O ENSINO DA CIRURGIA NA GRADUAÇÃO E RESIDÊNCIA Izabel C Meister M Coelho O ensino de cirurgia tem sofrido grandes modificações no último meio século. A metodologia tradicional, que nos anos 70 era preponderante e promovia um ensino baseado no saber do professor e na transmissão do conhecimento, vem gradativamente sendo questionada e repensada em face aos avanços nos conhecimentos sobre aprendizagem do adulto e na compreensão dos conceitos de competência e autenticidade profissional.1,2 O desenvolvimento tecnológico rápido que levou à melhoria dos procedimentos anestésicos e segurança dos procedimentos cirúrgicos permitiu a criação de inovações nas técnicas e no ensino da cirurgia.3 O advento da cirurgia laparoscópica trouxe as primeiras estações de simulação em caixa preta para o desenvolvimento de habilidades manuais especificas em 3D. Seguiu-se, nas últimas 2 décadas, o aparecimento dos manequins para simulações de progressivamente maior fidelidade inicialmente para treinar cirurgiões em serviço e, posteriormente, para o ensino de habilidades específicas aos estudantes. Duas inovações ainda devem ser lembradas, a cirurgia robótica e a produção de material para ensino e planejamento cirúrgico em impressoras 3D. Todas estas mudanças tornaram necessárias as definições sobre o que deveria ser ensinado e como isto deveria ocorrer. Em 1999, a ACGME estabeleceu 6 competências fundamentais a serem alcançadas durante a residência, que incluíam o conhecimento médico, o cuidado ao paciente, as habilidades interpessoais e de comunicação, o profissionalismo, a aprendizagem e melhoria baseadas na prática e a prática baseada em sistemas de saúde.2,4 Associada ao estabelecimento das competências, houve a implementação de restrição de horas de serviço e aumento dos requisitos de fiscalização para o credenciamento de novas residências. Como consequência, as residências em cirurgia reestruturaram seus programas educacionais.5 Para qualificar o preparo dos estudantes de medicina na área de cirurgia, o American Board of Surgery, American College of Surgeons (ACS), Association of Program Directors in Surgery (APDS) e a Association for Surgical Education (ASE), sugeriram a definição das habilidades cirúrgicas básicas. A intenção é diminuir a variabilidade no conjunto de habilidades existentes entre os estagiários de cirurgia e melhorar a preparação dos estagiários para atender aos requisitos da educação baseada em competências. 6 As implementações ocorridas nos currículos de graduação e pósgraduação iniciaram-se com a definição de quais seriam os conteúdos fundamentais a serem ensinados – Core Curriculum – e quais as competências deveriam ser desenvolvidas por todos os estudantes e residentes a fim de permitir que tivessem oportunidades de alcançá-las. Estabeleceu-se assim, a educação baseada em competências. Seguiu-se o refinamento dos temas buscando-se a prevalência dos mesmos a partir de análises locais e regionais nos dados epidemiológicos dos sistemas de saúde, dando início à educação baseada na comunidade. No Brasil, a avaliação dos cursos de medicina iniciou-se efetivamente com a criação em 1991 da CINAEM – Comissão Interinstitucional de Avaliação das Escolas Médicas – que surgiu como um colegiado com objetivo de "avaliar o Ensino Médico brasileiro, visando sua qualidade para atender às necessidades médico-sociais da população".7 É importante assinalar que as entidades que criaram a CINAEM decidiram também zelar pela qualidade do Ensino Médico e pelo aperfeiçoamento do Sistema de Saúde, binômio considerado indispensável à boa formação médica (CFM). Durante 10 anos acompanhou cursos de medicina e seus achados mais relevantes foram que o ensino estava desvinculado da realidade de saúde da população, que faltava às escolas médicas a integração com os problemas de saúde locais, que a infraestrutura das escolas se encontrava sucateada e inadequada e que os interesses econômicos estavam condicionando ensino e pesquisa. Em relação ao corpo docente, verificou-se que a maior parte dos professores estava pouco preparada para o ensino, para a pesquisa e para as atividades administrativas. Em decorrência dos resultados obtidos pela CINAEM, estabeleceu-se o processo de discussão e promulgação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para a graduação em Medicina no ano de 2001.8 As DCN trouxeram em sua essência, 6 competências gerais a serem desenvolvidas durante a formação médica. O Art. 4o definiu que a formação do médico tem por objetivo dotar o profissional dos conhecimentos requeridos para o exercício das seguintes competências e habilidades gerais: I - Atenção à saúde: os profissionais de saúde, dentro de seu âmbito profissional, devem estar aptos a desenvolver ações de prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde, tanto em nível individual quanto coletivo. Cada profissional deve assegurar que sua prática seja realizada de forma integrada e contínua com as demais instâncias do sistema de saúde, sendo capaz de pensar criticamente, de analisar os problemas da sociedade e de procurar soluções para os mesmos. Os profissionais devem realizar seus serviços dentro dos mais altos padrões de qualidade e dos princípios da ética/bioética, tendo em conta que a responsabilidade da atenção à saúde não se encerra com o ato técnico, mas sim, com a resolução do problema de saúde, tanto em nível individual como coletivo; II - Tomada de decisões: o trabalho dos profissionais de saúde deve estar fundamentado na capacidade de tomar decisões visando o uso apropriado, eficácia e custo-efetividade, da força de trabalho, de medicamentos, de equipamentos, de procedimentos e de práticas. Para este fim, os mesmos devem possuir competências e habilidades para avaliar, sistematizar e decidir as condutas mais adequadas, baseadas em evidências científicas; III - Comunicação : os profissionais de saúde devem ser acessíveis e devem manter a confidencialidade das informações a eles confiadas, na interação com outros profissionais de saúde e o público em geral. A comunicação envolve comunicação verbal, não-verbal e habilidades de escrita e leitura; o domínio de, pelo menos, uma língua estrangeira e de tecnologias de comunicação e informação; IV - Liderança: no trabalho em equipe multiprofissional, os profissionais de saúde deverão estar aptos a assumir posições de liderança, sempre tendo em vista o bem-estar da comunidade. A liderança envolve compromisso, responsabilidade, empatia, habilidade para tomada de decisões, comunicação e gerenciamento de forma efetiva e eficaz; V - Administração e gerenciamento: os profissionais devem estar aptos a tomar iniciativas, fazer o gerenciamento e administração tanto da forca de trabalho quanto dos recursos físicos e materiais e de informação, da mesma forma que devem estar aptos a serem empreendedores, gestores, empregadores ou lideranças na equipe de saúde; e VI - Educação permanente: os profissionais devem ser capazes de aprender continuamente, tanto na sua formação, quanto na sua prática. Desta forma, os profissionais de saúde devem aprender a aprender e ter responsabilidade e compromisso com a sua educação e o treinamento/estágios das futuras gerações de profissionais, mas proporcionando condições para que haja benefício mútuo entre os futuros profissionais e os profissionais dos serviços, inclusive, estimulando e desenvolvendo a mobilidade acadêmico/profissional, a formação e a cooperação por meio de redes nacionais e internacionais. A implantação das DCN trouxe grandes debates mobilizando escolas, docentes e discentes a reverem seus currículos e formas de ensinar / avaliar. Entre as ações decorrentes destes quase 20 anos de DCN, a ABEM (Associação Brasileira de Educação Médica) coordenou e publicou em 2014, o Capítulo Internato Médico, que consiste nas Diretrizes Nacionais da Abem para o internato no curso de graduação em medicina, de acordo com as diretrizes curriculares nacionais. Isso trouxe orientações sobre o que deve ser desenvolvido em cada grande área da formação médica. 9 Na cirurgia definiram-se os temas: Capacidade para realizar adequadamente: Competências gerais da área 1. Identificação e diagnóstico diferencial das patologias cirúrgicas mais prevalentes, suas histórias naturais, conhecimento das diferentes opções de tratamento e reconhecimento das indicações cirúrgicas. 2. Identificação e diagnóstico das principais urgências das diversas especialidades cirúrgicas. Competências específicas da área 1. Conhecimento e aplicação de fundamentos básicos de técnica operatória: a. Biossegurança. b. Técnicas de assepsia/antissepsia. c. Paramentação/instrumentação. d. Princípios básicos de diérese, hemostasia e síntese. e. Noções gerais de técnicas de anestesia regional e geral. f. Anestesia local. 2. Procedimentos a serem realizados: a. Acesso venoso periférico (punções). b. Sondagem gástrica, enteral e vesical. c. Cuidado de feridas, debridamentos e curativos. d. Técnicas de suturas. e. Drenagem superficial de abscessos e coleções. f. Exérese de unha. g. Cirurgias de superfície (incisional e excisional) e cauterizações. h. Retirada de corpo estranho (exceto ocular). i. Punção lombar. j. Dispositivos de liberação de oxigênio. k. Procedimentos de acesso à via aérea: intubação traqueal. l. Tamponamento nasal anterior. m. Imobilização de fraturas/luxações. 3. Procedimentos a serem, no mínimo, simulados: a. Cricotireoidostomia. b. Acesso venoso central e via intraóssea. c. Tamponamento nasal posterior. d. Toracocentese/paracentese/drenagem pleural. 4. Conhecimento e realização de cuidados pré/per/pós-operatórios: a. Identificação e avaliação do risco cirúrgico. b. Preparo do paciente cirúrgico. c. Indicações e prescrição de dietas (oral e enteral). d. Indicações e prescrição de reposição volêmica e correção de distúrbios eletrolíticos e acidobásicos. e. Sedação superficial/moderada e analgesia. f. Avaliação e indicações de imunizações. Antibioticoprofilaxia/terapia. g. Cuidados com estomas. h. Identificação de complicações pós-operatórias imediatas e tardias. i. Identificação precoce de choque circulatório, as diversas etiologias e tratamento inicial. Identificação de risco, profilaxia e diagnóstico de tromboembolia venosa. j. Indicações e procedimentos iniciais de suporte ventilatório não invasivo e invasivo. k. Atendimento inicial aos pacientes traumatizados nos ambientes pré e intra-hospitalar. Identificação e conduta inicial em situações suspeitas de maus-tratos. l. Atendimento inicial dos pacientes queimados. 5. Conhecimentos sobre gestão clínica em cirurgia: a. Princípios de triagem do paciente traumatizado. b. Controle do fluxo de pacientes, gerenciamento dos leitos e vaga zero. c. Princípios de medicina de catástrofe. d. Princípios de segurança do paciente cirúrgico. e. Critérios de agendamento cirúrgico. f. Termo de consentimento informado para a realização dos procedimentos. No mesmo ano de 2014, novas DCN para a Medicina10 agruparam as 6 competências em três: Atenção à saúde, Educação em Saúde e Gestão na Saúde, tornando mais clara a definição de competência a ser aplicada, sendo compreendida como a capacidade de mobilizar conhecimentos, habilidades e atitudes, com utilização dos recursos disponíveis, e exprimindo-se em iniciativas e ações que traduzem desempenhos capazes de solucionar, com pertinência, oportunidade e sucesso, os desafios que se apresentam à prática profissional, em diferentes contextos do trabalho em saúde, traduzindo a excelência da prática médica, prioritariamente nos cenários do Sistema Único de Saúde (SUS). As novas DCN trazem as competências divididas em ações-chave que facilitam a sua incorporação aos currículos. Definem ainda o uso de metodologias ativas, a avaliação por competência, a inserção da urgência e emergência no internato com carga horaria protegida e a valorização do trabalho docente. Desta forma, fica clara a necessidade tanto de estabelecer-se os conteúdos centrais e prevalentes para ensino na graduação, como de utilizar novas formas de ensinar e avaliar. Na residência médica, os mesmos movimentos têm ocorrido. Desde 2005, Canadá e EUA tem debatido o estabelecimento de core curriculum em todas as especialidades em busca de garantir um aprendizado adequado e a aquisição de competências necessárias à especialidade escolhida. Existem inclusive experiências canadenses para definir tempo individual de residência a partir destas competências, ou seja, o residente só finaliza sua especialização quando apresentar competência em todas as áreas elencadas pela especialidade. Nesta lógica surgiu em 2013 o Milestones Project 11 que tem como intuito estabelecer a linha do tempo individual de cada residente em busca de alcançar as competências específicas de sua área. A intencionalidade do projeto é permitir avaliar quanto tempo os residentes levam em média para alcançar cada nível e chegar ao quarto. Assim, seria possível rever o tempo médio de cada residência (hoje estabelecido sem critério técnico), corrigir eventuais dificuldades gerais do programa e permitir avaliar algum residente que tenha dificuldades com a especialidade escolhida e redirecioná-lo se necessário. Em 2015 foi publicado The General Surgery Milestone Project 12, que hoje tem sido utilizado como suporte para a definição de competências cirúrgicas no projeto encabeçado pela Comissão Nacional de. Residência Médica (CNRM) e que, atualmente, revê todas as especialidades médicas.13 Ainda na mesma linha de pensamento, buscando-se estabelecer o que deve ser ensinado na prática diária do residente e quando ele pode executar sozinho uma tarefa com segurança para ele e para o paciente, iniciou-se o. desenvolvimento das Entrustable Professional Activities (EPAs) com a publicação em 2014 do Core Entrustable Professional Activities for Entering Residency.14 Este guia de elaboração tem permitido oportunizar a residência e posteriormente, a graduação, maior estruturação para desenvolvimento de competências médicas. No Brasil, o guia já foi traduzido, validado e ampliado. 15 Recentemente (2016-17), o Surgical Council on Resident Education publicou o SCORE, Curriculum Outline. for General Surgery, que traz em seu escopo o core e advanced curriculum em cirurgia geral. Os itens estão divididos nas 6 competências principais da ACGME: cuidado ao paciente, conhecimento médico (específico para cirurgia), profissionalismo, comunicação e relação interpessoal, melhoria pautada pela prática e a prática baseada no sistema de saúde.16 Em resumo, pode se perceber um grande número de iniciativas que buscam estabelecer critérios para seleção de conteúdos, competência e sistemas de avaliação que permitam ensinar cirurgia na graduação em medicina e residência em cirurgia. Este movimento tem se tornado mais intenso na última década e no Brasil, nos últimos 5 anos. A necessidade de diferenciar conteúdos essenciais e avançados, focar no ensino de habilidades e simular situações médicas a fim de permitir que todos os estudantes e residentes tenham acesso ao aprendizado essencial, desenvolver habilidades de comunicação com pares e pacientes de forma clara e objetiva e de compreender o sistema de saúde em que atua tem sido nosso enfoque em educação médica. 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