uma íntima relação com vários aspectos da atividade humana”. (Tomás, 2002: 4) A palavra música tem origem na palavra grega mousiké, com que se denominavam as musas – as nove filhas de Cronos e Zeus −, responsáveis pelas artes. Na Antiga Grécia, o termo música tinha duas conotações. A primeira, mais nobre, remete à disciplina de existência metafísica, arte representativa das harmonias celestiais; a segunda refere-se à atividade prática da música, de caráter profissional, ligada à poesia e à literatura. Essas conotações mostram a versatilidade e a pluralidade do pensamento musical, que associa a música à ciência, à religião, à filosofia, à educação e às práticas instrumental e vocal. Pitágoras de Samos (c. 582-500 a.C.), filósofo e matemático grego, é fundador de uma escola que enfatizava o estudo da harmonia da música e da geometria. Através de experimentos e observações, Pitágoras teria chegado à conclusão de que a freqüência, ou altura (aguda ou grave), em que um objeto vibra não depende da força utilizada para fazê-lo vibrar, mas de suas propriedades intrínsecas como tamanho, peso, composição e, no caso das cordas, comprimento e tensão. Assim, Pitágoras observou uma relação matemática entre as notas da escala musical, em seu conhecido experimento com o monocórdio11. Conclui que uma corda de comprimento X que produzia um som Y, ao ser dividida pela metade (1/2) produzia um som exatamente uma oitava acima do som Y. A partir daí, dividia a corda em 2/3 e encontrava a nota num intervalo de uma quinta acima de Y; dividia-a em ¾ e encontrava o intervalo de uma quarta acima da nota inicial Y. Assim, chegou às quatro grandes 11 Instrumento musical feito de apenas uma corda esticada, como o nosso marimbau. 29 consonâncias, base da música tonal e de sua teoria da tetrakis. Eis a escala pitagórica completa, com suas relações matemáticas: O músico e professor do departamento de música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, Fernando Iazzetta12, nos explica que: “A construção da escala pitagórica é baseada na superposição de quintas (e suas inversões, as quartas). Por exemplo, partindo do intervalo de oitava, dado pelas freqüências fo e 2*fo, pode-se formar a escala pitagórica da seguinte maneira: Tomando fo como dó, sobe-se uma quinta, que é um sol: 1*(3/2) = (3/2) Descendo uma quarta abaixo de dó oitava acima, temos fá: 2/(3/2) = (4/3) Baixando uma quarta a partir de sol, chega-se a ré: (3/2)/(4/3) = (9/8) Quinta acima de ré, nos dá lá: (9/8)*(3/2)=(27/16) Quarta abaixo de lá, nos dá mi: (27/16)/(4/3)= (81/64) Quinta acima de mi, nos dá si: (81/64)*(3/2)= (243/128) Esses valores são relativos aos intervalos entre fo (aqui chamada de dó) e as outras alturas da escala. Mas é importante saber quais são os intervalos entre cada altura [sic.]. O intervalo entre mi e ré é dado por: (81/64) / (9/8) = (9/8) O intervalo entre fá e mi é de: (4/3)/(81/64) = (256/243) 12 Para maiores informações, o professor Iazzetta disponibilizou a seguinte página na internet: http://www.eca.usp.br/prof/iazzetta/tutor/acustica/escalas/pitagorica.html. 30 Essas notas, dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, formam a chamada escala diatônica de sete notas. Se calcularmos os intervalos entre todas as alturas da escala diatônica, teremos apenas dois valores: (9/8) e (256/243), chamados respectivamente de tom pitagórico diatônico e semitom pitagórico diatônico. Se continuarmos o ciclo de quintas e quartas, teremos todas as outras notas representadas com sustenidos e bemóis. Por exemplo, uma quarta abaixo de si nos dá fá#: (243/128) / (4/3) = (729/512). Uma quinta abaixo de fá nos dá sib: (4/3) / (3/2) * 2 = (16/9) O intervalo entre sol e fá# é um semitom diatônico: (3/2) / (729/512) = (256/243). Mas o intervalo entre fá# e fá é: (729/512) / (4/3) = (2187/2048). Esse intervalo é chamado semitom cromático pitagórico. Se tomarmos uma nota qualquer, como fá, por exemplo, e subirmos 12 quintas acima, chegaremos a um mi# sete oitavas acima do fá inicial. Esse mi# é chamado enharmônico de fá e, num sistema temperado, corresponde, de fato, ao fá. Porém, se subirmos 12 quintas (3/2)2 e descermos 7 oitavas (2)7, ao invés de chegarmos novamente ao fá (1/1), teremos: (3/2)2 / (2)7 = (531441/524288) Esse E# é um pouco mais alto que fá, e o mesmo fenômeno irá ocorrer com outros sons enharmônicos da escala pitagórica. A razão (531441/524288) é a diferença entre um semitom cromático e um semitom diatônico (2187/2048) / (256/243), e é chamada de coma pitagórica (23,5 cents). Na escala pitagórica, os intervalos de terça e sexta não são justos. A diferença entre terças e sextas pitagóricas e justa é dada pela razão (81/80) (equivalente a 21,5 cents) e é chamada de coma sintônica. A aritmética baseada em ciclos de intervalos de quintas da escala pitagórica leva, portanto, à existência de semitons de tamanhos diferentes e de notas enharmônicas que não são equivalentes.” A partir desse experimento – considerado por muitos como o primeiro experimento científico de que se tem notícia – e da observação dos seres e dos astros, Pitágoras aplica sua matemática musical (numerus sonorus) a todo o universo. Vejamos o que diz Huseby (1999: 253) a respeito da música no pensamento grego: “As relações matemáticas existentes entre os intervalos musicais foram buscadas e encontradas em todo o universo, e as complexas inter-relações possíveis entre os intervalos consoantes resultaram na noção de harmonia. A presença das mesmas proporções matemáticas em todos os níveis permitiu postular a unidade existente entre o ser humano e o cosmo; ao gerar auditivamente tais proporções, a música constituiu-se na disciplina experimental básica desse sistema filosófico. Mas não se trata de música audível, a de cantores e instrumentistas, mas de um ente abstrato, a mais alta forma do conhecimento, cujas relações e leis internas são as mesmas que reconhecemos na alma humana e no universo. Esse conceito matemático e 31 metafísico de música permite, assim, o acesso à harmonia cósmica, ao mesmo tempo núcleo central do estudo anatômico e espiritual do homem e do estudo astronômico do universo, de um micro e de um macrocosmo.” Para os gregos, antes dos homens, os sons eram ouvidos apenas pelos deuses. A música era perfeita e explicava a ordem racional do universo. Ao descobrir a correspondência matemática entre as razões dos sons harmônicos ao se tanger uma corda e o movimento dos sete planetas então conhecidos, Pitágoras concluiu tratar-se de leis universais perfeitas que regiam o universo, relacionadas à música e à matemática. A música das esferas, como foi chamada depois por Platão, representava para os gregos o equilíbrio e a perfeição. Por isso, segundo os pitagóricos, os homens imperfeitos não podiam escutar a misteriosa harmonia dos sons gerados pelo movimento dos planetas no universo − apenas seu mestre, Pitágoras, tinha esse dom. Encontramos em A República, de Platão (O mito do Er, livro X: 614b), a música como explicação da origem da vida. O grande discípulo de Sócrates conta que os espíritos nascem da música e vêm para o mundo. O mundo nasce da ordenação do caos e um grande monocórdio divino ordena todas as proporções. O monocórdio divino De Musica Mundana – Robertus de Fluctbus (Fludd), século XVII 32 Nessa representação do monocórdio divino, o músico, místico e filósofo Fludd nos mostra os três reinos com suas três divisões. A cada uma, atribuía-se uma nota da escala, desde a Terra (a nota sol mais grave − г), passando pelo luminoso sol (a nota sol na oitava central – G) e subindo até Empyrean (a nota sol mais aguda – gg). Aplicando as proporções vistas acima, encontramos: proportio dupla (2:1) da Terra ao céu, a partir do intervalo de oitava de Г a G. À direita, estão os nomes gregos dos intervalos musicais correspondentes a cada proporção: disdiapason =8ª composta = 4:1; diapason = 8ª = 2:1; diapente = 5ª = 3:2; diatessaron = 4ª = 4:3. Toda essa representação se completa com a mão de Deus afinando o monocórdio, que determina o equilíbrio do universo através da música mundana. Para Platão (428-347 a.C.), o ponto alto do saber é o conhecimento. Em A República (livro III: 398ª-401a), ele discute, por meio dos diálogos entre Sócrates e Gláucon, irmão de Platão, o que é bom para o homem. Discute o conceito de justiça e vislumbra a sociedade ideal, incluindo a música na educação dos jovens: “− Não é então por esse motivo, Glauco, que a educação pela música é capital, porque o ritmo e a harmonia penetram mais fundo na alma e afetam-na mais fortemente, trazendo consigo a perfeição, e tornando aquela perfeita, se tiver sido educado? (...) − A mim afigura-se-me que é por razões dessas que se deve fazer a educação pela música.(...) − Pelos deuses! Digo do mesmo modo que não seremos músicos, nem nós mesmos nem aqueles que nos propusemos educar para serem guardiões, antes de conhecermos as formas da temperança, da coragem, da generosidade, da grandeza de alma e de quantas qualidades forem irmãs destas. (...) − Quando, portanto, as crianças principiam por brincar honestamente, adquirem, através da música a boa ordem e, ao contrário daqueles, ela acompanha-os por toda a parte, e, com o seu crescimento, endireita qualquer coisa que anteriormente tenha decaído na cidade.” Vê-se que a música era um importante componente na educação dos jovens da Grécia Antiga, com o poder de modelar suas faculdades mentais e perceptivas, influenciar seu caráter e estado de ânimo, de modo positivo ou negativo, através do ethos13 de cada ritmo e cada harmonia [modo; escala]. Vejamos, a propósito, mais um trecho do diálogo entre Sócrates e o jovem Gláucon: 13 Ethos: característica (moral) da música, que remete aos sentimentos. 33 “− Quais são as harmonias lamentosas? Diz-me, já que és músico. − São a mixolídia, a sintonolídia e outras tais. − Portanto essas são as que se devem excluir, visto que são inúteis para as mulheres, que convém que sejam honestas, para já não falar dos homens. − Absolutamente. − Mas na verdade, nada convém menos aos guardiões do que a embriaguez, a moleza e a preguiça. − Como não? − Quais são, pois, dentre as harmonias, as moles e as dos banquetes? − Há umas variedades da jônia e da lídia, a que chamam de afeminadas. − E essas, poderás utilizá-las na formação de guerreiros, meu amigo? − De modo algum, respondeu. Mas arriscas-te a que fiquem apenas a dórica e a frigia.” Segundo as personagens, algumas melodias deveriam ser descartadas por incitarem à moleza, à embriaguez e aos lamentos, devido à natureza de seus modos. Em linhas gerais, as melodias permitidas eram as melodias morais, as melodias ativas e as melodias que induziam ao entusiasmo, qualidades encontradas sobretudo no modo dórico. Em A Política, Aristóteles (384-322 a.C.), que freqüentou a Academia fundada em 387 a.C. por Platão em Atenas, faz uma ampla consideração sobre a música na educação. Para ele, a música está entre as quatro matérias que devem ser ensinadas aos jovens: • gramática14 (para os negócios e o governo da família, para aquisição do saber e por ser útil às necessidades da vida); • desenho (por ser útil às necessidades da vida, para tornar-nos aptos a melhor julgar as obras dos artistas e conhecer a beleza); • ginástica (por fortalecer o valor pela saúde e pela força); • música (por sua qualidade de nos levar a ocupar nobremente o ócio, de produzir determinada qualidade de caráter e de servir como relaxamento). 14 A gramática compreendia a leitura, a escrita e os elementos da aritmética. 34 No capítulo 5 do livro VIII, Aristóteles descreve a música não apenas como fonte de prazer e relaxamento, mas como algo de natureza demasiadamente nobre para limitar-se essa utilidade prática. Após várias considerações, finaliza: “Destas considerações se deduz, portanto, que a música tem o poder de produzir um determinado efeito no caráter moral da alma; e, se tem o poder de fazer isso, é evidente que os jovens devem ser orientados na música e devem ser educados nela. Ademais, a educação na música se adapta bem à natureza jovem, pois os jovens, devido à sua juventude, não podem suportar nada que não esteja adoçado pelo prazer, e a música tem por natureza uma doçura agradável. Parece, assim, que temos certa afinidade com os ritmos e os modos; devido a isso, muitos sábios dizem que a alma é uma harmonia ou tem uma harmonia.” Mesmo que se sentisse o prazer produzido pela música, entendia que se deveriam utilizar seus elementos afetivos para a promoção da virtude. Para Aristóteles, os estados puramente interiores da alma não podiam ser reproduzidos pela pintura ou pela escultura, que no máximo imitavam ou reproduziam as manifestações corporais e exteriores de um estado emocional, enquanto a música podia imitar a emoção em si mesma, estabelecendo uma relação direta, uma comunhão entre o ouvinte e a emoção transmitida. Embora fosse contrário ao fim exibicionista a que a prática musical poderia levar o jovem, Aristóteles reflete, no capítulo VI do mesmo livro, sobre a possibilidade de haver um lugar ou uma maneira adequada de se praticar a música e se pergunta se os jovens devem aprender a música cantando e tocando eles mesmos: “Não é difícil ver que há uma grande diferença no processo de aquisição de uma qualidade, entre tomar-se parte de ações que lhe dão essa mesma qualidade ou não tomar parte delas, porque é difícil ao menos, senão impossível, chegar a ser um bom juiz daquilo de que não se participou. (...) Essas considerações, pois, demonstram que as crianças devem ser educadas na música, assim como devem tomar parte em suas produções; e não é difícil discernir o que é adequado e o que é inadequado para as diversas idades, e refutar aos que afirmam que a prática da música é vulgar.” Nesse período, a finalidade do estudo da música era formar o gosto e exercitar o ouvido, sem a necessidade de se atingir um nível de performance extraordinário, ou seja, buscavam a música não profissional e condenavam o exibicionismo. Em outras palavras, a 35 música tinha um fim educativo (através da moral e da matemática), um fim purgativo (através da catarse que ocorria quando a música fazia parte da tragédia, ou seja, do teatro)15 e um fim relaxante (de modo que o ócio necessário levasse à meditação e ao autoconhecimento). Conhecendo-se a si mesmo, seria possível alcançar a felicidade, o objetivo final da vida. 3.2. A música na educação escolástica: trivium e quadrivium na Idade Média O conhecimento acerca da música da Antiga Grécia tornou-se acessível na Idade Média graças principalmente ao filósofo romano Boécio (c. 480-524). As inúmeras cópias preservadas em diversas bibliotecas do tratado De Institutione Musica (só impresso e publicado em 1491) mostram a popularidade da obra na época. No século VI, Boécio oficializou o trivium e o quadrivium, ou as chamadas artes liberais, como base e preâmbulo da cultura e educação medievais. O trivium referia-se à gramática, à retórica e à dialética; o quadrivium, à aritmética, à geometria, à astronomia e à música. Em seu tratado, a verdadeira música está relacionada à moralidade, bem como a seu aspecto especulativo. Considera a música um meio para a busca da verdade, do conhecimento do mundo e de si mesmo. Partindo dos ideais pitagóricos e neoplatônicos da música, divide-a em três planos distintos: • música mundana (ou música do universo, da harmonia das esferas celestes, nobre em suas especulações, inaudível para o homem comum); • música humana (como reflexo da música do universo, na união da atividade incorpórea, da razão ao corpo − alma e corpo –, sustentando as partes, através da ligação dos elementos corpóreos); • música instrumental (a música tocada e cantada, a única ouvida pelo homem através do canto e dos instrumentos de cordas, sopro, percussão ou daqueles acionados pela água). 15 Katharsis - purgação, liberação dos sentimentos. Ação no inconsciente. Viver as emoções para dominá-las. 36 Vejamos um trecho do primeiro tratado de teoria musical, De Institutione Musica (livro I: cap. XXXIII16): “Thus there are three classes concerned with the musical art. One class has to do with instruments, another invents songs, a third judges the work of instruments and the song. But that class which is dedicated to instruments and there consumes its entire efforts, as for example the players of the cithara and those who show their skill on the organ and other musical instruments, are separated from the intellect of musical science, since they are servants, as has been said, nor do they bear anything of reason, being wholly destitute of speculation. The second class having to do with music is that of the poets, which is borne to song not so much by speculation and reason as by a certain natural instinct. Thus this class also is to be separated from music. The third is that which assumes the skill of judging, so that it weighs rhythms and melodies and the whole of song. And seeing that the whole is founded in reason and speculation, this class is rightly reckoned as musical, and that man as a musician who possesses the faculty of judging, according to speculation or reason, appropriate and suitable to music, of modes and rhythms and of the classes of melodies and their mixtures and of all those things about which there is to be discussion later on and the song of the poets.” Em seu tratado, Boécio distingue o artesanato (techné) – produzido pela mão e pelo trabalho do artesão – da arte (mousiké). Para ele, toda disciplina e toda arte têm por natureza um caráter mais honrado que o artesanato, pois, se a mão não fizer o que a mente determinar, o trabalho será vão. A ciência da música – por apreender pela razão e não pela realização, através da simples atividade performática – seria, portanto, mais admirável, ao passo que uma pessoa destituída de razão estaria vivendo em servidão. Para ele, a contemplação da obra prescinde do fazer, e o músico, por definição, devia ter a faculdade do julgamento, de acordo com a especulação e a razão. 16 “Assim, há três categorias da arte musical. Uma categoria tem a ver com os instrumentos, outra inventa canções, uma terceira julga o emprego dos instrumentos e a canção. Mas a categoria que se dedica aos instrumentos e nela consuma todo seu esforço, como, por exemplo, os que tocam cítara e os que mostram sua habilidade no órgão e outros instrumentos musicais, está à parte do intelecto da ciência musical, já que estes são servos, como foi dito, e nem sustentam qualquer coisa da razão, sendo totalmente destituídos de especulação. A segunda categoria que tem a ver com a música é aquela dos poetas, os quais são nascidos para a canção, não tanto para a especulação e a razão, mas para um certo instinto natural. Por isso, essa categoria também está separada da música. A terceira é aquela que assume a habilidade do julgamento, pois afere ritmos e melodias e a canção como um todo. E vendo que o todo é fundamentado na razão e na especulação, essa categoria é corretamente considerada como musical, e esse homem, como um músico que tem a faculdade do julgamento, conforme a especulação ou a razão, apropriada e adequada à música, dos modos e ritmos e dos tipos de melodias e suas misturas e de todas essas coisas sobre as quais se discutirá posteriormente, e das canções dos poetas.” (T. do A.) In Contemplating Music – Source Readings in the Aesthetics of Music, vol. I, pp. 73. 37 3.3. A música e os ideais do Renascimento Para entender a função da música na sociedade moderna renascentista, examinaremos a obra Il Cortegiano (O cortesão), de Baldassare Castiglione (1478-1529), tida como uma das mais representativas do período. Il Cortegiano tornou-se a base dos modos de ser e das maneiras aristocráticas, influenciando os escritores renascentistas e a nobreza da época. Nascido numa família aristocrática e considerado um cavaleiro extremamente refinado em seus modos, Castiglione descreve a formação do cortesão (o sucessor do cavaleiro medieval na sociedade) e seus atributos morais, de modo a ser um cavaleiro culto e agradável. Era uma espécie de livro de etiqueta, com a pretensão de educar e promover o bem-estar coletivo em toda a Itália. Entre outras qualidades, o cortesão (homem educado) devia ser também um músico instrumentista e conhecedor da escrita musical, pois os músicos são agradáveis aos demais homens, pela revitalização proporcionada pela música, “grandiosa em seus benefícios (...) não apenas como ornamento, mas uma necessidade para o cortesão”. (Castiglione: 1528, livro I) Nesta breve incursão, vemos que o conceito acerca da música tem nesse período uma relação direta com seu papel na educação. Para os antigos gregos, o verdadeiro músico era o filósofo, o matemático, o que pensava sobre ela por meio da razão; os instrumentistas, longe de serem considerados músicos (artistas), eram apenas “tocadores” (artesãos), a quem os grandes filósofos não davam muita importância (embora o povo se divertisse com eles). Só a partir do Renascimento a figura do instrumentista começa a ter certo destaque, embora de modo ainda bastante tímido e controlado, um pouco à maneira grega, como lemos no Livro II (Castiglione: 1528, livro II): “(...) [a música] deverá ser executada em bom estilo e com precisão. Mas cantar com o acompanhamento do alaúde é ainda melhor (...) também os instrumentos de traste são harmoniosos (...) E a música para o conjunto de violas não é menos encantadora (...) Mas acima de tudo, o momento adequado [para se tocar] é aquele em que as damas se encontram presentes, pois a visão delas suaviza o coração de quem está ouvindo, tornando-o mais susceptível à delicadeza da música, e também estimulando o espírito dos próprios músicos. Como anteriormente disse, deve-se evitar tocar na presença de um grande número de pessoas, especialmente se for gente do povo. E de qualquer modo, tudo deve ser moderado pela discrição, pois é quase impossível imaginar-se todo tipo de circunstância e, se o cortesão for um bom juiz de si mesmo, ele 38 adaptar-se-á à ocasião e saberá quando sua audiência está pronta a ouvi-lo, e quando não. E ele agirá de acordo com sua idade, pois é seguramente inconveniente e desagradável para um velho senhor grisalho, já desdentado e enrugado, tomar a viola para tocar e cantar diante de um grupo de damas, mesmo se sua execução for realmente boa. Isso porque as palavras das canções são quase sempre amorosas e, vindas da boca de um velho, elas soariam ridículas; embora por vezes, parece que o Cúpido, junto a outros milagres, possa deleitar-se em derreter até os gelados corações dos velhos.” Embora, à primeira vista, esse excerto de Castiglione possa soar semelhante aos textos gregos, ele parte de um princípio totalmente diferente, em que a essência é substituída pela aparência, característica de uma ética e de uma estética tipicamente burguesas. Revela-nos também a transição para uma concepção de música e de músico em que o instrumentista não é mais um simples artesão sem importância para a sociedade, e sua música tampouco é mero exibicionismo, ou em que o exibicionismo adquire um valor positivo. O homem da Renascença desenvolve uma percepção mais aguçada de si mesmo e se afasta dos elementos místicos e religiosos em direção ao questionamento e à busca da razão. Mais uma vez, o homem é a medida de todas as coisas, como o fora antes para Protágoras de Abdera. À volta aos ideais gregos e novas concepções de mundo exerceram enorme influência sobre os músicos e as músicas que criavam. A música profana ganha força, os instrumentos já não estão fadados à função de acompanhantes das vozes e, em razão disso, a técnica musical evolui, passando a assumir um caráter profissionalizante. Diante dessa multiplicidade de concepções, as observações de Salles são esclarecedoras. Ele aponta a história da música como uma sucessão de definições de música, sempre se sobrepondo às anteriores, seja por acréscimo, por subtração, por ampliação ou adaptação, e afirma que, ao longo do tempo, o homem tem transformado sua forma de encarar a arte dos sons e sua visão de música, sempre propondo novos conceitos, usos, formas, materiais sonoros e instrumentos. (Salles, 2004: 110) Percebemos quão distante está hoje o ensino musical das possibilidades conceituais e simbólicas de outras épocas, assim como de seu vínculo indissociável com o conhecimento humano. Retomando nossas considerações, se o saber musical enfrenta hoje uma falta de identidade e de legitimação no ensino escolar, isso se deve em parte à crescente fragmentação de sua essência e à redução de seu alcance como atividade humana. A música deixou de 39 pertencer a uma categoria intelectual para tornar-se um saber teórico-prático moldado nos preceitos estéticos ocidentais, apenas reproduzido e destituído de significado. Vemos claramente a decadência de seu valor como conhecimento, refletida na prática escolar; outrora, um conhecimento indispensável ao homem e à compreensão de sua existência, hoje, uma atividade menor, levada ao último degrau da banalidade. No entanto, esta breve incursão histórica não pretende que o ensino musical se volte a basear nas regulamentações ou na abrangência conceitual de outras épocas, mas apenas para mostrar transformações devidas a fatos sociais e culturais, eventualmente inspiradoras de possibilidades que respondam às expectativas educacionais contemporâneas. 40 4. Música na contemporaneidade 4.1. Música hoje Definir nosso objeto de estudo é uma tarefa difícil, se não impossível, pois a música é um sistema altamente complexo e vivo, e corremos o risco de uma definição particular e restrita. Assim, a constante transformação da música exige uma revisão permanente e a incorporação de novas práticas docentes. Não pretendemos abordar essas transformações em termos históricos ou discutir seus processos dinâmicos em termos de evolução musical, mas compreender como a evolução da música num contexto sociocultural implica novas e diferentes abordagens pedagógicas frente à demanda contemporânea, incluídos a relação da música com a tecnologia, o diálogo com as mídias e a produção cultural, confrontando sua essência conceitual com a aquisição de conhecimentos técnicos e tecnológicos para o desenvolvimento de habilidades práticas, intelectuais e artísticas. Acreditamos que diferentes concepções musicais correspondam a diferentes práticas pedagógicas. Ensinamos música a partir das definições que aprendemos, daquelas que têm sentido para nós ou dentro das possibilidades que vislumbramos. Portanto, o educador musical deve revisar constantemente suas concepções, expandindo seus conhecimentos, buscando enxergar seu objeto de ensino sob outros pontos de vista, sob diferentes ângulos. Se, como um saber e um produto culturalmente construído, a música passa por transformações e evoluções, assim como também a sociedade e a educação, isso não quer dizer que os conteúdos de ensino devam ser encarados levianamente como um vale-tudo, pois, ainda que sob diferentes roupagens, há uma essência intrínseca ao conhecimento musical, relacionada a seu caráter artístico, que deve ser preservada. Buscar a compreensão desse processo dinâmico pode ser um caminho viável frente à demanda contemporânea, em que música e educação parecem distanciar-se a cada dia. 41 4.2. Música e contemporaneidade Embora a música tenha características enigmáticas intrínsecas à sua natureza artística, sua presença no cotidiano contemporâneo e no âmbito educativo nos exige desvendar, na medida do possível, essa natureza de modo mais formal. Compreender a música em sentido mais amplo requer compreender seus desdobramentos e sua relação com diversos contextos (científico, cultural, social, artístico) e dimensões (comunicação, filosofia, educação, entretenimento). As demandas atuais com relação ao ensino musical nascem de uma nova significação do discurso musical. As transformações ocorridas desde o final do século XIX e o início do século XX, com o gradual esmaecimento do sistema tonal, trouxeram novos elementos e novas formas de organização do material sonoro (como vemos em Debussy, Schönberg, Stravinsky, para citar alguns compositores). De acordo com o professor e compositor Fernando Iazzetta, a composição musical acolhe hoje um número tão grande de possibilidades, que é difícil estabelecer uma gramática geral como foi o tonalismo no período polifônico da Renascença ou nos períodos Clássico e Romântico. Para Iazzetta, no século XX, cada compositor ou cada obra passa a ser um terreno de exploração e ampliação das gramáticas musicais já existentes, fenômeno que concorre para uma postura paradoxal (Iazzetta, 2001:10): “Se, por um lado, esse quadro alargou o campo de possibilidades oferecidas pela linguagem musical, por outro lado, a complexidade do discurso sonoro acabou por criar uma certa distância entre a música produzida no século XX e seus ouvintes contemporâneos. Esse fato não deixou de causar um certo desconforto no meio musical e fora dele. Nos períodos históricos anteriores, a música que se ouvia era a música que se produzia naquela mesma época. O século XX inaugura uma postura nova, e até certo ponto paradoxal, em que as músicas de outras épocas passaram a ser mais conhecidas e difundidas do que a música contemporânea. Se concordarmos que a produção artística reflete o panorama cultural de um certo momento, o fato de as práticas musicais do século XX terem um alcance tão restrito merece alguma reflexão.” Enquanto a produção musical mais elaborada da atualidade, seja erudita ou popular, é pouco conhecida e ignorada pelo grande público, a chamada cultura de massa disponibiliza seus itens de consumo em velocidade industrial. 42 Se, por um lado, a complexidade (harmônica, atonal, minimalista, dodecafônica) dessas novas formas de discurso musical tem afastado os ouvintes acostumados com os padrões previsíveis do tonalismo, por outro, as músicas produzidas hoje pela grande indústria fonográfica, embora amplamente consumidas, não se sustentam por muito tempo nos canais de veiculação, muito menos na memória das pessoas. São músicas de estação: "acabou o verão, acabou o refrão". Dado seu caráter de entretenimento rápido, essas músicas têm um período de validade muito curto, não têm conteúdo musical ou estético auto-sustentável, não oferecem ao ouvinte informações a decodificar ou compreender, e este logo perde o interesse. Podemos usar uma analogia: a música de consumo rápido é como um quebra-cabeça de poucas peças montado por uma pessoa muito experimentada: não estimula a montá-lo mais de uma ou duas vezes, pois não oferece desafio. Por sua parte, a música mais elaborada, principalmente a erudita, é como um quebra-cabeça de muitas peças a ser montado por uma criança pequena: algo muito difícil e desanimador, se não houver ajuda de uma pessoa experiente. Assim, a música mais consumida e presente nos dias de hoje ainda está sustentada no tonalismo e no passado musical. Se se tratar de uma música erudita mais elaborada, o ouvinte estará mais familiarizado com a gramática musical de Bach, Beethoven, Haydn, Mozart ou Chopin. Nas obras desses grandes compositores, há certa previsibilidade na condução harmônica e melódica, pois há basicamente um centro tonal e uma hierarquia de sete sons que se compõem em torno e para a valorização desse centro. Desse modo, mesmo sem entender nada de música, quem ouve uma obra desconhecida, seja barroca, clássica ou romântica, reconhece os padrões tonais culturalmente assimilados e de certa forma consegue assimilar seu conteúdo. Quanto mais uma obra se distancia do tonalismo e mais se aproxima dos sistemas musicais dos nossos dias, maior é o estranhamento do ouvinte. Richard Wagner é apontado por Henry Barraud como o primeiro "assassino" do sistema tonal, por introduzir nos acordes notas estranhas a eles. A desagregação e o contínuo enfraquecimento do sistema tonal possibilitaram o enriquecimento e a evolução dos elementos e da linguagem musical. Entretanto, nosso ouvido musical culturalmente treinado ainda não assimila facilmente e de prima os sucessores do tonalismo, seja o politonalismo de Milhaud, o cromatismo de Bártok, o dodecafonismo de Schönberg ou o serialismo de Boulez, para citar alguns. Falar em evolução da música pode dar a falsa impressão de que valorizamos as obras e os compositores contemporâneos em detrimento de tudo o que se refere ao passado musical (tão mais presente) representado pelo tonalismo, mas a música sofreu mutações não só quanto 43 a forma, técnica, estilos e modos de expressão, mas principalmente quanto à linguagem. Não se quer aqui julgar ou valorar este ou aquele período ou sistema − a evolução da linguagem musical de que falamos refere-se ao fato de que as criações musicais se sobrepõem umas às outras, sem que haja uma ruptura brusca, mas certa continuidade. Mesmo cientes de que na música contemporânea houve, sim, uma quebra de paradigmas, a evolução musical se dá à medida que o compositor não encontra nas técnicas e materiais utilizados por seus antecessores meios satisfatórios para expressar o que gostaria. A evolução ou transformação que vem ocorrendo na linguagem musical desde o início do século XX não pôde, no entanto, ser acompanhada e assimilada pelo público geral, daí o distanciamento da música produzida em nossos dias. Isso explica, em parte, a reprodução dos modelos de ensino praticados até hoje, idealizados e calcados sobretudo numa estética ocidental tonalista. Os conceitos e definições utilizados para se falar de música vêm confirmar essa idéia. 4.3. Música: em busca de definições Para aprofundar nosso objeto de estudo, examinaremos algumas definições de música, para reflexão. Uma visita ao Compêndio de teoria elementar da música, do compositor Osvaldo Lacerda, nos mostra uma definição clássica (Lacerda, 1966: 1): “Música é a arte do som. Este tem quatro propriedades: duração, intensidade, altura e timbre. a) Duração é o tempo de produção do som. b) Intensidade é a propriedade do som − mais fraco ou mais forte. c) Altura é a propriedade do som − mais grave ou mais agudo. Por exemplo: no piano, tocando-se da direita para a esquerda, o som vai se tornando mais grave. Tocando-se ao contrário, da esquerda para a direita, ele vai-se tornando mais agudo. d) Timbre é a qualidade do som, que permite reconhecer sua origem. É pelo timbre que sabemos se o som vem de um violino, de uma flauta, de um piano ou de uma voz humana. Todo e qualquer som musical tem, simultaneamente, as quatro propriedades. Na escrita musical, as propriedades do som são representadas da seguinte maneira: a) Duração – pela figura da nota e pelo andamento b) Intensidade – pelos sinais de dinâmica 44 c) Altura – pela posição da nota no pentagrama e pela clave d) Timbre – pela indicação da voz ou instrumento que deve executar a música” Em seu Princípios básicos da música para a juventude – de acordo com os programas de teoria musical da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro e de Canto Orfeônico dos Estabelecimentos de Ensino Secundário, Maria Luisa de Mattos Priolli define a música e seus elementos constitutivos (Priolli, 1984: 6): “Música é a arte dos sons combinados de acordo com as variações da altura, proporcionados segundo sua duração e ordenados sob as leis da estética. São três os elementos fundamentais de que se compõe a música: melodia, ritmo e harmonia. A melodia consiste na sucessão dos sons formando sentido musical. O ritmo é o movimento dos sons regulados por sua maior ou menor duração. A harmonia consiste na execução de vários sons ouvidos ao mesmo tempo, observadas as leis que regem os agrupamentos dos sons simultâneos. A melodia e o ritmo combinados já encerram um sentido expressivo musical. Para exprimir profundamente qualquer sentimento ou descrever por meio da música qualquer quadro da natureza, é imprescindível a participação em comum desses três elementos: melodia, ritmo e harmonia.” É certo que as definições acima remetem quase exclusivamente à música ocidental, mais particularmente à música européia. O material sonoro delineado e estruturado em moldes preconcebidos sempre diz respeito à experiência musical de uma determinada sociedade e cultura. São boas definições, mas não atendem às expectativas e não explicam, por exemplo, a música contemporânea de John Cage. Podemos também notar que a experiência musical no contexto sociocultural nos moldes europeus está vinculada à notação musical, à escrita, sua técnica e sua teoria. Nesse sentido, aprender música significa entre outras coisas, apropriar-se de um sistema de códigos e regras, de um alfabeto musical. Sob essa concepção, é evidente que a música é privilégio de poucos, pois é quase impossível se apropriar de um sistema altamente complexo em alguns poucos anos, em apenas 45 minutos por semana, numa classe com uma média de 30 alunos. Como dissemos antes, nosso ensino musical nas escolas era sustentado (e ainda o é, quando há) por essas 45 mesmas definições, mas a pergunta é: como a mera reprodução dessa concepção e desse saber contribui para um entendimento da música como um todo? O fato é que, ao tentar definir música, corremos o sério risco de ignorar certos ângulos desse objeto de estudo, como ocorre na conhecida parábola dos cegos que, tentando definir um elefante, o fazem cada um a partir de sua percepção particular, sem chegarem a uma noção do todo. Instado a esclarecer o que entendia por música, disse o compositor italiano Luciano Berio, numa entrevista sobre música contemporânea (Dalmonte, 1981: 5): “Sinto-me tentado a responder que a música é arte dos sons, mas correria o risco de me perguntarem o que é arte, e então seria pior. Receio que me seja impossível responder. É uma pergunta difícil e, afinal de contas, meio indiscreta. Difícil, porque a música, tanto para quem a produz como para quem a recebe (admitindo-se que seja possível essa divisão de papéis), é um conjunto de fenômenos diversos, que toma forma em regiões e níveis diferentes de nossa consciência e da realidade; receio ser impossível encerrar esse conjunto de experiências numa definição.” Para Berio, música é um processo, uma experiência humana, harmonizando e transformando natureza e cultura, dimensões empíricas, sensíveis e dimensões intelectuais, envolvendo as zonas mais profundas de nosso ser. Jota de Moraes, crítico e professor de história da música, diz que música é, antes de tudo, movimento e sentimento ou consciência do espaço-tempo. É ritmo, sons, silêncios, ruídos e estruturas que engendram formas vivas. É tensão e relaxamento, expectativa preenchida ou não, organização e liberdade de abolir uma ordem escolhida; controle e acaso; peculiar maneira de sentir e pensar. Formas de ver, representar, transfigurar e transformar o mundo. Para ele, já que “tudo é música”, todos podem ser músicos, “não apenas compondo obras a partir de certos padrões já evidentemente catalogados por determinada tradição, mas também inventando novos processos composicionais. E não deixa de ser músico aquele que interpreta uma obra alheia – seja através da simples leitura de sua representação gráfica em partitura, seja com auxílio de um instrumento. E mais: é músico aquele que ouve ativamente, criativamente, pois nem sempre colocar um disco no aparelho de som e sentar-se para ouvir o dado escolhido significa alienação. Nesse momento de escuta, o ouvinte pode muito bem estar dialogando inclusive criticamente com aquilo que está sendo reproduzido com o auxílio da técnica”. (Moraes, 1983: 9) 46 Essa visão segundo a qual todos podem ser músicos mostra um conceito aberto e em expansão; sugere uma relação de circularidade entre compositor, intérprete, ouvinte, compositor... E, assim como Luciano Berio, Moraes define a música como processo. Retomando os pilares educativos sugeridos pela UNESCO, “aprender a aprender” pressupõe tornar-se um investigador atento, que consiga relacionar diferentes elementos e abordagens através da pesquisa, da seleção e sistematização das informações; e aprender a fazer envolve adquirir conhecimentos técnicos, a fim de desenvolver habilidades práticas. Assim, os conhecimentos acerca da música como processo devem dar um amplo leque de possibilidades ao educando, que deve conhecer a música por diferentes abordagens, para escolher as técnicas e os temas com que deseja trabalhar, produzir e se expressar. O conhecimento acerca da música vai além do conhecimento de definições, conceitos, símbolos, notações, períodos, compositores... A questão é: o que fazemos ou produzimos com esse conhecimento e como nos relacionamos com a música, independentemente de sua roupagem e das informações que a cercam? Qual o sentido de se apropriar de uma linguagem, a não ser aprender a conviver, ou seja, interagir, propor, formular em torno de uma realidade? Ou aprimorar valores e atitudes, para se conhecer melhor, para sentir uma realização e satisfação baseadas no potencial criador de cada um, a fim de construir uma identidade, um projeto de vida? Ou, ainda, se apropriar de um patrimônio comum e participar de sua construção? Ler a versão de alguns compositores para uma definição de música numa ordem cronológica permite perceber que, em música, há fatos permanentes e outros ligados às circunstâncias socioculturais e a visão de mundo da época (Moraes, 1983: 43-51): “Música é a ciência que pode fazer-nos rir, cantar e dançar.” Guillaume de Machaut (c. 1300-1377) “A música é uma disciplina que torna as pessoas mais pacientes e doces, mais modestas e razoáveis. (...) Ela é um dom de Deus e não dos homens. (...) Com ela se esquecem a cólera e todos os vícios. Por isso, não temo afirmar que depois da teologia, nenhuma arte pode ser equiparada à música.” Martinho Lutero (1483-1546) “Assim como as paixões, violentas ou não, jamais devem ser expressas de forma a produzir asco, a música, mesmo nas situações as mais terríveis, nunca deve ofender o ouvido, mas agradar, continuar a ser música, enfim.” Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) “Nada é mais odioso que a música sem um significado oculto.” Frédéric Chopin (1810-1849) 47 “Gostaria que se chegasse a uma música verdadeiramente livre de motivos, ou formada por um único motivo contínuo, que nada interrompe e que jamais retorna. (...) Convenço-me cada vez mais de que a música não é, por sua essência, algo que se possa colar a uma forma rigorosa e tradicional.” Claude Debussy (1862-1918) “Gostaria de fazer uma música que satisfizesse por ela mesma, uma música que buscasse liberar-se de todo o elemento pitoresco e descritivo, e para sempre distanciada de toda localização no espaço. (...) Quero fazer apenas música.” Albert Roussel (1869-1937) “A música expressa a natureza inconsciente deste e de outros mundos.” Arnold Schönberg (1874-1951) “Não há música sem ideologia. Os mestres antigos tinham consciente e inconscientemente uma orientação política. A maioria deles apoiava naturalmente o domínio das classes superiores.” Dimitri Shostakovitch (1906-1975) “Parece-me que a música – ao menos tal como a encaro – não impõe nada. Ela pode ter como efeito mudar nossa maneira de ver, fazer-nos olhar como sendo arte tudo o que nos cerca. Mas isso não é um fim. Os sons não têm fim! Eles são, simplesmente. Eles vivem. A música é essa vida dos sons, essa participação dos sons na vida, que pode tornar-se – mas não voluntariamente – uma participação da vida nos sons.” John Cage (1912- 1992) “A música é uma arte não significante, donde a importância primordial das estruturas propriamente lingüísticas, já que seu vocabulário não poderia assumir uma simples função de transmissão. (...) Que é, então, a música? Ao mesmo tempo, uma arte, uma ciência e um artesanato.” Pierre Boulez (1925) “Há essencialmente duas perspectivas segundo as quais a música parece-me poder ser considerada uma linguagem (...); elas correspondem diretamente às duas possibilidades de engajamento dessa linguagem a serviço da realidade e da problemática social. A música é sobretudo considerada como um veículo de uma mensagem. Todas as suas capacidades descritivas são colocadas a serviço da expressão, tão eloqüente, tão co-movente (e, portanto, provocadora) quanto possível, de uma realidade que lhe é preexistente e que será finalmente a mais importante de aprender. Função duplamente voltada para o passado, para o lado passado do presente (que pode demonstrar uma persistência teimosa), já que é ela que parece ter sido tradicionalmente reconhecida para a música, e porque se trata de fazer ver aquilo que está ali. Função quase monetária, a música não é aí senão o ‘símbolo’ de outra coisa. Mas há outra possibilidade, muito mais voltada para o futuro, para aquilo que não existe mas que poderia (deveria?) existir. Portanto impossível de ser descrita, sobretudo de maneira exata (porque ainda não temos os meios mentais), sequer de ‘imaginar’; mas possível de experimentar, de suscitar sob forma fictícia pelo fato de pôr à prova modelos exemplares. A recente busca de novas formas de prática musical, com a maior participação criadora, a maior liberdade de iniciativa de todos os participantes (...) parece-me um exemplo notório dessa possibilidade.” Henri Pousseur (1929) 48 Nesses relatos, vemos uma gama de possibilidades de usos e funções do discurso musical e de seu ensino, que podem ser vistos sob a ótica da ciência, da matemática, da religião, da arte, da semiótica, da psicologia, da antropologia, da expressão, da comunicação, da cultura, seja num contexto mais conservador, seja num contexto mais livre. O contexto geográfico, social e cultural determina o material sonoro, sua organização e o papel da música numa determinada época. Certamente a opinião desses autores, sobretudo os mais recentes, pode contribuir para repensarmos o papel da música na escola, na educação e na formação dos indivíduos não como algo banal e corriqueiro, mas no que ela tem de notável, sob o aspecto da produção e do conhecimento humanos. Há também uma definição de música que não pode ser ignorada, contida Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil (RCNEI, vol. 3: 45): “(...) música é a linguagem que se traduz em formas sonoras capazes de expressarem e comunicarem sensações, sentimentos e pensamentos, por meio da organização e do relacionamento expressivo entre som e silêncio.” Essa definição mais abrangente se refere à música como uma linguagem e inclui outro material, além do som − o silêncio −, abrindo uma gama de possibilidades. Se a música é uma linguagem que se traduz em formas sonoras e não há limitações para essas formas, pensamos que está mais próxima dos referenciais musicais contemporâneos, pois abarca infinitos sistemas e técnicas, desde o uso de instrumentos convencionais até materiais inusitados como um cano, uma chaleira, um liquidificador ou um computador. Essa definição abrange desde as obras clássicas de Mozart e Debussy até John Cage, Stockhausen, Hermeto Pascoal, Stomp e Barbatuques. O RCNEI sugere que aprender música significa ter um instrumento de conhecimento de mundo através de uma linguagem específica. Mas o que significa, hoje, conhecimento de mundo, e de que mundo falamos? 49 4.4. Falar em pós-moderno A compreensão de novos processos educacionais exige uma investigação questionadora do objeto música e de seu contexto contemporâneo. Para essa compreensão, não há como fugir da análise histórica, cultural e econômica acerca da modernidade e sua possível superação: a Pós-modernidade. Para alguns autores, o termo pós-moderno é apenas um sinônimo de contemporaneidade, mas julgamos essa simplificação muito redutora. Como o tema é bastante polêmico, os pensadores contemporâneos se dividem ao tratar do assunto e compreendê-lo em suas diversas manifestações, lançando sobre ele diferentes luzes e abordagens, tornando-o deveras complexo. O uso do termo pós-moderno significando o fim da Modernidade liga-se ao fato de nossa era estar centrada na informação e na velocidade, tendo à disposição um sistema integrado e uma rede de comunicação organizada que possibilita, àqueles que podem acessála, a troca de informações e a interação quase instantânea dos continentes, e se baseia na evidência de uma consciência global e de uma atitude mental pluralista. No entanto, para outros, esses eventos não constituem uma novidade em sua essência, e a Modernidade como período histórico-cultural ainda está em curso. Seja como for, não se pode falar em Pós-modernidade sem fazer um confronto com os ideais e as características da Modernidade. Na Modernidade, o homem e o mundo deixam de ser explicados por vínculos metafísicos e religiosos, libertando-se para agir de acordo com seu próprio entendimento. Estabeleceram-se novas formas de agir e pensar, baseadas não mais numa razão metafísica, mas na razão iluminista. Entendia-se, que pelo uso da razão, o homem deveria julgar, decidir e agir de acordo com os valores éticos (através da educação), de modo a atingir uma organização social justa e hegemônica. Nesse sentido, o Iluminismo se caracterizava por uma busca dos ideais gregos, sobretudo aqueles baseados na razão aristotélica, e não mais na razão neoplatônica. Segundo Habermas, a Modernidade, embora em crise, não foi superada. Argumenta que dentro das próprias condições instauradas neste período é possível avançar, abrindo mão de uma racionalidade fechada, por meio do que chamou de “razão comunicacional”. 50 (Habermas, 1990: 289) Diz isso porque acredita que na Modernidade criaram-se condições que enclausuram a própria razão, gerando novas formas de poder, homogeneizando contextos e pessoas, impondo-se como instrumento de controle. Para aqueles que acreditam na instauração de uma nova era, a pós-moderna, a crise da Modernidade explica sua superação. O termo Pós-modernidade, diga-se, vem sendo empregado de modo bastante genérico. O problema está em nomear um movimento ainda em mutação (que ainda se produz), sem que se identifiquem melhor suas características distintivas. O pós-moderno seria talvez melhor definido como o momento de transição, no qual se vem anunciando o fim do período moderno, o que, para muitos, ainda não se consolidou. Freqüentemente pós-moderno tem se referido às condições atuais, às mudanças desencadeadas pelas tecnologias, pela comunicação de massa, pela informação fragmentada, veloz e supérflua, por vezes sem reflexão. Para Lyotard (1993: 15), é “o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes”. Alguns autores, como Santos (1986), vêem, a partir da observação dos fatos sociais, indícios significativos que sinalizam as diferenças entre a Modernidade e a Pós-modernidade. Naquela, as fábricas, os objetos, a sociedade de consumo, a notícia, a luta política, o subjetivismo, a unidade. Neste, o chip, o shopping, os signos, o espetáculo, o ecletismo, a pluralidade, os simulacros do real, o egocentrismo narcisista. Segundo Santos (1986: 9), o pós-moderno “invadiu o cotidiano com a tecnologia eletrônica de massa e individual, visando à sua saturação com informações, diversões e serviços”. Para ele, na era da informática, “lidamos mais com signos do que com coisas”. Jameson acredita que a teoria do pós-moderno é conflitante e dialética, enquanto houver incerteza sobre estarmos diante de uma ruptura ou de uma continuidade: “é apenas reflexo e aspecto concomitante de mais uma modificação sistêmica do próprio capitalismo.” (Jameson, 1996: 16) Para Jameson, é inevitável falar em pós-moderno, mas ressalva que o termo deve ser acompanhado de seus dilemas, e sua inconsistência deve ser forçosamente relatada. (Jameson, 1996: 25) Uma terceira posição sugere uma transição, ou seja, “não saímos totalmente das asas da Modernidade e nem estamos integralmente em outra era”. (Gatti, 2005: 601) Conforme Goergen (1997: 63), “Modernidade e Pós-modernidade não se encontram numa relação de superação de uma pela outra, mas numa relação dialética”. 51 Em tempo, esclarecermos que a discussão acerca da Pós-modernidade é uma tentativa de se entenderem as raízes da cultura contemporânea através de seus componentes mais representativos nas esferas social e cultural. Não tencionamos interpretar o pós-moderno, nem tampouco tomar posição na contenda, mas não podemos deixar de falar em ensino musical renovado sem nos referirmos ao processo cultural vivido pela sociedade contemporânea. As expressões culturais de nossa sociedade e sua atitude intelectual caracterizam-se pela perda de um centro17 único norteador, em prol de um pensamento pluralista, não linear. Longe de ser uma nova corrente de pensamento, ao contrário, é uma grande corrente cultural não hermética, que se amplia como uma rede ou teia. Significa uma ampliação de pensamentos, concepções e ações através de diferentes montagens, sobreposições e simultaneidades, sem a pretensão da busca do novo ou do original, mas admitindo o resgate do antigo e as similaridades com o passado. Nesse sentido, na Pós-modernidade não existe a necessidade de romper com o passado ou de negá-lo. O passado deixa de ser “ultrapassado”, para se tornar uma possibilidade. As tendências podem ser revisitadas, recicladas, justapostas e transformadas sem perderem seu caráter único, mas, ao mesmo tempo, perdendo-o. É uma era ainda sem rumo definido. Nossa postura diante desses fatores se compromete mais com as evidências, não necessariamente ligadas ao termo específico, já que uma concepção pósmoderna ou contemporânea nos permite olhar para o objeto música de uma forma mais abrangente. Antes de prosseguir, vejamos como a música se insere nesse contexto, para depois tratarmos de sua função e compreensão. 4.5. O pós-moderno na música Após as breves considerações sobre o pós-modernismo, examinaremos a expressão ligada à apreciação estética da música contemporânea. Em seu Aberturas e impasses – o pósmodernismo na música e seus reflexos no Brasil − 1970 a 1980, Paulo de Tarso Salles cita pelo menos dois usos comuns do termo. O primeiro busca uma definição estilística da “música pós-moderna”, imputando aos compositores contemporâneos a utilização de determinadas técnicas ou pensamento artístico, “como se fosse possível ser ou deixar de ser 17 Foucault, filósofo pós-moderno, designa esse universo pós-moderno sem centro como “heterotopia”. (FOUCAULT, The order of things: an archaeology of the human sciences. New York, Pantheon Books, 1970, p. 23 in GRENZ, 1997, p. 41) 52 ‘pós-moderno’” (Salles, 2003: 13). O segundo refere-se à intensa manifestação da cultura de massa, que, de acordo com o autor, é sua "parte podre". Se, de um lado, a possibilidade de escolha e a liberdade do compositor podem ser encaradas como um aspecto positivo, de outro, a redução e mesmo a supressão de qualquer rigor artístico tem incomodado alguns compositores, por sugerir maior ambição comercial. Supõe-se que a adesão ao mercado do entretenimento para as massas concorre para um “nivelamento por baixo”, a fim de tornar a linguagem musical acessível ao consumidor, e confina a música mais elaborada às universidades e aos meios mais intelectualizados, embora essas obras não fiquem totalmente de fora do mercado, pois a música erudita contemporânea tem sobrevivido como musica funcional, por exemplo, como trilha sonora de filmes. As manifestações culturais e artísticas contemporâneas tendem a seguir uma lógica capitalista, amparadas pela mídia, encerrando a época histórica das obras de arte. Segundo Walter Benjamin (1996: 168-169), a tecnologia tem um papel crucial nessa mudança, por possibilitar a reprodução em massa da obra de arte e, assim, substituir a assimilação pela posse da reprodução. A cultura como um produto (objeto de consumo) faz parte do pensamento pós-moderno e, conseqüentemente, a obra de arte perderia seu esplendor artístico original, “desfazendo-se em fragmentos perdidos no tempo e no espaço”, conforme Jameson (1996: 282): “Hoje os produtos estão, digamos, difusos no tempo e no espaço dos segmentos de entertaiment (ou mesmo nos noticiários), como parte do conteúdo, de tal forma que em alguns casos bem conhecidos (mais explicitamente em seriados como Dinastia), às vezes não fica claro quando o segmento narrativo termina e começam os comerciais (uma vez que os mesmos atores também trabalham no segmento comercial).” De fato, estamos tão acostumados com a incidência de fragmentos culturais em nosso cotidiano, que não nos damos conta do fenômeno. Ouvimos Mozart nos celulares e Vivaldi em propagandas, vemos a Monalisa em outdoors e Picasso em mousepads... Ao mesmo tempo em que permitiram a “inclusão musical”18 absoluta, levando a toda e qualquer pessoa a possibilidade de ouvir música (na televisão, no rádio, em fitas cassete, em 18 Usamos a expressão entre aspas para indicar que não se trata de uma inclusão musical efetiva, mas apenas de uma superexposição à música. 53 cds ou mesmo em centros comerciais), a pós-modernidade e seus avanços tecnológicos trouxeram também as marcas de nossa era: velocidade, fragmentação e superficialidade. Vejamos o pertinente comentário de Coelho (1995: 160): “É notável por ressaltar, seguir e reforçar a tendência mundial contemporânea de se ter (e oferecer) música por toda parte, nos saguões dos aeroportos, nos elevadores, nas salas de espera de médicos e dentistas, no interior dos consultórios dos dentistas, nos táxis, nos livings das casas e apartamentos, nos escritórios do pesquisador acadêmico e da companhia de seguros, nos altofalantes dos caminhões de gás, por toda parte, absolutamente por toda parte. Nas ruas, inclusive. Nas ruas de Tóquio, uma música constante, suave, quase subliminar, se faz ouvir de manhã à noite, através de alto-falantes dispostos a poucos metros uns dos outros, numa tentativa, talvez − é impossível deixar de pensar − de acalmar os ânimos, adocicar os sentimentos, afunilar a percepção, conduzir os pensamentos. Por falar nisso, nas granjas, currais e abatedouros também se usa música. A música é o som que combate outros sons, os sons exteriores de uma cidade sempre em construção e os sons do vizinho que insiste em fazer o universo participar de suas preferências.” Estamos submersos num mundo essencialmente sonoro. Como diz Schafer, nossos ouvidos não são como os olhos, que podem ser fechados, mas estão sempre expostos e vulneráveis, captando todos os sons do horizonte acústico e não podemos “focalizar” os sons segundo nossa vontade. A música é usada para preencher os vazios sonoros e temporais (o aparelho de som no carro ameniza o tempo perdido no trânsito) ou combater outros sons (o som ambiente do consultório dentário durante o tratamento). Preencher o vazio sonoro com música parece ser uma constante. Nesse sentido, o silêncio, tão raro em nossos dias, tende a ser encarado de modo negativo (exemplo disso é o silêncio constrangido de um elevador, quando não é aliviado por melodias "adocicadas"). Enquanto se expõem as pessoas à chamada música erudita na internet, nos filmes, nos desenhos animados, nos comerciais e no rádio, uma parcela cada vez menor da população freqüenta as salas de concerto, e já se desacostumaram de passar mais de uma hora sentadas, ouvindo atentamente, e muito menos refletindo sobre essa forma de arte. Sua recepção se dá apenas subliminar ou inconscientemente. Ilustremos o fato com um episódio curioso. Ao apresentar um concerto num programa radiofônico, o maestro John Neschling, da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, se desculpava com os ouvintes pelos ruídos (pigarros, tosses e conversas) captados durante a gravação ao vivo de uma obra de Shostakovich. Um ambiente como a Sala São Paulo, com um sofisticado tratamento acústico, que permite uma 54 escuta atenta e primorosa das nuanças timbrísticas e das variações de dinâmica, não comporta conversas ou ruídos competindo com a música. Teremos perdido nossa capacidade de ouvir? Antes do fonógrafo, criado por Thomas Edison em 1877, a presença dos músicos era indispensável para a execução e materialização sonora das obras musicais contidas numa partitura ou na memória coletiva. A música existia através do músico, e o ouvinte só usufruía desse momento se estivesse presente. A participação ativa do ouvinte na escuta diante do que se fazia ao vivo refletia-se ainda no respeito para com a obra e o intérprete. De certa forma, os ouvintes estavam atentos ao processo por trás daquele momento: o estudo individual do músico, o ensaio em grupo, as dificuldades técnicas, a interpretação, o fator humano. A notação musical, enquanto código, saía do papel e era traduzida em formas sonoras. Nessa configuração, a música tinha um sentido especial, pois, enquanto outras formas de arte − literatura, pintura e escultura − “ofereciam imediatamente a obra a quem quisesse apreciá-la, a partitura demandava ainda uma etapa mediadora da performance”. (Iazzetta, 2001b: 202) “Até o início do século XX, a projeção da performance se dava no mesmo patamar das transmissões de conhecimento da cultura oral da Idade Média, em que para se conhecer algo era preciso estar presente, estar diante do fato ou da obra de arte, de cujo único registro que se mantinha após sua apreciação era o da memória.” A preservação musical sonora essencialmente mnemônica foi substituída pela preservação com base em suportes físicos. As tecnologias que permitiram o registro musical em discos, cds, arquivos e mp3, ensejando sua cópia e reprodução, deslocaram a música para outros ambientes, sem a necessidade de um músico para decodificar os registros contidos numa partitura. O deslocamento da música para outros espaços físicos e virtuais distanciou o ouvinte do fazer musical, que deixou de ser um acontecimento para tornar-se corriqueiro. Quando o rádio foi inventado e ainda era uma revolucionária novidade tecnológica, as pessoas se reuniam ao redor dos alto-falantes para apreciar música. Ter uma rádio em casa era símbolo de status social. Em 20 de abril de 1923, Roquette-Pinto e Henrique Morize criaram a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, cuja programação era voltada para a transmissão de concertos, óperas e palestras, visando a edificação cultural do povo. Naquele momento, a utilização do rádio como um meio de entretenimento ainda não fazia parte de sua concepção. Nas palavras de Diniz (2006: 53), é difícil “para o homem do século XXI compreender o impacto do primeiro veículo de comunicação de massa do mundo”. A partir da década de 55 1930, o rádio passou a fazer parte do dia-a-dia das pessoas e perdeu seu caráter elitista e educacional com o surgimento do radinho de pilha, que “passou a ser ouvido em ambientes mais simples da sociedade – botequins, padarias, estádios de futebol e praças públicas”. (Diniz, 2006: 55) Uma das característicos da cultura contemporânea é justamente o consumo em massa de obras musicais. Walter Benjamin comenta os efeitos da reprodução (1996: 213): “(...) a técnica pode transportar a reprodução para situações nas quais o próprio original jamais poderia se encontrar. Sob a forma de foto ou de disco, ela permite sobretudo aproximar a obra do espectador ou do ouvinte. A catedral abandona seu espaço real para se plantar no estúdio de um amador; o melômano pode ouvir em domicílio o coro executado numa sala de concerto ou ao ar livre.” Com o advento da gravação e a possibilidade de se possuir uma cópia da reprodução, a audição ao vivo perdeu, de certa forma, o encanto e a música perdeu sua aura. Não é mais preciso se deslocar para se obter música − a música vai até o ouvinte. O produto final se sobressai, em detrimento dos processos envolvidos na performance musical, que ainda remetiam à própria composição. A música não mais se concentra na figura do músico, mas se projeta no e para o ouvinte. Passou a ser entretenimento, e sua diluição enquanto arte é visível. Pode-se dizer que, hoje, a música é um produto de consumo e um dispositivo funcional. O exercício intelectual de compreensão da obra de arte foi substituído pelo entretenimento superficial. A sociedade de consumo almeja experiências sensoriais, não mentais. A música moldou-se à estética do entretenimento e sua audição pura já não seduz as grandes platéias. A busca de entretenimento por parte da sociedade de massas é demonstrada por Hannah Arendt (1997: 257): “Talvez a principal diferença entre a sociedade e a sociedade de massas esteja em que a sociedade sentia necessidade de cultura, valorizava e desvalorizava objetos culturais ao transformá-los em mercadorias e usava e abusava deles em proveito de seus fins mesquinhos, mas não os 'consumia'. Mesmo em suas formas mais gastas, esses objetos permaneciam sendo objetos e retinham um certo caráter objetivo; desintegravam-se até se parecerem a um montão de pedregulhos, mas não desapareciam. A sociedade de massas, ao contrário, não precisa de cultura, mas de diversão, e os produtos oferecidos pela indústria de diversões são com efeito consumidos pela sociedade, exatamente como 56 quaisquer outros bens de consumo. Os produtos necessários à diversão servem ao processo vital da sociedade, ainda que possam não ser tão necessários para sua vida como o pão e a carne. Servem, como reza a frase, para passar o tempo, e o tempo vago que é 'matado' não é tempo de lazer, estritamente falando − isto é, um tempo em que estejamos libertos de todos os cuidados e atividades requeridos pelo processo vital e livres portanto para o mundo e sua cultura −, ele é antes um tempo de sobra, que sobrou depois que o trabalho e o sono receberam seu quinhão. O tempo vago que a diversão deveria ocupar é um hiato no ciclo de trabalho condicionado biologicamente − no "metabolismo do homem com a natureza", como Marx costumava dizer, o extenso uso que damos a tais padrões hoje em dia para julgar tanto objetos culturais como artísticos, os quais se espera que permaneçam no mundo mesmo depois que nós o deixarmos, indica com clareza o grau com que a necessidade de entretenimento começou a ameaçar o mundo cultural.” Ao ser encarada como entretenimento, a música ressurge com outra roupagem, sob novas formas de manifestação, e sobressai o relacionamento entre o áudio e o visual, uma peculiaridade da contemporaneidade. As pessoas quase não conseguem mais ficar sentadas “apenas ouvindo”, para desfrutar de um prazer auditivo. Elas querem ouvir música enquanto fazem outras atividades: nos bares e restaurantes, enquanto comem e conversam, enquanto dirigem, em forma de videoclipe, enquanto são hipnotizados pelas imagens e coreografias. É cada vez mais raro um cantor não utilizar em suas apresentações passos ensaiados, troca de figurino, jogo de luzes, fumaça ou algum artifício que atraia a atenção do público e o faça dançar. A música sozinha deixou de ser um estímulo. Adorno, no ensaio “O fetichismo na música e a regressão da audição”, refere-se a essa falta de atenção durante a escuta como “desconcentração” (Adorno, 1980: 182). Depois da era do rádio, essa desconcentração se desdobra, com a vinda da música para a televisão. 4.6. A música pós-televisão Você consome ao mesmo tempo em que é consumido. Vinheta da MTV Brasil (1993) O enfraquecimento da música como produto artístico audível é confirmado pelos videoclipes. Não podemos falar de música num contexto contemporâneo sem nos referirmos à criação da MTV (Music Television), em 1981. Além de ser um marco televisivo, tendo 57 mudado os modos de se ver e fazer televisão, ela “conseguiu detectar e reforçar certos traços de estilos da contemporaneidade” (Coelho, 1995: 159), pois uma característica marcante de nossa época é a conjunção entre som e imagem. Antes da MTV, a imagem dominava o sistema televisivo, e o som (a música) era apenas um coadjuvante, um pano de fundo. A partir de sua criação, a música passou a ser parte essencial da imagem, numa mistura indissociável. No entanto, a música apresentada na mídia, ainda que sedutora, por oferecer uma experiência sensorial visual e auditiva, acaba sendo diluída e reduzida a uma “ilustração” da imagem. No caso do videoclipe, a música acaba se colocando a serviço da imagem, que passa a ser o foco principal, embora devesse ser o contrário (isto é, a imagem a serviço da música). Em outras palavras, a música se afasta para um subplano. Quantas vezes, seduzidos por um vídeo bem elaborado e dirigido, não acabamos admitindo um subproduto musical? Além disso, não podemos deixar de mencionar também o aspecto da divulgação e publicidade do artista e seu produto. Como ícone da cultura musical pós-moderna, a MTV usa a lógica capitalista, levando à tela seus produtos híbridos musicais: um misto de “arte” e merchandising. O próprio conceito de videoclipe, com a fragmentação e velocidade das imagens, põe a música numa embalagem a ser consumida sem esforço. Nas palavras de Jameson, “não se oferece mais um objeto musical à contemplação e degustação; faz-se uma instalação sonora e se transforma em musical o espaço em torno do consumidor”. (Jameson, 1996: 304) A questão que destacamos dessa discussão é saber se as músicas apresentadas sob a forma de videoclipe são consumidas pelo prazer estético e por suas qualidades musicais ou se o ouvinte é seduzido não pelo aspecto sonoro, mas por um mascaramento produzido pelas imagens condicionantes? Façamos uma analogia para entender melhor essa questão. As crianças são seduzidas pelos restaurantes fast-food, que oferecem brinquedos e brindes para aqueles que consomem seus produtos. Uma conhecida rede desses restaurantes, por exemplo, oferece, entre outros itens do cardápio, uma caixinha com um determinado sanduíche, batatas fritas, refrigerante e um brinquedinho, numa embalagem bastante atraente. As crianças logo se identificam com a caixinha e, para ganhá-la, pedem o lanche. Na maioria dos casos, esse desejo não está relacionado ao alimento em si, mas principalmente ao brinde. Como, durante a infância, o paladar não está completamente formado, o constante consumo desse tipo de alimento se torna um hábito. Se levarmos uma criança a uma loja dessa rede e lhe oferecermos o mesmo sanduíche, batatas fritas e um refrigerante, mas sem o brinquedo, 58 provavelmente ela fará outra escolha, pois o sanduíche que se vende na caixinha não é tão gostoso quanto os outros oferecidos no cardápio. Muitas vezes é exatamente isso que acontece com as músicas contidas nas embalagens visuais (ou televisivas): seu sabor não é dos melhores e seu valor nutritivo deixa a desejar, mas se consomem assim mesmo. Se lhes subtraíssemos as imagens sedutoras, sobraria muito pouco em termos de valor estético musical. Desse modo, existe uma intenção mercadológica por trás das imagens: substitui-se a relação música/ouvinte pela relação música/consumidor, em prejuízo da obra musical e em benefício do mercado. O pior de tudo é que esse tipo de música destina-se principalmente aos mais jovens, cujo gosto estético está em formação. Compreender essas características da sociedade contemporânea é fundamental para compor o quadro analítico que pretendemos discutir. 59 5. Música e educação 5.1. O contraponto entre a música e questões educativas eminentes Pelo exposto, constatamos que toda e qualquer música está à nossa disposição, o que constitui um desafio para os educadores musicais com respeito à legitimidade e à utilidade de seu ensino na escola regular. Como vimos, a disseminação musical está fortemente ligada à cultura de massa, que, por sua vez, segundo Jameson, projeta seus produtos pelo tempo e pelo espaço como parte do conteúdo. Mas, nesses termos, essa disseminação é unilateral, posto que implica “necessariamente em uma separação entre a produção e a recepção”. (Iazzetta, 2001: 203) Encontrar meios para incorporar a música à educação dos alunos passa por essa discussão, pois, além da apreciação, o aprendizado musical envolve as ações de fazer e de analisar. Vejamos o que diz Salles (2002: 99) a esse respeito: “Antes, a música era feita por alguém, alguém deveria fazê-la para que existisse; sua construção era explícita e necessária. Hoje, essa construção não aparece, está no fundo; a música já vem pronta, como que saída de uma máquina; não há construção, há quase somente consumo. Além disso, cantavase muito mais, tocava-se com os amigos, parentes, vizinhos; a construção musical fazia parte da vida social, da comunicação interpessoal, os pais cantavam mais para seus filhos, e mais gente se arriscava a tocar um instrumento; não para ser músico profissional, necessariamente, mas para usufruir dessa linguagem que, hoje, está limitada ao ouvir, e a um ouvir sem construção. Se regressarmos ainda mais ao passado, chegaremos a sociedades em que a toda a produção musical estava ligada à existência do homem e à sua interpretação do universo.” Desse modo, não é possível criar numa proposta de ação curricular na área musical, sem nos darmos conta das demandas da contemporaneidade aliadas ao fato de os alunos preferirem as músicas disponíveis fora do contexto escolar. Se, por um lado, não podemos permitir que o conhecimento musical se reduza a uma experiência meramente cotidiana baseada no consumo (embora a escola não deva fechar os olhos para as culturas locais e os conteúdos universais), por outro, temos de pensar em mediações eficazes entre aluno e arte, bem como em despertar-lhe o interesse e motivá-lo para que goste de aprender música, de forma a construir seu conhecimento musical. 60 Nesse sentido, o professor e a escola são responsáveis por disponibilizar e garantir a continuidade nas construções do conhecimento em música, pois “a arte, por si só, não opera transformações na educação, mas a experiência com os processos de criação pode reorientar o sentido de ensinar”. (Iavelberg, 2003: 23) A música como construto humano perde seu valor artístico-educativo à medida que “a falta ou a inadequação de uma educação musical também são responsáveis [pela perda de] uma das atividades mais características do ser humano: a criação musical”. (Salles, 2002: 100) Por isso, entendemos que reverter os significados e os sentidos presentes no ensino musical de modo a consolidá-lo como conhecimento humano — tendo em vista o distanciamento entre produção/recepção, reprodução /apropriação — nos leva inevitavelmente a pensar na criação musical como alternativa viável para a construção (ao mesmo tempo em que é desconstrução)19 de um conhecimento musical. A criação musical é uma poderosa ferramenta para validar e legitimar a construção de um conhecimento musical nas escolas, considerando-se o conhecimento e o potencial criativo do aluno, sua inteligência afetiva, seus anseios e suas perspectivas, pois a criação não nasce do nada, mas subentende um amálgama de idéias, fatos, descobertas, possibilidades e técnicas conhecidas, partindo do que se sabe fazer, do que se conhece, do que se identifica ou do que se gosta. A criação musical surge de uma manipulação dos elementos constitutivos do fazer musical, organizando, ou reorganizando esses elementos na composição, no improviso, na interpretação ou mesmo na invenção de novos recursos e materiais sonoros. Assim, aprender a partir da criação é aprender a se conhecer melhor, é apreender a música em seus aspectos totalizantes e também em seus menores detalhes, para que se a desconstrua, reorganize e reinvente. A perspectiva da criação ultrapassa o consumo ou a reprodução de uma música que já existe e se abre para o fato de que podemos também compreender como ela é feita ou como foi concebida pelo compositor, mobilizando conhecimentos técnicos e afetivos. A mediação entre a música e o aluno encontra na possibilidade da criação uma conexão multidirecional, pois envolve conhecimentos, saberes e intenções que dialogam com a cultura musical existente permitindo uma expressão mais livre, visto que “a cultura e a subjetividade de cada aprendiz alimentam as produções, e a marca individual é aspecto constitutivo dos trabalhos”. (Iavelberg, 2003: 11) 19 Chamamos “desconstrução” à manipulação dos elementos constitutivos da música. 61 Além do próprio espaço/tempo, ressaltamos três condições essenciais para que a criação musical realmente permita a auto-expressão ao mesmo tempo em que colabora decisivamente para a construção de saberes musicais. Em primeiro lugar, não se pode criar ou expressar nada se não houver nada a dizer, se não tivermos informações objetivas ou impressões subjetivas a partir do contato com obras e sonoridades diversas. Em segundo lugar, não se pode criar se não houver a disposição ou a motivação para fazê-lo, e “na maioria dos casos, é a situação de aprendizagem que gera a disposição ou indisposição”. (Iavelberg, 2003: 11) Finalmente, a expressão criativa não se constitui um meio de aprendizagem e apropriação se não se dispõe de meios para concretizá-la, ou seja, se não houver materiais e condições adequadas, uma proposta clara quanto ao que se pretende e por que se o pretende, enfim, se não houver diretrizes que orientem a atividade do aluno. Mais adiante, ampliaremos essa discussão ao tratarmos dos grandes temas da educação musical e de suas práticas educativas. Por ora, basta-nos saber que a experiência criadora diz respeito à essência musical e ao indivíduo, pois nada se pode afirmar sobre essa essência e sua criação sem mencionar a essência do homem. Assim, o fato de a música estar ligada à antropologia filosófica nos impede de dar-lhe uma definição concludente, mas a construção dos saberes musicais passa ainda por outras questões, como veremos a seguir. 5.2. Saberes e sabores musicais A complexidade do objeto musical põe-nos diante de um fato curioso, tema deste estudo. Enquanto estão cercados de música fora do ambiente escolar e assim o desejam, os alunos comumente não mostram o mesmo desejo numa aula de música na escola regular, e parece que a redução da música a saberes desconexos contribui para a perda ou exclusão de seus valores intrínsecos. Como conhecimento fragmentado e reduzido, perde parte de seu sabor. Em latim, a palavra sapere tem dois sentidos: “saber” e “ter sabor”. Ampliando esse significado, podemos pensar que o conhecimento pode ser saboroso e nutritivo. Como descrever um sabor? Dir-se-ia que é algo indescritível, incomunicável. O sabor é percebido através do paladar. Suas sensações são dificilmente traduzidas em palavras. É uma experiência individual, ou seja, cada pessoa percebe os sabores através de seu paladar de uma 62 maneira única. Como descrever o sabor da água? O mesmo copo de água pode mudar de sabor, dependo da sede e da circunstância em que se o toma. Assim, passamos para uma outra questão. O conhecimento torna-se saboroso à medida que é naturalmente suculento ou “bem preparado”. Um morango bem maduro, de preferência orgânico (sem agrotóxicos), é geralmente atraente para os sentidos. Há outros alimentos, no entanto, que precisam de outros temperos para que seu sabor se realce. Partindo desse princípio, um alimento pode vir a ser algo desejável ou indigesto, dependendo de seu preparo. Em outros casos, a melhor comida do mundo perde seu valor se não tivermos fome − o corpo não os aceita. Diz a poetisa Adélia Prado: “Não quero faca nem queijo; quero é fome.” Assim é com o conhecimento. Nasce da fome. Fome de conhecer, fome de saber, fome de produzir, fome de criar. O professor pode suscitar a fome em seus alunos, assim como também o próprio assunto a ser estudado − são situações diferentes e complementares. Se suscitarmos a fome mas não providenciarmos que haja quantidade suficiente para todos ou não os ensinarmos a selecionar e preparar o alimento, a fome será vã. Também se dispusermos de um alimento desejável e não o tornarmos nutritivo (do ponto de vista intelectual), ele engordará, mas não será proveitoso. A música como disciplina é rejeitada por ser indigesta aos alunos. Os Provérbios de Salomão, no capítulo 15, versículo 17, rezam: “É melhor um prato de verduras, onde há amor, do que um touro cevado e com ele, ódio.”20 Uma refeição agradável é feita num ambiente agradável. Aprender por aprender ou para tirar uma boa nota não é fruto de um ambiente agradável. Notemos que Salomão usou a expressão “onde há amor”, ou seja, num ambiente afetuoso. Não devemos confundir o afeto com suas expressões (beijos, abraços, carinho). A palavra afeto, do latim affetare, quer dizer “ir atrás”. Se se deseja o conhecimento, se o busca; se seu gosto (mesmo sem conhecê-lo) parece bom, vai-se atrás dele. Diz o compositor popular Chico Buarque de Holanda: “Com açúcar, com afeto, fiz seu doce predileto, pra você parar em casa.” O sabor e o afeto impulsionam o pensamento e a inteligência em busca do conhecimento. Queremos alunos degustadores e, para isso, devemos propiciar-lhes um ambiente adequado. Quem sabe logramos torná-los cozinheiros? É claro que o paladar pode ser constantemente refinado. Num patamar elevado, quanto mais apurado for o paladar, mais se distingue, mais se discerne, mais se seleciona. E não é justamente esse patamar que queremos alcançar? Não criticamos tanto o gosto musical dos 20 Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas. 63 alunos e sua incapacidade de perceber as coisas belas? Quando os criticamos ou censuramos, criticamos nosso fracasso em desenvolver seu gosto ou paladar, criticamos nossos métodos de ensino enfadonhos, criticamos nossa impossibilidade de promover uma experiência artística esclarecedora, em que a música pode continuar a ser o “alimento verdadeiramente cultural”. (Platão, A república, Livro III: 401d) No âmbito da formação do gosto, também importa o aspecto cognitivo, pois muitas vezes uma pequena informação, um detalhe sobre um determinado assunto, move uma mudança de opinião. Um raciocínio, uma sinapse, uma relação que se estabeleça pode transformar nosso gosto, mesmo que isso leve algum tempo para amadurecer. Com o conhecimento musical ocorre o mesmo. Um quadro de referências − contexto histórico e artístico, sistema musical utilizado, procedimentos composicionais e estéticos, fatos que levaram o compositor a adotar este ou aquele procedimento, relações entre elementos e procedimentos dessa obra com outra − também pode ser decisivo na atribuição de novos significados ao objeto pelo aluno e na intensidade de sua motivação e de seu gosto. 5.3. A teoria cognitivista na aula de música Segundo a teoria cognitivista da aprendizagem, de David Ausubel, a cognição é o processo através do qual se origina o mundo de significados, em que o sujeito atribui significados à realidade que vive. O cognitivismo preocupa-se com o processo de compreensão, organização, integração, transformação e utilização das informações no plano da cognição, o qual entende por aprendizagem. É a abordagem cognitivista que distingue a aprendizagem mecânica da significativa. A partir dessa concepção, pesquisadores como Jerome Bruner desenvolveram teorias ligadas ao ensino propriamente dito. Bruner sugere que o ensino deve se voltar para a compreensão das relações entre os fatos e as idéias e endossa a teoria de Piaget sobre as possibilidades e os limites da criança em cada fase do desenvolvimento. Outro fator relevante para essa teoria é a motivação para o aprendizado, considerando-se três aspectos (Boch, 2001: 121): 64 • o ambiente; • as forças internas ao indivíduo (desejo, vontade, interesse); • o objeto (que o atrai ou não, podendo ou não ser fonte de satisfação da força interna que o mobiliza). A motivação mobiliza o indivíduo para a ação a partir da relação entre o ambiente, o desejo ou necessidade e o objeto. Isso supõe um indivíduo (e suas forças internas) autônomo, já que a base da motivação está em sua disposição para a ação. No entanto, num contexto educativo, o ambiente pode e deve gerar desejos e necessidades através de estímulos próprios concernentes à ação pedagógica idealizada pelo professor. O objeto (informação, conhecimento, saber), por sua vez, oferece a possibilidade de satisfação desse desejo ou necessidade e impulsiona o aluno à ação. A grande preocupação do ensino em geral − e portanto também do ensino musical − tem sido a de criar as condições para motivar os aprendizes, com base no fato de que nós, professores, temos dois problemas a resolver: 1) como criar o desejo ou a necessidade; 2) como selecionar e oferecer um objeto adequado à satisfação de ambas as partes − o aluno e o próprio professor. Bruner sugere o método da descoberta como base do processo pedagógico. Já Emília Ferrero sugere a aprendizagem pela resolução de problemas. O aluno deve ser incentivado a investigar, fazer perguntas, experimentar e descobrir e, para isso, deve ser constantemente desafiado. O professor deve tomar o cuidado de apresentar questões compatíveis com o nível cognitivo do aluno – nem tão fáceis que não representem qualquer desafio, nem tão difíceis que não se possam enfrentar − e, além disso, deve fazê-lo compreender por que o aprende, pois a motivação é gerada a partir das coisas que nos interessam e que têm sentido. A heterogeneidade de personalidades que convivem numa sala de aula se manifesta em diversos interesses e motivações. Há alunos que gostam de cantar, há os que não gostam ou têm vergonha, há os que gostam de tocar flauta, de ouvir música, os que querem aprender a decodificar os códigos musicais, os que fazem aula de música fora da escola e, portanto, se entediam com os assuntos já assimilados, há os que gostam de percussão, os que querem conhecer instrumentos exóticos e os que se interessam por história da música... Enfim, é quase impossível partir de um interesse comum, mas cada aluno pode se encontrar em diferentes partes do conjunto das atividades propostas. 65 Essa é uma situação a ser administrada pelo professor em sua prática pedagógica e, mais uma vez, a criação musical é uma possibilidade de, ao mesmo tempo: 1) introduzir conceitos e conhecimentos diversos que atendem às expectativas dos alunos, ao criarem suas próprias músicas; 2) possibilitar a interação do aluno com o objeto, instrumento ou assunto preferido, sem deixar de atender à proposta docente para a construção de seu conhecimento. Ilustrando essa circunstância, suponhamos que o professor esteja trabalhando com ritmos brasileiros. Ele pode introduzir o assunto perguntando aos alunos o que eles conhecem, ouviram ou gostam. Suas experiências podem provir de viagens, vídeos ou apresentações a que assistiram e, a partir daí, pode-se promover uma discussão sobre o assunto. O professor pode ilustrar o assunto com materiais sonoros, ao vivo, com cd ou vídeo. Assim, a aula passa a ser uma oficina, com vivências de ritmos ensinados pelo professor. Depois, o professor pede aos alunos que criem seus próprios ritmos, mudando o que eles aprenderam ou sobrepondo células rítmicas ou inventando outras, criando novas combinações ou uma notação própria. Levando-se em conta os gostos e as preferências individuais, podem-se montar grupos em que cada participante tenha seu papel − tocar, cantar, compor ou reger − e seus instrumentos preferidos. Então, os grupos podem apresentar o resultado obtido para a classe, confrontar os materiais sonoros obtidos com os ritmos estudados e avaliar o que deu certo e o que se poderia melhorar, discutindo os processos composicionais de cada equipe. Esse pequeno exemplo mostra uma situação em que o assunto planejado pelo professor foi mantido, sem que se ignorassem os interesses de cada aluno, possibilitando, dentro dos limites e expectativas de cada um, a experiência de fazer, apreciar e analisar. Além disso, o trabalho coletivo ensejou a troca de experiências e aprendizagens entre os alunos, por meio dos problemas que enfrentaram como, por exemplo, as células rítmicas, os padrões utilizados na criação, a seqüência e a ordenação desses padrões, a escolha dos materiais sonoros, o papel de cada aluno no seu grupo, a organização do ensaio etc. A heterogeneidade do grupo foi contemplada pelas várias possibilidades de criação que surgiram, sem que se as hierarquizasse, porquanto representassem escolhas de cada grupo e suas intenções criativas. 66 6. Concepção de inteligência 6.1. Uma abordagem dinâmica dos conceitos de inteligência Inteligência (do latim inter/entre e eligere/escolher) supõe a faculdade de compreender, escolhendo o melhor caminho. Para a psicologia, a inteligência é definida por sua função − promover nossa adaptação ao ambiente pela resolução de problemas. Grande parte das pesquisas de Piaget foi dedicada à inteligência. Diferentemente de outros pesquisadores de sua época, ele não estava preocupado com a medição do nível intelectual, mas vislumbrava novas possibilidades a descobrir e estudar. Piaget edificou uma de suas teses sobre a ação do sujeito, cujas estruturas cognitivas e perceptivas fundavam-se nessa ação, gerando suas estruturas cognitivas básicas. Do ponto de vista funcional, uma ação se torna mais inteligente na medida em que as relações entre o sujeito e os objetos se tornam mais complexas. Do ponto de vista estrutural, a inteligência caracteriza-se pela interdependência (qualidade da relação entre as partes e o todo que lhe corresponde) e pela reversibilidade, ou seja, a possibilidade (mental, corporal ou social) de se considerarem simultaneamente as relações entre as parte e entre as parte e o todo. De acordo com Lino Macedo (1997), só nos é possível articular passado, presente e futuro através da reversibilidade, característica de uma inteligência operatória. Como já dissemos antes, a necessidade (de origem externa ou interna) motiva a ação, e, mesmo havendo um desequilíbrio momentâneo entre o meio ambiente e o organismo, existe uma tendência a se restabelecer o equilíbrio por sucessivas assimilações e acomodações. Conforme adverte Piaget (1994), não se pode desconsiderar o aspecto afetivo da inteligência, pois, embora tenham naturezas diferentes, são indissociáveis em todas as ações simbólicas e sensório-motoras. Para ele, toda ação e todo pensamento comporta aspectos cognitivos e afetivos, e os processos de adaptação também têm um lado afetivo, visto que há o interesse (intrínseco ou extrínseco) em assimilar e acomodar o objeto. Segundo uma metáfora do próprio autor, a relação entre afetividade e cognição é análoga à da gasolina com o motor. A afetividade ativa a cognição, mas não modificaria sua estrutura; mesmo assim, o funcionamento das estruturas mentais não seria possível sem a afetividade. Assim, haveria no 67 desenvolvimento intelectual uma relação não de sucessão, mas de correspondência entre o afetivo e intelectual (Piaget, 1994: 169): “Considerando primeiramente que o afeto precederia as funções das estruturas cogniscitivas, demonstrarei que os estágios do afeto (da afetividade) correspondem exatamente aos estágios do desenvolvimento das estruturas, quer dizer, há uma correspondência, e não uma sucessão.” Como sugere Piaget, também os objetos do conhecimento são simultaneamente cognitivos e afetivos, e a relação processual cognitiva e afetiva entre objeto e indivíduo ativa e motiva sua inteligência e seu pensamento. Nessa interação, há ainda a possibilidade de um deles se sobressair (Piaget, 1994: 161): “Diz-se em geral que o pensamento é algumas vezes puro, e que outras vezes é governado pelos sentimentos. Estas são expressões impróprias, pois o sentimento acompanha sempre o pensamento. Mas, às vezes, os sentimentos, assim como o pensamento, apegaram-se às regras (às vezes morais e lógicas) de objetividade e coerência, e então o pensamento é racional; outras vezes, os sentimentos e o intelecto permanecem egocêntricos, quer dizer, preferem a satisfação do eu à verdade, e então o pensamento é pré-lógico ou ilógico.” Piaget vê na emoção e na afetividade as causas da motivação, mas adverte quanto a se considerar a como causa da compreensão, pois esta não tem a capacidade de “gerar estruturas e nem as estruturas poderiam criar a energia.” (Piaget, 1994: 220) Piaget introduz ainda um outro conceito no processo entre a afetividade e a cognição, o valor, surge de uma troca afetiva entre o sujeito e o exterior (objetos, pessoas). É o valor que determina as energias motivadoras a serem incorporadas na ação e em sua finalidade. Assim, o conhecimento musical como objeto de estudo a compreender cognitiva e afetivamente não deve deixar de considerar a significação, a validade e a utilidade, pois isso implicaria a subtração da motivação e da valoração, indispensáveis a qualquer aprendizagem. 68 6.2. Outras inteligências Em seus estudos acerca das inteligências múltiplas, Howard Gardner rejeita a idéia de uma inteligência geral e única. Para ele, Piaget “estudou apenas o desenvolvimento de uma de suas componentes, a inteligência lógico-matemática.” (Gardner apud Machado, 1995: 85) De acordos com as pesquisas do autor, o cérebro humano teria áreas distintas, em que diferentes espaços cognitivos corresponderiam às competências. Segundo Gardner, há pelo menos sete competências diferentes e, portanto, sete inteligências, cada qual com um processamento próprio de informações: 1) lingüística ou verbal; 2) lógico-matemática; 3) espacial; 4) musical; 5) cinestésica corporal; 6) intrapessoal; e 7) interpessoal. Recentemente, ele acrescentou à lista mais duas modalidades: a naturalista e a espiritual21. As concepções de Gardner acerca da existência de múltiplas inteligências − entre as quais, uma musical − implica uma mudança conceitual sobre o cérebro humano, que então não abrigaria uma memória geral, mas formas distintas de memorização e compreensão, através das “competências de concentração subordinadas a cada uma das inteligências.” (Antunes, 2003: 91) Os seres humanos seriam tão diversos quanto o são suas competências, e segundo essa teoria, as diferenças individuais são úteis principalmente para a educação, onde se devem reconhecer e respeitar os vários talentos e preferências, bem como o modo como aprende cada indivíduo. Para Gardner, a psicologia do desenvolvimento tem limitações intrigantes, pois vê a criança como um ser exclusivamente racional, um “solucionador de problemas”, e focaliza apenas determinadas formas do pensamento lógico-racional. Segundo o próprio autor, um de seus preferidos é o estudo das atividades funcionais da criança e do processamento das competências artísticas. Em seu livro Arte, mente e cérebro, Gardner estabelece muitas ligações e paralelismos entre a dita “arte infantil” e a arte e conclui que as crianças no período pré-escolar têm uma “habilidade artística natural”, explicada pelo fato de que, dos 2 aos 7 anos de idade, conhecem e manipulam diversos símbolos de sua cultura, ao passo que, depois, passam pelo “período literal”, quando dominam regras, preocupam-se com o realismo, com a “cópia fiel de formas ao seu redor”, havendo uma queda 21 O professor Nílson Machado ainda considera a existência de uma outra inteligência: a pictórica. (Machado, 1995: 104) 69 visível na criação musical e no desenho. Na pré-adolescência, a sensibilidade dos jovens se volta para os atributos mais centrais das artes: estilo, expressividade, equilíbrio e composição. (Gardner, 1999: 83-86) Diante disso, Gardner acredita que a intervenção ativa (do ambiente) é desnecessária, e basta expor as crianças aos materiais (tintas, xilofones etc.) e às obras (música, desenhos, pinturas, histórias etc.). Ele afirma ainda que só no início da vida escolar (com regras e convenções) é que o ambiente deveria assumir um papel mais ativo22, pois acredita que o desenvolvimento do indivíduo se dá pelas experiências proporcionadas pelo ambiente. Com a expressão janela das oportunidades, designa o período em que o cérebro está mais receptivo aos estímulos, buscando o desenvolvimento das múltiplas inteligências. Essa concepção vem influenciando a idéia de educação, e alguns educadores têm procurado identificar em seus alunos as características e as manifestações de tais competências, para valorizá-las. À luz dessa teoria ligada a um espectro individual de competências amplo e variado, passamos a investigar a concepção de inteligência apontada por Pierre Lévy, que consideramos complementar e ampliadora da de Gardner, pois, conforme Machado, tende-se a considerar inteligentes “não mais indivíduos considerados isoladamente, mas sistemas capazes de exibir determinadas competências.” (Machado, 1995: 82) 6.3. Inteligência coletiva O conceito de inteligência coletiva proposto por Pierre Lévy tem como suporte o conceito de ciberespaço, ou rede. Segundo Lévy (1999: 17): “O ciberespaço (que também chamarei de 'rede') é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica não apenas a infra-estrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo.” 22 Em tempo, esclarecemos que não compartilhamos completamente do pensamento do autor. 70 Entendida essa definição, o ciberespaço se torna condição essencial para o desenvolvimento de uma “inteligência distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências”. (Lévy, 2003: 28) − a chamada inteligência coletiva −, que transcende os limites do sujeito e do objeto e segundo a qual inteligente não é o “eu-indivíduo”, mas o “eu-coletivo”. Lévy considera que pensamos em interação com os outros não só de indivíduo para indivíduo, mas também no âmbito das instituições, da cultura, das regras que influenciam e participam23 de nosso pensamento. Desse modo, as relações de coletividade não se estabelecem apenas em nível social, mas também do interior do sujeito, que pensa coletivamente. Para Lévy, somos um nó de comunicação entre várias redes e, embora a consciência seja individual, temos apenas a sensação de pensar individualmente (Lévy apud Costa, 1993: 60): “Ora, não haveria pensamento se num dado momento não houvesse essa espécie de efeito de unidade cujo ponto mais elevado é a consciência, mas também não haveria pensamento se essa unidade não estivesse mergulhada numa rede múltipla e heterogênea, com elementos vivos, sociais, semióticos, afetivos etc.” Desse ponto de vista, a inteligência é resultado de relações complexas em que interagem vários sujeitos e objetos, e o sujeito pensante/inteligente “é um dos microatores de uma ecologia cognitiva que o engloba e restringe” (Lévy, 1993: 135), e a consciência, uma das interfaces entre o organismo e seu meio, deformando ou reinterpretando os conceitos herdados. A base desse pensamento está na noção de ecologia, ou “[n]o estudo das dimensões técnicas e coletivas da cognição.” (Lévy, 1993: 137) Assim, as representações se propagam nesse meio ecológico composto pelas mentes humanas (inteligências individuais), redes técnicas de armazenamento (de transformação e transmissão dessas representações) e conhecimentos que contribuem para a constituição das culturas. A fim de compreender melhor a inteligência coletiva e como ela se relaciona com as questões da contemporaneidade, analisaremos suas quatro características: 23 Mais adiante, explicamos o sentido do verbo “participar” entendido a partir do grego metékhein. 71 1) Distribuída por toda parte – é, para Lévy, um fato incontestável, pois o conhecimento não tem endereço certo e o saber se torna o que as pessoas sabem, de modo que “ninguém sabe tudo, todos sabem alguma coisa e todo saber está na humanidade.” (Lévy, 1999: 29) Todos os saberes são valorizados de acordo com seu contexto e todos têm algo para aprender ou para ensinar. 2) Incessantemente valorizada – uma inteligência deve ser empregada e desenvolvida como um recurso precioso e, ao contrário da crença geral, não se deve desperdiçála, pois há ainda muita ignorância a respeito da inteligência dos indivíduos em todos os segmentos sociais. 3) Coordenada em tempo real – é a possibilidade de coordenação e interação dos membros de um mesmo universo virtual de conhecimentos, a fim de que possam estabelecer ações, trocas e ressignificações através de novos meios de comunicação, um espaço móvel e virtual de interações sucessivas “entre conhecimentos e conhecedores coletivos inteligentes”. (Lévy, 1999: 29) 4) Mobilização efetiva das competências – o primeiro passo para essa mobilização consiste em identificar as competências e reconhecê-las em sua diversidade. Nesse ponto, Lévy nos lembra que “os saberes oficialmente válidos representam uma ínfima minoria dos que hoje estão ativos” e que reconhecer o outro em sua inteligência é contribuir para a construção de sua identidade social, ao passo que negar-lhe esse reconhecimento “alimenta o ressentimento e sua hostilidade, sua humilhação, a frustração de onde surge a violência”. (Lévy, 1999: 29) Lévy argumenta que, sem ser fixa ou programada, a inteligência coletiva nasce e cresce com a cultura, e, por meio da transmissão, da invenção ou do esquecimento, o patrimônio comum é responsabilidade de cada indivíduo. A idéia central aí é que só é possível pensar coletivamente, pois quem não estabelece essa relação dialógica não pode pensar, do mesmo modo que quem nunca falou com ninguém não aprende a falar. Mais que uma definição, Lévy apresenta um projeto humanista, centrado primeiramente no conhecimento de si mesmo e passando pelo conhecimento do outro, de forma a se conhecerem e pensarem juntos, transcendendo o “penso, logo, existo” e alcançando o “formamos uma inteligência coletiva, logo, existimos eminentemente como 72 comunidade”. (Lévy, 1999: 32) Nesse sentido, os suportes tecnológicos viriam colaborar para uma outra dimensão de comunicação dinâmica (em tempo real), mudando a concepção de pensamento e inteligência e também a linguagem, que passa a se dar também por meio de imagens, projetando nosso imaginário e nossos gestos mentais. Montado esse panorama acerca das inteligências, justificamos nossa escolha teórica pela crença de que nenhuma das três perspectivas apresentadas − inteligência cognitiva/afetiva, inteligências múltiplas e inteligência coletiva − exclui ou desmerece as demais, mas elas antes revelam um modo único de pensar, mas mais abrangente. Acreditamos ainda que a articulação dessas idéias pode concorrer para que a inteligência no âmbito escolar, sobretudo no ensino musical, venha a ser melhor compreendida, para que no ensino/aprendizagem da música se considerem várias possibilidades com respeito aos alunos, ao objeto de estudo, às sucessivas e dinâmicas relações que se estabelecem entre e a partir deles, aluno e música. Entendemos que o professor deve considerar a inteligência sob a ótica da cognição e da afetividade de Piaget e levar em conta as competências individuais, as facilidades (talentos a serem desenvolvidos) e dificuldades (a serem superadas) de cada um, conforme Gardner. Essa consideração deve contemplar também o modo próprio de aprender e estabelecer relações de cada aluno, pois nossa responsabilidade é valorizar ao máximo a diversidade dessas qualidades humanas, inclusive por novos meios de comunicação e suas interações, como propõe Lévy. 73 7. Concepção de conhecimento 7.1. O conhecimento em rede Como vimos nos capítulos iniciais, o ensino musical tradicional baseava-se em programas e saberes organizados numa determinada ordem. Os programas eram estabelecidos pelo professor, detentor do conteúdo que ensinava, e os alunos, que supostamente nada sabiam, deveriam adquiri-lo. Nesse contexto, os professores eram ativos e os alunos, passivos. A aprendizagem era avaliada por meio de provas e testes e, quando as perguntas eram respondidas corretamente (ou quando o aluno cantou e tocou “sem erros”), considerava-se que houve aprendizagem. As bases epistemológicas desse ensino calcavam-se na lógica cartesiana e positivista, e seus conteúdos (associados à técnica), no contexto da produção musical ocidental, sobretudo dos séculos XVIII e XIX. Se antes os professores de música concebiam a aprendizagem em termos de acumulação ou aquisição de conhecimentos, hoje “quase todos entendem que o conhecimento é algo que se constrói”. (Machado, 1995: 31) No entanto, Nílson Machado nos adverte para o fato de que sermos construtivistas (em termos epistemológicos) exige uma análise mais profunda, pelo fato de essa concepção ter múltiplas facetas, incluindo a idéia de uma relação hierárquica entre os conteúdos. Dessa forma, poderíamos pensar na construção do conhecimento musical como a edificação de um conhecimento, tijolo por tijolo, na qual alguns conteúdos seriam pré-requisitos de outros, mas Machado e Lévy chamam atenção para uma outra concepção, desprovida de hierarquias − a idéia de rede como metáfora para o conhecimento (Machado, 1995: 32): “A expectativa, portanto, é a de que, a partir da metáfora do conhecimento como uma rede, um amplo espectro de ações docentes possa ser redesenhado, envolvendo tanto as atividades didáticas em sentido estrito, como as que se referem aos processos de avaliação, ao planejamento, à organização curricular, à utilização de tecnologias educacionais, entre outras.” Decerto, ao adotar a idéia de rede como metáfora para a construção do conhecimento, rejeitamos a concepção tradicional de ensino-aprendizagem baseada no encadeamento linear e 74 hierárquico de conceitos e conteúdos, pois, como vimos, considerando cada sujeito uma singularidade passível de transformações, as relações não se estabelecem de modo totalmente previsível ou linear. Pensar no conhecimento como uma rede de significações implica conceber a aprendizagem como um processo dinâmico, aberto e multidimensional. As novas tecnologias da informação suscitaram novas concepções e elaborações em termos de pensamento. Desde as tecnologias convencionais (lousa, giz etc.), passando por diferentes estágios tecnológicos e culturais, a internet tem um papel relevante na divulgação de informações sob a forma de textos, sons, imagens e hipertextos. Os serviços e facilidades oferecidos por essa mídia (via e-mail, transferência de arquivos, listas de discussões), bem como o acesso rápido e instantâneo às notícias mundiais e a uma infinidade de informações (através de buscadores de informação como google e cadê), contribuíram para a incorporação da idéia de rede a outros contextos, sobretudo o educacional. Esse novo espaço, ou não espaço (por sua virtualidade), é heterogêneo e entrelaçado. Lévy define o “espaço do saber” como um espaço em permanente reconfiguração dinâmica, habitado e animado por intelectuais e imaginantes coletivos. (Lévy, 1994: 121) Esse espaço e suas formas inéditas de comunicação sem fronteiras implicam também uma nova forma de ser, através da participação. Quanto à palavra participação, cabe uma observação apoiada nos textos do professor Lauand24, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. A acepção quantitativa do verbo participar, derivado da expressão “tomar parte” (partem capere) remete à subdivisão de algo entre os participantes, que tomam parte daquilo que lhes é devido, mas o mesmo verbo tem um outro sentido, que tem um sentido imaterial (portanto não passível de alteração ou subtração) − “ter em comum”. Assim, por exemplo, participamos aos amigos a defesa de uma tese ou, como diz o próprio autor, quando “damos parte à polícia”, comunicamo-la de determinado fato. Há ainda um terceiro sentido (que remete à nossa colocação) equivale ao grego metékhein (“ter com” ou “co-ter”), estabelecendo uma relação de dependência entre o “ter” de um indivíduo (ou objeto) com o outro que “é”. Quando falamos de uma forma de ser através da participação, referimo-nos às pessoas, que, através do seu “ser”, participam do outro que “é”, por meio das relações, que se dão de forma a agregar, curvar ou deformar saberes, preferências, objetos, conhecimentos e modos de ser. 24 Lauand, Jean. A filosofia da educação no novo catecismo católico (conferência no I Congresso Latino de Filosofia da Educação, Rio de Janeiro, 11-7-2000), disponível no site: http://www.hottopos.com/index.html. 75 A interatividade e as mensagens e representações que dela derivam nesse ciberespaço são a todo instante lidas, produzidas, reproduzidas e transformadas25. Segundo Lévy, a concepção de uma inteligência coletiva confirma a existência de saberes mutantes, em constante evolução, resultados de um pensamento coletivo, pois “se os outros são fontes de conhecimento, a recíproca é imediata”. (Lévy, 1993: 28) Entretanto, esse entrelaçamento de saberes não implica automática e simplesmente uma soma, pois a interação por si só não garante ao sujeito conhecer o que o outro conhece. Trata-se aqui de uma reciprocidade em torno do aprender, das competências, da inventividade, e sobretudo de uma ação conjunta de agentes, cujo efeito combinado é maior que a soma dos efeitos individuais. A inteligência assim concebida transcende a noção de sujeito/objeto e abre espaço para que se sobressaiam as diferenças, as singularidades e as interpretações. Nesse ponto, poderíamos falar sobre o impacto da tecnologia em nossa forma de lidar com os saberes e os conhecimentos. Por outro lado, poderíamos também dizer que ela é produto de uma cultura e de uma sociedade (Lévy, 1999: 21-30) de múltiplas inteligências, pois as relações em rede se dão em vários sentidos, em constante interação e integração. Portanto, a concepção de uma inteligência coletiva não anula as múltiplas inteligências do indivíduo ou sua ação recíproca, assim como tampouco se exclui desse processo o binômio cognição/afeto. Para compreender melhor o conhecimento como uma rede de significações, consideremos alguns pontos relevantes sobre os processos cognitivos e a construção dos significados, conforme o passo a passo apresentado por Machado (1995: 138): • “compreender é apreender o significado; • apreender o significado de um objeto ou de um acontecimento é vê-lo em suas relações com outros objetos ou acontecimentos; • os significados constituem, pois, feixes de relações; • as relações entretecem-se, articulam-se em teias, em redes, construídas social e individualmente, e em permanente estado de atualização; • em ambos os níveis − individual e social − a idéia de conhecer assemelha-se à de enredar.” 25 Por exemplo, a wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A1gina_principal) é uma enciclopédia on line escrita de modo colaborativo pelos leitores. É uma página muito acessada e constantemente modificada. Ocorrem milhares de mudanças por hora, e todas elas ficam gravadas no “histórico do artigo” e nas “mudanças recentes”. Em outras palavras, o espaço virtual desse modelo comporta tanto leitores quanto escritores. 76 Além disso, Serres (apud Machado, 1995: 138) contribui para o entendimento do conhecimento como rede sugerindo que imaginemos um “diagrama em rede” num “espaço de representações” formado por vários “pontos ligados entre si por uma pluralidade de ramificações”. E Machado acrescenta que a rede constitui uma teia de significações, em que os pontos (ou nós) são significados (objetos, pessoas, proposições...) e as ligações, relações entre eles. Segundo o autor, esses nós não subsistem isoladamente, mas apenas quando se estabelecem conexões com outros. Essa metáfora permite entender que esse conceito não envolve linearidade ou encadeamento, e podemos ainda, como sugere Lévy, associá-lo ao conceito de hipertexto, em que o papel do autor se confunde com o do leitor. O hipertexto é um sistema de visualização de informação via computador, cujos documentos contêm referências internas para outros documentos (os links). Uma de suas características é a fácil publicação, atualização e pesquisa. O sistema de hipertexto mais conhecido atualmente é a world wide web (o conhecido código "www", cuja tradução literal é “rede do tamanho do mundo”), pelo qual se tem acesso a uma rede de computadores em tempo real, pela internet, através de um programa navegador, ou software. Os usuários do sistema têm livre acesso aos hipertextos na tela de seus computadores e podem seguir os links das páginas para ver outros documentos, enviar informações de volta para o servidor ou interagir com ele. Esse procedimento é conhecido por “navegar pela web”. 77 Representação gráfica da www em torno da wikipédia (enciclopédia livre) Nas palavras de Lévy, o hipertexto é a “matriz de textos potenciais”, com diversas possibilidades de associações entre os links, por meio de uma rede interligada. Comparado aos outros meios de comunicação de massa, o hipertexto tem maior interatividade. A veiculação de informações por rádio ou televisão, por exemplo, é unilateral. Esses meios transmitem uma versão dos fatos, não abrindo espaço para interações e debates; quando muito, permitem que o telespectador ou ouvinte participe por telefone, sugerindo encaminhamentos para certos programas ou escolhendo filmes ou músicas, entre opções preestabelecidas. A liberdade de estruturar a informação indo diretamente ao assunto que interessa − ou o deslocamento instantâneo por entre informações (links) − gera alterações significativas no referencial espaço-tempo (virtual-real), antes fator limitante dessa aquisição. Lévy propõe que se considere a idéia contida na “noção de hipertexto para referir-se aos mundos de significações”. (Machado, 1995: 144) Assim, além de ser uma ferramenta para a comunicação, o hipertexto serve como metáfora para a comunicação e a expressão. Nas palavras de Lévy (1993: 72): 78 “A operação elementar da atividade interpretativa é a associação; dar sentido a um texto é o mesmo que ligá-lo, conectá-lo a outros textos e, portanto, é o mesmo que construir um hipertexto. É sabido que pessoas diferentes irão atribuir sentidos por vezes opostos a uma mensagem idêntica. Isso porque, se, por um lado, o texto é o mesmo para cada um, por outro, o hipertexto pode diferir completamente. O que conta é a rede de relações pela qual a mensagem será capturada.” As pessoas recebem uma mesma mensagem de diferentes formas através das interpretações individuais, enquanto o senso comum está personificado no hipertexto através da elaboração coletiva. Assim, as inteligências individuais contribuem para a reunião de idéias, pensamentos e sistemas simbólicos, que, por sua vez, contribuem para a constituição de uma inteligência coletiva que emana desse todo. Seja individual ou coletivamente, os elementos constitutivos dessa rede de informação e conhecimento “constroem e remodelam universos de sentido”, e o hipertexto pode se tornar uma “metáfora válida para todas as esferas da realidade em que as significações estejam em jogo”. (Lévy, 1993: 25) Alguns princípios norteadores apontados por Lévy nos ajudam a caracterizar e configurar a metáfora do hipertexto num âmbito pedagógico (Lévy, 1993: 25): • “Princípio da metamorfose: a rede hipertextual está em constante construção e renegociação; • Princípio da heterogeneidade: os nós e as conexões de uma rede hipertextual são heterogêneos; • Princípio da multiplicidade e de encaixe das escalas: o hipertexto se organiza de um modo ‘fractal’; qualquer nó ou conexão, quando analisado, pode revelar-se como sendo composto por toda a rede; • Princípio da exterioridade: a rede não tem unidade orgânica nem motor interno; • Princípio da topologia: o curso dos acontecimentos é uma questão de topologia, de caminhos; s rede não está no espaço, ela é o espaço; • Princípio de mobilidade dos centros: a rede não tem centros; tem diversos centros.” 79 Com a analogia entre o hipertexto e a construção do conhecimento em rede, pretendemos mostrar que o conhecimento acerca da música deve partir de saberes essenciais a serem multiplicados e ampliados à medida que o aluno, instigado pelo professor, constrói sua própria rede de significados, estabelecendo conexões entre diversos saberes e âmbitos, como veremos adiante. Como um sistema altamente complexo e vivo, a música não pode ser compreendida apenas por suas propriedades ou por suas partes dissecadas. Não se constrói o conhecimento musical conhecendo-se só as propriedades físicas e as chamadas características do som. Dominar signos, saber localizar as notas em determinado instrumento musical ou saber tocar algumas melodias não supõe a compreensão do fenômeno musical, muito menos garante o desenvolvimento da musicalidade. Cada indivíduo estabelece um sem número de relações particulares entre objetos, ações, assuntos, disciplinas e conteúdos diversos, mobilizando saberes e percepções, compondo um quadro que é seu conhecimento musical. O professor é peça-chave na validação desse processo dinâmico, por sua posição privilegiada, que lhe permite sugerir, apresentar e reconstruir com seus alunos novos percursos de ação e reflexão que desenham esse quadro, mantendo-o em constante movimento e transformação. O pensamento artístico se caracteriza pelo modo particular de dar sentido às experiências pessoais pela percepção estética, sensibilidade, reflexão, imaginação, construção e manipulação do discurso musical. Assim, musicalizar uma criança não se resume a fazer com que ela seja capaz de discernir sons agudos/graves, fortes/fracos, curtos/longos, reconhecer timbres, ritmos, estilos musicais e instrumentos. O desenvolvimento da acuidade auditiva tem um papel importante no ensino musical, mas é de pouco proveito se encarado como um fim em si. Há muitos casos em que o aluno foi “musicalizado”, aprendeu o significado de alguns códigos na partitura ou tocou alguns instrumentos, mas continuou sem entender o significado da arte, mostrando-se incapaz de utilizar e dimensionar as informações recebidas ou de relacioná-las com outras informações ou realidades. Nesses casos, podemos afirmar que a música, como manifestação simbólica de determinada cultura, entrelaçada com questões sociais, políticas, econômicas, filosóficas e artísticas, não atingiu o aluno, incapaz de participar de sua produção e fruição. O conhecimento musical estruturado como uma rede de significações e conexões permite ao aluno percorrer e construir caminhos que relacionem sua individualidade ao processo, que se encontrem em seu espírito o particular e o universal no fenômeno artístico. 80 Essa concepção envolve repensar o ensinar/aprender e reconfigurar o conhecimento musical e seu significado na educação. Nesse sentido, algumas ações pedagógico-musicais envolvendo planejamento, organização curricular e atividades didáticas ainda são deficientes e inadequadas como, por exemplo, a idéia de uma teoria musical como pré-requisito para a prática, a ênfase dada à repetição e à reprodução e o encadeamento linear dos conteúdos desvinculados de outros assuntos ou realidades. 81 8. O conhecimento musical: revendo meios e conteúdos Para uma criança de cinco anos, arte é vida e vida é arte. Para uma de seis, vida é vida e arte é arte. M. Schafer 8.1. Grandes temas da educação musical sob uma nova ótica A formulação de uma proposta de ação curricular na área de música visa inserir o fazer musical criativo e significativo no núcleo dos currículos, contemplando conteúdos mais abrangentes e temas importantes para a formação musical e humanística dos alunos. É comum a preocupação com as matérias e conteúdos a serem ensinados, no entanto, grande parte dos professores de música das escolas regulares sentem-se inseguros quanto ao planejamento de sua disciplina, justamente pelo fato de não haver uma seqüência ou hierarquia clara com respeito ao conhecimento necessário, útil e adequado a cada ciclo ou série. A seqüência de conteúdos não é definida em nível nacional pelos órgãos que regulam o ensino no Brasil. Encontramos nos PCN diretrizes didáticas no contexto das discussões pedagógicas mais atuais, mas não exatamente conteúdos predefinidos para cada ciclo. Isso ocorre porque a própria música não admite limites ou delimitações em seus conteúdos e práticas. O aluno pode apreciar, reproduzir e conhecer a herança musical de diversas culturas, mas só poderá se apropriar dessa linguagem e se expressar artisticamente estabelecendo uma relação profunda com a arte, em que haja identificação e atribuição de sentido e significado. Processos que estimulem a manipulação criativa e analítica dos elementos constitutivos da linguagem musical podem favorecer essa apropriação. Embora a obra de arte esteja impregnada de seu tempo e espaço de origem, transcende qualquer contexto cultural ou temporal. Sua essência intrínseca e imanente é exterior à cultura e ao tempo, preservando-se seu valor ao longo da existência humana. A própria essência artístico-musical se confunde com a essência humana, já que, antes de sermos artistas somos homens, e a arte se revela a partir de uma profunda experiência e reflexão pessoal. É importante salientar que a idéia de música não é equivalente em todas as culturas. 82 O fazer musical criativo envolve o estabelecimento de valores estéticos próprios, a reflexão sobre si mesmo e o contato com outras produções artísticas, além do conhecimento de técnicas que envolvem o fazer musical. Isso explica por que a habilidade e o treinamento técnico não bastam para fazer um artista e não garantem a aproximação do aluno com o conhecimento musical, muito menos identificação ou integração. A manifestação artística surge daquilo que o homem é, do que ele transmite por meio das técnicas que conhece e da visão que tem. Se não houver conceitos e idéias que a sustentem, a técnica é nula. Se o que se expressa artisticamente são meras repetições ou reproduções, sem acréscimos, ampliações ou transformações, não se compreenderá o sentido real da arte e sua função. Mesmo a simples execução de uma música demanda a presença e a atuação do fator humano, que interpreta e reinstaura o fazer artístico. Desse modo, a estruturação do conhecimento musical que dá uma falsa sensação de organização pode isolar os objetos do seu meio e as partes de um todo, prejudicando as correlações entre os saberes, impedindo que o aluno se situe no espaço, na comunidade e no mundo e estabeleça relações entre a complexidade musical e sua vida. A curiosidade ou motivação gerada a partir da necessidade de buscarmos respostas para quem somos é a grande propulsora da investigação e da abertura de possíveis caminhos em busca do conhecimento. É também por causa da curiosidade que os assuntos se tornam interessantes. Reforçamos mais uma vez que os conteúdos isolados e destituídos de significado, ao invés de motivar os alunos, fecham portas e criam barreiras para a busca de um conhecimento cuja natureza compõe-se de subjetividade e paixão. Em outras palavras, os professores devem escolher entre buscar com os alunos valores para a construção de um sentido musical, sensibilizando-os para as maravilhas e os mistérios da música, criando oportunidades de ação e inserção nesse universo de modo que a técnica tenha um sentido maior, ou ocupar-se apenas do conhecimento advindo da repetição e da técnica, desprovidos de significado e isolados de possíveis conexões. Devem saber, no entanto, que, no último caso, correm o risco de tornar o estudo musical entediante e insuportável ao aluno, que talvez não veja razão para decorar minúcias e decifrar signos, sem passar pela saborosa aventura da descoberta, que fisga a curiosidade e impulsiona a musicalidade. Enquanto o adulto se convence de que, por exemplo, repetir é importante para melhorar a performance musical, para a criança ou para o adolescente, esse artifício é geralmente ineficaz como motivação. Para eles (e muitas vezes para o próprio adulto), é 83 preciso um sentido maior, que os lance para a obra de arte e não que os afaste dela, sentido que pode surgir de questões artísticas, históricas e culturais e que se tornam questões afetivas e do campo das vontades. Assim, entendemos que a repetição e o exercício não podem perder de vista os afetos que os motivam e tornam-nos parte de um fazer artístico, e não de um fazer vazio. Perceber claramente que a educação deve ser um despertar para a música e para a arte em geral é ter consciência da importância de um conhecimento sólido da disciplina, aliado a outros saberes, inclusive científicos, e suas conexões. O bom professor de música não deve se limitar a cumprir programas curriculares, mas, através da sensibilidade e do conhecimento, deve ampliar sua capacidade de pensar e agir sobre questões que permeiam o cotidiano dos alunos, para que levem a música para sua vida e construam novas visões de mundo. Os conteúdos musicais podem ser apenas ferramentas abstratas, para resolver problemas propostos pelos professores em sala de aula, tendo em vista uma competência técnica, mas também podem ser ferramentas concretas, ligadas a situações cotidianas, tendo em vista a sensibilização e a formação para uma “competência artística” do aluno e para a incorporação da música na vida. Esta discussão nos leva a ressignificar alguns temas recorrentes da educação musical; conteúdos que costumam ser obrigatórios nos planejamentos musicais das escolas como teoria musical, história da música, estudo de um instrumento (geralmente flauta doce) etc. O estabelecimento de signos que representam graficamente uma idéia musical foi um grande avanço, pois permitiu aos músicos e compositores conceberem discursos musicais mais complexos, favorecendo-os nos planos intelectual e da construção, além de ser um modo eficaz de registro e transmissão de idéias. Assim, a notação é um importante componente da educação musical, possibilitando uma penetração cognitiva e uma compreensão mais profunda da aquisição e da tradução da imaterialidade musical. Por trás da teoria, ou notação, musical existe uma gama infindável de escolhas, combinações e explorações, e seu domínio pressupõe uma rica vivência anterior relacionada às concepções e atividades musicais e sonoras. O processo é muito parecido com o da aquisição da leitura e escrita da linguagem formal, iniciada geralmente por volta dos 5 ou 6 anos de idade. Antes de aprender as letras, as palavras e as regras gramaticais, a criança tem um vasto conhecimento do vocabulário de sua língua e consegue se comunicar com o mundo à sua volta, decodificando aos poucos os símbolos. Imaginemos uma criança que, antes de 84 aprender a falar ou exercitar sua capacidade de comunicação e expressão, fosse introduzida à escrita e às regras gramaticais. Seria certamente incoerente e inconcebível, embora reconheçamos a necessidade do aprendizado da leitura e da escrita formal como fundamental para seu desenvolvimento intelectual e social. No entanto, parece-nos que as escolas não adotam o mesmo princípio no ensino da notação musical. Pouco se questiona a aquisição desse conhecimento, como se a imaginação, a exploração, o pensamento e a vivência da linguagem musical pudessem ser apartadas desse processo. Para Salles, o ensino da notação musical, como comumente observado, é um processo mecânico, limitado e predeterminado (Salles, 1996: 6-7): “A notação musical tem sido apresentada à criança tal como foi concebida no século XIX, quando chegou ao refinamento 'máximo', na tentativa de se registrarem os sons da música ocidental, de maneira que perdesse o menos possível a exatidão e a possibilidade de fixação. Assim, seu código, convencionado como universal e consagrado pelos grandes mestres da música ocidental, é aplicado prescritivamente à criança e transmitido de forma estática, fria e longe do centro perceptivo e inteligente da criança, obstruindo a vitalidade da música. (...) Os signos musicais que devem ser mediadores de uma relação viva entre o homem e a música, símbolos de vida, aparecem como significantes dissociados dos significados (os sons), o que produz na leitura a dissociação entre música e significação.” Assim, a introdução da notação musical, como produto de uma abstração, deve considerar o momento conceitual da criança em termos musicais e ser coerente quanto à sua utilidade e validade no processo de aquisição e construção de um conhecimento musical mais amplo. Os conteúdos musicais são forçosamente vivos e podem ser encadeados em diferentes lógicas e disposições de esquemas não lineares, variando de acordo com as relações estabelecidas por cada aluno, cada turma e cada estágio da aprendizagem. Uma partitura musical não é música, não soa, apenas representa sons que podem − ou não − ser decodificados e interpretados. Deve-se orientar a apresentação dos conteúdos teóricos em função da adequação e da necessidade de cada momento pedagógico. A notação musical poderia ser introduzida, por exemplo, numa classe de educação infantil, se fosse necessária à aquisição e ampliação da linguagem musical dessas crianças, inclusive por meio de registros gráficos alternativos para os sons ausentes. Aliás, a própria produção musical do século IX e a partir do século XX usa de notações plásticas e descrições sonoras. Por utilizarem ruídos ou camadas sonoras produzidas por computadores e por terem sido 85 concebidas segundo procedimentos composicionais contemporâneos, como acontece com a música eletroacústica, eletrônica ou dos disc-jóqueis, algumas obras não têm correspondência gráfica na notação formal. Em geral, a música contemporânea, erudita ou popular, embora amplamente presente em nossos dias, fica fora da sala de aula, pois a própria formação musical dos educadores infelizmente não discute sua utilização ou simplesmente desconhece sua existência e importância, ampliando o abismo entre a música ensinada na escola e a ouvida fora dela. Trecho de Artikulation, música eletrônica de György Ligeti, na versão gráfica de Rainer Wehinger E o mesmo acontece com o ensino da história da música. Em muitos casos, os conteúdos são dissociados dos aspectos musicais e sonoros, ou seja, estudam-se os períodos e os compositores, mas apenas cronológica e superficialmente. As informações são transmitidas oralmente ou em apostilas, mas raramente ganham vida no imaginário e no intelecto do aluno. A verdade é que se ouve muito pouca música na escola, seja por falta de recursos tecnológicos e materiais didáticos (bons cds e softwares), seja pela dificuldade − ou falta de iniciativa − de se freqüentarem concertos e apresentações ou de se convidarem músicos para tocar nas aulas. Do mesmo modo, a audição sem um preparo, isto é, sem análise, sem contexto, sem informações e observações relevantes para seu aproveitamento pedagógico, corre o risco de cair num vazio, pouco acrescentando à formação musical do ouvinte. 86 Podemos tomar como exemplo um aluno que sabe tudo sobre a vida de Beethoven, local e data de nascimento e morte, nome do pai, da mãe, dos professores, as viagens, o nome das sinfonias compostas e várias outras informações, mas não raro sabe muito pouco sobre o que realmente interessa sobre sua obra e seu processo de composição, não aproveitando efetivamente as informações adquiridas. Esse mesmo aluno poderia ouvir um caminhão de gás passando na rua e ignorar que a melodia que ele toca (Pour Elise) é do mesmo compositor que seu professor imagina que seu aluno passou a conhecer. Desse modo, a escola não deve se limitar a reproduzir o que trazem os livros didáticos, mas, na medida do possível, tornar o assunto vívido e envolvente. As informações biográficas, por exemplo, só têm sentido num contexto em que o aluno esteja motivado e envolvido com os assuntos estudados, concorrendo para uma visão mais abrangente, conforme as observações de Snyders (1992: 27): “Conhecer certos aspectos da vida do compositor pode contribuir para que se aprecie mais uma obra. A história propriamente dita, e a história da música, podem ajudar os alunos no estudo de uma grande obra, auxiliando-os a perceber como ela exprime um aspecto essencial de uma dada época, de uma determinada classe social, num determinado momento histórico (...)” Snyders acrescenta ainda que “a biografia de um compositor só prende a atenção dos alunos quando eles já estão mais ou menos sensibilizados em relação à obra”, para o quê a audição é fator essencial. Finalmente, o autor conclui com a seguinte questão: “(...) a história da música tem seu lugar no ensino da música, mas seus encadeamentos cronológicos não me parecem ser matéria escolar. Seria paradoxal propor e esperar uma história da música descontínua, que se atribuísse o objetivo de funcionar como um projetor histórico que lançasse luz sobre as obras-primas que desejamos que os alunos conheçam, reservando para depois da escola o momento de estabelecer como elas se ligam ao conjunto da produção musical?” De nossa parte, nos perguntamos pelo sentido de um estudo histórico musical que não amplia horizontes nem habilita a aluno a apreciá-lo ou a tirar proveito dele na própria trajetória musical, entendendo e fazendo conexões entre a música composta no passado e a produzida no presente. 87 E, uma vez mais, vale o mesmo para o ensino de um instrumento. A exemplo dos países europeus, nossas escolas elegeram a flauta-doce (seguida da percussão) para a aprendizagem musical nas aulas em classe, por ter um mecanismo simples e facilmente adaptável às faixas etárias, ter baixo custo e ser portátil. Comprovadamente a flauta-doce é um instrumento auxiliar na leitura musical, favorecendo a participação dos alunos numa atividade conjunta, mas muitas dessas justificativas se aplicam a outros instrumentos − como o xilofone, por exemplo −, que poderiam ser incorporados às aulas em escolas regulares. No entanto, para um ensino mais significativo e convidativo, é preciso considerar também outros aspectos como a escolha do repertório. Segundo Loureiro (2003: 170): “Um outro fator que tem contribuído para o afastamento do aluno em relação às aulas de música diz respeito ao professor, ou à escola, que insistem em trabalhar com um repertório que está em desarmonia com a música que seus alunos ouvem e apreciam fora da sala de aula. (...) Professor e aluno devem buscar um consenso ao selecionar um repertório, ou mesmo um tema, a ser abordado em sala de aula.” A autora acredita que não podemos ignorar o fato de que crianças e jovens ouvem um tipo de música diferente das que são apresentadas em aula, e que seu gosto musical deve ser levado em conta, assim como “não podemos negar-lhes a oportunidade de ampliar o campo de seu conhecimento musical.” (Loureiro, 2003: 170) Desse modo, tão importante quanto respeitar gostos e preferências de cada um é abrir-lhes caminhos para que conheçam e experimentem outras sonoridades, outras formas de interação e ação musical e outros discursos, contemplando obras consagradas, mas também as novidades musicais e a diversidade que as diferentes culturas musicais podem oferecer. Se considerarmos o instrumento musical e a própria voz como um meio de expressão e comunicação sonora, é imprescindível que o trabalho valorize ao mesmo tempo os sólidos referenciais teóricos e a realidade cultural do aluno. Segundo Souza, “a experiência musical só pode ser compreendida dentro de um sistema de valores, estruturas e organizações que são construídas historicamente”, e a inclusão de um repertório mais próximo do aluno pode ser um acréscimo em sua formação. (Souza, 2000: 175) Outra possibilidade é usar o instrumento musical para que o aluno exteriorize suas idéias por meio de improvisações coletivas ou composições. Nesse sentido, a criação musical 88 é condição para que as experiências musicais e o aprendizado do instrumento se tornem significativos e façam parte de um processo educativo, como veremos adiante. Embora o estudo do instrumento possa revelar talentos, há que considerar que nem todos os alunos têm facilidade, vocação, motivação ou disposição para esse tipo de atividade, inclusive porque, em geral, na escola regular ele não escolhe seu instrumento e impô-lo sem respeitar suas diferenças ou preferências pode suscitar desinteresse. Esse é um dos motivos pelos quais se têm preferido aulas de música fora da escola. Outra questão sobre a qual devemos refletir é a conveniência de se estender o estudo de um único instrumento por um ciclo inteiro, ou seja, por quatro ou cinco anos da vida escolar. Esse modelo de planejamento contempla a pluralidade dos alunos? Qual é o significado do conhecimento musical na escola? Queremos formar músicos ou sensibilizar o aluno para a música? Quais são as formas de se aprender e conhecer música? Como “didatizar” o conhecimento musical sem perder sua essência artística? Como conduzir esse conhecimento para que atitudes e conceitos se transformem em ação? Como motivar e incitar a curiosidade e o interesse a fim de construir conceitos mais sólidos e abrangentes? A demanda contemporânea confronta-se com uma multiplicidade de incertezas, novos conteúdos e novas visões sobre conhecimento, apropriação e transmissão da música. De modo geral, a indisciplina, o desinteresse e a falta de comprometimento dos alunos são sintomas dessa demanda. A figura e a função do professor sofreram mudanças, e os alunos têm uma postura diferente diante dele, rejeitando conteúdos e didáticas em que não vejam sentido. Se antes o professor era a autoridade máxima, respeitado sob qualquer circunstância, hoje essa autoridade deve ser conquistada. Além disso, lidamos com uma geração mais questionadora. Parafraseando Adélia Prado, ao invés de dar a faca e o queijo, temos que incitar a fome. Como já dissemos, na busca de novas concepções para uma reformulação do ensino musical, devemos pensar na construção do conhecimento como uma rede entrelaçada de conteúdos, com correlações e associações diversas, contemplando experiências, interesses, vivências e trocas entre alunos. Se, por um lado, o aluno tem maior liberdade para trilhar seus caminhos musicais, por outro, o professor tem maiores compromisso e responsabilidade perante seus alunos e o ensino, revitalizando as relações entre música, cultura musical, aluno e cotidiano, articulando as propostas pedagógicas com a realidade em constante mutação. Quanto aos temas e conteúdos musicais mais adequados a um currículo de música, optamos por uma abordagem mais abrangente da prática musical, incluindo o estudo de 89 conceitos antropológicos e filosóficos que enriqueçam as reflexões e as discussões derivadas dessa pluralidade que se pretende atingir. No contexto contemporâneo, há mais um elemento a ser incorporado às aulas de música: o computador. Na produção musical de hoje, a tecnologia da informática e o computador têm cada vez mais aplicações musicais de diferentes gêneros. 8.2. As novas tecnologias e sua aplicabilidade no ensino musical Compreender a produção musical contemporânea é compreender as ferramentas audiodigitais que permeiam e possibilitam sua existência nas culturas atuais. Como principal ferramenta dessa produção, o computador é parte indissociável da linguagem musical contemporânea. Mesmo a música produzida por instrumentos acústicos acaba sendo absorvida por processadores de sinais como equalizadores, filtros, compressores e reverberadores. Antigamente, um estúdio de gravação e produção musical era uma complexa estrutura arquitetônica e demandava um altíssimo investimento. Hoje, muitos equipamentos caros − mesas de mixagem, placas de áudio, pré-amplificadores e cabos − foram substituídos por ferramentas e aplicativos virtuais instalados num computador. Todo o equipamento necessário para a captação e produção musical de uma orquestra inteira pode caber num pequeno laptop. As tecnologias de gravação e produção, analógicas ou digitais, deram origem a novas estéticas musicais, e muitas vezes o compositor trabalha diretamente no computador, num editor de partitura ou em algum programa que lhe permita criar, editar, compilar ou mixar idéias e materiais sonoros. O padrão musical instrument digital interface (MIDI) possibilitou a comunicação entre instrumentos musicais ou entre instrumentos musicais e computador, através de um fluxo de dados digitais contendo informações como altura (que nota foi tocada), intensidade, duração e timbre. Embora uma seqüência MIDI não se refira ao áudio propriamente dito, pode-se selecionar um timbre específico fazer soar o registro. Por exemplo, podemos compor uma música numa partitura em papel, passá-la para um programa de notação musical (Encore, Finale ou Sibelius), salvar e armazenar seus dados musicais como padrão MIDI. A partir daí, podemos usar um programa “arranjador”, que transfere as informações armazenadas (melodia, ritmo, harmonia) e organiza sua execução de acordo com a preferência do compositor, fazendo a composição soar nos timbres desejados. Também é possível pegar esses mesmos dados, armazená-los num disquete ou num cd e transferi-los 90 para um teclado que lê e decodifica a informação digital sonora, transformando-os em música audível, sem a necessidade do intérprete, mas de um músico que saiba usar essas mídias. Assim, os programas de computador (Sonar, Cubase, Reason) começaram a “substituir com qualidade e eficiência as funções de diversos aparelhos eletrônicos” como seqüenciadores e sintetizadores. (Zuben, 2004: 36) Até mesmo a aparelhagem dos discjóqueis e seus toca-discos próprios para mixagem ganharam programas virtuais equivalentes, que nada deixam a desejar, em termos de possibilidades sonoras. Os aplicativos virtuais envolvidos na produção sonora são facilmente manipuláveis através dos gráficos interativos que aparecem na tela do computador. Embora, mesmo com o uso dessas ferramentas, nada substitua a formação musical e seu artesanato, recursos como recortar, copiar e colar trechos de áudio tornam-se evidentemente mais simples com o uso do computador. Embora a tecnologia digital não seja uma condição necessária para a produção musical, certamente seus recursos representam um grande avanço em relação às formas analógicas de gravação e produção, disseminando e popularizando a idéia de home studio, cuja implantação exige custos inferiores aos dos grandes estúdios, demonstrando a influência da tecnologia na linguagem musical. Em outras palavras, atualmente, os estúdios caseiros são 91 comuns e têm oferecido recursos para a composição de trilhas e jingles publicitários ou a gravação de músicas de bandas amadoras, como os conhecidos cds-demo. Com essa breve exposição, tentamos mostrar que o advento tecnológico trouxe mudanças drásticas aos procedimentos composicionais, desde os meios de se ouvir e armazenar música até as formas de se tocar e compor. As relações entre música e tecnologia estão cada vez mais estreitas. Em vista disso, o mercado musical também mudou, com a possibilidade de divulgação e distribuição dos produtos pela internet − diretamente do compositor ao ouvinte. Todas relações as sonoras foram afetadas por essa tecnologia, característica marcante do mundo contemporâneo, ou, segundo alguns autores, pós-moderno. No entanto, não devemos nos esquecer de que os veículos de comunicação massiva como o rádio, a televisão e a internet têm grande importância na disseminação de uma estética que acaba por diluir valores musicais essenciais à estética da obra de arte e instaurar uma polêmica em torno do assunto. No presente trabalho, atemo-nos às formas pelas quais essas tecnologias afetam as perspectivas e a abordagem de ensino e aprendizagem da música na escola e como soam essas mudanças aos ouvidos de professores e alunos. Nos mais velhos, a tecnologia causa ao mesmo tempo estranheza e admiração; para os mais jovens, representa novas formas de aprender e pensar musicalmente. De modo geral, os jovens têm grande interesse pelas novas tecnologias de produção, motivado em grande medida por sua familiaridade com os meios eletrônicos e digitais. Voltando à busca de uma definição ou compreensão da música no contexto contemporâneo, vemos que é impossível circunscrevê-la a um modelo único ou fechado. Há músicas e músicas, e todas elas dialogam com fatores sociais específicos e, “ao invés de falar sobre o significado como algo que a música tem, deveríamos falar dele como algo que a música produz” em diferentes contextos. (Cook, 1998: 9) Segundo essa visão, a percepção da música como produto de um determinado tempo e contexto deveria ser o cerne dos currículos escolares, que assim ofereceriam uma melhor compreensão da linguagem musical como um todo. Nessa perspectiva pedagógica, interessa-nos também estabelecer um diálogo entre a música e a tecnologia aplicável à educação musical. Alguns softwares editores de partitura como o Finale e o Sibelius têm ferramentas facilmente utilizáveis por qualquer pessoa com um mínimo conhecimento sobre teoria musical e permitem fazer tudo o que uma partitura 92 exige, em termos de sinais gráficos musicais. A edição de partituras em computador gerou mudanças na profissão de copista, que passou a dividir sua função com as impressoras a jato de tinta: ele digita as partituras da orquestra e de cada instrumento, e a impressora trata de fazer as cópias. Além disso, a possibilidade de se ouvir o que se está escrevendo facilita e estimula a participação dos mais inexperientes em linguagem musical e abrevia o tempo de criação dos profissionais. Tais softwares foram precursores de uma série de outros programas, cd-roms e sites destinados ao ensino musical. Outro software bastante utilizado pelos profissionais de áudio é o Sound Forge, desenvolvido para gravação, edição, tratamento e masterização audiodigital. Esse programa não exige nenhum conhecimento de teoria musical tradicional, pois não trabalha com partituras, mas com o áudio através do espectro de sinal sonoro, como se vê a seguir: 93 O espectro sonoro é um gráfico matemático, constituído a partir do conjunto das ondas sonoras, baseado na série de Fourier, incluindo as amplitudes das freqüências fundamentais acrescidas de seus harmônicos, ou parciais. O Sound Forge não exige conhecimentos de domínio técnico musical, mas baseia-se em conhecimentos da física acústica, que os músicos, principalmente os compositores contemporâneos, usam no processo composicional. Diante da especificidade do saber musical, cujo objeto de estudo é bem delineado, a inter-relação entre a música e a física acústica levou a questionamentos estéticos e a uma visão mais abrangente do campo musical, como explica o compositor contemporâneo Flo Menezes (Menezes, 2004: 13): “(...) os entrecruzamentos são inevitáveis, e a intersecção das artes contemporâneas com as novas tecnologias e com os instrumentos de análise, medição e especulação das ciências é inelutável e até mesmo imprescindível para a criação de obras substanciais.” No caso da composição musical, ao invés de falarmos em acústica, seria talvez mais apropriado falarmos em psicoacústica, ou seja, fenômenos relacionados à percepção sonora subjetiva. Compositores de música eletroacústica, bem como intérpretes e luthiers encontram nos conhecimentos acústicos saberes imprescindíveis e válidos para uma atuação mais investigativa sobre a matéria sonora, alterando sensivelmente a visão e o tratamento que 94 damos ao conhecimento e à música. Quanto mais aprendemos sobre as estruturas do som – matéria-prima da música –, atribuindo-lhe um valor estético baseado na consciência auditiva da linguagem musical, mais condições temos de ampliar nossa capacidade expressiva. Em outras palavras, parte do conhecimento musical relaciona-se ao conhecimento científico e, sob esse prisma, a música é arte e ciência, podendo desencadear uma série de questionamentos e interações interdisciplinares. Apesar disso, o conteúdo e os objetivos da educação musical foram mantidos ao longo dos anos num plano quase sempre superficial. A perpetuação de uma música tida como ideal e a apreciação de formas artísticas consagradas continuam sendo a tônica do currículo musical de grande parte das escolas. Neste trabalho, pretendemos discutir o atual panorama musical e os meios de acesso à informação como novos canais de conexão entre o aluno e o mundo. A tecnologia é um recurso a ser incorporado ao ensino da música, aproximando o aluno da estética atual e possibilitando sua participação nessa produção. Essa incorporação pode suscitar desconfiança no professor acostumado aos métodos de ensino tradicionais e, de fato, não é infundado o receio de que as máquinas venham um dia a substituir os músicos intérpretes, mas convém lembrar que as máquinas e a tecnologia são criações humanas e estão a serviço do homem, como instrumentos de produção e manipulação musical, e, assim como os instrumentos musicais acústicos, precisam de um ser pensante, inteligente e que tenha algo a dizer. Hoje, muitas pessoas conhecem e dominam os recursos digitais e virtuais utilizados na produção musical, mas isso não as torna proficientes na linguagem musical. Por outro lado, a aprendizagem musical aliada aos recursos e conhecimentos tecnológicos pode contribuir incisivamente para aproximar o aluno da realidade artística da atualidade, além de motivar e engendrar novos conhecimentos e saberes. O interesse suscitado pelas novas tecnologias faz com que o aluno tenha maior apreço por conteúdos que, apresentados de uma outra forma, poderiam não interessá-lo. As novas tecnologias musicais aproximam-se do brinquedo e do jogo de regras, sendo um excelente e divertido exercício de aquisição e prática musical. O aluno pode exercer sua capacidade imaginativa e criativa de modo literalmente produtivo, ou seja, os improvisos e composições coletivas ou individuais podem ser gravados, editados e armazenados em cd. Podemos usar os editores de partitura para articular e fixar conteúdos ligados à notação musical. As partituras produzidas pelos alunos podem ser impressas e distribuídas para os 95 demais. Trechos e obras musicais podem ser “sampleados”26 e modificados com o auxílio de programas audiogitais, tornando-se intervenções, releituras ou labirintos mosaicos sonoros. Podemos mixar (misturar) uma ou mais músicas, obtendo resultados sonoros inovadores. Embora, nesse contexto, tocar instrumentos também seja ideal, a inabilidade instrumental dos alunos pode impedi-los de criar suas próprias músicas ou de interpretar as de outrem; nesse caso, o computador pode ajudar bastante. Em poucas palavras, os recursos tecnológicos motivam o aprendiz a buscar conhecimento de forma teórica ou prática, através de uma prática intuitiva ou consciente, representando uma possibilidade a mais, dentre aquelas que a linguagem musical oferece. Outro motivo que valida a utilização do computador é que a música faz barulho − muito barulho. Numa aula com explorações sonoras, criações ou improvisações, um grupo pode atrapalhar a concentração, o ensaio ou a pesquisa sonora dos outros, para não falar nas salas vizinhas, e, mais uma vez, os recursos tecnológicos podem concorrer para o melhor uso do espaço e do tempo − usam-se fones de ouvido. Tivemos oportunidade de ver um computador gerenciando um trabalho criativo em sala de aula, com a participação entusiasmada dos alunos em projetos musicais que, graças a essa tecnologia, foram preservados, exibidos e tocados. Evidentemente, não se trata aqui de uma apologia ao uso indiscriminado de recursos tecnológicos, em detrimento de outras atividades ou práticas musicais, mas de mostrar que eles podem ampliar as possibilidades de ensino e aprendizagem nas aulas de música e aproximar o aluno e sua contemporaneidade da matéria musical. Os professores de música podem trabalhar “com, e nunca contra, os seus recursos” (Odam, 2000: 126), desenvolvendo estratégias, espaços e equipamentos que permitam aos alunos usarem a tecnologia e dominála. A possibilidade de interagir e explorar diferentes códigos e meios multimídia reforça o estímulo criativo. É fundamental pôr o aluno em contato com as ferramentas tecnológicas que se empregam em diversos estágios da produção e pesquisa musical, para que ele repense e analise a produção da música de seu tempo e sua própria produção, articulando saberes e conhecimentos diversos. 26 Sampler é um gravador-sintetizador que captura e acumula e pode distorcer, deslocar ou sobrepor qualquer trecho de som ou de música, além de permitir a criação de músicas calcadas em seqüências de fragmentação. 96 8.3. A criação musical no contexto pedagógico Ao longo deste trabalho, enfatizamos a experiência musical da criação como essencial para o ensino e a aprendizagem e como parte das respostas à demanda atual, e dando a figura do aluno como eixo central deste estudo, ao discutirmos a música na contemporaneidade, as concepções de inteligência e a construção do conhecimento. Uma maior atenção aos procedimentos criativos permite colocar ao alcance dos alunos meios pelos quais poderão obter conteúdos conceituais de maneira mais comprometida. Nossa experiência em sala de aula tem demonstrado que o planejamento musical cujos conteúdos estão mais próximos dos alunos favorece seu interesse e sua participação, e a criação lhes permite trabalhar e se desenvolver segundo suas habilidades e possibilidades individuais e coletivas. A estruturação de um currículo musical voltado para a diversidade e a abrangência certamente passa pela discussão de procedimentos que ensejem uma aprendizagem personalizada. Dentre eles, destacamos a criação musical como uma “perspectiva mais debaixo-para-cima”. (Hernández, 2000: 33) Em artes plásticas, dança ou teatro, são muito comuns os recursos didáticos que privilegiam o processo criativo, em que o aluno desenha, pinta, dança ou dramatiza segundo seu imaginário e suas possibilidades, e não exatamente segundo os modelos impostos pelos adultos. A composição musical também é incentivada nos currículos das escolas inglesas e norte-americanas, segundo registros de estudos e experiências docentes de Emile JaquesDalcroze, Satis Coleman, Carl Orff, Peter Maxwell Davies, Murray Schafer e John Paynter, entre outros. Um modelo educativo musical atento às demandas contemporâneas deveria focalizar mais as expressões e práticas musicais do aluno, explorando diversos modos de aprendizagem e dando acesso à criação musical. Entre as condições facilitadoras da prática criadora em sala de aula, Schillinger aponta algumas psicológicas, metodológicas e materiais (Schillinger, 1997: 3-6): 1) “Motivação dos alunos – a expressão criadora deve nascer de uma motivação interna e constantemente encorajada pelo professor; 97 2) Espaço de comunicação – instaurar um clima de segurança, para que o aluno, a partir do exemplo oferecido pelo professor, sinta-se livre e desinibido para criar e expressar suas idéias musicais; 3) Aculturação musical – o fazer artístico deve nutrir-se de uma diversidade cultural de exemplos e gestos musicais; 4) Planejamento e organização do espaço – oferecer ao aluno um espaço organizado, apropriado e planejado para as atividades de criação musical.” A produção musical deve ser amparada pela pesquisa individual ou coletiva de materiais sonoros (voz, objetos sonoros, instrumentos musicais, paisagens sonoras, cds) e pela organização de todo material a ser utilizado; é ainda imprescindível reservar um momento para a escuta, avaliação de estruturas e resultados sonoros, reflexão e discussão de todas as produções. Se possível, devem-se gravar ou filmar as produções musicais dos alunos, para que se possam analisar e confrontar os resultados com produções posteriores. Em sua tese, A reinvenção da música pela criança: implicações pedagógicas da criação musical, defendida na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, Pedro Paulo Salles aborda a criação musical do ponto de vista do aprendizado da criança, mostrando que a atividade criativa pode não apenas motivar o aprendizado musical como facilitar e contribuir decisivamente para a compreensão de conceitos e o desenvolvimento de técnicas musicais (Salles, 2002: 271): “(...) a criança encontra um fator de motivação fortíssimo nas atividades de criação musical. Essa motivação não influi apenas na atividade criadora em si, mas em todos os planos em que a criança se relaciona com a música, inclusive o afetivo e o cognitivo.” Para Salles, a criação musical é um fator positivo em muitos aspectos, pois, diferentemente dos métodos fundados na repetição ou reprodução, “sem aplicação prática” ou “numa prática sem significação”, o aprendizado musical baseado na criação implica entendimento e sentimento de realização e prazer, aumentando a vontade de aprender, conhecer e criar (Salles, 2002: 271): 98 “Muito diversa da sensação de distanciamento e frieza que lhe provoca uma aula diretiva − centrada no professor, que detém o conhecimento e o saber − é o prazer de se sentir produzindo sua música, construindo conhecimento e, ao mesmo tempo, conquistando um sentimento de autonomia. (...) Aquilo que poderia causar na criança ódio e tédio – a teoria e a técnica musical – provocalhe um sentimento de apego e cuidado, já que faz parte da constituição de sua música. Esse afeto para com o objeto de estudo, a música, somado ao prazer a à auto-estima, perfazem o plano afetivo ativado pelos processos descritos neste estudo, e que, por sua vez, ativam o interesse da criança em aprender música.” O autor afirma ainda que, no plano cognitivo, a criação musical é determinante para o desejo de aquisição de conhecimentos e procedimentos técnicos, a fim de se expressar musicalmente (Salles, 2002: 272): “Desde as primeiras improvisações e composições, mesmo aquelas mais simplórias, a criança está lidando com os elementos estruturantes da música e com sua técnica. Assim, ao invés de enfrentar anos de ensino técnico e teórico para aplicar seus conhecimentos na criação musical, aqui ela já está, desde o início, aplicando, descobrindo e inventando técnicas e teorias. Seus procedimentos composicionais podem tanto demandar quanto engendrar novos conhecimentos musicais. Ao atingirem a consciência, tais procedimentos estruturantes podem ser retomados pelo professor sob a forma de exercícios, de escalas ou outras que permitam à criança a gradual compreensão e conscientização dos procedimentos que utilizava sem consciência.” Assim, diferentemente de se tocar ou ouvir uma música pronta, a proposta pedagógica calcada no fazer musical implica um conhecimento que articula afetividade, criatividade e cognição, processo imprescindível num trabalho de educação musical condizente com as propostas e reflexões educativas atuais. Conforme afirma Salles (2002: 274): “Esse pensamento vem no sentido de que, geralmente, o indivíduo não é ensinado a ‘dizer’ o que ‘pensa’ musicalmente, como na linguagem; ou seja, o ensino tradicional de música, em sua postura positivista, vê a música como um sistema fechado a ser repetido e não a ser usado para se ‘pensar’ e se ‘expressar’ através dele.” Para Salles, a criação musical é uma atividade humana das mais importantes na constituição do nosso ser e, para Paynter, a música criativa é uma maneira de expressar idéias ou sentimentos pessoais. 99 Enfim, a discussão acerca da música e do rumo que a educação musical tem tomado no ensino escolar inclui reflexões antropológicas e filosóficas sobre o sujeito (o artista), o objeto de estudo (a música) e a educação como eixo unificador entre o artista e a arte, como veremos no próximo capítulo. 100 9. Uma visão antropológica e filosófica da arte musical 9.1. Filosofia e arte E o fim de todas as nossas explorações será chegar ao lugar de onde partimos e conhecê-lo então pela primeira vez. T. S. Elliot O que se pensava sobre música e seu papel na educação dos indivíduos na Antigüidade nos faz concluir que “a música não é apenas, como se pensa hoje, a arte de combinar tons nem o talento para reproduzi-los da forma mais agradável para os ouvidos”. (D’Olive, 2004: 25) O aspecto especulativo da música sustentado pelos povos antigos nos indica trilhas educativas que transcendem os aspectos meramente práticos. Sua influência moral e sua ação através dos elementos e fundamentos que a constituem foram exaustivamente discutidas pelos gregos na Antigüidade, abrindo espaço para a ampliação dos limites da experiência musical. Contemporaneamente, para vê-la da forma mais integral possível, podemos olhar para a música como: • linguagem − comunica e expressa idéias e sentimentos, promove interações simbólicas; • técnica − tem leis que regem os sons e suas combinações (consonância, dissonância), incluindo acústica, propagação, duração, amplitude e freqüência; • ciência humana – fruto de investigação e pesquisa, um produto cultural histórico em constante evolução; • arte − arte dos sons e dos silêncios, ou arte do tempo e do movimento através dos sons e silêncios. Essas visões diferentes e complementares abrem perspectivas que nos instigam a refletir sobre o ensino musical de nosso tempo e mostram que é possível articular múltiplas abordagens. Lia Tomás afirma que o pensamento musical contemporâneo volta a ser poliédrico e que a linguagem musical, por ser intangível, aproxima-se da filosofia (Tomás, 2002: 111): 101 “Em um sentido amplo, a mousiké equivale a conceitos do mesmo patamar de logos, cosmos e harmonia; em um sentido estrito, refere-se à organização gramatical de uma linguagem. Ora, a música dos gregos não era apenas entretenimento ou fruição estética – dada sua polimorfia, ela era ao mesmo tempo um discurso mágico, cosmológico e metafísico, e estes são os caracteres que configuram o princípio universal.” Para Tomás, a prática musical a partir do século XX retoma o conceito grego de mousiké em nova roupagem, num contexto contemporâneo. Segundo a autora, a pluralidade do pensamento musical torna a música um objeto filosófico a ser inserido nas disciplinas investigativas (Tomás, 2002: 113): “(...) se o estudo da música reassume abertamente esse diálogo social e cultural amplo, pode-se dizer que filosofia da música seria a designação mais acurada para englobar a diversidade do que se considera hoje como pensamento musical.” Esse pensamento reflete-se na pesquisa, na análise e na produção musical da atualidade. Vemos surgirem modelos pluralistas de compreensão e concepção musical, como uma rede complexa de relações. Algumas obras contemporâneas são avessas a qualquer estética consagrada e propõem a ampliação de campos sonoros e procedimentos composicionais que abalam as estruturas preestabelecidas, oferecendo interrogações e novas maneiras de se pensar musicalmente. O compositor americano John Cage é um exemplo típico. Foi um dos primeiros a usar um “piano preparado”, ou seja, com objetos (parafusos, borracha etc.) colocados entre as cordas para modificar o som e diversificar os timbres. Em 1952, Cage compôs uma obra intitulada 4’33’’, cuja interpretação requer que o pianista sentese ao piano e fique em silêncio por 4 minutos e 33 segundos, sem tocar nota alguma. Instigando a reação da platéia, essa obra convida os ouvintes a perceberem os ruídos e sons ambientes. Também é o autor de Imaginary Landscape n°4 para 12 rádios. São 12 rádios ligados e sintonizados em estações diferentes. Cage rompe completamente o conceito tradicional de música, estimulando uma percepção destituída de valores preconcebidos. Nas palavras do próprio compositor (Cage, 1985: 96): 102 “Enquanto se estuda música, as coisas não são claras. Depois de estudar música, homens são homens e sons são sons. Isto é, no começo, a gente pode ouvir um som e dizer imediatamente que não é um ser humano ou algo que se deva olhar; é agudo ou grave – tem um certo timbre e potência, dura um certo lapso de tempo e a gente pode ouvi-lo. A gente depois decide se é agradável ou não, e gradativamente desenvolve uma série de gostos e aversões. Enquanto se estuda música, as coisas ficam um pouco confusas. Sons já não são só sons, mas são símbolos: dó, ré, mi, fá, sol, lá, si. Sustenidos e bemóis. (...) Se um som tiver a desgraça de não ter um símbolo ou se ele parecer complexo demais, é ejetado do sistema: é um ruído não musical.” As composições de Cage nos abalam ao quebrar regras e romper os limites impostos à música. Para ele, temos que “eliminar todos os pensamentos que separam a música da vida”. (Cage, 1985: 97) A responsabilidade do artista é libertar sua arte, deixá-la existir em ambientes mutáveis. Assim, a música é uma experiência artística criadora e transformadora. A arte contemporânea não dá respostas, mas faz perguntas que reforçam a importância da investigação existencial. Estamos interessados em saber de que maneira as práticas docentes são afetadas por esse pensamento. Além da abrangência em termos de conteúdos, como pode o ensino musical ser renovado sob uma ótica que nos reporta a um passado longínquo, à própria mousiké dos gregos? Como a filosofia ou a antropologia filosófica podem contribuir para a discussão em torno das práticas e demandas docentes? Uma das formas de a humanidade se conhecer é observar, analisar e avaliar suas próprias ações, experiências e produções culturais. A investigação existencial, ou a importância de conhecer a si mesmo, foi um dos principais estímulos para o nascimento da filosofia ocidental. Sócrates (V a.C.), um dos primeiros filósofos gregos, diz ter iniciado sua pesquisa filosófica depois de ler a frase Conhece-te a ti mesmo escrita num templo. Conhecer a si mesmo significa olhar-se e às próprias experiências, analisando e avaliando-as como ações no mundo. Afinal, qual é a função da arte? Precisamos dela? Nesse sentido, a canção Comida, de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto, lança alguma luz: 103 “Desejo, necessidade, vontade. Bebida é água. Comida é pasto. Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? A gente não quer só comida, A gente quer comida, diversão e arte. A gente não quer só comida, A gente quer saída para qualquer parte. A gente não quer só comida, A gente quer bebida, diversão, balé. A gente não quer só comida, A gente quer a vida como a vida quer. Bebida é água. Comida é pasto. Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? A gente não quer só comer, A gente quer comer e quer fazer amor. A gente não quer só comer, A gente quer prazer pra aliviar a dor. A gente não quer só dinheiro, A gente quer dinheiro e felicidade. A gente não quer só dinheiro, A gente quer inteiro e não pela metade.” Essa canção expressa o desejo do ser humano para além das necessidades básicas de sobrevivência. Queremos algo mais. Temos desejos maiores − de conhecimento e de arte. A palavra grega philosophia quer dizer amor à sabedoria, noção que expressa o desejo de sentido, verdade, justiça, felicidade e beleza, além da necessidade de se conhecer o significado da própria realidade. O que a arte teria em comum com a filosofia? O filósofo alemão Josef Pieper afirma que a filosofia e a arte podem nos levar a transcender o “mundo do trabalho”. Segundo Pieper, “mundo do trabalho” é o mundo da utilidade, da produtividade, dominado pelo objetivo; é o mundo das necessidades e do produto. Sua pretensão “torna-se cada vez mais total e procura sempre engolir toda a existência humana”, pois diariamente nos ocupamos da “existência meramente física”, envolvidos e preocupados com a alimentação, o vestuário, a habitação etc. (Pieper, 1981: 3-5) Num mundo marcado por atividades e esforços diários em busca de sobrevivência material e física, o ensino musical aparece como algo que causa estranheza, um luxo indigno 104 de ser levado a sério. As necessidades e as exigências do mundo do trabalho superam nossa capacidade imaginativa, no sentido de conceber uma disciplina que não tenha utilidade dentro do mecanismo de sobrevivência no qual estamos submersos. A capacidade de transcender os limites da sobrevivência e da necessidade física é alcançada pela realização do mirandum (contemplação, mistério, o que é admirável), isto é, pela capacidade de o homem se admirar com o mundo que o rodeia. Pieper nos fala dos abalos que atingem as raízes de nossa existência, entre eles o ato de filosofar, a experiência artística e poética. Citando São Tomás de Aquino (apud Pieper, 1981: 6) − “o filósofo se parece com o poeta, porque ambos se ocupam do mirandum, do que é admirável, daquilo que suscita o pasmo e o estupor” −, Pieper coloca o filósofo no mesmo patamar do artista, pois arte e filosofia, como experiências humanas, têm sentido em si mesmas. E o que deu origem à filosofia? Segundo Aristóteles, em sua Metafísica, foi o thauma, o espanto, a perplexidade (Aristóteles, A: 982b): “Com efeito, foi pelo espanto (thauma) que os homens começaram a filosofar, tanto no princípio como agora; perplexos, de início, ante as dificuldades mais óbvias, avançaram pouco a pouco e enunciaram problemas a respeito das [dificuldades] maiores, como os fenômenos da Lua, do Sol e das estrelas, assim como da gênese do universo. E o homem que é tomado de perplexidade e admiração julga-se ignorante (por isso o amigo dos mitos [filómito] é de um certo modo filósofo, pois também o mito é tecido de maravilhas); portanto, como filosofavam para fugir à ignorância, é evidente que buscavam a ciência a fim de saber, e não com uma finalidade utilitária.” Assim, a arte é inútil. Qual o significado da música no mundo das necessidades? Nenhum. Ela é tão inútil quanto a filosofia. No entanto, apesar de inútil, a música é indispensável. Sua existência está condicionada à existência humana, e seu contexto está vinculado a diversas culturas. A experiência artística transcende o mundo do trabalho, pois através dela passamos a existir, ela nos faz lembrar27 quem somos, de onde viemos e para onde vamos. A arte sensibiliza nossa condição humana. Quem não vê seu valor ou não se entrega à sua magia 27 Da sabedoria árabe, o professor Jean Lauand recolhe uma máxima segundo a qual “o homem é um ser que se esquece” (na língua árabe, a palavra usada para designar “homem” é insan, ou “aquele que esquece”). http://www.grupotempo.com.br/tex_memoria.html 105 pode se brutalizar ou “coisificar”. Sem a arte, seríamos como um cavalo com antolhos, que só enxerga numa direção, não consegue ver além dela. A sábia Adélia (Prado, 1991: 199) escreveu: “De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo.” A música, como algo que é, em sua essência, existência e contexto, se justifica no currículo escolar não só por sua utilidade, mas principalmente por sua função transcendente e humanizadora. A verdadeira aprendizagem artística ocorre quando o aluno é despertado para a capacidade de se admirar com o mundo, quando passa a ter olhos e ouvidos que vêem e ouvem a beleza muitas vezes oculta. Falando sobre a música, Pieper esclarece (Pieper, 1998: 1): “(...) não é só porque a música é mirandum, uma das coisas mais maravilhosas e misteriosas do mundo. Não é só, tampouco, pelo fato de que 'musicar' é uma atividade da qual se poderia dizer que é um oculto filosofar − um exercitium metaphysices occultum − da alma que, sem saber, filosofava, como diz Schopenhauer, na sua profunda discussão para o estabelecimento de uma metafísica da música. O que a música sempre traz − e esse é o fato mais decisivo − ao campo de visão do filósofo é a sua proximidade da existência humana, uma característica específica que torna a música necessariamente objeto essencial para todos os que refletem sobre a realização humana.” A música só pode ser compreendida num nível mais profundo quando acontece a autorealização, quando participamos de sua criação. O verdadeiro artista não descreve o mundo − ele mesmo participa de sua criação, revelando-se no compromisso com sua paixão e na fidelidade para consigo mesmo. Participar de sua criação implica conhecer intimamente o objeto música e estar em contato com a essência humana, expressando sentimentos através da interpretação, improvisação ou composição. Se o conhecimento sobre música nasce do abalo (mirandum) e do espanto (thauma), a criação artística envolve um dramático embate entre artista e arte. Lembrando que o verdadeiro abalo é um defrontar-se com sua existência, devemos evitar o “pseudo-abalo”, como adverte Pieper (1981: 7): “Existem pseudoformas de arte, uma pseudopoesia que, em vez de romper as abóbadas da ocupação diária, como que se compraz em pintar a parte interna da cúpula e, mais ou menos abertamente, entrega-se à poesia política ou ‘utilitária’, escravizando-se ao mundo do trabalho; tal ‘poesia’ não transcende, nem sequer na aparência.” 106 Nas pseudoformas de arte, passamos a não perceber mais qual é a função da arte. Quando tentamos trazer a experiência estética para a cadeia das utilidades, a arte se torna pseudo-arte. Isso acontece quando ensinamos música pensando em estimular a inteligência, quando a usamos como apoio didático, a fim de assimilar melhor as disciplinas que serão exigidas no vestibular, quando queremos que o aluno toque algo com que não se identifica na festa escolar, quando obrigamos o aluno a decorar datas e biografias de compositores sem nenhum significado para ele. Quando o mirandum, próprio da arte, dá lugar ao simples entretenimento, nos privamos da transcendência e contribuímos para a alienação, pela negação de uma perspectiva maior e mais profunda. Sendo a música uma linguagem abstrata em sua essência, a dificuldade de sua compreensão (supondo que toda compreensão demanda uma apreensão) é ainda mais evidente em suas formas mais elaboradas, sufocadas pela cultura de massa e seus produtos facilmente digeríveis. Além de obstar a transcendência, um falso abalo pode nos aprisionar no mundo da utilidade. Pensar ideologicamente na música como um produto fixo, pronto, utilitário, é um engodo para professores e alunos. A ideologia do discurso que defende o ensino musical baseado em seus supostos benefícios como estimulação da inteligência ou aumento da concentração, como no difundido O efeito Mozart28, desvia o foco dos verdadeiros objetivos. Na concepção de Pieper, na ideologia, não nos perguntamos sobre quem somos, pois há uma idéia fixa − todos pensam igualmente e não a questionam, porque há uma resposta pronta. Edgar Morin nos lembra que “a possessão por uma idéia, uma fé, que dá a convicção absoluta em sua verdade, aniquila qualquer possibilidade de compreensão de outra idéia, de outra fé, de outra pessoa.” (Morin, 1999: 99) Não nos interessa só obter respostas, é preciso saber formular perguntas. A contemplação e o sentimento de assombro nos sugerem perguntas. O conhecimento se inicia com perguntas e o ambiente deve permiti-las. Andrei Tarkowski fala do objetivo da arte relacionando-a a questões filosóficas (Tarkowski, 1998: 38): 28 Don Campbell (2001), em seu livro O efeito Mozart, sugere que as melodias de Mozart ajudam a combater diversos males do corpo e mudar a disposição geral das pessoas, além de desenvolver o aprendizado, fortalecer a mente e liberar a criatividade. 107 “(...) o objetivo de toda arte – a menos, por certo, que ela seja dirigida ao ‘consumidor’, como se fosse uma mercadoria – é explicar ao próprio artista e aos que o cercam para que vive o homem e qual é o significado de sua existência. Explicar às pessoas a que se deve sua aparição ao planeta ou, se não for possível explicar, ao menos propor a questão.” Desse ponto de vista, a arte pode não ter uma utilidade prática, embora tenha uma função bem definida, que está na idéia da arte como conhecimento de si e assimilação do mundo. Nos RCNEI, a música é apresentada como conhecimento de mundo, como um instrumento para compreendê-lo. Tarkovski afirma que “através da arte, o homem conquista a realidade mediante uma experiência subjetiva.” (Tarkovski, 1998: 39) O conhecimento musical, portanto, se dá em dois planos. Primeiro, através dos conhecimentos úteis (com função prática), que nos ajudam a entendê-la e fazê-la. Segundo, através dos conhecimentos inúteis (sem função prática), ou dos prazeres e alegrias nela contidos. A educação musical deve se preocupar com esses dois conhecimentos: os úteis, por fornecer meios para sabê-la, e os inúteis, por fornecer razões. Posto que a criação artística se funda na experiência humana, é fundamental que no processo de formação musical o aluno saiba quem é ou possa se descobrir. Quanto mais se conhece, quanto mais toma consciência de si, mais a pessoa se torna autêntica, crítica e criativa diante de sua realidade. Queremos dizer que a educação musical só atinge seu sentido integral se estiver focalizada no ser humano, no aluno. Os sons, os ritmos, as melodias e as harmonias são apenas meios para dar vazão aos diferentes modos de pensar, agir, ver e transformar o mundo ao redor através da música. Portanto, o objetivo da música nos currículos escolares deveria ser o desenvolvimento global do indivíduo. Essa idéia é corroborada por Koellreutter, de acordo com alguns princípios que orientam sua postura como educador (apud Britto, 2001: 18): “A atualização de conceitos musicais, de modo a viabilizar a incorporação de elementos presentes na música do século XX no trabalho musical. O relacionamento e a interdependência entre a música, as demais artes, a ciência e a vida cotidiana. A improvisação como uma das principais ferramentas para a realização do trabalho pedagógico-musical. O objetivo maior da educação musical: o ser humano.” 108 É interessante perceber como alguns compositores contemporâneos como Koellreutter, Schafer e Paynter, para citar apenas alguns, têm uma visão atenta e coerente com o tempo em que vivemos, privilegiando a prática criativa contra a mera reprodução, imitação e repetição diluídas em seu significado musical. Especulativamente, acreditamos que isso se deve a seu conhecimento e a sua prática em processos criativos. Como as didáticas contemporâneas incluem a criação musical, o professor que exercita as práticas composicionais tem mais competência (conhecimento) e técnica (aspecto expressivo) para reconhecer esse processo no outro. Através de sua própria experiência, esse professor/compositor sabe que a educação musical significativa deve privilegiar a criação, a reflexão e o questionamento. Ao relatar suas experiências com estudantes de música nas escolas, o compositor canadense Murray Schafer usa a expressão “o compositor na sala de aula”. É importante lembrarmos aqui que grandes compositores como Bach, Beethoven e Mozart também deram aulas e que seus métodos e recursos didáticos envolviam composição e criação musical. A intimidade do compositor com a criação artística o incita a compartilhar sua paixão, propondo relações criativas com a música. Isso não significa que os professores de música devem necessariamente ser compositores, mas que no íntimo de cada um deles deveria haver um artista, um poeta apaixonado, entusiasmado e comprometido com a arte a ser compartilhada. Se a inteligência é ativada e motivada pelo aspecto afetivo, aprendemos melhor quando vivenciamos a paixão do professor por seu ensino, quando gostamos da pessoa que nos ensina, quando somos valorizados como ser pensante, inteligente e capaz. O mestre que tem um brilho nos olhos contagia seus discípulos, e os professores que sentem essa paixão sabem valorizar seu ensino, não só ensinando os alunos a memorizar coisas que para eles não têm sentido, mas levando-os a atuar e pensar. E Iavelberg complementa (Iavelberg, 2003: 12): “É necessário que o professor seja um estudante ‘fascinado’ por arte, pois só assim terá entusiasmo para ensinar e transmitir a seus alunos a vontade de aprender. Nesse sentido, um professor mobilizado para a aprendizagem contínua, em sua vida pessoal e profissional, saberá ensinar essa postura a seus estudantes.” Aprender a pensar supõe inteligência, vontade de aprender, afetividade, curiosidade ou paixão. Se a arte exerce fascínio sobre aqueles a quem toca, esse fascínio desperta a inteligência. Os fascinados descobrem formas de construir conhecimento a partir do desejo de conhecer. A perda desse desejo também é comentada por Salles, que lamenta a neutralização 109 crescente da música enquanto arte e a significativa redução do maravilhamento. Considera que hoje se perdeu a dimensão da música “como uma surpreendente invenção humana”. (Salles, 2002: 100) No ensino da arte, o professor deve abrir mão do controle em alguns momentos, relegando um saber em prol de um sabor, indo além da superfície e mergulhando com os alunos em águas mais profundas. Se precisa ensinar aquilo que sabe − o saber aprendido e acumulado por gerações anteriores −, e transmitir aos alunos uma herança cultural, também é preciso ensinar aquilo que “não sabe”: os saberes que não são transmitidos por palavras, mas apenas percebidos, além de favorecer aqueles a serem descobertos pela pesquisa. Ser um professor especialista em música não significa estar enclausurado em torno de um saber específico que não dialoga com outros saberes, conteúdos ou disciplinas. Morin descreve a hiperespecialização como uma especialização fechada em si mesma, que “impede tanto a percepção do global (que ela fragmenta em parcelas), quanto do essencial (que ela dissolve).” (Morin, 1999: 41) Afirma que o conhecimento especializado é uma forma particular de abstração, ou seja, “abs-trai”, extrai um objeto de seu contexto, de seu todo. A redução do todo a partes fragmentadas e sem conexão, sem contextualização, torna o complexo (de complexus – o que foi tecido junto) simples (Morin, 1999: 42): “O princípio de redução leva naturalmente a restringir o complexo ao simples. Assim, aplica às complexidades vivas e humanas a lógica mecânica e determinista da máquina artificial. Pode também cegar e levar a excluir tudo aquilo que não seja quantificável e mensurável, eliminando, dessa forma, o elemento humano do humano, isto é, paixões, emoções, dores e alegrias.” A música em sua complexidade perde sua inteireza quando consideramos apenas suas partes técnicas. O conhecimento reduzido a fragmentos não pode ser assimilado nem integrado, pois não se conhece o todo, não há apreensão do que foi tecido junto, que, assim, não constitui um saber. O levantamento de dados históricos pertinentes nesta dissertação visa sustentar nossa proposição de se ver a música como um todo, de se perceber que ela é complexa e multidimensional. Como totalidade, a música tem propriedades que não podem ser compreendidas só pelo ensino repetitivo, reprodutor e superficial. Seguindo o raciocínio de 110 Pascal29, precisamos conhecer as partes dessa teia complexa, para recompor o todo a partir desse conhecimento particular. A complexidade do conhecimento musical deve-se ao fato de seus elementos constitutivos serem diferentes, inseparáveis e complementares. A relação dinâmica entre o todo e as partes vem ao encontro da idéia de um conhecimento em rede a ser permanentemente organizado, desorganizado, alterado e reconstruído. A faceta multidimensional da música se revela sob diversos prismas. Se o professor não estiver preparado para tornar a sala de aula num ambiente propício para o contato vivo e criativo com a música, concorrerá para a alienação e para a segregação entre música e vida e entre música e aluno. O objetivo maior da educação musical é o ser humano, e a música é “uma contribuição para o alargamento da consciência e para a modificação do homem e da sociedade”. (Koellreutter, 1997: 72) Por isso, a música deve ter uma abordagem aberta e integradora, que reconheça a unidade na diversidade, permitindo a compreensão do homem, pois, como arte, transita por aspectos ligados à filosofia, à antropologia, à história... Enfatizamos que a aprendizagem musical se dá no encontro entre professor e aluno e entre aluno e música. O professor é um mediador, peça-chave na articulação de um conhecimento íntegro, pois sua postura e suas concepções podem promover "a simplicidade e a capacidade para admirar a realidade”, a partir dos âmbitos (realidades) envolvidos nesse processo. (Pieper apud Lauand, 1987: 124) 9.2. Âmbitos O pensamento musical multidimensional abre espaço para questões referentes à compreensão do homem, ele mesmo incluído nessa forma de se conceber a música. O homem pertence à música, mas é capaz de separar-se para explorá-la, para dela se apropriar e com ela se expressar, de modo a apreender e agir sobre a realidade. 29 Pascal, Pensées (texto estabelecido por Leon Brunschwicg). Ed. Garnier-Flammarion, Paris, 1976: “(...) sendo todas as coisas causadas e causadoras, ajudadas ou ajudantes, mediatas e imediatas, e sustentando-se todas por um elo natural e insensível que une as mais distantes e as mais diferentes, considero ser impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tampouco conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes. 111 O conhecimento musical se dá quando há abertura para a exploração e a descoberta de sua riqueza e de seus aspectos mensuráveis e imensuráveis. Cada um deles deve ser estudado em função do todo, pois o conhecimento musical não se reduz a processos intelectivos, envolve também aspectos sensoriais e afetivos. Trata-se de ser primeiramente tocado pela música para depois buscar compreendê-la. Para compreender os vínculos entre música e aluno no campo educativo e formativo, consideraremos o pensamento de Alfonso López Quintás e alguns de seus conceitos originais: âmbito e encontro. Quintás vê o homem e as realidades que o cercam como âmbitos. No dicionário, a palavra “âmbito” é definida como um espaço delimitado, uma esfera de ação ou pensamento. No pensamento filosófico quintasiano, “âmbito é toda realidade dinâmica, aberta, capaz de estabelecer diálogo com outras realidades, originando novas e irredutíveis realidades”. (Brandão, 2003: 11) Como ser corpóreo, o indivíduo é delimitado por seu corpo e pelas possibilidades que este lhe dá. Como ser, o homem não se reduz a seus limites corporais, mas os extrapola, abrangendo um espaço muito mais amplo à medida que influencia outros homens, retém e projeta o tempo em passado e futuro. Assim, o homem é um âmbito por excelência, e, por definição, está aberto a toda experiência sensorial e contemplativa, podendo estabelecer vínculos com outras realidades, pessoas ou objetos. Quintás propõe um conceito original, em que considera também os objetos como âmbitos. Os objetos fazem parte da realidade quando se abrem ao relacionamento com o sujeito. Realidades, a princípio vistas como objetos, também podem se converter em âmbitos. Um objeto pode ultrapassar sua condição de realidade objetiva quando adquire um valor sentimental inestimável e se torna âmbito, mas isso só acontece se ele nos transporta para uma outra realidade já vivida ou sentida, trazendo-nos lembranças ou algum outro tipo de conexão que implica um valor. Uma aliança, por exemplo, é objeto porque tem forma, peso e medidas, mas torna-se âmbito quando simboliza a união entre duas pessoas (âmbitos) que se amam. E o mesmo acontece com uma partitura. Como objeto, é papel e tinta, como âmbito, convida a tocá-la e nos dá possibilidades de recriação interpretativa (Quintás, 2004: 108-109): “Pego a partitura de uma obra desconhecida para mim e coloco-a sobre a estante do piano. Nesse momento, a partitura e o instrumento estão próximos a mim. A obra, no entanto, encontra-se a distância. Por ora, em relação a mim, ela é algo distante, externo e estranho. Todavia, como sei ler os sinais contidos na partitura, a obra, desde seu distanciamento, apela para mim ou convida-me 112 a aceitar suas possibilidades de jogo e a entrar numa relação de presença e intimidade. Eu aceito o convite, respondo positivamente e começo a procurar uma realidade que me chama e impulsiona a criar com ela um nexo profundo, tão profundo e decisivo que dele depende sua existência plena como obra e a minha, como pianista. Na partitura, a obra está latente, em estado de carência, como uma Bela Adormecida que precisa do beijo do Príncipe Azul para voltar a viver. O pólo evocador da obra, que em cada momento a conduz à existência, é o intérprete.” Segundo Quintás, a partitura permite ao intérprete buscar a obra porque de alguma forma ele está nela, “está instalado em seu campo de possibilidades de jogo”. O intérprete responde ao convite da partitura de modo receptivo e ativo, configurando e sendo configurado por ela. O intérprete mediano atende às indicações da partitura e conhece seu instrumento pela precisão técnica que domina. O bom intérprete, além de atender a essas exigências, “age como que absorvido no diálogo imediato com ela”, deixando os elementos técnicos como que em segundo plano. Embora mantenha a partitura diante de si, ele a transcende quando vê a obra em si mesma, fazendo surgir a impressão de liberdade e facilidade ao tocar, e com isso toca também seus ouvintes. (Quintás, 2004: 111) Dessa forma, dois âmbitos se entrelaçam: pianista e partitura. Embora o exemplo seja bastante particular, vê-se que a relação entre âmbitos e as possibilidades derivadas dessa relação podem acontecer em todas as vertentes da vida humana e explicam os mistérios que envolvem a atividade artística. O conceito de âmbito indica o estabelecimento de uma relação potencial, gerando possibilidades novas e muitas vezes imprevisíveis nos diversos níveis da realidade. Essa idéia é fundamental para apreendermos o indivíduo em suas interações com as realidades, de modo a desenvolver sua expressão criadora e, conseqüentemente, sua auto-realização. Entre as inúmeras definições de música e sua relação com a educação ao longo da história, incluindo-se agora a compreensão de âmbito, o trajeto percorrido neste trabalho visa aproximar-nos de uma certa concepção de ensino criativo. Quando vemos a música como um simples objeto, empobrecemo-la. Conhecer e aprender música é mais do que simplesmente acumular informações sobre ela − é perceber suas diversas realidades e com elas estabelecer relações de diálogo e troca. Nesse sentido, acreditamos que a concepção da música como âmbito enseja uma nova concepção de ensino musical, porque não se podem estabelecer vínculos mais profundos com um mero objeto. 113 O sentido da existência humana desenvolve-se pela contínua percepção e criação de âmbitos, ao mesmo tempo em que o homem descobre e conhece a si mesmo através da experiência e da realização poética, expressando sua singularidade. O descontentamento dos alunos quanto ao ensino musical na escola é fruto de um relacionamento reducionista e superficial, que impede o enriquecimento pessoal na relação com a música. O conceito de âmbito é uma possibilidade de superação desse modelo, que não abre a possibilidade do encontro, outro conceito quintasiano que veremos a seguir. 9.3. Encontro: entrelaçamento de âmbitos Quando se instaura um âmbito, abrem-se também possibilidades de troca com outros e enriquecimento mútuo − é o chamado encontro. Quintás explica que o encontro não é consecutivo à formação do homem, mas constitutivo. O encontro é essencial − para existir, uma pessoa precisa se relacionar. O conceito de encontro ultrapassa a mera proximidade ou justaposição de pessoas ou âmbitos, pois surge a partir de um campo de ação comum. Supõe vínculo, comunicação e cooperação. Nesses termos, o encontro promove enriquecimento, crescimento e acréscimo, e sua experiência impulsiona e gera criatividade, por meio de interações com o real. O objeto-âmbito é um emblema que resgata e eterniza uma experiência. Nesse sentido, a arte é um âmbito, posto que o artista se expressa e simboliza uma experiência singular que é ao mesmo tempo universal, ou seja, que pode vir a comover e tocar outras pessoas. Ao contrário da pseudoarte, a verdadeira arte fala a diversas gerações, porque contém a essência da sensação, da emoção, da cultura ou da existência de outro ser humano. A obra de arte enseja o diálogo e a troca, pois aquele que a contempla pode descobrir novas formas de se relacionar com a realidade. Para relacionar esses conceitos a nosso trabalho, voltaremos a nosso objeto de estudo, agora não mais um simples objeto. Quando entendemos a música como um âmbito, ou como possibilidade de expressão e afirmação do que é valioso e verdadeiro, entendemos que o ensino deve possibilitar, para além da mera aproximação, o encontro entre aluno e música. 114 Transformar a música em âmbito exige uma ressignificação que vislumbre os possíveis pontos de encontro na arte, no homem e na educação. Embora possa acontecer, a relação não se estabelece na primeira percepção, mas daquilo que desejamos estabelecer. Na construção do conhecimento, toda acumulação é (sendo vir a ser) uma desconstrução, toda compreensão demanda uma apreensão e tudo que é apreendido sofre uma mutação. Numa sala de aula, coexistem muitos e muitos âmbitos − entre a música, o professor e os alunos −, que se configuram por meio da poética, da experiência criativa e reflexiva, dando origem a outro âmbito. Os encontros são impulsionados pelos desejos que permeiam o ambiente. Podem-se estimular a curiosidade ou desenvolver a afetividade, mas o desejo só pode ser desencadeado a partir do encontro, que não acontece só na sala de aula, embora esse seja certamente um espaço-tempo privilegiado para se incentivar e fortalecer (ou enfraquecer e asfixiar) o desejo de conhecimento. Pensar no conhecimento como uma rede é imaginar encontros entre os diferentes âmbitos. Assim, o professor poderia perguntar, a respeito dos conteúdos e procedimentos didáticos, pelo que vale a pena. Não há resposta pronta para essa pergunta, e não se trata, por isso, de negar a tradição, mas antes de encará-la como um repertório a ser utilizado em favor da transformação. Por outro lado, sabemos que só chegamos ao conhecimento autêntico quando acontece o encontro entre a energia cognoscitiva do sujeito e a riqueza do real. 9.4. A arte como possibilidade de encontro com a realidade Ver a realidade ao redor como âmbito não é tarefa fácil. As realidades ou os acontecimentos vistos como âmbitos supõem um campo de interação e um olhar profundo. A arte tem esse poder interativo e poético, pois constantemente converte objetos e espaços em âmbitos. Ela sugere uma ressignificação para palavras, objetos, linhas, formas, cores, movimento, sons e silêncios. Através da arte, somos sensibilizados e treinados para perceber valores e assim atingir outros níveis de entendimento. O desenvolvimento pessoal está ligado à nossa capacidade de estabelecer valores hierarquizados de acordo com os nossos próprios. Cada um estabelece uma escala de importância para os fatos e acontecimentos que vive e para os objetos e pessoas com que convive, dando primazia aos que lhe são mais caros. Um dos objetivos da educação é prover o 115 aluno de meios para distinguir as diversas realidades e, pelos vínculos estabelecidos, atribuirlhes valores. Para Quintás, “a tarefa fundamental da formação humana consiste em suscitar o entusiasmo pelos valores”. (Quintás, 2004: 397) O ensino musical nas escolas deve buscar exatamente isso − mostrar outras realidades estéticas para que o aluno perceba, reconheça, distinga e sobretudo se entusiasme com os valores intrínsecos à obra de arte e à experiência artística. Esse entusiasmo não acontece se a aula de música não for um acontecimento, ou seja, se o aluno não tiver experiências valiosas, como esclarece Quintás (2004: 397): “Ninguém pode se entusiasmar, por exemplo, com as Cantatas, de Bach, pela simples leitura de um estudo sobre elas. É preciso ouvi-las de forma criativa, fundar um âmbito de participação com elas e assumi-las como voz interior. Para isso, é preciso que alguém já experimentado nos sugira a existência desse valor, nos convide a buscá-lo e nos dê as chaves certas de interpretação.” A atividade criativa acontece quando uma pessoa relaciona suas possibilidades com outras realidades e, a partir dessa relação, descobre novos recursos para melhor interagir com algo que valorize. O poder formativo da arte opera quando suscita o desejo de experiências pessoais e sensoriais valiosas, para que se analise e compreenda não só seu significado, mas sobretudo seu sentido. Um poema, uma música ou uma escultura são frutos de um encontro, são realidades, vibrações de diversos elementos; não são criados apenas por se conhecerem as técnicas para se trabalhar com os materiais utilizados. A arte das palavras, por exemplo, pode ser sentida num poema, mas nem sempre numa matéria jornalística. O material é o mesmo − são palavras −, mas a poesia é arte por ser fonte de possibilidades, surpresas e interpretações. O poeta transforma realidades aparentemente insignificantes como pedra, casa ou mar em manifestações poéticas. Diferentemente do processo artesanal que se ocupa dos objetos materiais, o processo artístico criativo se ocupa dos âmbitos. A arte é o “encontro com a realidade que se quer expressar, o encontro com o poder expressivo de uma matéria”, e está sempre aberta a novos encontros. (Quintás, 2004: 70) Segundo Rubem Alves, “cada tela é um convite para que o espectador veja o mundo com os olhos do pintor. A arte busca comunhão”. (Alves, 2002: 41) A arte nos convida para uma experiência de dupla mão − quando atendemos a seu chamado e participamos de um encontro, ela nos pertence e nós lhe pertencemos. O encontro com a arte transforma nossa percepção do mundo e pode ampliar o autoconhecimento. O prazer derivado do contato com a arte confirma seu valor artístico, mas 116 o verdadeiro prazer só sobrevém ao rompimento da barreira − requer esforço. A atividade artística exige trabalho e disciplina, mas o prazer não contabiliza esforços. “O prazer engravida. O sofrimento faz nascer”. (William Blake apud Alves, 2002: 158) A música é uma linguagem poética que transfigura sons, ruídos e silêncios em âmbitos. Ela exige theoria, contemplação, abertura à realidade (Quintás, 1996: 10): “Tudo o que foi dito acerca da importância da relação, do entrelaçamento de âmbitos de realidade ou encontro terá na música uma confirmação simples, vivaz, impressionante. Tudo na música é relação. (...) Dois sons tomados separadamente não têm valor estético. Dois sons relacionados formam um intervalo expressivo. Com isso começa a música. O mesmo acontece com o ritmo, que é formado de sons ordenados no tempo. A ordem, a inter-relação é a origem do edifício surpreendente da música. A sonata em fá menor, Appassionata, de Beethoven inicia-se com três notas descendentes, do, lá, fá. É uma relação, uma forma de estruturar os sons. Daí parte toda a estrutura dessa obra magnífica. Ao ouvir esse tema nuclear, já se está vibrando com a obra inteira. Na música, aprendemos a não nos determos nos valores imediatos, mas, sim, a transcendê-los em direção a tudo aquilo a que eles mesmos remetem. Aprende-se a arte de transcender, de dar ao olhar e à inteligência um longo alcance, amplitude e penetração: as três condições básicas de uma forma madura de ver e entender. Essa maneira fecunda de abrir-se à realidade circundante é confirmada e aperfeiçoada quando nos exercitamos em captar, simultaneamente, os sete níveis ou modos de realidade que oferece toda obra de arte autêntica: os materiais isolados, os materiais vinculados entre si, os materiais estruturados, os âmbitos de realidade que se expressam através dessa estrutura, o mundo peculiar que modela a obra, a emotividade que esta suscita, o meio vital para o qual foi destinada.” A tarefa do educador é ensinar a olhar, a perceber a realidade além da aparência, a descobrir valores e sentidos. Os fracassos do ensino musical poderiam ser reduzidos se os próprios educadores tivessem mais intimidade com a linguagem musical ambital, se a vissem antes como âmbito do que como mero produto ou como objeto imutável. Apesar da boa intenção, exercendo sua função básica na transmissão de informações, deixam de lado o sentido que dá origem à humanização e ao discernimento. 117 10. Considerações finais Tendo-se em vista o movimento político em prol da volta de sua obrigatoriedade, o ensino da música nas escolas atravessa um momento que requer reflexão. A apatia e o desinteresse demonstrado por muitos alunos, aliados ao fato de a música ser muitas vezes considerada apenas como objeto de consumo, revelam a necessidade de um remapeamento dos saberes musicais em direção a novas dinâmicas e orientações educativas. O educador musical enfrenta os desafios de um conhecimento que a todo instante busca legitimação e identidade. No cotidiano da sala de aula, articulam-se várias realidades que remetem às orientações didáticas, regras e obrigações estabelecidas pelas instituições e também à atitude dos alunos e aos anseios e expectativas de professores, alunos, pais e escola. Nesse contexto, o planejamento, a escolha de conteúdos, a transposição didática e a preparação das aulas tornam a prática docente um constante repensar. Afinal, ensinar música envolve o exercício do próprio pensar ou significa apresentar o desenvolvimento da tradição musical? É possível diminuir a distância entre a música ensinada na escola e a produzida fora dela, sem sucumbir à banalidade? Que conteúdos devem ser ensinados? Como motivar os alunos? Como contemplar as diferenças em sala de aula, de modo a haver uma prática inclusiva? Como vimos neste estudo, essas questões não podem ser respondidas sem uma longa reflexão, que parte da busca de uma clara concepção do que é música. Tentamos ampliar essa concepção apresentando o pensamento musical sob diferentes formas e estabelecendo diálogos com a educação. Assim, percorremos brevemente a história da música ligada às questões educativas, desde a Grécia Antiga, quando era considerada matéria especulativa ligada à metafísica, até os dias atuais, quando assume cunho prático, com destaque para o fazer artístico. Buscamos também compreendê-la como uma estética tida como pós-moderna, que, por um lado, remete a uma música culta ou erudita e sugere a incorporação de sonoridades e procedimentos composicionais mais conceituais e, por outro, a uma música de entretenimento, massiva, muitas vezes superficial e facilmente consumida, com o aval das novas tecnologias. 118 Nossas proposições partem do princípio de que a música a ser ensinada e aprendida na escola não é mero produto ou entretenimento, mas um conhecimento que, como tal, considera e equilibra as múltiplas dimensões que a constituem. Seu caráter artístico, lingüístico, científico e filosófico vem confirmar sua complexidade em termos de conteúdo e aprendizagem. Sob essa ótica, entendemos que as informações sozinhas − e sua mera retenção mnemônica − não têm potencial de articulação. Assim, a compreensão de dados sugere o uso de uma inteligência que mobiliza e atualiza conhecimentos e experiências anteriores, organizando-os num esquema de constante articulação e confronto com os conhecimentos que se engendram fora da sala de aula, gerando possivelmente novos conhecimentos. Interessados nessa reconstrução do conhecimento musical, abordamos conceitos ligados à inteligência, procurando redescobrir o aluno em sua identidade, suas competências e seus saberes. Esses conceitos foram retomados do ponto de vista das estruturas mentais de cada etapa do desenvolvimento, em que procuramos articular tanto cognição e afetividade quanto competências individuais e coletivas. Quanto à concepção de conhecimento, devido às relações dinâmicas que se constroem a partir das interações entre sujeitos, entre sujeitos e objetos e através de competências, saberes, informações e experiências pessoais e criativas, a idéia de rede como metáfora da construção do conhecimento mostrou-se bastante apropriada e eficaz. Desse modo, o conhecimento musical entendido como uma rede de significações que se entrelaçam pressupõe um jogo constante entre conteúdo e forma, com implicação recíproca, e a constante mobilização de saberes, sugerindo um trabalho interdisciplinar e transdisciplinar. Nesse enredamento sem centro único, o conhecimento se situa em incontáveis centros − os alunos e seus projetos − e em movimento permanente. Assim concebido, o conhecimento musical só pode ser validado à medida que o aluno lhe atribui significado e sentido. Essa nova concepção de educação musical privilegia a pesquisa e a seleção de informações, pois não vê o conteúdo como um fim em si e tampouco como uma gama imutável de informações. Ao contrário, toma-o como um meio que enseja o desenvolvimento integral do aluno, articulando os conhecimentos relacionados à utilização e à produção da música, que chamamos de úteis, e os relacionados à sua fruição, que chamamos de inúteis (do ponto de vista do mundo do trabalho) mas indispensáveis. 119 Portanto, a música se torna busca, e não objeto de posse − ela não se esgota em formas preestabelecidas. Tratando-se de aprendizagem, é importante vincular os conteúdos musicais e seu contexto ao exercício criador, entremeando a teoria histórica com atividades de criação, manipulação, interpretação, transformação e mesmo teorização, de acordo com a experiência pessoal e coletiva. Discutimos formas de se integrarem pensamento musical e prática docente no contexto atual, de modo que os alunos não só gostem de música, mas também gostem − e queiram − aprender música. Com esse fito, trouxemos a concepção quintasiana, que entende a música como âmbito, uma realidade aberta e dinâmica, capaz de estabelecer diálogo com outras realidades e dar origem a novas e irredutíveis realidades. Essa condição só se estabelece quando ativada pelo homem − o professor e, posteriormente, o aluno −, que, com sua consideração ou percepção, converte a realidade de um objeto em um âmbito. Em outras palavras, a música é uma realidade que se abre ao relacionamento com o sujeito que é também um âmbito. Dentro dessa ótica, entendemos que a educação musical deva promover o encontro entre aluno e música, duas realidades que se enriquecem mutuamente num diálogo criador. Quando acontece esse encontro, o próprio aluno reconhece o sentido e o significado desse conhecimento para sua vida. O fascínio da música pode despertar a inteligência musical, pois só os fascinados pela música descobrem maneiras de construir seu conhecimento acerca dela. O conhecimento só surge do desejo de conhecer, pois o aprendizado, em sentido amplo, é um encontro, e não há encontro sem desejo. A formulação de uma proposta de ação curricular na área de música que contemple as demandas da contemporaneidade não se reduz ao emprego de novas tecnologias nem tampouco a mudanças de conteúdo ou metodologia. Antes compreende fundamentos filosóficos e antropológicos visando uma mudança de postura, que assuma a música como área do conhecimento Se, por um lado, apresentamos ideais humanistas, por outro, acreditamos que o senso de realidade é fundamental para a instrumentalização dos alunos de modo que seus projetos artísticos encontrem as melhores possibilidades de realização. Essa perspectiva exige de nós, 120 professores e alunos, atitude, disposição, sensibilidade e racionalidade, para dialogarmos com um mundo em constante e veloz transformação. 121 Bibliografia ADORNO, T. W. Filosofia da nova música. São Paulo: Perspectiva, 1974. ADORNO, T. W. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: Os Pensadores, Trad.: José Lino Grünnenwald. São Paulo: Abril Cultural, 1980. AMARAL, K. F. Pesquisa em música e educação. São Paulo: Edições Loyola, 1991. ANTUNES, C. As inteligências múltiplas e seus estímulos. São Paulo: Papirus, 2003. ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997. ARISTÓTELES. Obras. Trad. do grego: Francisco Saramanch. Madri: Editora Aguilar, 1982. ________ Poética. Trad.: Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1984. AUSUBEL, D. H. Psicologia educacional. Rio de Janeiro: Interamericana, 1970. BARRAUD, H. Para compreender as músicas de hoje. São Paulo: Perspectiva, 1997. BENJAMIN, W. 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