100 anos de Armistício Grande Guerra ENSAIOS 6b108a5c-c391-40c3-aaa2-ec91a2dab23e Grande Guerra • Ensaios ÍNDICE Guerra sonhada e guerra vivida: as contradições do intervencionismo português Filipe Ribeiro de Meneses, National University of Ireland, Maynooth LER ARTIGO Portugal e a Grande Guerra, a questão militar Aniceto Afonso, historiador LER ARTIGO Heróis do mar: a nação, o império e a participação de Portugal na I Guerra José Manuel Sobral, antropólogo e historiador (Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa) LER ARTIGO 2 Grande Guerra • Ensaios A correspondência do desassossego e da saudade Isabel Pestana Marques LER ARTIGO A guerra e o sagrado António Araújo LER ARTIGO Pela primeira vez todos fotografaram a guerra Filipa Lowndes Vicente, historiadora, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa LER ARTIGO As mulheres foram activistas na guerra, depois voltaram ao lar Anne Cova, investigadora no ICS-ULisboa LER ARTIGO 3 Grande Guerra • Ensaios Celebrar a vitória em dia de derrota – afinal, a quem pertencem as políticas da memória da I Guerra Mundial? Sílvia Correia, professora do Instituto de História da Universidade Federal Rio de Janeiro / Investigadora do IHC – UNL LER ARTIGO Portugal na Grande Guerra: memória do passado desafios do futuro Nuno Severiano Teixeira, professor Catedrático da Universidade Nova de Lisboa; Visiting Professor na Georgetown University LER ARTIGO Lições económicas da Primeira Guerra Mundial Pedro Lains, investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa LER ARTIGO A Primeira Guerra Mundial e a Queda da República. Uma relação Complexa António Costa Pinto, investigador no ICS-ULisboa LER ARTIGO 4 Grande Guerra • Ensaios Guerra e revolução na Rússia de 1917 Fernando Rosas LER ARTIGO Os choques da civilização: testemunhos, horrores e silêncios Miguel Bandeira Jerónimo, investigador na ICS-UL LER ARTIGO Soldados portugueses na Flandres, 1917 AGENCE ROL / BIBLIOTHÉQUE NATIONALE DE FRANCE 5 Grande Guerra • Ensaios Guerra sonhada e guerra vivida: as contradições do intervencionismo português Embora Portugal seja contado entre as nações vitoriosas da Primeira Guerra Mundial, a verdade é que o intervencionismo português saiu claramente derrotado da contenda. Ensaio de: Filipe Ribeiro de Meneses, National University of Ireland, Maynooth Tropas portuguesas a caminho da Frente Ocidental 6 Grande Guerra • Ensaios V ale a pena, por isso, determo-nos um pouco sobre essa mesma corrente, os seus princípios e os seus objectivos, para melhor entendermos as causas dos insucessos portugueses e as suas consequências. Vale a pena também lembrar que o intervencionismo português não foi um fenómeno isolado: em vários outros países europeus – Itália, Grécia, Roménia – a intervenção na guerra foi vista como o cortar do nó górdio, que permitiria resolver várias questões domésticas e internacionais. A frente interna Parte importante do projecto intervencionista prendia-se ao fortalecimento e afirmação definitiva do regime republicano. Queriam acreditar os intervencionistas – políticos, militares, intelectuais, artistas – que o esforço comum de uma guerra travada em nome de ideais democráticos e mesmo humanitários (a guerra contra o militarismo) conduziria a um novo entendimento entre todos, ou quase todos, os portugueses. Um sacrifício comum, recompensado por uma Europa grata e reconhecida ao jovem regime, que fizera renascer o Portugal nobre e altivo do passado: eis o passaporte para a aceitação da República por todos os portugueses. A ideia de que a participação portuguesa no conflito traria a pacificação da família portuguesa, ou pelo menos da família republicana, não sobreviveu aos primeiros meses da guerra. A União Sagrada, longe de representar uma verdadeira fusão de todas as forças políticas do país, saldou-se por uma coligação entre os democráticos de Afonso Costa e os evolucionistas de António José de Almeida. Nem unionistas, nem católicos, nem socialistas, nem, claro está, monárquicos, entraram no Governo. Tendo em conta a rivalidade entre democráticos e evolucionistas, o passo dado foi considerável. Foi, porém, insuficiente, tendo em conta os efeitos políticos, económicos e sociais da guerra. A máquina administrativa, cuja função principal era obter os resultados 7 Grande Guerra • Ensaios eleitorais que mais convinham a Lisboa, viu-se completamente ultrapassada pelas necessidades da mobilização militar e económica. A igualdade de sacrifício entre todos os portugueses (obrigatoriedade de serviço militar, igual acesso a bens de primeira necessidade) não passou de uma miragem. Lentamente agravou-se a falta de mantimentos e de carvão mas os navios alemães, apresados, segundo Afonso Costa, para acudir à economia nacional, foram Desfile do CEP antes do embarque para França na Praça postos à disposição da Grãdo Comércio, em Lisboa JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO Bretanha. Questões como a MUNICIPAL DE LISBOA amnistia por crimes políticos e sociais, a introdução da pena de morte no código militar e o papel do Conselho Económico Nacional, no qual se reuniriam o Governo e as ‘forças vivas’ do país, vieram envenenar o relacionamento entre os grupos parlamentares dos dois partidos governamentais. Mas os golpes decisivos contra a União Sagrada seriam desferidos pelos inimigos da classe política republicana, alguns bem conhecidos, outros que emergiram das sombras graças à guerra. Não era segredo para ninguém que grande parte do Exército era contra o envio de tropas portuguesas para a Frente Ocidental. O sentimento de revolta 8 Grande Guerra • Ensaios que se foi apoderando de muitos oficiais ao longo de 1916 foi explorado pelo ‘herói da Rotunda’, Machado Santos, que tinha velhas contas a ajustar com os partidos políticos. Eram os partidos, segundo este oficial da Armada, os responsáveis pelo caos político no qual o regime que ajudara a fundar se encontrava mergulhado. Machado Santos fora preso após a A ideia de que revolta de 14 de Maio de 1915, e desde a participação a sua libertação conspirara contra a portuguesa no União Sagrada a tempo inteiro. A 13 de Dezembro de 1916 passou ao ataque, conflito traria a mas muitos dos que lhe garantiram o seu pacificação da apoio acabaram por nada fazer, sendo a família portuguesa, revolta facilmente dominada pelas forças ou pelo menos da leais ao Governo. Mas ficou o aviso e assim largas dezenas de oficiais foram família republicana, presos. Os efeitos militares e políticos não sobreviveu aos não se fizeram esperar. No mês seguinte, primeiros meses oficiais de várias unidades recusaramda guerra se a partir à frente dos seus homens para Lisboa, onde embarcariam rumo a França. Para espanto de muitos observadores, sobretudo nos exércitos aliados, estes oficiais cumpriram o seu castigo a bordo dos navios que os levaram até Brest, sendo depois devolvidos às suas unidades. As medidas tomadas para punir os responsáveis do 13 de Dezembro, mais severas, dividiram o partido evolucionista, tendo alguns deputados abandonado António José de Almeida para reconstituir o velho ‘bloco parlamentar’ com os unionistas de Brito Camacho. Em Abril de 1917 caiu o Governo de António José de Almeida, no Parlamento, após um episódio ainda envolto em mistério, um voto de confiança que nunca devia ter ocorrido. Seguiu-se-lhe o terceiro (e último) Governo de Afonso Costa, ainda sob a égide da União Sagrada, mas agora 9 Grande Guerra • Ensaios “O “Moçambique” atracado à frente do Arsenal da Marinha, para receber tropas que vão para Moçambique, assistido pelo rebocador “Tejo” MUSEU DA MARINHA composto apenas de ministros democráticos. Tal executivo não conseguiu mobilizar o patriotismo de todos os portugueses num momento de emergência nacional – emergência essa que não teimava em não passar: em Maio, motins populares em Lisboa com suspensão de garantias constitucionais; em Julho, greve da construção civil com nova suspensão de garantias (e com o parlamento reunido em sessão secreta); em Agosto, greve na Companhia das Águas de Lisboa; em Setembro, greve dos trabalhadores dos correios (um bastião republicano), à qual o Governo responde com a mobilização militar da corporação, sendo a greve por isso mesmo equacionada a deserção. A resposta foi imediata: greve geral decretada pela União Operária Nacional. Por todo o país, distúrbios e revoltas ocasionados pela falta de alimentos. Acossado por todos os lados, Afonso Costa começou a ser contestado pelo seu próprio partido. Julgou o 10 Grande Guerra • Ensaios líder democrático ter resolvido os problemas económicos mais prementes do país em Paris, em finais de Novembro/início de Dezembro, durante uma conferência aliada; mas o seu regresso a Lisboa foi interrompido pelo golpe de Sidónio Pais, apoiado por tropas prestes a partir para França. A guerra em África Uma segunda dimensão do intervencionismo português prendeu-se com a defesa do império colonial, cuja partilha entre pela Alemanha e a GrãBretanha tinha sido discutida já durante o regime republicano. A defesa activa das colónias portuguesas e a participação na conquista das colónias alemãs era vistas como expedientes para calar definitivamente as críticas que choviam sobre a administração colonial portuguesa, tida como brutal e ineficiente. É nas campanhas de África que a falta de discernimento do intervencionismo português mais se faz notar: derrota após derrota, desastre após desastre, até ao descrédito total entre os aliados. O Exército parece não ter reflectido sobre as razões da derrota de Naulila, no sul de Angola, em finais de 1914, muito antes da declaração de guerra alemã. E enquanto outras potências coloniais mobilizavam o império para melhor combater na Europa, Portugal viu-se forçado a mobilizar a metrópole para defender as colónias, não só dos alemães como ainda das populações locais, que viram na guerra a conjuntura ideal para se subtrair à soberania portuguesa, nalguns casos bem recente. Assim sendo, expedições foram enviadas umas após as outras para Moçambique, sem se obter qualquer resultado decisivo no combate aos alemães. A derrota de Nevala, em 1916, após um curto cerco à posição ocupada pelos portugueses, pôs cobro à única invasão de território alemão por forças portuguesas. Seguiu-se-lhe um longo período em que o Exército assumiu uma posição defensiva ao longo do rio Rovuma, esforçando-se, porém, por restaurar a ordem no resto de Moçambique, 11 Grande Guerra • Ensaios Desfile do CEP antes do embarque para França na Rua do Arsenal, em Lisboa JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA ameaçado por seríssimas revoltas indígenas – começando pela do Barué – e por reconhecimentos em força alemães. O desgaste de homens e oficiais foi tremendo e a escala das baixas difícil de compreender numa força habituada a combater em Moçambique. A esmagadora maioria das mortes sofridas pelo Exército durante a Grande Guerra é-o em Moçambique, revelando-se a doença um inimigo muito mais mortífero do que o alemão. Em Novembro de 1917, ainda sob a vigência da União Sagrada, novo desaire, mais perigoso do que Nevala: os restos do exército alemão, comandados por von Lettow-Vorbeck e acossados por todos os lados, atravessam o Rovuma e caem sobre a posição portuguesa de Negomano, que capturam sem grande esforço, encontrando as armas e munições e os mantimentos de que necessitam desesperadamente. 12 Grande Guerra • Ensaios Moçambique proporcionará a von Lettow-Vorbeck um novo campo de batalha, onde ficará até Setembro do ano seguinte, vivendo à custa da população local e das guarnições portuguesas. A frustração das forças aliadas na colónia portuguesa é intensa. Adensam-se as nuvens contra o domínio colonial português em face desta fraca prestação militar e da ideia generalizada de que toda a campanha de 1918 teria sido evitada se os portugueses tivessem defendido com sucesso a linha do Rovuma. O CEP A defesa do solo francês pelo exército português fez sempre parte do projecto intervencionista, estreitando os laços entre as duas repúblicas. Portugal rejeitou sempre sugestões de que o seu exército fosse enviado para a frente de Salónica, ou para o Médio Oriente: só a Frente Ocidental interessava, vincando a natureza ideológica da participação portuguesa na Grande Guerra. O Corpo Expedicionário Português (CEP) nasce da Divisão de Instrução pensada por Norton de Matos após a revolta de 14 de Maio de 1915, que abriu É nas campanhas as portas ao poder aos democráticos. de África que a falta Comandada pelo General Tamagnini d’Abreu, tinha por missão permitir ao de discernimento do Governo dispor de uma força que lhe intervencionismo permitisse intervir no conflito europeu. português mais se faz Embora há muito projectada, só depois da notar: derrota após declaração de guerra alemã começaram os trabalhos de campo da Divisão, que se derrota, desastre prolongaram até ao Verão de 1916. após desastre, até A transformação da Divisão de ao descrédito total Instrução num Corpo Expedicionário entre os aliados acabou por ser aceite por Londres 13 Grande Guerra • Ensaios Desfile do CEP antes do embarque para França na Rua do Arsenal, em Lisboa JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA (falaram mais alto as perdas sofridas pelos aliados em Verdun e no Somme do que as dúvidas sobre o real valor da unidade) após um longo compasso de espera. De divisão reforçada, o CEP passou a corpo de exército, tendo Norton de Matos sonhado a certa altura no envio de uma segundo corpo de exército. Os intervencionistas portugueses, obcecados com a ideia de um sector português na Frente Ocidental, que acabaram por conquistar, nunca se interrogaram quer sobre a razão de ser de tal sector, quer sobre o contributo que Portugal poderia dar na Frente Ocidental, e o seu preço. Verdun e o Somme tinham demonstrado – se tal demonstração fosse ainda necessária – que no espaço de um só dia grandes unidades podiam ser aniquiladas. Porquê então enviar o CEP, que, pelo seu tamanho, pouco poderia contribuir para a vitória aliada, mas que estaria sujeito a todos os perigos? 14 Grande Guerra • Ensaios A vida do CEP é assim a história de um sacrifício feito por oficiais e soldados por razões de cariz político, oficiais e soldados esses que se sentiram desprezados e abandonados à sua sorte. Ainda antes do golpe sidonista o Governo sentia as maiores dificuldades em preencher os quadros do CEP e garantir seu abastecimento; a partir do golpe, a situação agravou-se, mercê do não regresso a França de oficiais em licença em Portugal e do fim do envio de reforços. A batalha do Lys, a 9 de Abril de 1918, é travada por um exército desfalcado, desnorteado e votado pelo comando britânico à saída das trincheiras nesse mesmo dia, de forma a repor alguma ordem nas suas fileiras. Conclusão: intervencionismo derrotado Embora Portugal seja contado entre as nações vitoriosas da Primeira Guerra Mundial, a verdade é que o intervencionismo português saiu claramente derrotado da contenda. Em Março de 1919 Afonso Costa substituiu Egas Moniz na presidência da delegação portuguesa à Conferência de Paz. Julgou Costa que as suas credenciais intervencionistas lhe permitiriam uma defesa mais eficaz do interesse nacional do que a esboçada por alguém nomeado por Sidónio Pais. Nada indica, porém, que assim tenha sido. Portugal manteve as colónias (nenhum país aliado ou neutro perdeu as suas) mas não recebeu um único mandato da Sociedade das Nações (a Bélgica recebeu o Ruanda e o Burundi); as despesas militares não foram incluídas nas reparações a pagar pela Alemanha, como Costa desejava – o que significava que Portugal teria de saldar a sua dívida de guerra para com a Grã-Bretanha, que tinha possibilitado financeiramente o esforço de guerra português; e foi a Espanha (e não Portugal) convidada para integrar o primeiro Conselho Executivo da Sociedade das Nações. O que a delegação portuguesa realmente pensou do Tratado consta das actas das suas reuniões, recentemente publicadas (Estratégia 15 Grande Guerra • Ensaios Portuguesa na Conferência de Paz 1918-1919: As actas da Delegação Portuguesa) por Duarte Ivo Cruz. Um membro da delegação, Jaime Batalha Reis, não se conteve: “Desde Alcácer-Quibir, esta nossa nova vitória foi o nosso maior desastre”. Afonso Costa passou ao lado do “momento Wilsoniano”, identificado pelo historiador Erez Manela. Pouco se interessou pela criação de uma nova ordem diplomática assente na Sociedade das Nações. O seu desejo era punir a Alemanha de forma a compensar Portugal pelos sacrifícios feitos, reabilitando a política intervencionista à custa da economia alemã. Mas não o conseguiu e a sua autoproclamada vitória moral não convenceu o país. Tentaria ainda justificar a beligerância portuguesa em Abril de 1921, aquando das cerimónias, em Lisboa e na Batalha, relativas ao sepultar dos dois Soldados Desconhecidos, mais uma vez sem grande sucesso. VOLTAR AO ÍNDICE 16 Grande Guerra • Ensaios Portugal e a Grande Guerra, a questão militar No interior da força armada, a maioria dos oficiais opunha-se à guerra, principalmente ao envio de tropas para o teatro europeu. Ensaio de: Aniceto Afonso, historiador Desfile numa localidade em França depois da vitória ARNALDO GARCEZ/LIGA DOS COMBATENTES 17 Grande Guerra • Ensaios O regime republicano precisava de transformar o Exército, porque disso dependia a sua própria sobrevivência. Por isso, os seus responsáveis iniciaram desde muito cedo uma extensa mudança da estrutura militar herdada da Monarquia. Logo a 2 de Março de 1911, o Governo Provisório publicou um decreto determinando profundas alterações no sistema de recrutamento militar, que passava a assentar em cinco princípios: impossibilidade de remissão a dinheiro do serviço militar obrigatório; substancial redução do tempo de serviço militar obrigatório; alteração dos conceitos de reserva; estabelecimento de períodos de preparação militar anteriores e posteriores ao tempo de serviço militar obrigatório; e desaparecimento da noção de exército profissional para dar lugar à de exército miliciano. A transformação continuou, em lei de 25 de Maio de 1911, com a reorganização do Exército baseada na ideia de que “os exércitos permanentes fizeram o seu tempo, são instituições liquidadas”. Seguiu-se a definição de um sistema de instrução e treino das tropas, com a criação da Instrução Militar Preparatória, por decreto de 26 de Maio de 1911. O dispositivo do Exército, constituído por unidades espalhadas por todo o território, continuava com um núcleo profissional que perdia importância, mas devia servir de base à Nação em armas, constituída por tropas de reserva, com um adequado sistema de recrutamento, instrução e mobilização adaptado à nova realidade. Podemos dizer que a grande reforma republicana do Exército baseada no princípio do exército miliciano, sem os recursos necessários, com uma população maioritariamente analfabeta, contra a vontade do seu núcleo profissional, estava votada ao fracasso. De qualquer maneira, as incursões monárquicas primeiro e a Guerra logo a seguir aniquilaram a reforma. Em 1914, quando a guerra na Europa começou, os quadros e os efectivos gerais do Exército tinham tido somente três curtos períodos de treino. O recrutamento e a mobilização fazia-se dentro da respectiva divisão ou comando militar, cabendo a cada unidade suprir as suas faltas 18 Grande Guerra • Ensaios em soldados ou graduados. Havia 35 regimentos de Infantaria, 8 de Artilharia, 11 de Cavalaria e 8 grupos de metralhadoras. Em suma, a República, entre 1911 e 1914, construiu um exército mais orientado para a defesa do território nacional e para actuação interna, I Guerra Mundial: estatísticas portuguesas PÚBLICO, FONTE: ANICETO AFONSO, FERREIRA MARTINS, HISTÓRIA DO EXÉRCITO PORTUGUÊS (1910-1945) 19 Grande Guerra • Ensaios do que para qualquer tipo de intervenção além-fronteiras, mesmo nos territórios coloniais. No que respeita ao equipamento militar, a República beneficiava de um conjunto de medidas levadas a efeito nos últimos anos da Monarquia, como resposta ao ambiente internacional que se vivia. O Exército possuía peças de artilharia modernas e eficientes, embora de diversas qualidades. Quanto ao equipamento individual de infantaria foi necessário adquirir, logo em 1911, à casa inglesa Mills, 25.000 equipamentos de tela verde, inteiramente semelhantes aos adoptados em 1908 pela infantaria inglesa. De uma forma geral pode considerar-se que Portugal, para o nível de ameaças que então se previam, possuía armamento credível, embora não estivesse tão bem equipado e armado como a grande maioria dos estados europeus. Mas foi a participação na Guerra, tanto nos campos africanos como europeu, que ditou o nível de equipamento das forças militares portuguesas, terrestres e marítimas. Portugal, nem beligerante, nem neutral Depois do início das hostilidades na Europa, nos primeiros dias de Agosto de 1914, o Governo inglês solicitou ao Governo português que se abstivesse “por agora de publicar qualquer declaração de neutralidade”, tornando-se esta a posição oficial de Portugal — nem neutral, nem beligerante. Esta situação manter-se-ia até 16 de Março de 1916, dia em que, a seguir ao apresamento dos navios alemães surtos nos portos portugueses feito a pedido da Inglaterra, a Alemanha declarou guerra a Portugal. Foram dois anos de profundas disputas internas e extensos conflitos que envolveram não só as forças políticas, como toda a sociedade, e que ultrapassarão a própria declaração de guerra, mantendo-se até à assinatura do armistício, e mesmo para além dele. 20 Grande Guerra • Ensaios Desfile do CEP antes do embarque para França na Rua do Arsenal, em Lisboa JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA Os republicanos dividiram-se quanto à intervenção militar de Portugal na Europa, sustentando uns a necessidade política e moral de intervir ao lado dos aliados e defendendo outros a utilização exclusiva das tropas portuguesas na defesa das colónias. As pequenas minorias radicais opuseram-se, de uma forma geral, à participação na guerra, assumindo as suas atitudes enorme agressividade, com apreciável influência na opinião pública nacional. No interior da força armada, a maioria dos oficiais opunha-se à guerra, principalmente ao envio de tropas para o teatro europeu. Machado Santos, o “herói da Rotunda”, o “revolucionário do 5 de Outubro”, o “pai da República” encabeçou um movimento, a partir de Tomar, para impedir a partida de tropas para França em 13 de Dezembro de 1916. Quando foi ouvido em auto de perguntas, declarou: “Que entrou na actividade política em 1907 para combater a ditadura do Sr. João Franco (…). Que foi a primeira vez que conspirou com o fim de então derrubar a Monarquia; voltou agora a conspirar pela segunda vez para derrubar um governo que, bem mais nefasto que o Sr. João Franco, 21 Grande Guerra • Ensaios ameaça derruir não só o regime, mas a própria Nacionalidade”. Podemos dizer que Estas palavras revelam a profunda a grande reforma cisão que grassava na sociedade republicana do portuguesa e também entre os Exército baseada no militares. Enquanto uns, mais próximos do Partido Democrático de Afonso princípio do exército Costa, pugnavam pela participação miliciano, sem os de Portugal na frente europeia, outros recursos necessários, exigiam que as tropas fossem enviadas com uma população exclusivamente para África. Será este confronto, entre intervencionistas e nãomaioritariamente intervencionistas, que marcará todo analfabeta, contra a o período de participação das tropas vontade do seu núcleo portuguesas na frente europeia, entre profissional, estava 1916 (preparação) e 1919 (regresso). Contudo, desde muito cedo, Portugal votada ao fracasso enfrentou dificuldades em Angola e Moçambique, territórios que tinham fronteiras com colónias alemãs. A situação levou o governo português a preparar expedições militares para as duas colónias, que saíram de Lisboa a 11 de Setembro, comandadas por Alves Roçadas a de Angola e por Massano de Amorim a de Moçambique. O primeiro incidente de guerra ocorreu em Moçambique, quando a pequena guarnição portuguesa de Maziúa foi atacada por uma força alemã, ainda em Agosto de 1914. Em Angola, o primeiro acto de guerra ocorreu em Naulila, onde em 19 de Outubro um incidente mal explicado conduziu à morte de alguns militares alemães, seguido pela acção alemã contra Cuangar a 30 do mesmo mês. Reforçada a primeira expedição a Angola, e repetida uma acção inimiga sobre Naulila em 18 de Dezembro, a circunstância da rendição das tropas alemãs perante o avanço das tropas sul-africanas levou ao 22 Grande Guerra • Ensaios fim do conflito do exército português em Angola, embora persistisse a revolta dos povos locais. Em Moçambique, a situação evoluiu de forma diferente. Ainda em 1914 foi organizada uma nova expedição, acompanhada desta vez pelo novo governador-geral da colónia, Álvaro de Castro. Verificouse, contudo, que as tropas expedicionárias portuguesas, tal como acontecera na anterior expedição, enfermavam de graves deficiências: má instrução, deficiente equipamento e fraca acção de comando, situação que se manteria até ao fim. Em relação ao teatro europeu, a acção do governo português visou sobretudo a preparação da intervenção portuguesa, tanto no sentido de definir as formas de apoio aliado, em especial da Inglaterra, como de preparar os contingentes militares e mobilizar a opinião pública. Na sequência de uma primeira experiência efectuada em 1914, com a concentração de uma Divisão Auxiliar em Tancos, que depois foi desmobilizada, procedeu-se à formação de uma Divisão de Instrução que se reuniu no mesmo campo militar, sob o comando do general Tamagnini de Abreu e Silva e impulsionada por um grupo de jovens oficiais colaboradores de Norton de Matos, entretanto nomeado ministro da Guerra. Portugal, país beligerante A partir da declaração de guerra da Alemanha, a 9 de Março de 1916, as medidas de mobilização foram aceleradas. Mas a concretização da mobilização pôs a nu as inúmeras dificuldades estruturais – em efectivos, em armamento, em equipamentos e, acima de tudo, em quadros. E enquanto se ultimavam os preparativos para a partida das tropas em direcção ao teatro europeu, foi necessário o envio de um novo contingente com destino a Moçambique, com cerca de 4000 homens sob o comando do general Ferreira Gil. Nesta colónia, onde logo a 23 Grande Guerra • Ensaios seguir à declaração de guerra as tropas portuguesas reocuparam o triângulo de Quionga, abandonado pelas tropas alemãs, esta terceira expedição levou a cabo as operações de maior fôlego, assinaladas pela travessia do Rovuma e por uma penetração em território alemão com a tomada de Nevala. Contudo, a situação criada com o avanço das tropas portuguesas não resistiria à contraofensiva alemã, sob o comando do A República, entre general Von Lettow-Vorbeck. 1911 e 1914, construiu Foi perante esta situação que em princípios de 1917 se organizou uma um exército mais quarta expedição a Moçambique, orientado para a sob o comando do coronel Sousa defesa do território Rosa. Entretanto, a acção das tropas nacional e para alemãs no interior de Moçambique vai prolongar-se até Setembro de 1918, actuação interna, do que para qualquer tendo a sua penetração ficado às portas de Quelimane. tipo de intervenção As tropas portuguesas, em cooperação além-fronteiras, com forças inglesas, opuseram-se aos mesmo nos territórios movimentos inimigos tanto quanto lhes foi possível, travando alguns coloniais combates de maior relevância, como o de Negomano, da Serra Mecula e de Nhamacurra. Von Lettow, conduzindo a guerra conforme as circunstâncias melhor aconselhavam, com o fim, que foi sempre o seu, de fixar efectivos inimigos na região, acabou por abandonar Moçambique, ficando assim o território português livre da presença de tropas inimigas. Continuavam, ao mesmo tempo, os preparativos para a partida das tropas portuguesas para a frente europeia, transformando-se a Divisão de Instrução em Corpo Expedicionário Português (CEP), que, composto inicialmente por uma Divisão e passando depois, por insistência 24 Grande Guerra • Ensaios Soldados de Infantaria em ordem de marcha em Tancos ARNALDO GARCEZ/LIGA DOS COMBATENTES portuguesa e aceitação inglesa, a ser constituído por duas Divisões, se organizou num Corpo de Exército. O convite oficial do Governo britânico de 15 de Julho de 1916, para que Portugal tomasse parte activa nas operações militares dos aliados ainda conheceu oposições, como vimos, mas as tropas portuguesas constituintes do CEP iniciaram o embarque em finais de Janeiro de 1917. O efectivo total do CEP nesta primeira mobilização foi de 1551 oficiais e 38.034 sargentos e praças. Estes números viriam a subir para mais de 50.000 embarcados, quando se constituiu a 2ª Divisão, que permitiu completar o Corpo de Exército, com que Portugal participou na frente europeia da guerra. Em França, depois de um período de instrução e estágio nas linhas, foi atribuído ao CEP um sector na frente, situado na Flandres francesa, em 25 Grande Guerra • Ensaios frente da cidade de Lille, entre Armentières e Béthune. Na opinião dos comandos ingleses era um sector bastante calmo, onde não se previa a ocorrência de grandes acções de combate. O CEP assumiu a responsabilidade total do sector português no dia 5 de Novembro de 1917, sob o comando do 1º Exército Britânico. Era uma zona plana, tinha a forma de um quadrilátero irregular, com cerca de 12 km de trincheiras. Foi aqui que até 9 de Abril de 1918 os soldados passaram por uma dura experiência de guerra, que marcou indelevelmente uma geração portuguesa. As unidades portuguesas, antes do Corpo assumir em pleno o seu sector, tiveram 352 mortos em combate, entre Abril e Outubro de 1917. Marinha de guerra Em relação à marinha de guerra, pode dizer-se que, nos anos que precederam a guerra, houve uma substancial alteração de conceitos estratégicos relacionados com a guerra no mar, e também em Portugal se assistiu ao surgimento de novas orientações, com mais ou menos reflexos no pensamento naval e na organização e meios navais. A ideia de uma permanente aliança com a Inglaterra é constante, embora se preveja a possibilidade de a marinha inglesa ficar demasiado ocupada para poder auxiliar Portugal. Mas outras componentes não deixam de reflectir-se na discussão interna, como a corrida naval, o crescente poder naval da Espanha e a transferência da esquadra britânica do Mediterrâneo para Quando a guerra se o Mar do Norte, na sequência dos acordos inicia, a Marinha não entre a França e a Inglaterra. O conceito essencial evoluiu para está preparada para a necessidade de uma esquadra com enfrentar as ameaças capacidade oceânica, à dimensão das que se desenham possibilidades nacionais, que impedisse 26 Grande Guerra • Ensaios o bloqueio dos portos portugueses e assegurasse a ligação entre Lisboa e os Açores e, em consequência, a relação com as colónias. O programa naval da República absorveu este conceito geral, embora na prática os objectivos fixados fossem impossíveis de atingir, dado o alto custo da opção. Mas o ambicioso plano republicano para a marinha de guerra acabou por ficar apenas no papel, até ao início das operações na Europa. Contudo, alguma coisa foi mudando na Marinha Portuguesa. Tal como os programas navais de outros países, também em Portugal se pensou no papel dos contratorpedeiros que, apesar das polémicas suscitadas, começam a ser construídos no Arsenal em 1910, acabando Portugal por lançar três navios desta classe, antes da beligerância portuguesa, em 1916. Também os submarinos viriam a fazer parte das preocupações dos responsáveis portugueses, sendo encomendada a primeira unidade a Itália, em 1910, recebida em Lisboa em 1913, com o nome de Espadarte. Portugal virá a receber ainda mais três submarinos em 1917, formando as quatro unidades a primeira esquadrilha de submarinos portugueses, como principal elemento da defesa naval de Lisboa, a partir do início de 1918. Era, apesar de tudo, um avanço significativo. Quando a guerra se inicia, a Marinha não está preparada para enfrentar as ameaças que se desenham. As principais preocupações, defesa dos portos contra ameaças de superfície e protecção das tropas expedicionárias para as colónias, dificilmente podiam ser asseguradas pelos meios da marinha portuguesa. Contudo, os navios existentes são As tropas utilizados para enfrentar os problemas portuguesas viramde defesa e navegação, especialmente na protecção dos portos de Lisboa e se assim envolvidas Leixões, dos Açores e da Madeira, das num conflito comunicações, da navegação para que dificilmente as colónias e do apoio possível às compreendiam operações em Moçambique. 27 Grande Guerra • Ensaios Do Sidonismo a La Lys Entretanto, com o agravamento da situação interna, a oposição à guerra não conheceu tréguas, tudo se conjugando para criar um clima social propício ao desenvolvimento de projectos conspirativos e violentos. Foi neste ambiente que, em 5 de Dezembro, uma revolta militar saiu à rua, chefiada por Sidónio Pais, major de Artilharia e ministro de Portugal em Berlim até à declaração de guerra da Alemanha. Em menos de três dias, os revoltosos conquistaram o poder e assumiram a direcção política do país. A nova situação, a que os seus dirigentes chamaram República Nova, não chegou a pôr em causa a continuação do empenhamento militar ao lado dos aliados, tanto na Europa como em Moçambique, mas é sintomático da nova disposição dos dirigentes portugueses o facto de se não terem efectuado as rendições de efectivos normais (também pela escassez de meios de transporte marítimos) e de um número significativo de mobilizados, temporariamente regressados a Portugal para tratamento ou de licença, não regressar à frente, apesar dos contínuos apelos dos comandos militares do CEP. As tropas portuguesas viram-se assim envolvidas num conflito que dificilmente compreendiam. A retaguarda era débil, as condições de emprego como força militar em operações extremamente fraca, o moral foi sempre baixo, mas no início de 1918 desceu a níveis insuportáveis. As unidades tinham falta de oficiais, a instrução tinha sido deficiente, o apoio não estava ao nível do de outras unidades do mesmo escalão. Os soldados não gozavam férias, estavam muito longe da sua terra, muitos nunca chegaram a compreender porque estavam naquela guerra. A actividade militar na zona intensificou-se de forma gradual mas constantemente. O mês de Março foi extremamente penoso para as unidades portuguesas. Os comandos portugueses aperceberam-se desta situação, mas o comando britânico manteve a ideia de que o ataque principal que as 28 Grande Guerra • Ensaios forças alemãs preparavam não seria na região de Armentières. No entanto, em 6 de Abril as tropas portuguesas receberam ordens para manterem na linha da frente apenas a 2ª Divisão, comandada por Gomes da Costa, passando para o comando do XI Corpo de Exército britânico. Na prática, porém, a extensão da linha da frente manteve-se nos 12 km anteriores, sendo retirado um batalhão. Ou seja, a frente ficou com menos densidade de forças. O tempo também foi curto para consolidar as inevitáveis mudanças tácticas resultantes desta decisão unilateral do comando britânico. Mas o pior estava para vir. As visitas a 6 e 7 de Abril do comandante do XI Corpo, general Hacking, ao comando da 2ª Divisão coincidiram com as notícias dos preparativos alemães e a constatação do nível moral e do estado físico das tropas portuguesas, o que levou o comando britânico à decisão lógica, que uma prudente análise de situação já deveria ter aconselhado há bastante tempo. A 8 de Abril foi dada ordem para a substituição da 2ª Divisão por uma divisão inglesa, movimento que deveria iniciar-se a 9 de Abril. Era tarde e a decisão tardia desmoronou o moral das primeiras linhas portuguesas. Se a vontade de lutar e a disposição anímica era já extremamente baixa, a perspectiva de sair da frente anulou toda a capacidade de resistência e de comando. A situação só poderia conduzir a um desastre, se o ataque se realizasse nesse dia. Foi o que aconteceu. O ataque alemão de 9 de Abril inseriu-se na estratégia de rotura da frente em sectores estreitos, com grande superioridade de meios. Os comandos alemães sabiam que seria uma das últimas oportunidades de o conseguirem. O ataque foi bem planeado, bem preparado e executado de forma eficaz. A preparação da artilharia foi longa e intensa. Os gases de combate foram usados da forma habitual. O assalto fez-se de acordo com os princípios tácticos consolidados pela longa guerra de trincheiras – preparação de fogos, ataque frontal, envolvimentos, contrabateria, ataques profundos, consolidação do terreno conquistado. 29 Grande Guerra • Ensaios A defesa do sector português, e de certa forma dos sectores vizinhos, não pôde organizar-se de forma consistente. A capacidade de combate dos portugueses estava diminuída pelas condições do terreno, pelo desequilíbrio dos meios de combate e principalmente pela disposição psicológica das tropas. Houve resistências, mas os confrontos foram pontuais e não duraram mais que escassas horas, o tempo necessário ao avanço das tropas alemãs. Em seis horas ruiu toda a resistência das primeiras linhas; ao fim do dia estava conquistado todo o sector português e consolidada a penetração alemã. Só em Lacouture um pequeno núcleo anglo-português resistiu até ao dia seguinte. Como “Batalha de La Lys”, “9 de Abril”, “La Lys – a Batalha Portuguesa” ou outro título semelhante, os combates da manhã de 9 de Abril de 1918 na frente ocupada pelo CEP encontram-se descritos e analisados em múltiplos textos. Depois de La Lys, o que restou das tropas portuguesas foi distribuído por unidades inglesas, sendo os militares utilizados, de uma forma geral, em trabalhos braçais, como a construção de trincheiras. Tanto o general Tamagnini, enquanto manteve o comando, como o general Garcia Rosado, que o substituiu a partir de Agosto, procuraram junto do governo português e do governo inglês, mas também junto do comando britânico, devolver alguma dignidade ao período final da presença das tropas portuguesas na frente ocidental. Este esforço permitiu que fossem constituídos três batalhões que de novo foram integrados na frente, onde se mantiveram, juntamente com outras unidades de apoio e de serviços, até à assinatura do Armistício a 11 de Novembro de 1918. Foi assim que o Exército Português, mais por iniciativa no terreno de alguns dos seus comandos do que por empenho do governo de Lisboa, conseguiu ultrapassar com um resto de dignidade as contingências da sua presença na frente europeia, o que lhe permitiu desfilar em Paris, 30 Grande Guerra • Ensaios em nome de Portugal, quando ali se comemorou a vitória, em 14 de Julho de 1919, e dar suporte político à participação do país, ao lado das outras potências aliadas, na Conferência de Paz. VOLTAR AO ÍNDICE 31 Grande Guerra • Ensaios Heróis do mar: a nação, o império e a participação de Portugal na I Guerra O entendimento que fazia do império uma parte indissociável da nação atravessou séculos e regimes distintos. Só viria a ser posto em questão com a vaga de descolonização iniciada com o fim da Segunda Guerra Mundial, produto em grande medida do resultado da anterior. Ensaio de: José Manuel Sobral, Antropólogo e historiador (Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa) Regresso das tropas do Corpo Expedicionário Português em 1919 32 Grande Guerra • Ensaios 1. Há vários factores, uns ancorados na história mais próxima, outros na mais distante, que explicam a participação de Portugal na Grande Guerra de 1914-1918. O estado português tem sólidas relações com um dos dois grandes blocos em que se dividem os contendores: o constituído pelo Reino Unido, pela França e pela Rússia, ao qual se juntara ultimamente a Itália. A Grã-Bretanha era o seu principal parceiro em termos económicos e políticos, a França era-o em termos culturais. A relação com a primeira emergira na Idade Média com a aliança com a Inglaterra e sedimentarase tanto pelos laços comerciais como no decurso de diversos conflitos, entre os quais os que asseguraram a independência do estado português - a começar pelos que tiveram lugar no decurso da crise dinástica aberta com a morte de D. Fernando em finais do século XIV. Este vínculo foi um esteio da manutenção da autonomia portuguesa na Península Ibérica, onde primeiro Castela, e depois a Espanha, foram sempre mais poderosas. Embora este laço fosse sentido como assimétrico após o tratado de Methuen - e se assacasse ao poder britânico responsabilidades na manutenção de Portugal num estatuto económico secundário, de país agrícola, enquanto a Grã-Bretanha se transformava na primeira potência A Grã-Bretanha, a industrial moderna -, ele nunca se quebrou. França e Portugal As relações com a França haviam eram potências sido historicamente muito distintas e o coloniais. E a questão estado francês chegou mesmo a invadir colonial havia-se Portugal no período napoleónico. Todavia, as ligações mais profundas no transformado num plano cultural ocorriam exactamente problema político com esse país. Ele representava a língua, maior nas décadas a literatura, a cultura, a civilidade, a prévias ao conflito. cozinha, que as classes mais abastadas 33 Grande Guerra • Ensaios e as mais dotados de capital cultural, as com maior influência no plano político, procuravam emular. Paris era o centro do mundo. As afinidades crescem com o regime republicano. Não só Portugal era, com a França, um dos raríssimos exemplos de regime republicano na Europa, como a III República inspira profundamente a portuguesa, no plano doutrinário e em medidas políticas concretas, como o laicismo militante ou a importância conferida à escola pública na socialização dos cidadãos, entre outros Partida de mais um contingente de militares para África, exemplos. em Junho de 1916 JOSHUA BENOLIEL A Grã-Bretanha, a França e Portugal eram potências coloniais. E a questão colonial havia-se transformado num problema político maior nas décadas prévias ao conflito. Não se pode compreender a Grande Guerra sem ter em conta as dinâmicas conjugadas do nacionalismo e do imperialismo, tivessem elas por palco a Europa, onde impérios multinacionais se confrontavam com as aspirações de novos estados-nações ou movimentos nacionalistas, como sucedia nos Balcãs, ou outros continentes, como a África, em particular. As colónias eram importantes para os estados europeus tanto económica, como política e simbolicamente. Não eram apenas mercados e fontes de matérias-primas, reais ou potenciais, eram 34 Grande Guerra • Ensaios Interior do Pavilhão de Portugal na Exposição-Feira de Angola, 1938 ATRIBUÍDO A FIRMINO MARQUES DA COSTA (1911-1992) também um testemunho do seu estatuto político e simbólico e do dos seus povos – ou das suas nações e raças, para referir palavras então usadas como sinónimos. O prestígio e o poder britânicos, por exemplo, não residiam apenas na ilhas, mas num império à escala global, que se ampliara substancialmente depois da independência norte-americana, em África e na Ásia. Depois das perdas sofridas na América no século XVIII, a França reconstruíra um império com grandes domínios em África e na Indochina. Até a Bélgica, um país mais susceptível de comparação com Portugal, conquanto apenas em termos de território e de população, adquirira um em África. A Holanda conservara o seu. 35 Grande Guerra • Ensaios Todavia, os novos estados nacionais, formados na segunda metade de oitocentos, como a Itália e a Alemanha, encontravam obstáculos na construção dos seus impérios. A última havia-se transformado numa enorme potência em termos demográficos, económicos e militares, como ficara demonstrado na derrota que infligira aos franceses em 1870. Mas, em matéria imperial, via-se reduzida, para além de algumas ilhas no Pacífico, a uma porção menor dos territórios africanos, entre os quais a Namíbia a sul de Angola e o Tanganica a norte de Moçambique. O estado português receava que as ambições alemãs fossem satisfeitas através de um acordo com o Reino Unido, à custa das colónias portuguesas, como já fora discutido em 1898 e nos anos imediatamente anteriores à guerra. O Ultimato britânico de 1890, que pusera fim à aspiração portuguesa de unir os territórios situados entre as duas costas do continente africano, tivera efeitos traumáticos, levando a uma intensa agitação nacionalista que beneficiou os republicanos, pois a monarquia foi forçada a obedecer aos ditames do mais forte. Por isso, as expedições militares para defender Angola e Moçambique são organizadas logo em 1914, e os combates com as forças alemãs ocorrem antes de existir uma situação formal de guerra entre Portugal e Alemanha, que só virá a acontecer em Março de 1916. 2. A participação no cenário de guerra europeu, envolvendo uma mobilização incomparavelmente maior, viria a dar-se mais de dois anos depois, em 1917. Embora a maior parte das forças partidárias apoiassem a intervenção, esta acarretou divisões no campo republicano português, bem como a oposição de meios germanófilos e das correntes internacionalistas ligadas ao movimento operário. As carências e sacrifícios impostos pelo conflito prolongado foram enormes. Puseram fim ao equilíbrio orçamental conseguido pouco antes pela governação democrática e atingiram dramaticamente as condições 36 Grande Guerra • Ensaios O Ultimato britânico visto por Manuel Gustavo Bordallo Pinheiro, no jornal Pontos nos II de subsistência da maioria. Gerou-se um forte descontentamento que levou ao derrube do governo da União Sagrada, formada pelo Partido Democrático e pelo Partido Republicano Evolucionista. Este foi substituído a partir de Dezembro de 1917 por um regime presidencialista chefiado por Sidónio Pais, cujas características ditatoriais se iriam acentuar nos poucos meses em que esteve no poder. Não nos cabe fazer aqui a crónica de eventos tão conhecidos, nem a dos relativamente menos de África, em que os corpos expedicionários portugueses tiveram não só de enfrentar forças militares mais capazes, que lhes impuseram derrotas, como também de submeter a população local, que aproveitava o ensejo para se tentar libertar do poder português, pouco ou nada consolidado. O império africano português era uma construção recente, pois só ao longo da segunda metade do século XIX se investira na penetração no interior, no controlo das populações 37 Grande Guerra • Ensaios e entidades políticas locais, na construção do Estado. As chamadas “campanhas de ocupação” tinham poucas décadas. Este novo surto imperial, ocorrido algumas décadas depois da independência do Brasil, encontrara um apoio amplo em Portugal. Embora houvesse no seio das elites políticas e intelectuais quem defendesse o abandono de algumas das colónias, pelas despesas que acarretavam, e a concentração dos esforços em outras, como Angola, que pudessem ser rentáveis, no contexto intensamente nacionalista das últimas décadas de oitocentos a maioria consagra a sua defesa e inalienabilidade. Este credo era comum à elite política das últimas décadas da monarquia e aos republicanos, que lhe iriam suceder. A noção de que as colónias eram uma componente essencial da identidade nacional era antiga. Estava incorporada na narrativa da história portuguesa mais difundida, que comportava duas fases, de duração variável: uma que ia do advento de Portugal até ao seu apogeu, outra de declínio. Nessa narrativa, e pondo de lado o papel relevante ocupado pelos antepassados míticos, os lusitanos, Portugal havia surgido como reino independente em luta simultaneamente contra dois inimigos: o castelhano-leonês – depois espanhol – e o muçulmano. Alcançara o seu momento de maior glória com as conquistas em Marrocos e as navegações marítimas do séculos XV e XVI, a Idade do Ouro da história portuguesa. Seguira-se a decadência, cujas origens e causas eram objecto de debate, mas que se tinha como uma característica indiscutível do Portugal contemporâneo. O poder asiático dos portugueses fora em grande medida liquidado no século XVII, o império luso-brasileiro findara em 1822. Portugal ficara então praticamente reduzido a um estado periférico no espaço europeu e só lentamente se iniciaria a transformação dos empórios comerciais, nomeadamente de escravos, e dos presídios, localizados nas zonas costeiras de África ou nas suas proximidades, em verdadeiras colónias. Mas o império permanecera sempre ao longo do tempo como 38 Grande Guerra • Ensaios Preparativos para o embarque das tropas que vão combater na Primeira Guerra Mundial em Belém JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA um elemento central na imaginação nacionalista do país. É de crer que esta narrativa tivesse uma recepção mais alargada do que aquela que encontramos nos testemunhos escritos dos mais instruídos, para os quais ela constitui um elemento básico da sua identificação nacional. Aliás, este tipo de narrativa ou imagem básica da história nacional portuguesa não se difundia apenas pelo escrito, servido nas últimas décadas do século pela difusão da imprensa. Para além da comunicação oral, também os rituais comemorativos então promovidos contribuíram para a sua popularização. O centenário da morte de Camões (1880) é uma dessas cerimónias nacionalizadoras, em que se insere também o da viagem de Vasco da Gama à Índia (1898), feito representado nos Lusíadas como um momento supremo da história portuguesa. 39 Grande Guerra • Ensaios Seguir-se-ia, entre os associados directamente à expansão, mas com uma intensidade bem menor, o centenário da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, em 1900. O desfile em Lisboa do Ngungunhane (Gungunhana), derrotado e exilado, em Março de 1896, insere-se também no projeto colonial, mas como ritual de humilhação de alguém que ousou contrariar a supremacia do colonizador. Estas celebrações são parte de uma forte vaga nacionalista que se faz sentir então a nível mundial e da qual fazem parte as indagações sobre o carácter nacional, o estudo etnográfico das culturas supostamente menos expostas às influências externas e mais fiéis às tradições – o campesinato –, a procura das origens étnicas e das características raciais da população, que revelariam as suas virtudes essenciais, transmitidas de geração em geração. A par das comemorações opera-se uma nacionalização do próprio espaço urbano, com a implantação de monumentos que promovem uma identidade nacional oficial em que o Império tem um lugar central. Isso ocorre, por exemplo, com os monumentos a Camões, a Afonso de Albuquerque ou a Pedro Álvares Cabral em Lisboa e com a voga da arquitetura neomanuelina, que inspira a ala acrescentada aos Jerónimos, a estação do Rossio de Lisboa, e, fora de Portugal, o Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, o núcleo principal da Diáspora Portuguesa, que partilhava o mesmo ideário nacionalista. 3. Deve dizer-se que esta exaltação nacional começara muito antes do século XIX, pois as grandes navegações e conquistas dos séculos XV e XVI foram acompanhadas pelo desenvolvimento de um nacionalismo etnocêntrico. O poema épico de Camões, o mais importante dos textos em que este se revela, celebrou no século XVI o carácter e o destino nacional excepcional dos portugueses narrados pelo navegador que atingira a Índia. Os túmulos poeta e de Vasco da Gama nos Jerónimos são um produto do nacionalismo finissecular oitocentista, mas 40 Grande Guerra • Ensaios ligação do mosteiro de Belém à história ultramarina começara no próprio momento culminante desta, pois ele fora erguido, simultaneamente, para ser o panteão real de D. Manuel e dos seus descendentes, e para lembrar a todas as outras “nações” o “esplendor de Portugal”, nos versos significativos da marcha A Portuguesa, composta em resposta ao Ultimato e que o regime republicano transformou em hino nacional. Para entendermos adequadamente as razões que levaram ao envolvimento de Portugal na Grande Guerra, temos, assim, de prestar a devida atenção a factores relacionados com a conjuntura – e que vão das afinidades e interesses de vária ordem que ligam o Estado português ao bloco em que se encontram a França e o Reino Unido, à necessidade de proteger mercados e matérias-primas ultramarinas, ao impacto do nacionalismo que fazia do império uma parte nuclear do estatuto do país. Nessa conjuntura, a percepção de ameaça sobre as colónias teve um papel crucial. Mas os motivos ligados ao presente e ao passado próximo eram reforçados por uma representação multissecular em que as conquistas e navegações, de que haviam ficado como testemunho as colónias, surgiam como o sinal mais evidente do destino histórico excepcional dos portugueses. Este entendimento, que fazia do império uma parte indissociável da nação, atravessou séculos e regimes distintos, e só viria a ser posto em questão com a vaga de descolonização iniciada com o fim de uma nova guerra, produto em grande medida do resultado da anterior. VOLTAR AO ÍNDICE 41 Grande Guerra • Ensaios A correspondência do desassossego e da saudade Nos momentos de descanso, os soldados portugueses escreviam onde calhava: nas trincheiras, num celeiro ou num hospital. Escreviam com o que tinham à mão, sobre o joelho ou escrivaninhas improvisadas. Alguns viram-se forçados a aprender a ler. Todos tiveram a sua correspondência sob o olho da censura. Ensaio de: Isabel Pestana Marques Todos os postais aqui reproduzidos foram enviados pelo soldado sapador ferroviário Felizardo Simões, que combateu entre 1917 e finais de 1918, à sua mulher Maria José e filha Amélia COLECÇÃO DE MANUEL SIMÕES R. MARQUES / BIB. MUN. DE FIGUEIRÓ DOS VINHOS 42 Grande Guerra • Ensaios A vivência das duras condições do quotidiano de guerra e a luta constante entre a vida e a morte impôs-se aos expedicionários portugueses durante a campanha, em França (1917-1919). Neste ambiente opressor, a troca de correspondência particular tornouse fundamental para a construção/manutenção do equilíbrio físicopsicológico dos combatentes. Desde cedo, os portugueses elegeram a escrita e a leitura de cartas, enviadas ou recebidas, como meio de comunicação individual e privado, ultrapassando obstáculos emergentes. A vontade de comunicar motivou muitos expedicionários analfabetos a aprenderem ou a aperfeiçoarem a leitura e a escrita da língua-mãe com a ajuda de um camarada ou sozinhos, generalizando-se, então, o uso da Cartilha de João de Deus em terras francesas. A aprendizagem do francês fez-se com o auxílio das jovens francesas e a um ritmo célere, sem grandes cuidados gramaticais. A necessidade fazia aguçar o engenho, recorrendo a esquemas talentosos na construção de um original “francês de guerra”. Nos momentos de descanso, escreviase nas trincheiras (sobretudo na 2ª Para impedir a linha), num celeiro ou no “estaminet” da transmissão de Linha de Aldeias e até num hospital da informações valiosas Base, utilizando os materiais disponíveis: papel, caneta e tinta; sobre o joelho ou para o inimigo ou sobre escrivaninhas improvisadas com que abalassem o caixotes de corneed beef. A satisfação em moral em Portugal, escrever ou ler cartas fazia esquecer as as autoridades dificuldades da escrita e da leitura e até a disposição do momento e, sobretudo, criaram o Serviço de a falta de liberdade na troca de Censura Postal do correspondência em tempos de guerra. Corpo Expedicionário Para impedir a transmissão de Português informações valiosas para o inimigo ou 43 Grande Guerra • Ensaios que abalassem o moral em Portugal, as autoridades criaram o Serviço de Censura Postal do Corpo Expedicionário Português (CEP), repressor da liberdade de expressão e de informação. A censura de palavras ou frases, a apreensão da carta e o julgamento do autor infractor podia terminar em repreensões registadas, em adiamento de licenças e até em dias de prisão, muitas vezes cumpridos na incerteza da 1ª Linha. O conjunto de missivas reflectirá, então, um mundo privado de autores e destinatários que procurou sobreviver às contingências impostas pelo dia-a-dia de guerra e pelo poder estabelecido. A qualidade da escrita, o acto de recepção e os conteúdos expressos no papel permitem compreender a própria campanha do Corpo Expedicionário Português. A maioria das cartas do CEP foi escrita por praças de pré [soldados e cabos, os escalões mais baixos da hierarquia militar], em 1918 e em França. Constituindo a troca de cartas um acto pessoal e de difícil realização 44 Grande Guerra • Ensaios em campanha, os autores vão decidir escrever àqueles que lhes são mais próximos, em quem confiam e com quem são íntimos. Na prioridade familiar, os solteiros escreveram aos pais e irmãos e os casados às mulheres. Na prioridade de amizade, os camaradas de armas trocaram cartas entre si e escreveram cartas de sedução a mulheres civis e militarizadas. Na prioridade de relacionamento amoroso, eles e elas trocavam cartas de amor, já consolidado, independentemente do local e da língua escrita. Deste modo, a correspondência serviu para contactar um mundo menos masculinizado, menos militarizado e, sobretudo, civil, numa tentativa de contacto com o mundo exterior. O destino das cartas confirma essa necessidade. A retaguarda portuguesa ditou a maioria, expressando uma forte necessidade de contacto com a ansiada e distante terra natal e os familiares. A solidariedade entre 45 Grande Guerra • Ensaios camaradas decidiu a escrita para os campos de concentração alemães nos quais os portugueses sofriam o cativeiro. As terras francesas e inglesas ditaram outras tantas cartas pois aí estavam os camaradas de armas e as namoradas de guerra. Escritas em papel próprio, as cartas de 2 ou 4 páginas iniciavam-se, geralmente, por um cabeçalho semelhante (“Meus queridos pais”) e findavam com alguma criatividade mais individualizada. Este processo confirma a existência de um modelo de escrita anterior à guerra e o recurso a “escrevedores profissionais” que a troco de dinheiro ou de favores escreviam as cartas pelos combatentes analfabetos. Escritas, sobretudo, em português, e em francês ou inglês de acordo com a nacionalidade do destinatário e as capacidades linguísticas dos autores, a qualidade da escrita (ortografia, construção de frases, etc.) era diversificada, mas predominava o nível baixo. 46 Grande Guerra • Ensaios Sendo maioritariamente escritas por praças de reduzida instrução, a escrita em português, em geral, era decalcada da oralidade (por exemplo, trocando os b pelos v), sem grandes preocupações pelas regras subjacentes à escrita e a escrita em francês fundia, em geral, a língua natal com a estrangeira numa simbiose de má qualidade. Muitas vezes a leitura da mensagem tornava-se impossível. Sujeita à vivência de um dia-a-dia tão diferente do quotidiano de paz, a guerra impôs-se como conteúdo das missivas, focalizando-se nas preocupações e nas dificuldades mais sentidas pelos autores. A ansiedade e o desejo de gozar licença de campanha, em Portugal, justificaram as numerosas linhas escritas à família e amigos. Aí se pediam favores em Lisboa e até se implorava dinheiro para a passagem ferroviária por Espanha, na ausência de um lugar a bordo nos escassos navios portugueses. A concessão irregular de licenças motivará protestos e denúncias de discriminação e de injustiça. Tal situação aguçará o engenho redigindo-se propostas de “esquemas” O pulsar e o rosto facilitadores à obtenção das desejadas humano emergem, licenças – por exemplo, a recepção de ainda hoje, das uma carta relatando uma gravíssima cartas portuguesas, falsa doença familiar ou referindo problemas graves jurídicos de herança, amarelecidas pelo ambos justificadores da urgência do tempo, tintas de regresso a Portugal. sangue, suor e pó A doença, o ferimento e os períodos e sobreviventes de hospitalização motivarão igualmente as linhas escritas com a preocupação de a uma guerra de sossegar a família, omitindo-se muitas consequências vezes a gravidade ou as sequelas. absolutas na História A ansiedade e a necessidade de de Portugal passar a escrito o tema da dureza 47 Grande Guerra • Ensaios dos “momentos de combate” foi maior do que qualquer risco… Diferentes informações sobre a campanha (operações militares, deslocações de unidades, relações entre combatentes e com outros exércitos, etc.) serão prestadas com o intuito de dar a conhecer o quotidiano de guerra a terceiros, de expressar críticas e denunciar injustiças vividas e, simultaneamente, de aproximação ou rejeição do conforto da retaguarda distante. Igualmente dãose informações sobre os camaradas de armas para que os destinatários informassem as respectivas famílias mas, também, com a intenção de dar a conhecer os perigos e os sofrimentos vividos na zona de guerra. Em suma, algum abatimento moral esquecerá os perigos de punição por infracção do regulamento e levará a escrever linhas de desânimo face às características originais dos combates, ao esforço físico da vida na zona de guerra e à falta de meios humanos e materiais. Dada a dimensão da batalha do Lys e o respectivo impacto na evolução do Corpo Expedicionário Português, os autores vão escrever sobre o tema, apesar do risco de prisão disciplinar: a simples referência ao facto (em geral, por praças) ou extensas narrativas descritivas e 48 Grande Guerra • Ensaios explicativas do 9 de Abril de 1918 (em geral por oficiais) permitiram aos autores dar a conhecer informações cuja divulgação a censura da imprensa, vigente em Portugal, impedia. Muitas cartas prestaram informações sobre a política portuguesa de guerra, dando eco a ressentimentos fracturantes dos combatentes face à política dos governantes e das autoridades militares, e manifestando o anseio de se manterem a par do desenrolar da inquietante política em Lisboa. Por fim, algumas missivas expressam uma religiosidade muitas vezes calada pelos oficiais republicanos anti-clericais. A referência às preces individuais e às orações de familiares confirmam a religiosidade como instrumento de sobrevivência à campanha. Em suma, ao escreverem sobre o quotidiano vivido na Flandres, os expedicionários elegeram as cartas como meio de comunicação das preocupações mais prementes, das dificuldades mais sentidas e das consequentes reacções individuais, com a retaguarda portuguesa. Escritas com o intuito de partilhar experiências e sentimentos, numa tentativa de comunhão; de dar a conhecer realidades diferentes das vividas em tempo de paz, numa tentativa, simultânea, de identidade de campanha e de rejeição do conforto vivido na retaguarda, distante dos Maioritariamente, horrores da guerra. Assim, as missivas testemunharam o perguntava-se pela desassossego dos entrincheirados que família, pela saúde elegeram a troca de correspondência dos pais, da mulher e como um instrumento de evasão à dos filhos e depois pelo realidade vivida. O crescente divórcio entre os destino das colheitas, do gado e dos vizinhos entrincheirados e os militares da retaguarda e o próprio país, a sensação (casamentos, mortes, de abandono face às carências físicas heranças) e psicológicas vividas no “Front” e a 49 Grande Guerra • Ensaios necessidade de construir e controlar decisões privadas num contexto em que colectivizava qualquer acto da campanha, tornaram urgente encontrar soluções de autocontrolo para se impedir a ruptura com o poder e as autoridades estabelecidas. Aqui as cartas vão unir os combatentes a um exterior distante geograficamente mas teimosamente próximo. As memórias dos tempos de paz da família e da terra natal, os afectos que se deixaram em Portugal e as cumplicidades emergentes na campanha irão nortear a escrita de palavras emocionadas, de troca de informações e de pedidos sinceros a um exterior que é chamado a intervir em auxílio dos que sofrem. Como único meio de comunicação com o exterior, os autores raramente deixaram de reclamar resposta breve, finalizando sempre as cartas com frases cheias de saudade: “Assim que esta tu recebas escrebem idáme infirmações” ou “fico isprando resposta tua” ou ainda “Escreveme na volta do correio”. O pedido de notícias era constante. Maioritariamente, perguntava-se pela família, pela saúde dos pais, da mulher e dos filhos e depois pelo destino das colheitas, do gado e dos 50 Grande Guerra • Ensaios vizinhos (casamentos, mortes, heranças), insistindo-se em conhecer pormenores que aproximassem os militares à saudosa terra natal. Este tipo de informações era tão importante que originou a troca de cartas entre combatentes a darem conta do que sabiam, num processo de partilha solidária. Muitos combatentes dão a conhecer a outros a boa ou má saúde dos seus parentes ou vizinhos ou o sucesso na venda do porco ou a celebração de um noivado na aldeia natal, confirmando igualmente a construção de uma rede de informação de assuntos privados, essencial para a manutenção da identidade individual e regional dos expedicionários. Em seguida, interrogava-se pelo país e pela actuação do governo, silenciados pela censura e pela falta de jornais portugueses em França, denunciando crescentes sentimentos de frustração e de abandono. Por fim, perguntava-se pelo bem-estar dos cativos nos campos de concentração alemães. Aqui a incerteza pelas notícias misturava-se com a necessidade de manter contacto com aqueles que sofriam do outro lado da linha inimiga, num processo de comunhão no sofrimento. Quando a distância geográfica não se impunha, os combatentes vão formular pedidos de “visitas breves”. Muitos solicitavam a visita de camaradas colocados noutras unidades: em geral, amigos de longa data e conterrâneos. Noutras cartas, em maior número, os expedicionários apelavam à visita da namorada francesa ou inglesa. Pedia-se, ainda, fotografias dos familiares, mas também de jornais, comida (sobretudo iguarias regionais) e até roupa civil para a viagem ferroviária de regresso. As fotografias eram as mais desejadas, recebidas entre uma alegria contagiante e um silêncio emocionado de saudade. As cartas afirmavam-se, então, como um meio de intervenção dos destinatários na vida dos autores, ao cumprirem os desejos formulados, e um meio de aproximação entre o exterior e o espaço de guerra, através da partilha solidária, esbatendo-se por uns instantes a distância entre a guerra e a paz. 51 Grande Guerra • Ensaios Finalmente, as cartas permitiram construir relações amorosas, essenciais à manutenção do moral das tropas. As relações entre casados e de longa distância (marido combatente e mulher em Portugal) sofrem maior desgaste provocando ora queixas e ciúmes das mulheres, ora protestos e repreensões dos maridos que valorizavam as agruras da guerra em detrimento dos sentimentos femininos. As relações entre não casados e de curta distância constroem-se com cartas apaixonadas. Aqui abundam as declarações de amor, num francês muitas vezes atabalhoado; a organização de encontros amorosos, para o próprio e até para os camaradas e pedidos de namoro ou de casamento uma vez que o termo “fiancê” era banalizado pelos portugueses para encantarem as francesas. Por fim, a premência em comunicar justificará palavras muito violentas em relação aos correios. Interdito o correio civil e o 52 Grande Guerra • Ensaios clandestino pelas autoridades militares, competia ao correio militar português levar as missivas dos combatentes aos destinatários tal como fazer-lhes chegar às mãos as missivas a eles destinadas. Mas a tarefa será muito dificultada devido à falta de navios e às greves dos funcionários desencadeadas, em Portugal, em 1918. A falta de confiança na acção dos correios oficiais originará o desespero expresso, por um lado, pela sucessiva escrita de cartas (semanal e até diária) numa tentativa inconsciente de pressionar a troca de missivas e, por outro lado, pela construção de códigos de palavras-chave ou desenhos para iludir a censura. Igualmente se recorre ao correio civil francês, afrancesando o remetente ou pedindo à população civil feminina para enviar as cartas para Portugal, ou ao correio clandestino. Por fim, aqueles que regressavam a Portugal transportavam consigo, clandestinamente, cartas dos camaradas. A troca de correspondência no Corpo Expedicionário Português permitiu, na época, calar o desassossego e viver a saudade do quotidiano de paz num ténue equilíbrio para impedir a ruptura com o quotidiano de guerra e o consequente aniquilamento psicológico dos combatentes e possibilita, actualmente, dar voz e construir a memória dessa experiência singular. O pulsar e o rosto humano emergem, ainda hoje, das cartas portuguesas, amarelecidas pelo tempo, tintas de sangue, suor e pó e sobreviventes a uma Guerra de características originais e de consequências absolutas na história de Portugal, da Europa e do mundo. Carta 1 “França, 11 do 8 de 1918 Minha Crida e Saudosa mãe Comuito gosto e prazer lancei mão há pena Somente para Saver da sua p emportente Saude e Juntamente atoda a nossa família pois que eu fico bem Graças A Deus […] peço-lhe que me mande 30 milrreis que com algum que eu tenho para ver se lá vou que 53 Grande Guerra • Ensaios este dinheiro não se gasta todo mas é preciso mostralo para-se [ilegível] Alguma demora / Pellos Cumboios tellos para gostar […] mandemo o mais breve que possa que tem de vir num chéque mande-mo numa carta rezistada que elle não-se perde que os meus colegas também o teem recevido aver-se vou a essas terras que estes lêdroes não nos deixão lá ir que as tropas já-se revoltarão que até os entregarão as englezes que eu [riscado] ahi não gostava de ver os defuntos mas agor já não me custa nada que se vêem morrer todos os dias. / Minha mãe tenho para lhe dizer que no dia nove de Abril que tevemos um combate que tivemos de Cavar todos que todo o C.E.P. cavou e os Alemães dão outro avanço o C.E.P. acavou que atté tive de [ilegível] a minha roupa toda que andemos 5 dias que não comenos nada e a nossa roupa de cama erao chão andemos 22 dias com mantas e a nave e o gelo a cair que o encoentro nos escapmos muitas graças que muitos meus camaradas lá ficarão como foi o Antonio Pialho que ficou com a cabeça cortada./ E o Albaro da tia Izabêl também morreu ó está prezioneiro e o Elias e outro cabo de Rebordondo estes morrerão da nossa terra hòra o José Chiscaro ficou bôm e o Antonio Jorge ficou Sem novidade que eu estive 54 Grande Guerra • Ensaios depoes do combate com eles agora já há muito tempo que não estive com eles e não esteja com quidado em mim que eu estou muito longe das trincheiras que estou ao pé de Paris num depozito de Pagagens não me falta couza alguma muitos abraços deste Seu filho José Martins. A Deus A Deus/” Fonte: Carta de José Martins, França, 11Ag1918, pp.4 para Anna Baltezara de Jesus Correia de Chaves, Cazas Novas (mãe) in Isabel Pestana Marques, Os Portugueses nas Trincheiras. Um Quotidiano de Guerra, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2002, Anexo XLV, p.390 Carta 2 “França 15 de Agosto de 1918 Meus queridos paes do coração. Os meus mais ardentes votos é que a receber desta minha carta estejam na posse duma perfeita e felis saúde assim como meus queridos manos, eu bem felizmente. […] ouve aqui grande bombardeamento o qual fez muitos estragos e agumas mortes mas pela minha parte não ouve novidade. Eu já sabia que não me acontecia mal, porque tenho mandado ler a minha sina e dis-me o seguinte; muito tempo em guerra e morrer na pátria […]. Meus queridos pães: em vistas disto também devem ficar satisfeitos e nunca perderem a esperança de me ver, porque algum dia será; tenho sido felis e heide ser até ao fim. O que tive mais á contra fôe a doença que me deixou muito atrapalhado, mas como adoeço em França, tão em bem adoeço em Portugal, assim o mal venha não á mais remedio que é aceitarse. […] escapei porque estou guardado para maiores tormentos. Vou contar a minha mãe mais um motivo porque não tenho ido de licença; não é porque eu não tenha direito, que já tenho direito a 3 55 Grande Guerra • Ensaios licenças, porque já conto 18 meses de campanha, mas é outro caso. Em campanha fazem-se injustiças como se fazem em Portugal, as quais têem-se que gramar e calar a bôca. Aqui da minha formação foram muitos sargentos de licença, assim como de todas as outras e nem mais cá voltaram: nós aqui não básta termos muito trabalho porque somos poucos como também não podemos ir de licença por fazer falta ao serviço. Isto agradese-se ao senhor ministro da guerra, porque nem só não rende a gente, como também não torna a mandar os que vão com licença: isto é próprio do governo Portuguez que nunca o fez por menos; faz do direito torto, e do torto direito. […] é uma sussia de canalhas que só pençam em robar e não se lembram daqueles que vivem na amargura á 18 meses, separados de suas famílias e dando a ultima pinga de sangue pela sua pátria. […] tenham passiensia e conformen-se com a sorte que Deus me deu: convensan-se que o mais projudicado sou eu e com tudo eu cá 56 Grande Guerra • Ensaios vou indo. As horas que mais sofro são aquelas em que me lembra minha família, minha mocidade e liberdade [riscado]. Nessas horas até quido de estalar de paixão, vingo-me em chorar assim como muitos meus colegas, mas não temos outro remedio que é disfarçar-mos uns com os outros. No dia em que recebi as voças fotografias, não calculam o abalo que me deu, ao ver aqueles que tantos beijos me deram e tantos tormentos passaram para me criar e encontar-me longe e muito longe […] Muitos abraços aos meus manos, beijinhos ao Jose e ao Almiro; muitas recomendações a toudos os meus tios e tias, primos e preimas, a todos os rapases e raparigas do meu tempo e a toda a nossa vesenhança. Meus queridos pães recebam uma [riscado] viva saudade e um grande Abraço d’este seu querido filho que já mais os esquesse e lhe deseja pedir a bênção. Manuel Martinho […]” Fonte: Carta de Manuel Martinho, França, 15Ag1918, pp.4 para Jose Bartolomeu da Silva, Ourique (pai) in Isabel Pestana Marques, Os Portugueses nas Trincheiras. Um Quotidiano de Guerra, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2002, Anexo XLII, pp.385-387. Carta 3 “Laventie 15-9 1917 Mademousel Catherine Moá goute que vu dite se gout de fiancê avec moa. Moá esperê que vu reponde a moá na bolta de lá posta. Escusamoá de moá nan enquerer bien Francês […] Belarmino de Figueiredo […]” 57 Grande Guerra • Ensaios Fonte: Carta de Belarmino de Figueiredo, Laventi, 15Set1917, pp.1 para Catherine Pintaine, Revoir la Gorgue (jovem francesa) in Isabel Pestana Marques, Os Portugueses nas Trincheiras. Um Quotidiano de Guerra, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2002, Anexo LIII, p.401. Bibliografia Isabel Pestana Marques, “A correspondência de guerra e a vivência nas trincheiras da Flandres”, in Actas do VI Colóquio de História Militar, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 1995. Idem, Os Portugueses nas Trincheiras. Um quotidiano de guerra, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2002. Idem, Memórias do General. “Os Meus Três Comandos” de Fernando Tamagnini, Viseu, SACRE/Fundação Mariana Seixas, 2004. Idem, Das Trincheiras, com Saudade. A vida quotidiana dos militares portugueses durante a Primeira Guerra Mundial, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2008. VOLTAR AO ÍNDICE 58 Grande Guerra • Ensaios A guerra e o sagrado A Grande Guerra trouxe um “regresso aos altares” em Portugal. Foi a resposta ao desconcerto do mundo à volta. Em cada 13 famílias portuguesas, uma teve um soldado mobilizado; em cada 39,6 famílias, um morto ou um ferido. Ensaio de: António Araújo Missa para soldados franceses na frente de Champagne, no Leste da França, em 1915 DENISE FOLLVEIDER/COLLECTION ODETTE CARREZ/REUTERS 59 Grande Guerra • Ensaios A Grande Guerra e o surto da pneumónica foram dois elementos essenciais para a redescoberta do espírito religioso nos alvores da década de vinte do século passado, fenómeno que teria influência decisiva na reconfiguração das relações entre a Igreja e o Estado e também no surgimento de uma militância católica mais activa no plano político. A presença da Guerra, seja nas trincheiras, seja na home front, contribuiu para um “regresso ao sagrado”, aquilo que em França se designou por “regresso aos altares”. Os soldados vieram “melhores, maiores, vivendo mais perto de Deus”, dizia Mário de Almeida (O Clarão da Epopeia, 1919). Augusto Casimiro, um membro do Corpo Expedicionário Português (CEP) escreveria numa carta: “Nunca, nunca senti Deus como agora, nem a minha alma respirou um ar mais puro e forte...”. Casimiro afirmava que “os calvários redimem” e que os soldados eram os “cristos desta guerra”, porventura numa aproximação ao célebre Cristo das Trincheiras, actualmente exposto no Mosteiro da Batalha. Outros, como o escritor Aarão de Lacerda, iam ao ponto de afirmar: “A guerra actual deve ter sido uma límpida fonte de inspiração sagrada.” Não foi coincidência o facto de a União Gráfica ter publicado uma novela, da autoria de Ricardo Cruz, que envolve um médico abastado de ascendência aristocrática, Jacques d’Hautenay, uma religiosa francesa, a irmã Suzanne, um clérigo, frei Agostinho, e o personagem central, o capitão Maurício Estêvão Garcia que, ferido em combate, beneficia da assistência da Igreja, que o encaminha no sentido da fé cristã. A novela – com o título expressivo Da Parte de Deus! – termina com o falecimento do herói lusitano e a frase lapidar: “Compreendi a grande lição da Morte.” A ideia da necessidade de amparo espiritual, que provoca nos descrentes uma espécie de inveja da fé, está especialmente presente na peça Os Cegos, de Joaquim Leitão. São curiosíssimos os diálogos aí travados entre um alferes agnóstico e um capelão militar. O alferes diz que, apesar de não temer a Deus, permitia a acção do sacerdote (“Bem sabe que não contrario a sua missão”), 60 Grande Guerra • Ensaios e o padre reconhece o facto (“Esse favor lhe devo. Deus lh’o agradecerá”). No final, o alferes confessará, obviamente, que lamentava não crer em Deus e que tinha inveja dos que foram tocados por essa graça. Os relatos literários e memorialísticos da Grande Guerra – e da religiosidade na frente – pecam por algum exagero ou, na melhor das hipóteses, não retratam com fidedignidade as dificuldades vividas pelos (poucos) capelães militares que faziam a assistência religiosa às tropas portuguesas. No seu “diário”, o Pde. Lopes de Melo queixava-se que era olhado com “desconfiança” e “tanta indiferença”; dias depois, confessa a “triste impressão” com que ficou por ter detido na estrada os soldados que tentavam escapar à missa que iria ser celebrada numa capelinha em ruínas, sob uma chuva de granadas do inimigo. A questão que se coloca é a de saber se o frémito religioso nasceu apenas com o temor da guerra ou se já estava latente na sociedade portuguesa. Alguns, mais empenhados, não têm dúvidas, como sucede com António Corrêa d’Oliveira, possivelmente o autor dos poemas alusivos à guerra onde a marca da fé católica é mais visível. O seu livro Soldado que vais à guerra fala em verso de um carteiro que ao crepúsculo distribuía as cartas vindas da Flandres nas aldeias de Portugal. Aí, era indiscutível que a fé não se perdera, apesar de todos os esforços do doutor Afonso Costa: Então, há lá pela aldeia Quem se esqueceu de rezar? Oh, Senhor! Que nem o creia: Comerem o pão da ceia, Sem louvor ao Pão do altar! Também na frente de batalha os soldados não esqueceram o catolicismo que trouxeram de Portugal, como numa mensagem em verso que um ferido envia à mulher que deixou na aldeia: 61 Grande Guerra • Ensaios Vim parar ao Hospital... (Não tenhas pena, Maria! Tratou de mim, noite e dia, Um Anjo de Portugal, Que me falava e sorria...). A ideia de que a religiosidade era algo que já estava impregnado no espírito de muitos portugueses surge igualmente na peça 9 de Abril, de António Botto; num bairro pobre de Lisboa, uma das personagens femininas, Florinda, assoma à janela quando ouve as tropas a marchar para a guerra, e logo exclama “Nossa Senhora os acompanhe!”. É extremamente difícil – e relativamente secundário – saber se a I Grande Trincheiras do sector português na frente ocidental: Portugal terá redescoberto a fé católica com a I Guerra Mundial ARNALDO GARCEZ / LIGA DOS COMBATENTES 62 Grande Guerra • Ensaios Guerra fez nascer sentimentos religiosos novos ou se se limitou a É difícil – despertar convicções que a política da e relativamente República não conseguira erradicar. secundário – saber O importante é notar o impacto social de um conflito em que, segundo os se a I Grande Guerra fez nascer sentimentos dados oficiais, compilados em 1926, 55 mil homens integraram o C.E.P., 30 religiosos novos ou se mil combateram em Moçambique e 23 se limitou a despertar mil em Angola. No C.E.P., morreriam mais de 2200 militares. Em cada 13 convicções que a política da República famílias portuguesas, uma teve um soldado mobilizado; em cada 39,6 não conseguira famílias um morto ou um ferido; e erradicar em cada 182 famílias uma teve um prisioneiro de guerra. Uma realidade com esta dimensão não pode deixar de ter tido uma tradução no plano dos comportamentos, das atitudes e das mentalidades. Se ocorreu um recrudescimento do interesse pelo espiritismo, logo condenado pela Santa Sé, se em alguns países, como o Reino Unido, se verificou uma simplificação dos rituais fúnebres e um incremento da defesa da cremação, ao mesmo tempo que a morte passou a ser evocada em lieux de mémoire como os cemitérios ou os memoriais de guerra, se, enfim, há toda uma natural atracção pelo sobrenatural e pelo religioso, não é improvável que em Portugal se tenha assistido a uma redescoberta da fé católica perante o desconcerto do mundo envolvente. Para mais, o Papa Bento XV desde o início manifestara a posição da Igreja em favor da imparcialidade da Igreja e do restabelecimento da paz, como ficou patente na encíclica Ad Beatissimi, logo de Novembro de 1914, na alocução ao Consistório de Janeiro de 1915, em diversas proclamações sobre a situação dos soldados e dos capelães militares, 63 Grande Guerra • Ensaios Em cada 39,6 famílias portuguesas, uma teve um soldado morto ou um ferido COLLECTION ODETTE CARREZ / REUTERS na mensagem aos beligerantes Allorchè fummo ( Julho de 1915), na famosa exortação à paz de Agosto de 1917 e, enfim, através de inúmeras diligências diplomáticas e negociações secretas, algumas das quais levadas a cabo na Alemanha pelo Núncio Pacelli. Entre nós, o católico Artur Bívar, num livro intitulado A Religião e a Guerra, escrevia em 1918 que “a guerra, com todo o seu cortejo de calamidades, é uma grande missionária. Inegáveis consequências tem, por certo, o chamamento de tantos milhões de homens à realidade dos supremos sacrifícios – para uns, o da imolação da própria vida nos campos de batalha; para outros o da resignação ao rompimento dos laços que lhe faziam a existência menos agra de levar”. Dizia ainda “que nas horas acerbas da tribulação volve o homem com mais empenho seus olhares para Deus”, concluindo pela existência de um “justo quinhão à guerra no actual renovamento religioso”. 64 Grande Guerra • Ensaios Se há quem afirme que movimentos culturais como o modernismo são indissociáveis da guerra de 1914-1918, esta é igualmente responsável pelo renascimento de um conjunto de valores tradicionais, ligados a conceitos como “patriotismo”, “glória de combater”, a par de um novo nacionalismo e de uma nova religiosidade. A grande catástrofe europeia cria uma atmosfera favorável à emergência de visões fantásticas e oníricas, algumas das quais impregnaram também o microcosmos cultural português, em novelas para consumo de massas que relatavam sonhos apocalípticos, alucinações com Joana d’Arc ou freiras que asseveravam ter visto anjos nos campos de batalha. Uma das histórias mais populares da altura dizia que, em Mons, grupos de anjos protegeram os soldados britânicos em 1914; em contrapartida, muitos asseguraram que tinham visto demónios ao lado das tropas alemãs. Nas páginas da Revue Spirite, escrevia-se que os mortos tinham formado um batalhão próprio, “para apoiar os soldados nesta contenda épica”. Outro cultor do espiritismo garantia que viu mortos a marchar na parada de celebração do armistício. Por seu turno, a novela de cariz espírita Raymond, da autoria de Oliver Lodge, escrita em homenagem Por todo o lado se a um filho morto em Ypres, tornouviam as sequelas se um best-seller com várias edições do conflito, entre 1916 e 1919, sendo muito popular nas trincheiras. Eram ainda muito irreversivelmente impressas nos corpos populares as fotografias de espíritos, que mostravam imagens nebulosas de dos mutilados mortos que gentilmente se deixavam captar pelas câmaras. E poder-se-ia citar ainda, mas agora num plano diverso, a famosa cena dos mortos de guerra que se levantam das campas no filme J’Accuse (1919), de Abel Gance, tema também explorado literariamente por Roland Dorgèles na novela Le retour des morts, ou o muito popular Os Quatro Cavaleiros 65 Grande Guerra • Ensaios do Apocalipse (1919), baseado na obra homónima de Blasco Ibañez, em que o herói de guerra, protagonizado por Rudolfo Valentino, morto em combate, aparece em sonhos à sua amante e diz-lhe que volte para o marido, um senador francês que ficara cego na linha da frente. Existiam, a par disso, crenças mais sintonizadas com a ortodoxia, que emergiram, aliás, do início ao fim do conflito. Aquando da mobilização, os ingleses que se alistavam erigiram, nas ruas de Londres, o que designaram por “santuários de rua”, que tiveram grande êxito junto da população católica de origem irlandesa mas foram igualmente apoiados pela Igreja Anglicana. A revista católica francesa Frères d’armes contava a história de uma piedosa marraine de guerre, que se destacara por enviar Milhões de preces cartas e pacotes de víveres aos soldados, foram dirigidas e dedicava agora os seus esforços do pós-guerra a rezar pelas almas dos aos Céus para que militares mortos que se encontravam chegassem cartas no Purgatório, de modo a apressar a sua dos entes queridos ida para o Céu. São também exemplares ou, quando ocorria os milhares de monumentos aos mortos da Grande Guerra que se ergueram por o pior, para que não toda a Europa, sendo mais exuberantes fosse verdade o que os dos países católicos do que os das estava escrito nas terras protestantes (nestas, preferiammensagens vindas se memoriais simples, normalmente obeliscos em vez de cruzes e sem do “front” grandes ornatos). Não só muitos deles têm motivos religiosos, contendo figuras como a Pietà, cruzes ou alusões à Paixão de Cristo, como à cerimónia da sua inauguração, a que compareciam desde veteranos e mutilados de guerra às crianças das escolas, assistia normalmente a autoridade eclesiástica local, que não raras vezes benzia o monumento ou dedicava 66 Grande Guerra • Ensaios uma oração às vítimas da beligerância humana. Mesmo quando os discursos eram deixados a cargo das autoridades locais ou dos presidentes das comissões que lançaram os memoriais de guerra eram frequentes as alusões religiosas, citando-se muitas vezes trechos do Antigo Testamento – como a luta de David e Golias – ou do Evangelho. Em França, foram reconstruídas dezenas ou mesmo centenas de igrejas que a guerra destruíra, e muitas delas foram decoradas com claras referências ao conflito bélico: na Notre O soldado português José Ribeiro Barbosa e os seus Dame de Bertincourt, uma camaradas junto a um Cristo das Trincheiras DINO RAMALHETE / PORTUGAL 1914.ORG imagem da Virgem a pedir a Cristo pela alma de um soldado morto; em Ecourt-Saint-Quentin, anjos a acompanhar aos céus as almas dos caídos em combate. Em Inglaterra, em certas igrejas foram mesmo colocados vitrais com imagens de tanques, peças de artilharia e aviões de guerra. Na Alemanha, na catedral de Kemnath, um vitral mostra um monge beneditino ajoelhado junto ao féretro de um soldado morto. Os traumas do pós-guerra marcaram a consciência europeia de uma forma absolutamente nova: por todo o lado se viam as sequelas do conflito, irreversivelmente impressas nos corpos dos mutilados, que em 67 Grande Guerra • Ensaios França ganhariam o epíteto de les gueules cassées, ou, entre nós, dos jovens conhecidos como “gaseados da Flandres”. No norte de França e na Flandres, entre outros locais, improvisaramse milhares de cemitérios ad hoc, e as famílias tiveram de batalhar para conseguirem exumar os corpos dos seus entes queridos. Perante a irredutibilidade das autoridades francesas – que se recusavam a deixar que os pais, mesmo às suas custas, levassem os cadáveres dos filhos para as suas terras – criou-se mesmo uma indústria clandestina de exumações, através da corrupção dos coveiros, o que enfureceu os militares, responsáveis pela guarda dos cemitérios, e os mais pobres, que consideravam ser a exumação dos entes queridos um privilégio reservado aos ricos. A questão cruzou argumentos nos dois sentidos - “não separem aqueles que a morte uniu”, diziam uns; “o sacrifício destes jovens foi feito em nome dos laços familiares”, replicavam outros – e acabou por ser discutida pelo Conseil d’État; no final, o Ministro da Guerra, em Junho de 1919, proibiu todas as exumações na zona das operações militares, não atendendo àqueles que defendiam a então chamada “desmobilização dos mortos”, inclusivamente por motivos religiosos. Para muitos católicos, a exumação dos mortos era a única forma de os retirar de cemitérios secularizados e de lhes dar um enterro conforme às suas convicções religiosas; alguns chegaram mesmo a avançar argumentos anti-semitas, sugerindo que o Ministério da Guerra não permitia as exumações porque a maioria dos seus altos funcionários eram judeus. E quando, em Setembro de 1920, o Ministério da Guerra permitiu a recuperação dos cadáveres, não só foi necessário montar uma imensa estrutura para proceder à remoção e transporte de cerca de 300 mil corpos reclamados pelas famílias, como se abriram novas controvérsias, nomeadamente em torno da questão de saber quem tinha o direito a ficar com os corpos, se os pais – cujas associações diziam serem preponderantes os laços de sangue – se as viúvas (venceram os primeiros). Além das numerosas cerimónias em honra dos soldados desconhecidos que 68 Grande Guerra • Ensaios ocorreram um pouco por todo o lado – desde o Arco do Triunfo, em Paris, à Abadia de Westminster, em Londres, passando pelo Mosteiro da Batalha, em Portugal, ou locais congéneres na Nova Zelândia, Bélgica, Estados Unidos, Canadá, Itália ou Austrália – o gigantesco movimento de exumações e os milhares de serviços fúnebres a que deu lugar foram naturalmente pretexto quer para uma rememoração da Guerra, quer para uma revivescência de Calcula-se que 3 dos sentimentos religiosos associados à dor 9 milhões de mortos pela perda dos entes próximos. Durante o conflito bélico deixaram viúvas, propriamente dito, tais sentimentos além de cerca de 6 desenvolveram-se de forma muito milhões de órfãos. profunda não apenas em face da Foram um grupo morte – ou da possibilidade da morte – mas também das notícias da morte. bastante permeável Explicando melhor, as dificuldades de ao proselitismo comunicação e a lonjura da frente de religioso combate faziam com que, em muitos casos, às famílias fossem dadas notícias tardias ou pouco claras sobre o que acontecera aos seus filhos. A isto acresce o facto de, em muitos casos, ser difícil ou impossível identificar os cadáveres e de milhares de soldados que pura e simplesmente tinham desaparecido, engolidos nas trincheiras pelas explosões dos obuses ou mortos nos campos de prisioneiros. Só na batalha do Somme cerca de 73 mil corpos de militares dos Aliados nunca foram descobertos. Mesmo quando era possível resgatar os corpos, o caos instalado na frente de combate dificultava as tarefas de identificação dos cadáveres. Corriam, por isso, rumores de que as notícias vindas da Flandres não eram fiáveis; circularam histórias sobre soldados que tinham falsamente sido dados como feridos ou mortos e que, miraculosamente, reapareciam dias depois junto dos seus camaradas – a que não será estranha a 69 Grande Guerra • Ensaios circunstância de se verificarem muitas deserções temporárias na linha da frente – ou que posteriormente se sabia terem sido aprisionados pelo inimigo. Dizia-se às famílias que os seus parentes tinham sido feridos ou que haviam morrido mas muitos não acreditavam na fria singeleza com que, em duas ou três linhas, as mensagens oficiais os informavam do que se passara nas trincheiras. As mensagens raramente precisavam o grau de gravidade dos ferimentos, as partes do corpo atingidas ou sequer em que local os soldados se encontravam a ser tratados, o que contribuía para aumentar a ansiedade das famílias. Os que viviam mais perto dos pontos de combate ou os mais abastados não hesitaram em deslocar-se para lá, em busca dos seus familiares ou, mais frequentemente, para os acompanhar enquanto se encontravam hospitalizados. A esperança de que os seus filhos ou maridos continuassem vivos ou perdidos nas neblinas da Flandres, mesmo posta contra o que diziam as autoridades militares, levou muitos a refugiarem-se no sagrado. Milhões de preces foram dirigidas aos Céus para que chegassem cartas dos entes queridos ou, quando ocorria o pior, para 70 Grande Guerra • Ensaios que não fosse verdade o que estava escrito nas mensagens vindas do “front”. É sintomático que na Austrália tenham escolhido sacerdotes para comunicar às famílias as notícias das mortes em combate. Compreender-se-á melhor o peso que a religiosidade adquiriu se a tudo isto juntarmos a acção de numerosos grupos de voluntários, uns ligados A pulsão religiosa era à Cruz Vermelha, outros às diversas sentida de forma tão confissões religiosas, que se dirigiam junto das famílias enlutadas ou dos veemente que alguns mutilados para lhes prestar auxílio chegavam a criticar espiritual e, em certos casos, material. a atitude passiva dos Os feridos de guerra, por sua vez, bispos portugueses começaram a constituir associações praticamente logo que chegaram da frente, muitas delas com ligações às igrejas. As viúvas tornaram-se um grupo social importante – calcula-se que 3 dos 9 milhões de mortos na Grande Guerra deixaram viúvas, além de cerca de 6 milhões de órfãos – e, de um modo geral, bastante permeável ao proselitismo religioso, tanto mais que a esse proselitismo estavam associadas actividades caritativas e de apoio material que se revelavam indispensáveis para minorar a situação economicamente débil das viúvas, num tempo em que o homem era o único sustento do lar e a assistência do Estado tinha uma expressão assaz reduzida. Salvo nos casos de famílias mais abastadas, enviuvar significava cair na pobreza e ter de abandonar quase todos os hábitos de vida que se tinham antes de o marido partir para a frente de combate. Como a mortalidade incidiu em especial nas patentes mais baixas, ou seja, naqueles que, em princípio, provinham dos estratos inferiores da sociedade, é fácil perceber a dimensão social que este fenómeno adquiriu. Para lidar com ele, adoptaram-se soluções diferenciadas: em Inglaterra, prevaleceu a tradição filantrópica vitoriana, centralizada na Soldiers’ and Sailors’ 71 Grande Guerra • Ensaios Families Association; na Alemanha, o Estado, na linha da política social de Bismarck, tomou a si o encargo, através das autoridades locais, de proteger as viúvas e os órfãos, ainda que posteriormente a espiral inflacionista dos anos vinte tenha desbaratado o valor das pensões de guerra; em França, foram as organizações de caridade, na maioria ligadas à Igreja, quem se ocupou da situação das viúvas, facto que certamente terá contribuído para um fortalecimento do catolicismo. É legítimo supor que o mesmo terá sucedido em Portugal. A organização da memória da Grande Guerra foi também fortemente marcada pelas igrejas. Em França, por exemplo, foram criadas hospedarias, com o nome de santos, para albergar a preços módicos os milhares de viajantes que iam em peregrinação visitar as campas dos seus familiares. Na cidade de Paris, o clérigo Fred Keller levou a cabo um ambicioso programa de assistência que consistia na construção de casas para famílias pobres – a Cité de souvenir, que ainda hoje existe. Cada uma das famílias “adoptava” um soldado morto na Guerra, cujo nome era colocado numa placa à entrada da respectiva habitação; no pátio, uma capela decorada com murais de Desvallières que comparavam a vivência dos soldados à via crucis de Cristo lembrava à posterioridade a marca da Igreja nesse projecto social. A recomposição do campo católico Tendo um profundo impacto espiritual e religioso, a guerra teria um efeito decisivo na recomposição do catolicismo português, permitindo o seu regresso à esfera pública de uma forma que teria sido impensável nos tempos da Lei da Separação, de Abril de 1911. Num elogio às virtudes militares dos soldados portugueses, feito em 1921, o marechal Gomes da Costa centrar-se-á num “pobre herói, que meteram num navio com uma arma ao ombro, sem lhe dizerem para onde ia”; morrerá dignamente em combate, recordando “a religião que a 72 Grande Guerra • Ensaios Mãe lhe ensinara, e o heroísmo que o seu coronel lhe pregara”. As crenças religiosas e as convicções patrióticas fundiam-se, assim, no espírito do soldado português que o cabo-de-guerra comovidamente evocava. A mesma comoção percorre as páginas que Jaime Cortesão dedica ao florescimento da fé religiosa, a alternativa possível de que o povo simples dispunha ao culto patriótico personificado em Camões. A pulsão religiosa era sentida de forma tão veemente que alguns chegavam a criticar a atitude passiva dos bispos portugueses. Em França, Adelino Mendes enternece-se ao assistir a um serviço religioso em Notre Dame de Paris, onde se implorava a protecção divina para os exércitos que enfrentavam os alemães. Questiona, então, a razão pela qual os prelados portugueses não fariam o mesmo. Era uma crítica algo injusta. De facto, já em Janeiro de 1915 o Patriarca Mendes Belo escrevia ao Presidente da República propondo o envio de capelães militares para a frente de combate, e também não foi por acaso que a Associação do Registo Civil e a Federação Portuguesa do Livre Pensamento lançaram a campanha “Sem Deus!”, que protestava pela presença de padres nos regimentos e a distribuição de símbolos religiosos aos soldados. A participação de capelães militares na Grande Guerra, com efeito, contribuiu de forma decisiva para melhorar a imagem da Igreja e para engrandecer o prestígio de alguns sacerdotes. Um deles é o padre Luís Lopes de Melo, assistente eclesiástico do C.A.D.C., que se voluntaria como capelão militar e regressará ferido da Flandres. Outro, o do padre José Ferreira de Lacerda, que esteve em França com o Corpo Expedicionário Português entre Maio e Setembro de 1917 e se tornará um dos mais activos propagandistas da causa de Fátima. O caso mais emblemático é, todavia, o do futuro bispo de Beja, D. José do Patrocínio Dias, que para sempre ficará conhecido como “bisposoldado”. Um dos fundadores do C.AD.C. – instituição que, de resto, se orgulhará da participação dos seus associados no conflito de 1914-18 – Patrocínio Dias fora preso durante a I República, mas com a permissão 73 Grande Guerra • Ensaios de assistência religiosa na frente de guerra será designado chefe do corpo voluntário de capelães. Toda a sua carreira futura será marcada pela experiência na Grande Guerra, onde conquistou diversas condecorações. Assim, será membro do Conselho Superior da Liga dos Combatentes da Grande Guerra, fundada em 1924, e da Comissão dos Padrões da Grande Guerra. A celebração de exéquias em memória dos mortos da guerra constitui mais um pretexto para aproximar a Igreja e a República. Em 9 de Abril de 1921, celebra-se missa por alma dos soldados desconhecidos, a que comparece o Patriarca Mendes Belo e quase todos os prelados do continente, tendo a missa sido celebrada pelo cónego Manuel Anaquim com pregação de D. Manuel Mendes da Conceição Santos. No dia seguinte, realiza-se a trasladação dos restos mortais do Soldado Desconhecido para o Mosteiro da Batalha, numa cerimónia solene O conflito levou presidida por António José de Almeida ao alinhamento e em que estão presentes o marechal dos católicos e à Joffre, o generalíssimo Diaz e José do Patrocínio Dias, este envergando sua progressiva vestes episcopais e ostentando ao peito autonomização as medalhas que distinguiram a sua em face do campo heroicidade na frente de combate. monárquico Num gesto impensável pouco tempo antes, Afonso Costa conversou amigavelmente com o Cardeal Patriarca e felicitou de forma calorosa o bispo de Beja. “Dispensaram o Senhor Presidente da República e o Governo as atenções devidas ao clero. Tanto na Basílica da Estrela como no mosteiro de Santa Maria da Vitória, assistimos às cerimónias religiosas. Prestaram-se todas as homenagens ao Sr. Cardeal Patriarca, que foi, de resto, duma impecável correcção. No banquete oferecido às missões estrangeiras pelo Senhor Presidente da República, estiveram presentes o Arcebispo de Mitilene em representação do Cardeal Patriarca, doente, 74 Grande Guerra • Ensaios e o Bispo de Beja. Tornou-se público o entendimento entre o Estado e a Igreja” – escreveu Domingos Pereira ao Ministro de Portugal junto da Santa Sé, em 21 de Abril de 1921. Dois anos depois, em Abril de 1923, D. José do Patrocínio Dias falará sobre “as virtudes do soldado português” na Sociedade de Geografia de Lisboa, na sessão comemorativa da batalha do Lys, a que comparece o Presidente da República, António José de Almeida. Na altura, já havia sido sagrado bispo de Beja, ocasião em que, significativamente, recebeu um telegrama de felicitações de António José de Almeida em que este relembrava “o dedicado e brioso capelão militar em cujo peito justamente se ostenta a Cruz de Guerra da República Portuguesa”. O processo que o conduziu à chefia da diocese pacense ilustra bem o estado das relações entre a Igreja e o Estado no pós-guerra. Recordese que o Patriarca escreve ao Papa pedindo-lhe a sua intercessão pelos portugueses (“vos enfants portugais”) prisioneiros dos alemães. Originalmente, pensava-se que na diocese de Portalegre seria colocado Patrocínio Dias e na de Beja Domingos Frutuoso, mas o Ministro dos Negócios Estrangeiros escreve ao Vaticano pedindo-lhe que as respectivas colocações fossem trocadas, o que a Santa Sé aceita. O Estado português dará sinais de reconhecimento: António José de Almeida acede ao pedido que lhe é feito para restaurar a Sé da Guarda para que aí fosse sagrado, como bispo de Beja, José do Patrocínio Dias. A trajectória do prelado pacense é, pois, um bom exemplo do impacto da Grande Guerra na situação religiosa em Portugal. Deve notar-se, além disso, que a “guerra” não se cingiu ao que se passava na frente de batalha. O conflito levou ao alinhamento dos católicos e à sua progressiva autonomização em face do campo monárquico, que culminaria na adopção de uma estratégia de ralliement, com a bênção da Santa Sé, de que os homens do Centro Católico, como Lino Neto e Oliveira Salazar, seriam os principais expoentes. 75 Grande Guerra • Ensaios Se não existem dados que permitam sustentar, de forma inequívoca, a ideia de que foi a guerra que começou a abrir fissuras entre católicos e monárquicos, há muitos elementos que comprovam o antigermanismo de destacados fiéis. O caso mais expressivo é o de Fernando de Souza, que numa volumosa obra publicada em 1918, com o título A Grande Guerra (Aspectos christãos e patrioticos), retrata o conflito armado, em que o “mundo se transmudou em colossal lioneira de feras”, como um choque de civilizações entre paganismo e cristianismo – ou, para usar as suas expressões, entre o “cesarismo pagão e o imperialismo dominador” e os “direitos das pequenas nações” e as “doutrinas fundamentais da civilização cristã”. Para alicerçar esta tese, que correspondia no essencial à linha defendida pela Igreja Católica em França, e mesmo por personalidades dos meios culturais como Charles Maurras ou Jean Cocteau (que a partir de 1914 lançou nas páginas do seu jornal, Le Mot, uma campanha contra a influência germânica na arte moderna), Fernando de Souza fornece exemplos terríficos do martírio de sacerdotes – como os do padre Vouaux, a quem um oficial alemão vazou os olhos com a ponta de uma espada ou o dos O afervoramento da clérigos que leccionavam em Lovaina e crença religiosa é a foram encarcerados nus numa pocilga de porcos – e, bem assim, de inúmeras fonte por excelência destruições sacrílegas perpetradas da força moral, do pelas tropas germânicas nos templos desprezo dos perigos, da Bélgica. não hesita em falar no da aceitação da morte surgimento de um “neo-paganismo”, que mergulhava as suas raízes na “orgia para bem servir a filosófica” da Alemanha do século XIX, pátria. Quem pode, responsável pelo “atoleiro materialista” com verdade, negá-lo? que legitimou a Kulturkampf Artur Bívar bismarckiana. 76 Grande Guerra • Ensaios Em contraste, são apresentadas as inúmeras iniciativas do Vaticano em prol da paz: a encíclica de 1 de Novembro de 1914; os discursos no Consistório em 22 de Janeiro e 6 de Dezembro de 1915; a nota de Gasparri de 6 de Julho de 1915; a carta de 4 de Março de 1916 ao Cardeal Vigário de Roma; o encontro do cardeal Mercier com o Papa, no princípio de 1916, no decurso do qual é entregue ao Santo Padre uma carta colectiva do Episcopado belga; a nota pontifical de 5 de Maio de 1917 dirigida por Bento XV ao cardeal Gasparri. Fernando de Souza exalta ainda o papel de figuras católicas como o cardeal Mercier, Mons. Braudillart, reitor do Instituto Católico de Paris, o cardeal Luson, de Reims, e, bem assim, de personalidades como Barrès ou Clémenceau. Sustenta ainda, numa argumentação que ocupa diversas páginas, a matriz essencialmente católica do direito das gentes, que a Alemanha desrespeitara, e a tese de que a Maçonaria e suas figuras de proa, como Magalhães Lima, eram germanófilas. A resposta ao avanço da ímpia Germânia – que, entre o mais, punha em causa o “renascimento católico” que se vivia em França, como acentuou Artur Bívar – só poderia ser encontrada na fé: “O afervoramento da crença religiosa é a fonte por excelência da força moral, do desprezo dos perigos, da aceitação da morte para bem servir a pátria. Quem pode, com verdade, negá-lo?”. Nesse sentido, e virando-se para a realidade portuguesa, Fernando de Souza pede aos católicos que rezem pelos combatentes (“oremos pelos nossos valentes soldados. Que Deus os proteja e lhes dê a vitória final”) e enaltece o papel da assistência religiosa em campanha e das iniciativas lançadas pelos fiéis: as madrinhas de guerra (“a caritativa influência da madrinha torna mais familiar ao soldado o pensamento de Deus”), a Festa da Flor, a Liga de Acção Social Cristã, a Comissão Pro-Pátria, do Brasil, a Liga Nacional, presidida pelo conde de Bertiandos, a Comissão Central de Assistência Religiosa em Campanha, fundada em Fevereiro de 1917, que tinha como presidente o arcebispo de Mitilene e como vicepresidente Aires de Ornellas, contando ainda nos seus corpos dirigentes 77 Grande Guerra • Ensaios com personalidades como o conde das Alcáçovas, Mons. Amadeu Ruas, os cónegos António Moita, Aires Pacheco e Martins Pontes, o conde de Caria, Henrique de Mendonça, Tomás de Mello Breyner, Domingos Pinto Coelho, Lino Neto, Pereira dos Reis, D. António Serpa Pimentel e D. Thomaz Manoel de Vilhena. E é com regozijo que Fernando de Souza dá conta da presença das autoridades civis, com destaque para o Chefe do Estado e o Governo, em actos religiosos ligados à participação de Portugal na Guerra, como as exéquias celebradas na Sé em 16 de Maio de 1918 ou o Te Deum de 24 de Novembro do mesmo ano. Isto não comprova a ideia de que foi a Grande Guerra que autonomizou os católicos da órbita monárquica, mas é um bom testemunho de que, além do que se passava na frente de combate, o conflito tinha consequências no plano interno, nomeadamente o claro alinhamento dos católicos com a causa dos Aliados. A vitória destes daria um contributo decisivo para o “renascimento católico” dos anos subsequentes – e para a afirmação pública de certas personalidades ligadas à Igreja. Entre todos, destacou-se um nome: António de Oliveira Salazar. VOLTAR AO ÍNDICE 78 Grande Guerra • Ensaios Pela primeira vez todos fotografaram a guerra Nunca nenhuma guerra fora tão fotografada. O enorme desenvolvimento tecnológico da fotografia, ao longo da segunda metade do século XIX e na primeira década do século XX, permitiu que as imagens da Guerra 1914-18 se multiplicassem com uma velocidade nunca vista Ensaio de: Filipa Lowndes Vicente, historiadora, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa A passagem das tropas portuguesas sob o Arco do Triunfo, em Paris, após vitória dos Aliados, como testemunhou a câmara de Arnaldo Garcez ARNALDO GARCEZ / LIGA DOS COMBATENTES 79 Grande Guerra • Ensaios O que são as fotografias da I Guerra Mundial? As fotografias oficiais tiradas pelos militares de ambos os lados da barricada, em vários momentos do seu novo quotidiano? As imagens pessoais daqueles soldados que levaram as suas próprias máquinas fotográficas para a frente de batalha? Os retratos dos jovens soldados, feitos longe de casa, e enviados às mães e mulheres - a última imagem para muitos deles? As fotografias oficiais, sujeitas ao crivo da censura, consciente do poder das imagens como arma de guerra, que depois eram impressas em jornais ou em folhetos? As fotografias, horríficas, para uso exclusivo de médicos, a mostrar as feridas dos soldados e os efeitos, desconhecidos, das novas tecnologias de combate? Ou as fotografias dos mortos, enquanto prova mais dura do conflito, do que de pior tinha acontecido? Todas elas são fotografias da guerra. Todas são produzidas nos diferentes contextos da guerra. E todas podem ser pensadas como objectos históricos para melhor se compreender os diversos aspectos do conflito. Nunca nenhuma guerra fora tão fotografada como a I Guerra Mundial. O enorme desenvolvimento tecnológico da fotografia, ao longo da segunda metade do século XIX e na primeira década do século XX, permitiu que as imagens da Guerra 1914-18 se multiplicassem com uma velocidade nunca vista e que o seu impacto tivesse lugar ainda durante o decurso do conflito. O uso da máquina fotográfica e a impressão de imagens democratizaram-se. Passara a ser fácil e barato tirar fotografias. O postal fotográfico, inventado na transição do século, tornara-se uma forma de comunicação comum. E os exércitos e governos também já sabiam como as imagens podiam ser uma arma de guerra. Os progresso da tecnologia Em 1854, o fotógrafo britânico Roger Fenton esteve na Guerra da Crimeia e, um ano depois, os visitantes da Exposição Universal de Paris de 1855 puderam já ver as suas imagens. Não uma guerra mostrada através da pintura 80 Grande Guerra • Ensaios Foi pela lente de garcez que ficou gravada uma dança tradicional na partida de soldados portugueses para África ARNALDO GARCEZ / LIGA DOS COMBATENTES ou da gravura, mas um conflito representado através de uma nova técnica de reprodução que fora patenteada em 1839 - a fotografia. Em meados do século XIX a discussão ainda ia no adro - a fotografia pertencia à “indústria” ou às “belas-artes”? Era um meio mecânico ou um meio artístico? Na Exposição Universal de Paris de 1855, a primeira de várias que tiveram lugar nas décadas seguintes, a fotografia foi exposta no edifício dedicado à indústria. No livro Esquisses Photographiques a propos de l”Exposition Universelle et de la Guerre d”Orient, Ernest Lacan tratou a exposição, a fotografia e a guerra da Crimeia numa só abordagem. “Graças ao Monsieur Fenton, esta moderna Ilíada já tem o seu pintor, tal como um dia terá os seus poetas.» 81 Grande Guerra • Ensaios As guerras faziam parte da história e tanto a literatura como a pintura contribuíam para preservar a sua memória. Em meados do século XIX, a fotografia surgia como um novo instrumento deste processo, mesmo que a identidade profissional daquele que realizava as fotografias fosse ainda ambígua. O mesmo crítico chamava “pintor” a Roger Fenton, mas as suas obras estavam expostas no edifício dedicado à indústria. Ao longo da segunda metade do século XIX, as guerras, conflitos armados, acções políticas e todos aqueles acontecimentos que eram considerados “históricos” foram fotografados. Não apenas na Europa onde as técnicas de reprodução fotográfica tinham sido inventadas - por Daguerre, em França, ou por Nièpce, em Inglaterra - mas num mundo global que logo se apropriou das múltiplas possibilidades da fotografia. O mesmo veio a suceder com a I Guerra Mundial. Ou seja, as transferências de conhecimento que possibilitaram a divulgação globalizada da fotografia, em 1914, transformaram um conflito europeu na primeira guerra “mundial”. O desenvolvimento dos meios de reprodução, a mobilidade e a comunicação associados às múltiplas conexões territoriais, proporcionadas pelos impérios coloniais, criaram os novos espaços e tempos que acabaram por multiplicar os cenários de guerra e os envolvimentos de tantas nações O próprio Arnaldo Garcez de câmara na mão CPF e respectivas colónias. 82 Grande Guerra • Ensaios Quando em 1914 rebentou o conflito, o fundador da Kodak, George Eastmann, já lançara no mercado a “Vest Pocket”, ou “soldier”s camera”. Uma máquina que, tal como o nome sugere, se podia guardar num bolso de casaco. Ou num uniforme militar. O seu carácter portátil permitia uma nova mobilidade, bem distinta da que era permitida pelas câmaras de madeira e tripé. Podiam ser levadas em viagens ou excursões. Mas também podiam ser levadas para a guerra. A fotografia estivera, desde os seus começos, associada aos momentos excepcionais da vivência humana - uma ida com os filhos ao estúdio fotográfico, uma visita real ao país vizinho, o dia do casamento, a visita à Torre Eiffel. A guerra também era um evento excepcional e temporário. Embora quase sempre menos temporário do que se pensava à partida. As guerras implicavam quase sempre viagens, sendo estas momentos que deviam ser preservados na memória, oral, escrita ou material dos indivíduos. Aqueles que viajavam por lazer partiam com a obrigatoriedade da escrita (de diários de viagem ou de correspondência) e, mais tarde, com a obrigatoriedade de trazerem imagens para casa. O aristocrata britânico do século XVIII que trazia o seu auto-retrato pintado durante o Grand Tour italiano; a norte-americana que se fazia fotografar em Paris durante o seu tour europeu na segunda metade do século XIX; o casal moderno que obrigava a família a longas sessões de slides nos anos 1970, ou os jovens que transformam o seu Erasmus em feeds diários de selfies onde apenas variam os cenários. Os soldados também viajavam para a guerra. E, quando regressavam, também traziam as cartas, postais, fotografias ou mesmo diários com que tinham registado a sua experiência. Fotografar na linha da frente O controle sobre a produção de imagens passou a estar não apenas nas mãos dos fotógrafos profissionais, mas de um número muito mais alargado de homens e, em menor número, também de mulheres. 83 Grande Guerra • Ensaios Nos cenários de guerra ou nos países envolvidos no conflito podemos identificar sobretudo três tipos de fotógrafos: os fotógrafos oficiais, contratados pelo exército ou pelas autoridades; os repórteres fotográficos, ao serviço de jornais; e os amadores, que se dedicavam à fotografia por iniciativa própria. O exército português também teve o seu fotógrafo oficial em Arnaldo Garcez (Santarém, 1885-1964). Quando no Cais de Santa Apolónia se deu o primeiro embarque das tropas nacionais para França, em Janeiro de 1917, com os soldados partiram três homens cuja função não era a de combater, mas a de representar a experiência de guerra através da fotografia, do desenho e da pintura. Ao acompanhar o Corpo Expedicionário Português, o pintor Sousa Lopes, que se especializara em pintura de história durante os vários anos da sua estadia em Paris, pôde pôr em prática a sua especialidade. A história em directo, vivida, e sofrida, sobretudo através Nas trincheiras, com de águas-fortes, a preto e branco tal como as fotografias da guerra. Cristiano as condições de vida limitadas aos mínimos Cruz, artista que já se destacara com os seus desenhos e traço satírico com da sobrevivência, que apreendia a contemporaneidade. E um postal permitia Arnaldo Garcez. Quando se deu a República em 1910, enviar uma imagem, Garcez era já um fotógrafo profissional fotográfica ou que colaborava com vários jornais da desenhada, com umas capital. Na altura em que se começou breves palavras a ponderar a participação de Portugal no conflito, Norton de Matos, ministro da Guerra, convidou-o a fotografar os treinos militares que decorriam em Tancos. Tomada a decisão de avançar para Flandres, Garcez tornou-se a escolha natural para fotografar a participação portuguesa na guerra. Partiu com o exército mas não voltou com ele após o Armistício de 1918, pois 84 Grande Guerra • Ensaios Joshua Benoliel retratou o desfile do CEP no Parque Eduardo VII em 1917 JOSHUA BENOLIEL / AML continuou por França até ao ano de 1921. O casamento com uma francesa e o nascimento de três filhos também terão adiado o seu regresso. Quer em França, quer já em Portugal, continuou a documentar os resquícios e destroços do conflito, contribuindo para a construção, imediata, da memória da guerra. Escolhido para membro da Comissão de Padrões da Grande Guerra, organizou exposições fotográficas sobre a guerra; envolveu-se na construção dos cemitérios em França onde ficaram tantos portugueses e fotografou as transladações de corpos, inauguração de monumentos aos mortos e todas as cerimónias de luto e lembrança. Isto, claro, depois da euforia da vitória aliada - que ele também testemunhou, ao acompanhar as tropas portuguesas a passar sob o Arco do Triunfo de Paris, ou nas ruas engalanadas de Londres. A “guerra” de Garcez desobedeceu a algumas das instruções superiores que decidiam aquilo que podia ou não podia ser fotografado e aquilo 85 Grande Guerra • Ensaios que podia ou não ser visto. O estatuto do exército português - entre uma afirmação nacional que queria defender as suas colónias africanas da ameaça alemã, e a dependência da Inglaterra, que secundarizava o seu poder militar - também teve implicações na prática da fotografia. As imagens de Arnaldo Garcez tinham que passar no crivo censório do exército britânico. Os 16 fotógrafos oficiais britânicos, deslocados em vários teatros de guerra, já estavam sujeitos a uma política de propaganda que decidia aquilo que permanecia nos arquivos militares ou o que deveria ser visto pelo público. Havia que mostrar os aspectos negativos do inimigo, sem revelar o pior da guerra, e sem abalar o espírito combativo e entusiasta que as populações deveriam manter. O esforço de guerra afectava todos, incluindo aqueles que não estavam na frente da batalha, e que sabiam da guerra sobretudo pela imprensa. Para os muitos que, em Portugal, não sabiam ler, as fotografias impressas em jornais eram a guerra visível. Postal fotográfico Em 1916, um ofício confidencial da Secretaria da Guerra ordenava à Comissão de Censura que não se publicassem fotografias sobre assuntos militares em jornais “sem que apresentem uma prova vizada neste Ministério”. O principal jornal a publicar imagens da guerra - em desenho ou em fotografia - era a Ilustração Portuguesa, tal como a França tinha L”Illustration e a Inglaterra o Illustrated London News. A primeira capa que a Ilustração Portuguesa dedicou à guerra foi logo em Outubro de 1914. Não uma fotografia, mas um desenho de um soldado feito por Stuart de Carvalhais. Era o momento da mobilização das tropas por toda a Europa, mas não deixava de ser ainda um acontecimento estrangeiro. Perante a ameaça alemã às fronteiras coloniais de Moçambique e Angola, pouco depois, Portugal enviou as primeiras tropas portuguesas para um cenário de guerra. O embarque dos navios para África foi 86 Grande Guerra • Ensaios fotografado pelo prestigiado fotojornalista Joshua Benoliel, juntamente com Garcez, Novais e outros, testemunha dos acontecimentos políticos e públicos portugueses das primeiras décadas do século XX. Desfiles das tropas destinadas às colónias, navios atulhados de soldados ou, num registo distinto, um soldado abraçado à sua mãe já velha. A Ilustração Portuguesa colocou esta imagem na capa e legendou o soldado com «um sorriso, misto de ternura, de coragem e da consciência do dever.» Que saibamos não partiu nenhum fotógrafo oficial para Soldado do cigarro, o cabo Sementes ARNALDO GARCEZ as colónias africanas, tendo ficado o registo fotográfico da experiência nas mãos dos amadores, quase sempre oficiais do exército. João Alves de Melo, por exemplo, “soldado-repórter”, terá regressado à metrópole com as imagens que depois enviou para a Ilustração. Os registos da presença militar em África são assim mais fragmentados e dispersos, sem a unidade do trabalho de Garcez que, dos treinos em Tancos antes da partida, até ao enterro dos mortos, contou da experiência militar portuguesa na Europa uma história reflexiva, intimista e com preocupações totalizantes. As centenas de fotografias realizadas por Garcez mostram tudo menos a morte (ou as da morte foram feitas e não se sabe do seu 87 Grande Guerra • Ensaios Desfile do Corpo expedicionário Português pela Avenida da Liberdade JOSHUA BENOLIEL / AML paradeiro): os treinos com a máscara antigás a que as novas tecnologias de guerra obrigavam; os acampamentos provisórios, onde a logística do quotidiano se tivera de reinventar em espaços inóspitos; os momentos de espera entre batalhas, em que se partilhavam cigarros e conversas; o transporte, o movimento entre diversas frentes; os encontros oficiais entre o exército português e o inglês; uma igreja na Flandres arruinada por um bombardeamento; as crianças locais a brincarem entre escombros; os vários momentos da visita do Presidente Bernardino Machado à frente de batalha, como aquela onde visita um ferido no hospital militar; os repórteres de guerra a escrevinhar desconfortavelmente deitados no chão. Ou os retratos emblemáticos de 88 Grande Guerra • Ensaios Desfile do Corpo expedicionário Português pela Rua Augusta, a caminho do embarque JOSHUA BENOLIEL / AML dois soldados de cigarro na boca. Um, o cabo “Sementes”, sem nome e sem esperança. Outro, sem nome mas com a identidade militar de pertencer ao batalhão do regimento de Infantaria n.º 7, a mostrar na lapela a condecoração da Cruz de Guerra. Quem é que viu estas imagens ? Onde é que foram reproduzidas? Logo em 1916, Arnaldo Garcez participa com outros fotógrafos da sua geração na Primeira Exposição Nacional de Photographia realizada em Novembro de 1916 no Palácio Nacional de Bellas Artes Lisboa e promovida pela revista Arte Photographica. Ao lado de Domingos Alvão, Jorge de Almeida Lima ou Villarinho Pereira, apresenta 12 fotografias mas, apenas com os 89 Grande Guerra • Ensaios seus títulos, não sabemos se a guerra já aparecia exposta - mesmo com uma das legendas denominada “raça heróica”. Em França, no entanto, 75 das suas fotografias foram utilizadas numa colecção de postais fotográficos sobre a guerra editados pelo Corpo Expedicionário Português. A transformação da fotografia em postal fotográfico, para venda e circulação massificada, era já uma prática corrente. Nascido em finais do século XIX, o postal era ainda um meio recente, mas a guerra acabou por lhe dar um forte impulso. Ao forçar a mobilidade de milhões de pessoas em diversas regiões do mundo e ao afastar famílias e amigos durante longos espaços de tempo, a guerra acabou por ser um espaço privilegiado para o desenvolvimento do postal. Nas trincheiras, com as condições de vida limitadas aos mínimos da sobrevivência, um postal permitia enviar uma imagem, fotográfica ou desenhada, com umas breves palavras. Texto e imagem, num pequeno rectângulo viajavam dos cenários de guerra para as moradas dos que tinham ficado e de quem se tinha saudades. As mães e os pais, mas também as mulheres, e as noivas que não se deveriam esquecer deles e deveriam esperar pelo seu regresso. Os postais amorosos - com encenações realistas de casais em fotografias por vezes pintadas e decoradas - conheceram uma grande popularidade durante a guerra. Eram a ligação possível. Foi uma guerra onde se escreveu muito de sofrimento mas também se escreveu muito de amor. Mulheres na guerra As mulheres ficaram - quase todas - mas não ficaram paradas. Christina Broom, por exemplo, uma das primeiras mulheres britânicas fotógrafas de reportagem, especializou-se em fotografar os soldados em Londres, antes de partirem para a guerra (Exposição no Museum of London, em 2015). A ausência dos homens e as necessidades de alimentar os teatros 90 Grande Guerra • Ensaios de guerra com armamento e logística militar obrigaram-nas a assumir novos tipos de trabalho. A fotografia deste período dá conta deste fenómeno um pouco por toda a Europa, embora os casos britânico e francês sejam talvez aqueles com maior visibilidade. Mulheres a conduzirem transportes públicos enquanto os maridos faziam de soldados. Sentadas em uniforme, às dezenas, em fábricas improvisadas ou a lidar mais directamente com os resultados da guerra, nos hospitais improvisados que acolhiam os mutilados e feridos que proliferavam com os novos tipos de ataques. Com o exército português também partiram mulheres - as “damas enfermeiras auxiliares” da Cruz Vermelha Portuguesa, “senhoras da melhor sociedade” que tinham feito o curso de enfermagem e que se voluntariaram para trabalhar nos hospitais da frente de batalha francesa. Garcez fotografou-as várias vezes, contribuindo assim para a multiplicação de imagens de mulheres a prestar serviços de saúde durante a guerra. As mulheres que ficavam usavam a fotografia como a memória dos que tinham partido. Os usos privados da fotografia, a unir aqueles que a guerra afastara na projecção da dor e da saudade, na troca de correspondência, na memória, individual, de cada família são um fenómeno que, apesar de menos visível, não deve ser descurado. Para as famílias daqueles que não regressaram da guerra, a fotografia do morto quando ainda estava vivo tornou-se num dos objectos mais olhados e preservados da memorialística intíma. Vestidos com o uniforme militar antes de partirem, muitos não puderam voltar a ser fotografados. Estas fotografias de guerra permanecem sobretudo nos arquivos familiares. Outras foram preservadas em museus de fácil acesso, como o Imperial War Museum londrino, onde as fotografias portuguesas da primeira guerra são uma ínfima parte de um espólio que possui quase 11 milhões de fotografias. Outros conjuntos de imagens da I Guerra continuam a ser descobertos, como aquele que se encontrou há uns anos num celeiro abandonado de uma aldeia no Nordeste da França. 91 Grande Guerra • Ensaios Mas, 100 anos depois, nem a fotografia guarda todas as memórias - não se sabe quem foi o autor das 400 chapas fotográficas de vidro, um amador provavelmente, nem quem são as centenas de soldados britânicos que para ele posaram. Os arquivos de guerra continuam a ser desenterrados para enriquecer a cultura visual do primeiro conflito a ser tão fotografado na história da humanidade. Depois de 1918, nos muitos conflitos armados que se seguiram, a fotografia continuou a assumir todas as suas facetas e a ser usada tanto como um instrumento nas estratégias de guerra, como um antídoto para a dor. Bibliografia Catálogo da primeira Exposição Nacional de Photographia realizada em Novembro de 1916 no Palácio Nacional de Bellas Artes Lisboa e promovida pela revista Arte Photographica. Gen. Ferreira Martins, dir., Portugal na Grande Guerra (Lisboa: Ática, 1934). António Pedro Vicente, Arnaldo Garcez. Um repórter fotográfico na 1.ª Grande Guerra (Porto: Centro Português de Fotografia, 2000). Cor. Cav.ª Conde Falcão, Imagens da I Guerra Mundial (Lisboa: EstadoMaior do Exército, 2004). Jorge Pedro Sousa, A Grande Guerra. Uma crónica visual - Parte I. Estudo do discurso em imagens da Ilustração Portuguesa (1914-1918) sobre a participação portuguesa na I Guerra Mundial (Porto: Media XXI, 2013). VOLTAR AO ÍNDICE 92 Grande Guerra • Ensaios As mulheres foram activistas na guerra, depois voltaram ao lar As feministas acreditaram que, devido ao empenho das mulheres no esforço de guerra, viriam a ser recompensadas no mercado do trabalho, teriam acesso a novas profissões e a uma maior igualdade profissional, conseguiriam alguns direitos, nomeadamente o do voto — o que não vai acontecer em Portugal e duma maneira geral nos países da Europa do Sul. Ensaio de: Anne Cova, investigadora no ICS-ULisboa Fábrica de munições em França REUTERS / ARCHIVE OF MODERN CONFLICT LONDON / HANDOUT VIA REUTERS 93 Grande Guerra • Ensaios D urante todo o período da Grande Guerra, uma ideia que dominou os movimentos feministas nos países beligerantes foi a de que as mulheres adquiriram hábitos de iniciativa e responsabilidade tais que seria desperdício não os aproveitar findo o conflito, como sintetiza a historiadora Anne Cova, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa Uma ideia muito difundida é que as mulheres, graças ao seu activismo durante a Grande Guerra, conseguiram obter vários direitos. Assim, a guerra teria produzido um efeito benéfico para os direitos das mulheres. Por exemplo, no que diz respeito à cidadania política, com a obtenção do direito de voto feminino em muitos países - Dinamarca (1915), Países Baixos (1917), Alemanha (1918), Áustria (1918), Reino Unido (1918), Polónia (1918), Rússia (1918), Bélgica (1919), Suécia (1919) - parece corroborar esta asserção. No entanto, outros países, incluindo Portugal, concederam o voto para todas as mulheres muito mais tarde: em Portugal depois do 25 de Abril de 1974, Suíça (1971), Grécia (1952), Itália (1945) e França (1944). À leitura da Primeira Guerra Mundial como um período que terá gerado grandes oportunidades para as mulheres - nomeadamente no mercado do trabalho - enaltecendo o lado positivo do conflito, opõe-se uma outra abordagem, que destaca o carácter conservador da guerra em termos de relações entre homens e mulheres. De facto, nos anos vinte, as mulheres são “convidadas” a regressar ao lar. Tendo em conta estas duas perspectivas, pretende-se analisar, de maneira sucinta, a mobilização das mulheres portuguesas bem como os seus efeitos, numa perspectiva comparada e transnacional : “L’histoire des femmes en temps de guerre (...) est un sujet aujourd’hui mieux compris dans une optique transnationale” [1 - Ver Bibliografia no final do texto]. Atrás das linhas da frente A guerra não se desenrolou apenas com os homens na frente. Ocorreu 94 Grande Guerra • Ensaios Mão-de-obra feminina numa fábrica em França, 1916 ARCHIVE OF MODERN CONFLICT LONDON/REUTERS também “behind the lines”, onde as mulheres desempenharam vários papéis [2]. Esta mobilização sem precedentes não foi contudo tão elevada como pode parecer à primeira vista: a mão-de-obra feminina em França cresceu apenas 8%, passando de 32% antes da guerra a 40% durante o conflito; em Inglaterra, de 24% a 38%. Em Portugal, a mobilização aconteceu mais tarde do que na maioria dos países beligerantes porque só a 9 de Março de 1916 o país entrou no conflito, com a declaração de guerra da Alemanha. De uma maneira geral, “com excepção das enfermeiras (...), a mobilização da mão-de-obra feminina é, por todo o lado, lenta e tardia” [3]. Isso verificou-se também nos EUA, onde não houve um salto importante da população trabalhadora feminina com a intervenção tardia no conflito, em Abril de 1917. A mobilização das americanas vai crescer somente em 1918, incentivada 95 Grande Guerra • Ensaios pelas várias associações feministas (em vários países, as feministas, na sua larga maioria, pediram a mobilização das mulheres, sendo este um dever e querendo mostrar as suas capacidades). Agosto de 1914 marca a data do início da guerra. É também nesse ano que é fundado o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP), que tinha por objectivo federar o máximo de associações de mulheres afim de “coordenar, dirigir e estimular todos os esforços tendentes à dignificação e à emancipação das mulheres” - o CNMP estava, por sua vez, filiado no International Council of Women (ICW), fundado em Washington em 1888 para “estabelecer uma comunicação constante entre as associações de mulheres de todos os países”. Quando Adelaide Cabete (1867-1935) fundou o CNMP, em Abril de 1914, Piquenique de oficiais alemães da força aérea, em 1918 REUTERS / ARCHIVE OF MODERN CONFLICT LONDON / HANDOUT VIA REUTERS 96 Grande Guerra • Ensaios em Lisboa, tinha já experiência enquanto militante feminista: fazia parte do Grupo Português de Estudos Feministas (criado em 1907 por Maria Veleda); tinha participado, em 1909, com Ana de Castro Osório e Fausta Pinto da Gama, na criação da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, movimento ligado ao partido republicano, que apoiou a queda da monarquia constitucional; e tinha fundado, em 1911, com Carolina Beatriz Ângelo, a Associação de Propaganda Feminista, liderada por Ana de Castro Osório. Durante a Grande Guerra, foram fundadas várias associações de auxílio aos combatentes, federadas pelo CNMP. Entre elas, a Cruzada das Mulheres Portuguesas (CMP) e o Núcleo Feminino de Assistência Infantil da Junta Patriótica do Norte foram as que tiveram mais As acções de beneficência, como a Venda da FLor, em Lisboa, eram uma ocupação das mulheres JOSHUA BENOLIEL / AML 97 Grande Guerra • Ensaios impacto e maior longevidade. A 27 de Março de 1916, menos de vinte dias depois da declaração de guerra da Alemanha a Portugal, nasce a CMP, por iniciativa de Elzira Dantas Machado, mulher do Presidente da República [4]. Com o objectivo de apoiar os soldados e os prisioneiros de guerra, a CMP tinha origem na Associação de Propaganda Feminista. Esta última tinha também participado com outras feministas na criação da Comissão Feminina “Pela Pátria”, que, como o nome indica, pretendia fazer propaganda patriótica. A CMP conseguiu fundar várias comissões e subcomissões, espalhadas pelo país e pelas colónias. Apoiou ainda a criação de Escolas de Enfermagem, incrementando um corpo de enfermeiras de guerra, e fundou três hospitais de rectaguarda. Em Agosto de 1916 é criado o Núcleo Feminino de Assistência Infantil da Junta Patriótica do Norte, no Porto, presidido por Filomena Nogueira de Oliveira, com o objectivo de dar apoio aos órfãos dos soldados. Todas estas associações provinham do campo republicano. Do lado das 1914 teria podido ser monárquicas e católicas, a 20 de Março o ano das mulheres, de 1916, onze dias depois da entrada de Portugal no conflito, coube-lhes fundar, mas foi o ano da guerra, que veio repor a Assistência das Portuguesas às Vítimas da Guerra, presidida pela Condessa cada sexo no seu Maria Amélia de Carvalho Burnay. lugar.” A primeira década do século XX é considerada a Belle Époque dos Françoise Thébaud, in “A Grande Guerra” feminismos, que se tornaram movimentos transnacionais. É nesse período que surgem homólogos do CNMP como o Conseil National des Femmes Françaises, fundado em Paris em 1901, e o Consiglio Nazionale delle Donne Italiane, criado em Roma em 1903 . De facto, “1914 teria podido ser o ano das mulheres, mas foi o ano da guerra, que veio repor 98 Grande Guerra • Ensaios Enfermeiras cuidam de ferido REUTERS cada sexo no seu lugar” [5]. Um mês antes do deflagrar da guerra, no dia 5 de Julho, as feministas francesas fizeram uma grande manifestação sufragista junto à estátua de Condorcet, em Paris, marcando o apogeu do movimento feminista. Também nessa altura, em Londres, a National Union of Women’s Suffrage Societies organizou um imenso desfile. Este período de ouro acabou com o desencadear do conflito e as feministas pedem então às mulheres para servir os seus países e deixar de lado as reivindicações e, consequentemente, a obtenção de direitos. A União Sagrada prevalece e, na imprensa, não faltam apelos dos grandes nomes dos feminismos à mobilização das mulheres (apesar das dificuldades que enfrenta a imprensa em geral e os jornais feministas em particular). É paradigmático o caso da imprensa feminista francesa: a 1 de Setembro, o editorial de Marguerite Durand em La Fronde é 99 Grande Guerra • Ensaios censurado; La Française, de Jane Misme, suspende a sua publicação entre 5 de Julho e 15 de Novembro de 1914; Le Droit des femmes não foi publicado até Março de 1915; L’Action féministe reduz o seu formato; Le Bulletin de l’Union Française pour le Suffrage des Femmes deixa de ser publicado; Le Féminisme intégral foi publicado irregularmente; La Suffragiste não foi publicado durante a guerra. Em Portugal, o Boletim Oficial do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (que passou a intitular-se Alma Feminina a partir de Janeiro de 1917), publicou apenas sete números durante a guerra. Os artigos oscilam entre o patriotismo - apelando ao dever da mobilização e do auxílio – e o pacifismo - denunciando os horrores da guerra. As hesitações entre os dois “ismos” - patriotismo e pacifismo - estiveram presentes quando as feministas portuguesas do CNMP ponderaram a sua participação no congresso pacifista de Haia em 1915 – o único organizado durante o conflito - para, finalmente, desistirem seguindo a recomendação da presidente do ICW, Lady Aberdeen, enviada a todos os conselhos nacionais de mulheres. Do lado das francesas do CNFF, onde a retórica do patriotismo era muito exaltada, a recusa foi imediata. O CNFF ordenou rapidamente às francesas o cumprimento dos seus deveres contribuindo para o esforço de guerra e excluiu do conselho a feminista pacifista Gabrielle Duchêne. Minoritárias eram as vozes pacifistas mesmo no seio das feministas tais como a inglesa Vera Brittain ou a francesa Hélène Brion. Servir a União Sagrada “Servir” ficou lema para as associações de mulheres que queriam mostrar o seu patriotismo e o cumprimento dos seus deveres. Um apoio que tomou diversas formas: assistência, beneficência, caridade, criação de ateliers de costura, confecção de agasalhos, recolha de donativos, apoio moral aos soldados com as madrinhas de guerra, visitas aos 100 Grande Guerra • Ensaios Enfermeiras da Cruz Vermelha portuguesa destacadas em França LIGA DOS COMBATENTES feridos nos hospitais, etc. As fontes iconográficas e orais testemunham a mobilização das mulheres como condutoras de eléctricos ou de ambulâncias e auxiliares do Exército. Não há dúvida de que as mulheres entraram no mercado de trabalho assumindo todos os papéis que os homens deixaram de poder exercer. Dependendo do sector de serviços, a mobilização teve variações - a indústria de munições tornou-se obviamente prioritária e, em França, a personagem da munitionnette, operária de fábricas de munições, foi frequentemente evocada na imprensa. Outras actividades consideradas como prerrogativas das mulheres foram glorificadas: a figura da enfermeira recebeu mais elogios representando a abnegação, “A maior mãe do Mundo”, segundo um cartaz americano da Cruz Vermelha. Não é fortuita a ênfase colocada nas enfermeiras e nas mães - e, em geral, na 101 Grande Guerra • Ensaios prestação social - porque evocam as qualidades “naturais” das mulheres como a caridade e a compaixão. Uma leitura das fontes introduzindo o conceito de género mostra que as enfermeiras - este “exército branco” segundo a expressão da historiadora Stefania Bartoloni - ficaram sempre subordinadas aos médicos [6]. No dia 25 de Agosto de 1914, Julie Siegfried, presidente do CNFF, emite um comunicado pedindo a mobilização das mulheres em torno da guerra. Em Dezembro desse ano, o CNFF organiza, sob a direção de Marguerite Pichon-Landry, o gabinete de informações das famílias dispersas, e, no início de 1915, o gabinete da actividade feminina, subvencionado pelos Ministérios da Guerra e do Armamento. São igualmente criadas creches, especialmente nas fábricas de guerra. Em 1916 é fundada uma Secção de Estudos Femininos (SEF) no Museu Social, onde o ministro socialista do Armamento, Albert Thomas, vai Exército branco” escolher dez mulheres, num total de era, segundo quarenta e cinco membros, para formar a expressão da um comité do trabalho feminino na historiadora Stefania Subsecretaria de Estado da Artilharia e das Munições, cuja finalidade é gerir a Bartoloni, como mão-de-obra feminina nas fábricas de ficaram conhecidas as guerra, e que está na origem da criação enfermeiras durante da Escola Técnica das superintendentes de fábricas. Em Agosto desse ano, uma a Grande Guerra delegação de operárias inglesas visita fábricas francesas onde existe mão-de-obra feminina. Três meses mais tarde é a vez de uma delegação francesa do comité do trabalho feminino se deslocar a Inglaterra, a fim de estudar o papel da lady superintendant, também chamada lady welfare supervisor. Destes contactos resulta a criação, por cinco mulheres, da Escola Técnica das superintendentes de fábricas. A Escola, fundada a 1 de Maio de 1917, em Paris, sob 102 Grande Guerra • Ensaios Enfermeiras portuguesas em França e as enfermeiras militares do Triângulo Vermelho REUTERS, IP patrocínio dos ministros Albert Thomas e Léon Bourgeois, ocupar-se-ia da gestão dos serviços sociais destinados às operárias. Algumas leis foram promulgadas durante a guerra para proteger as trabalhadoras: é o caso da lei sobre o trabalho ao domicílio, de 10 de Julho de 1915, em França, que permitiu combater o sweating system. O facto das mulheres terem deixado o lar para substituírem os homens nas fábricas não foi tema pacífico e depressa se instalou a crença de que esta mudança era acompanhada de um enfraquecimento dos valores morais. Existiu ainda o medo da “masculinização” da mulher, que poderia conduzir a uma inversão dos papéis [7]. Angústias que culminaram com os ataques contra o trabalho das mulheres fora de casa. “O regresso ao lar” foi leitmotiv dos anos vinte. Regresso ao lar Durante todo o período da guerra, uma ideia que dominou os movimentos feministas nos países beligerantes foi a de que as mulheres adquiriram hábitos de iniciativa e responsabilidade tais que seria desperdício não os aproveitar findo o conflito. Acreditaram que, devido ao seu empenho, viriam a ser recompensadas no mercado do trabalho, 103 Grande Guerra • Ensaios teriam acesso a novas profissões e a uma maior igualdade profissional, conseguiriam alguns direitos, nomeadamente o do voto - o que não vai acontecer em Portugal e duma maneira geral nos países da Europa do Sul. Por parte das feministas portuguesas, era recorrente a ideia de defender “os interesses morais e materiais da mulher em geral, e trabalhar tanto quanto possível pelo desenvolvimento da sua instrução e educação moral e profissional” [8]. Aliás, depois do fim da guerra, o primeiro e o segundo congresso feminista do CNMP, que tiveram lugar em Lisboa em 1924 e em 1928, serão dedicados à educação. Nos anos vinte, em vários países, a palavra de ordem passou a ser a reposição de cada sexo no seu devido lugar. Era valorizada a presença da mulher no lar e, findo o conflito, a desmobilização aconteceu muito rapidamente. Se, até pela sua longa duração, a Grande Guerra exigiu a mobilização das mulheres e lhe permitiu acesso à esfera pública, as mudanças duraram tão somente o tempo do conflito. “Pensar a Grande Guerra numa perspectiva das mulheres e de género” [9] significa introduzir uma perspetiva sexuada na análise dos acontecimentos que enriquece a história contemporânea. Bibliografia [1] Jay Winter, Avant-propos des volumes 1, 2 et 3. L’histoire de la Première Guerre mondiale: le moment transnational, in Jay Winter (dir.), La Première Guerre mondiale, Paris, Fayard, 2013- 2014, 3 vols. Anne Cova (dir.), História comparada das mulheres. Novas abordagens, Lisboa, Livros Horizonte, 2008. [2] Para retomar o título do livro seguinte: Margaret Randolph Higonnet, Jane Jenson, Sonya Michel, Margaret Collins Weitz (Eds), Behind the lines: Gender and the Two World Wars, New Haven, Yale University Press, 1987. [3] Françoise Thébaud, A Grande Guerra: o triundo da divisão sexual, in 104 Grande Guerra • Ensaios Georges Duby, Michelle Perrot (dir.), História das Mulheres no Ocidente, Porto, Afrontamento, 1995, p. 38. [4] Natividade Monteiro, Pela Pátria e pela República”. As Mulheres republicanas na I Guerra Mundial, in Zília Osório de Castro, João Esteves e Natividade Monteiro (dir.), Mulheres na Iª República. Percursos, Conquistas e Derrotas, Liboa, Colibri, 2011, pp. 179-215. [5] Françoise Thébaud, A Grande Guerra... op. cit., p. 35. [6] Stefania Bartoloni, Donne nella Croce Rossa Italiana tra guerra e impegno sociale, Venezia, Marsilio, 2005. [7] Susan R. Grayzel, Women’s Identities at War: Gender, Motherhood and Politics in Britain and France during the First World War, Chapel Hill, University of North Carolina Press, 1999. [8] Alma Feminina, Janeiro de 1917, nº1, p. 1. [9] Título da conferência de Françoise Thébaud no seminário de pósgraduação de História do ICS-ULisboa, 20 de Junho de 2014. VOLTAR AO ÍNDICE 105 Grande Guerra • Ensaios Celebrar a vitória em dia de derrota – afinal, a quem pertencem as políticas da memória da I Guerra Mundial? Acabada a guerra, o que havia em Portugal para comemorar? A polémica entre a responsabilização política da “derrota” ou de uma “vitória mutilada” estendeu-se por três regimes Desfile de antigos combatentes da Primeira Guerra Mundial junto à estação do Rossio, Lisboa FOTÓGRAFO NÃO IDENTIFICADO/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA 106 Grande Guerra • Ensaios (o Sidonismo, de novo a República, depois o Estado Novo) e inviabilizou a possibilidade de se estabelecer uma memória consensual da participação portuguesa na I Guerra Mundial. Poucos anos mais tarde, o esquecimento acabaria por se impor. Ensaio de: Sílvia Correia, Professora do Instituto de História da Universidade Federal Rio de Janeiro / Investigadora do IHC – UNL. Em vão busquei um sorriso na multidão, dificilmente achei o das mulheres perdidas. Francamente, para vir para Lisboa não vale a pena a gente ter-se batido[i]. P ercorrer os lugares que chamam a si os mortos da Grande Guerra, passados 100 anos do início do conflito que lhe deu origem, é olhar para o esquecimento que compôs a sua memória em Portugal. Menção a um tempo que a memória histórica incorporara já como esquecimento. Pensar esses lugares de memória equivale a pensar o esforço que implica alguma referência ou identificação entre os mortos representados e aqueles que hoje se cruzam com eles. Discursos e memoriais servem processos de disseminação da morte, transformando o soldado morto no herói de salvação da pátria. Tratase, ontem como hoje, de aniquilar o impacto sobre a opinião pública da massa de mortos, neutralizando-a em novas estruturas materiais e imateriais de tradição local, simulando um novo léxico da morte, uma nova retórica - “em guerra não se morre mas sim cai-se, a vida não se perde mas doa-se, não desaparece no nada mas vive-se eternamente no império do heroísmo patriótico”[ii]. Procura-se, assim, evitar a consternação pelo injustificado sacrifício em massa. O luto individual é metamorfoseado pelo ritual do culto dos mortos no orgulho consensual pela morte em nome da pátria. Uma tentativa idílica e metafórica 107 Grande Guerra • Ensaios de revalorizar a morte, num sentido religioso, político e ideológico. A experiência fundamental da guerra moderna é, não sem alguma perturbação, “o assassinato de massa sancionado pelo estado”[iii]. Dulce et decorum, pro patria mori… De que forma a I República Portuguesa conseguiu dissimular o peso da sua responsabilidade pela massa de mortos na projeção de uma política memorial agregadora, consoladora e terapêutica? Conseguiria mesmo? Afinal, a quem pertencem as políticas da memória? Em Portugal, foram mobilizados cerca de cem mil homens, primeiro para África (1914) e depois para a frente europeia (1917), dos quais resultariam mais de sete mil mortos e cerca de treze mil feridos. Não obstante os números serem menores em comparação com a maioria dos Aliados, isso não diminui o impacto de uma guerra total. Porém, ironicamente, ou talvez não, a memória da I Guerra Mundial caiu no esquecimento dos portugueses. E não apenas porque alguns daqueles mortos e heróis foram depostos e abandonados. Os seus combatentes foram desaparecendo ao longo do século XX. As lutas memoriais por eles travadas foram sendo, também elas, substituídas por outras. Em 1924, aquando do definitivo Tal como o Soldado sepultamento dos Soldados Desconhecido, Desconhecidos, o periódico monárquico também os – O Dia – publica: «A responsabilidade monumentos aos da nossa intervenção militar no teatro europeu da guerra cabe essencialmente mortos da guerra ao partido democrático, embora sob servem para ‘(re) a falaz tabuleta de uma suposta União escrever’ valores Sagrada arrancada à desorientação republicanos.” política dos antigos evolucionistas e ao 108 Grande Guerra • Ensaios Antigos combatentes da Primeira Guerra Mundial no rancho de confraternização que decorreu durante a Semana do Combatente, 1929-06-30 ATRIBUÍDO A FERREIRA DA CUNHA/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA instinto da conservação dos unionistas. [...] Deriva para este partido a necessidade política de comemorar o 9 de Abril como uma data festiva, embora para tanto seja preciso fazer tábua rasa dos factos. […] A verdade é que o 9 de Abril é na História de Portugal, que tantas datas gloriosas pode festejar, uma data de pesado luto […]. É o impudor dessa mentira que a Nação nunca perdoará, porque ao mais tacanho ocorrerá perguntar – Se comemoramos o 9 de Abril como uma data gloriosa, que demónios farão, nesta data, os alemães?» No imediato pós-guerra, a responsabilização política da “derrota” ou de uma “vitória mutilada” – apontada à União Sagrada e ao Partido Democrático – enchia as páginas da imprensa, revelando que, para além da generalizada crise, a I República falhou numa propaganda eficaz que 109 Grande Guerra • Ensaios Desfile de tropas portuguesas em Londres, 1918 AGENCE ROL / BIBLIOTHÉQUE NATIONAL DE FRANCE justificasse a intervenção e, mais do que isso, num projeto memorial que legitimasse o sacrifício. A concretização rememorativa constitui, assim, um espelho da vida política nacional, refletindo uma inevitável instrumentalização da memória de guerra. Realizada em Lisboa a grande parada de 1921, que consumava a ratificação internacional da vitória portuguesa ao lado dos Aliados, o definitivo enterro dos Soldados Desconhecidos na Batalha, passados três anos, sepultaria também a crença num mito de uma República vitoriosa. Desde a pouco aplaudida chegada dos soldados a Lisboa, às grandes cerimónias de receção das tropas, tardiamente introduzidas por Sidónio Pais, até à dificuldade da determinação oficial do dia comemorativo da Grande Guerra, entre o Dia do Armistício, a Tomada da Bastilha e futuramente o 9 de Abril, são visíveis as divisões no seio da sociedade. 110 Grande Guerra • Ensaios Familiares de soldados mortos em França, a caminho da igreja dos Mártires onde se realizaram exéquias religiosas, em Abril de 1918 JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA Caberá a instituições – como, inicialmente, a Junta Patriótica do Norte e a Comissão dos Padrões da Grande Guerra e, mais tarde, a Liga dos Combatentes da Grande Guerra – o levantamento de importantes realizações na fundamentação de uma memória de guerra heróica. As comemorações da Grande Guerra transformam-se num turbilhão de polémicas, tentando incendiar a opinião pública. O temporal do golpe militar que se avizinhava fazia-se já sentir fortemente nas efemérides da guerra. A 9 de Abril do ano de 1925, Trindade Coelho, diretor de O Século, antecipa as argumentações dos homens do 28 de Maio: «Porque o 9 de Abril constituiu uma das mentiras oficiais do nosso Estado Político, responsável único pelo desastre das legiões portuguesas que heroicamente se bateram». Nesse mesmo número, Sinel de Cordes e Gomes da Costa denunciam o quão foi inglório o esforço do 111 Grande Guerra • Ensaios Exército: não pela derrota sofrida, mas pela lição que continua perdida, “prova-o o facto de que a comemoração oficial na batalha consistir exclusivamente… em comemorações fúnebres”. As comemorações são, assim, uma simbiose de jogos políticos: cada tendência política teve a sua posição perante a guerra, assim como teve diante da instrumentalização da sua recordação. A guerra moderna reclama uma escala diferente de compensação oficial pelas perdas, dada a dimensão das mesmas e o seu impacto. Todavia, não se pense que uma generalização dos fenómenos memoriais aporta, só por si, uma modernização dos meios e das respostas a utilizar. A apologia da modernidade, que aparece durante a guerra e em alguns dos primeiros monumentos aos mortos de guerra, desaparece com a necessidade de se mascarar a morte, substituindo as formas “mecanizadas” por moldes mais tradicionais. Serão os temas cristãos clássicos a dominar os monumentos aos mortos da guerra em Portugal, como já havia sido manifestamente preponderante nas estruturas cemiteriais militares. Ultrapassa-se, assim, o universo da religião civil tradicional, em nome de uma conceção de crença mais alargada. A desestruturação provocada pela “guerra total” cria um espaço para novos heróis – conciliadores ideológicos de uma interpretação oficial do passado histórico – cuja abstração permitiria não só agregar o número de mortos, bem como se lhe imputar as características dignas do herói desejável. Ser excecional que se sacrifica em nome da pátria, oferecendo um ensinamento de solidariedade, o herói é chamado à função de regenerar a nação. Em Portugal, tratou-se, pois, de recriar um “Olimpo”, fornecendo um universo de heróis de guerra ao panteão nacional republicano. O simbolismo deste acontecimento teve impacto e evidenciou “corrompidas” as bases mais revolucionárias da I República e da União Sagrada. A violenta secularização de inícios do regime tinha esmorecido em contexto de guerra, fenómeno que salta à vista nas iniciativas oficiais de comemoração, face à participação e destaque que 112 Grande Guerra • Ensaios O Presidente António José de Almeida lançando a primeira pedra do monumento aos mortos da Grande Guerra, em Lisboa, 1923 FOTÓGRAFO NÃO IDENTIFICADO / ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA membros da Igreja e espaços a ela associados assumem na consagração do Soldado Desconhecido. Existe em todo este processo memorial uma tentativa de apaziguamento político e social por parte dos republicanos. O Soldado Desconhecido concretiza o duplo universo, moderno e tradicional, dos processos memoriais. A consagração do mais simbolicamente agregador dos heróis – o Soldado Desconhecido – a 9 de Abril de 1921, desde a parada em Lisboa à deposição na Batalha, seria a mais grandiosa manifestação de reconhecimento da vitória portuguesa do lado aliado da guerra com a participação das mais importantes representações nacionais e internacionais. Enganam-se, porém, aqueles que acreditam que a magnificência do acontecimento arrasta, 113 Grande Guerra • Ensaios por si só, um acordo generalizado. As comemorações são, Na verdade, não só neste dia, mas ao longo dos aniversários desta data, assim, uma simbiose as contestações faziam-se às opções de jogos políticos: formais comemorativas, às implicações cada tendência mais gerais do significado da celebração ou, mesmo, da perda de significado. política teve a sua O Soldado Desconhecido são, posição perante a afinal, dois. A necessidade de dois guerra, assim como Soldados Desconhecidos resultava do teve diante da esforço importante em dois campos de batalha. Um soldado vinha da instrumentalização Flandres – a frente europeia – e o outro da sua recordação. do império em África, dois campos de A guerra moderna interesse e influência internacional reclama uma portuguesa crescentemente em conflito. Porém, a escolha simbólica escala diferente de – excecional entre os beligerantes – compensação oficial de dois Soldados Desconhecidos não pelas perdas, dada a bastou para serenar a divisão interna dimensão das mesmas que suscitou a intervenção na frente europeia, diferenciando-se dos demais e o seu impacto.” intervenientes na guerra pela primazia – reinante internamente – dada à ingerência em África. Apesar de tudo, o elemento que daria azo a maior debate seria a escolha do lugar para a deposição dos féretros, chegando mesmo a controvérsia a prolongar-se além da tumulização definitiva no Mosteiro de Santa Maria Vitória. A Batalha atraiu consensos desejados. Não só se remetia a um herói de “renovado” consenso nacional – Nuno Álvares Pereira –, nascido de uma vitória contra as tropas castelhanas – elemento subjacente à beligerância na frente europeia (o reconhecimento perante 114 Grande Guerra • Ensaios a Espanha neutral), mas também se trazia simbolicamente ao domínio público Aljubarrota e um dos seus símbolos. Retirava-se, assim, os Soldados Desconhecidos das discussões que emanavam dos panteões de Lisboa das acesas lutas políticas da capital. Tal como o Soldado Desconhecido, também os monumentos aos mortos da guerra servem para “(re)escrever” valores republicanos. Salvo as raras exceções da responsabilidade da Comissão dos Padrões da Grande Guerra, consagradas à projeção do império além-mar, os monumentos revelam uma veneração geral pela pátria, desde a representação do serrano às alegorias (pátria, república e vitória, esta última em menor número), sendo as alusões à guerra apresentadas como uma dedicação apaixonada, numa apropriação representativa da liturgia de tradição religiosa. Na verdade, as possibilidades expressivas dos memoriais escaparam ao controlo oficial, sendo na generalidade delineadas por instituições republicanas que responderam aos múltiplos desejos das entidades oficiais e locais e ao universo das comunidades de luto. Pela necessidade de transcendência da dor e de compensação universal, os monumentos aos mortos revelam um profundo conservadorismo, evidenciando, mais do que qualquer outro fenómeno comemorativo, a natureza da religião cívica. Existe uma necessidade de perpetuar os rituais de tradição cristã, garantindo uma familiaridade, a crença no futuro e a transcendência da experiência da guerra. Em Portugal, é falacioso atribuir a uma iniciativa do Estado Novo qualquer projeto que apresente características de agigantamento ou de modernismo. Os conjuntos projetados durante a década 30 são resultado de iniciativas locais/privadas e politicamente desprovidos de conotação fascizantes. Estratégia ou condição: celebrar a vitória política em dia de derrota De todas as componentes rememorativas, o 9 de Abril sintetiza a multiplicidade de polémicas em torno da representação da participação 115 Grande Guerra • Ensaios portuguesa na guerra: por um lado, pela evocação de uma derrota; por outro lado, por aludir, exclusivamente, ao esforço na frente europeia, esquecendo, segundo a oposição ou mesmo segundo alguns militares, a diligência dos soldados em África. Donde, os homens do 28 de Maio terem procurado afastar-se desta efeméride, centrando as comemorações no 11 de Novembro, numa desejada procura de consenso, onde a religião retoma o seu lugar e os próprios sacerdotes adaptam a liturgia, comparando o sacrifício de Cristo aos dos soldados mortos O que levaria o governo republicano a comemorar numa data de derrota, quando tinha o – nacional e internacionalmente consensual – 11 de Novembro? Tratando-se de uma data alusiva ao momento da guerra em que mais mortes de portugueses foram infligidas, o 9 de Abril transpõe para o centro da rememoração o culto dos mortos, elemento aglutinador 116 Grande Guerra • Ensaios de consenso e respeito, inibindo-se (à partida) manifestações e contestações da oposição, uma vez que seria facilmente (mesmo por uma estratégia de identificação e vitimização) invocado o desrespeito pelos mortos. Esta justificação não é totalmente satisfatória se for tida em consideração a proximidade do 11 de Novembro ao dia dos fiéis defuntos (2 de Novembro). Porém, este, para além de transferir elementos característicos do culto dos mortos, comportaria a centralidade da Igreja nas cerimónias, retirando protagonismo ao governo republicano e à possibilidade de que estas fossem uma celebração laica e secular onde a celebração litúrgica seria da responsabilidade dos “sacerdotes” da religião civil. Mais ainda, o fim da guerra encontrou no poder Sidónio Pais que, imediatamente, se apropriou da vitória dinamizando e encabeçando os desfiles de celebração e comemoração. Isto inibiu os republicanos de se associar ao 11 de Novembro, temendo incentivar uma regular reminiscência do consulado sidonista, associando-o à vitória portuguesa na Grande Guerra. A Ditadura Militar traria consigo a oficialização do 11 de Novembro, retirando do palco das celebrações os políticos republicanos e dando o protagonismo às Forças Armadas, mas acima de tudo suprime a centralidade de uma data (irremediavelmente) alusiva a uma derrota do exército português. Rutura e continuidade Jornadas como o 11 de Novembro e o 9 de Abril, em Portugal, exprimem uma parte da tradição comemorativa e da memória nacional, estabelecendo uma continuidade com regimes anteriores. Mas são também extraordinariamente novas, pois resultam, já durante a guerra, de elementos de fusão da experiência de guerra total e das experiências locais. O choque memorial da I Guerra em Portugal tem uma estranha forma de vida. 117 Grande Guerra • Ensaios Os resquícios mais evidentes da guerra – sociais e culturais – permanecem profundamente agarrados às tradições, temendo uma rutura e construindo uma memória histórica garante de continuidade na identidade nacional. Novos e velhos grupos políticos, sociais e culturais fazem o seu aparecimento ou reaparecimento neste quadro comemorativo da guerra, como é o caso da Igreja. A forte laicização que caracterizou a República seria agora desvanecida, uma vez que num país de forte tradição católica, seria abusivo pensar-se um processo de instrumentalização da dor e da morte, sem recorrer à transcendente compensação pelas perdas e às soluções da liturgia cristã, oficialmente adaptada pelos formatos temporais e espaciais de enquadramento oficial da representação da guerra. Terminada a guerra, a realidade portuguesa afigurava-se extremamente desfavorável e embrenhada numa profunda dialética entre os divergentes interesses precursores da intervenção na contenda e as dramáticas consequências. Desde a eufórica e imediata celebração da vitória, levada a cabo pela apropriação sidonista, à frágil perpetuação memorial pelas profundas dissidências políticas e sociais, inviabilizou-se a possibilidade de se estabelecer uma memória consensual da participação portuguesa na I Guerra Mundial, embora sem impedir que os republicanos colocassem Portugal no quadro dos formatos comemorativos europeus. Durante o Estado Novo, as comemorações da Grande Guerra gradualmente desaparecem, o que é estranho considerando a forma como a guerra e a sua memória foram apropriadas durante a Ditadura Militar. No ano de 1941, por determinação de Salazar, a data do “9 de Abril” deveria ficar inteiramente esquecida, limitando-se as comemorações à deslocação ao talhão de combatentes nos respetivos cemitérios[iv]. A incapacidade republicana em estimular um reconhecimento na causa intervencionista e, de forma mais controversa, na vitória aliada, precipitou o declínio e a banalização comemorativa, esgotando-se as 118 Grande Guerra • Ensaios possibilidades de um ideológico reforço identitário da I República, enquanto legítima representante do povo português. A Ditadura Militar e o Estado Novo irão, respetivamente, moldar e amputar a apropriação política das representações da guerra. Estas foram perpetuadas, até o limite possível e no seu formato republicano pela Liga dos Combatentes da Grande Guerra, associação que sobreviveu às concentrações do regime corporativo, mas não na sua forma original. Interessava, não propriamente o aniquilamento público do esforço português da Grande Guerra, mas o fim do reconhecimento da vitória na guerra enquanto esforço de uma União Sagrada, de um partido, ou de um regime político específico. Este esvaziamento memorial – a criação de um espaço neutro – é um efeito paradoxal da própria deriva republicana. As políticas da memória da guerra durante a I República determinariam, mais uma vez, que esta não culminaria, linearmente, na brutalização da política. A experiência de guerra e respetiva memória não serviram à ascensão do fascismo, na medida em que se projeta um conjunto de processos rememorativos fúnebres, mais do que vitoriosos, centrados no culto dos mortos, reforçando o seu sacrifício em prol da pátria republicana, mais do que pela nação. Contrastando visivelmente com o que se verificou na maioria dos antigos beligerantes europeus, em Portugal, mais do que uma apropriação da guerra, as ditaduras procuraram negligenciá-la enquanto importante e reutilizável facto da liturgia nacional. A política da memória da I Guerra Mundial em Portugal foi irreversivelmente marcada por uma dimensão trágica e por um – adotado ou imposto – silêncio. Os tempos os lugares de rememoração aglutinaram inconsistências e tensões entre a necessidade dos indivíduos integrarem a incomensurável dimensão escatológica da guerra e a incapacidade do Estado em oferecer uma estrutura consistente que os unisse na partilha de uma memória oficial. Este fracasso contribuiu, de certa forma, para a queda da I República, 119 Grande Guerra • Ensaios inapta na consistente apropriação da experiência da guerra e no correspondente reforço dos alicerces de uma liturgia cívica republicana. * O texto parte do livro Entre a morte o mito a ser publicado em 2015 pela Temas&Debates. Bibliografia [i] Manuel de Oliveira, Notas de um soldado em campanha. Apontamentos factos e impressões da guerra europeia, colhidos nos campos de Batalha de França (Aveiro: Tipografia Nacional, 1919), 138-142; [ii] Gibelli, António. La Grande Guerra degli Italiani. Milano: Sansoni, 1998, 341; [iii] Mosse, George L. Le guerre mondiali dalla tragedia al mito dei caduti. Roma: Laterza, 1990, 3.; [iv] ANTT, AOS, CP 49, Arquivo Pessoal, Abril de 1943. VOLTAR AO ÍNDICE 120 Grande Guerra • Ensaios Portugal na Grande Guerra: memória do passado desafios do futuro Portugal entrou na Grande Guerra num contexto em situação internacional da República era, extremamente, frágil. Ameaçado pela Espanha na Europa e pela Alemanha nas Colónias, Portugal tinha a sua soberania e a integridade do território colonial em risco. A beligerância foi um caminho para o mitigar. Do conflito ficou uma lição válida para as operações de paz do presente: 121 Grande Guerra • Ensaios Portugal não deve partir para intervenções internacionais sem um largo consenso político e sem o apoio da opinião pública. Ensaio de: Nuno Severiano Teixeira, professor Catedrático da Universidade Nova de Lisboa; Visiting Professor na Georgetown University A entrada de Portugal no século XX ficou marcada, por dois acontecimentos matriciais: primeiro, a fundação da República, em 1910, segundo, a entrada de Portugal na Grande Guerra, de 1914-1918. São dois momentos distintos, mas que têm em comum o mesmo significado histórico: a entrada de Portugal no novo século e a sua adaptação às dinâmicas internacionais em desenvolvimento e, particularmente, à dinâmica europeia. No início do século XX, o pensamento estratégico português encarava Portugal como um país de vocação, exclusivamente marítima - atlântica e colonial - e sem interesses estratégicos no continente europeu. Um pensamento que se manteve ao longo do século e permaneceu, inalterado, até à dupla transição, pós autoritária e pós imperial, na segunda metade da década de 80. Como resultado de condicionantes geopolíticas e de movimentos de longa duração histórica, Portugal conheceu, de um ponto de vista do seu lugar no mundo e da sua inserção internacional, uma forte corrente de matriz antieuropeia. Esta matriz, que foi historicamente dominante, teve reflexos numa longa tradição política e diplomática, assim como na formulação do pensamento estratégico e militar. Esta matriz antieuropeia tinha por base duas ou três ideias fundamentais: em primeiro lugar, uma percepção contraditória, e em certos momentos históricos, mesmo, dilemática entre a Europa e o Atlântico; em segundo lugar, e como consequência, considerava que Portugal não tinha interesses estratégicos na Europa, porque a sua vocação era vocação marítima e 122 Grande Guerra • Ensaios Instrução de militares do Corpo de Artilharia Pesada em Inglaterra, 1917 AGENCE ROL / BIBLIOTHÉQUE NATIONALE DE FRANCE nunca continental; e, finalmente, em terceiro lugar, essa vocação marítima traduzia-se em dois vectores, quase exclusivos, na orientação estratégica da inserção internacional do país: o Atlântico e o Império. Mas se não existia interesse político e diplomático, nem tradição militar, na participação portuguesa em teatros europeus, é legítima a pergunta: por que razão entrou Portugal na Primeira Guerra e, em particular, na guerra europeia? Nunca o compreenderemos se não tivermos em consideração o contexto político e internacional em que se inseria a jovem República Portuguesa. A situação internacional da República era, extremamente, frágil. Frágil na Europa e frágil nas Colónias. No plano europeu, entre Outubro de 1910, quando foi instaurada a República, e Setembro de 1911, Portugal teve um regime republicano 123 Grande Guerra • Ensaios Chegada de militares do CEP a Brest, França, no início de 1917 AGENCE ROL / BIBLIOTHÉQUE NATIONALE DE FRANCE que não era reconhecido, internacionalmente, pelas grandes potências europeias. Nem “de facto” nem “de jure”. Ou seja, durante quase um ano, entre Outubro de 1910 e Setembro de 1911, Portugal não foi reconhecido, formalmente, do ponto de vista internacional. A partir de Setembro de 1911, o regime republicano português passa a ser reconhecido, formalmente, mas não é aceite, política e diplomaticamente, pelas outras potências europeias. Não era aceite, como se dizia na época, “no concerto das nações”. Portugal atravessou, então, um longo período de marginalidade internacional que afectou, penosamente, a credibilidade da República portuguesa, que, ao mesmo tempo se viu ameaçada, por duas vezes, na Península Ibérica, 124 Grande Guerra • Ensaios Regresso a Lisboa das tropas do Corpo Expedicionário Português que combateram na Flandres, em Janeiro de 1919 ATRIBUÍDO A JOSHUA BENOLIEL / ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA por incursões monárquicas, vindas de Espanha e com a tolerância da monarquia espanhola, em 1911 e 1912. Não era mais fácil a situação no plano colonial. Também em África, por duas vezes, em 1898 e 1912, a Inglaterra e a Alemanha tinham concluído acordos secretos sobre a partilha das colónias portuguesas. Por razões de ordem política e diplomática e finalmente, pelo desencadear da própria guerra, em 1914, nunca se concretizaram. Mas o seu espectro nunca se dissipou e havia, por isso mesmo, em Portugal, a consciência plena do risco que corria, a soberania e a integridade do território colonial português. Mas também, no plano interno, a situação não era fácil. No que toca à estabilidade governativa e no que toca à própria legitimidade política 125 Grande Guerra • Ensaios do regime. Desde a implantação da República em 1910, o país vivia um regime político marcado pela instabilidade democrática. Basta dizer que entre 1910 e 1914, a estabilidade média dos Governos era da ordem do ano e meio. E que nos anos da guerra, e precisamente, por causa da guerra, entre 1914-1916, a média da estabilidade governativa se centrava na ordem dos seis meses. Sucede que à questão da instabilidade acrescia a questão da legitimidade. A República tinha sido instaurada pela Revolução. Tinha legitimidade revolucionária, mas não tinha conquistado plena legitimidade nacional. Nem todos se reviam no regime e a radicalização progressiva da República deixou nas suas margens, à esquerda e à direita, largas franjas da sociedade portuguesa. Nada disto, como é óbvio, fortalecia o regime, ou consolidava a República. Ora, é neste contexto, de extrema fragilidade, que o governo republicano decide a intervenção de Portugal na Grande Guerra. Fragilidade política do regime, no plano interno e fragilidade internacional do país, no plano externo: ameaçado pela Alemanha, nas colónias; ameaçado pela Espanha, na Península; e consciente da transigência de Inglaterra, a sua fiel aliada e garante da sua soberania, em relação à Alemanha e em relação à Espanha. Situação mais grave e crise mais profunda é difícil de imaginar: não estava só em causa a sobrevivência do regime; estava em causa, mais do que isso, a soberania do Estado. A decisão da intervenção de Portugal na guerra europeia faz-se, pois, segundo uma estratégia intervencionista, ou seja, uma estratégia diplomática que forçou, deliberadamente, a entrada em guerra. Uma estratégia que, aproveitando uma conjuntura internacional favorável, obrigou a Inglaterra, contra a sua própria vontade e quiçá contra o seu próprio interesse, a aceitar a entrada de Portugal na Grande Guerra. Como é que tal foi possível? Em 1915 tinha começado a guerra submarina que afectara, pesadamente, a frota britânica. 126 Grande Guerra • Ensaios Soldados portugueses na Flandres, 1917 AGENCE ROL / BIBLIOTHÉQUE NATIONALE DE FRANCE Consequentemente, a Inglaterra começou a sofrer uma enorme carência de tonelagem para efeitos, quer logísticos, quer operacionais. Quando solicita ao Governo português que requisite os navios alemães surtos em portos portugueses, a diplomacia portuguesa aproveita a oportunidade para dizer que “sim, mas…”, isto é, Portugal requisitaria os navios, mas sob a condição de que tal se fizesse ao abrigo da Aliança Inglesa. De acordo com a estratégia intervencionista do governo português, ao entrar em guerra, ao lado dos Aliados e ao abrigo da Aliança inglesa, Portugal conseguiria, num só gesto, reforçar a aliança luso-britânica, neutralizar as pretensões alemãs e espanholas e alcançar os seus objectivos, tanto no plano colonial e como no plano europeu. No plano colonial, não só garantia a integridade do Império, sob a protecção inglesa, como lograva, ao mesmo tempo, comprometer a possibilidade de 127 Grande Guerra • Ensaios Militares do CEP em Brest, França, no início de 1917 AGENCE ROL / BIBLIOTHÉQUE NATIONALE DE FRANCE a Inglaterra vir jogar a sorte das colónias portuguesas na mesa futura das negociações de paz. No plano europeu, diversificava, diplomaticamente, a posição estratégica de um Portugal beligerante, por oposição a uma Espanha neutra. E julgava, com isso, conquistar o tão almejado o reconhecimento no “Concerto das Nações”. Conseguiria, finalmente, um desígnio inconfessado, de natureza política interna: a consolidação e a legitimação nacional do regime. Na Conferência da Paz, em Versalhes, Portugal conseguiu, por inteiro, o seu objectivo colonial: o Império ficou intacto. Mas falhou, pelo contrário, também por inteiro, o seu objectivo europeu: o reconhecimento no Concerto das Nações, significava na política internacional do pós-guerra um lugar no Conselho Executivo da Liga das Nações que Portugal beligerante jamais conseguiu, quando, ao contrário, o conseguiu a Espanha neutra. Foi a grande 128 Grande Guerra • Ensaios derrota de Portugal. Mas houve pior, no plano interno, não só o regime não se consolidou, como não sobreviveu às consequências devastadoras da guerra: à crise económica e financeira e às suas consequências sociais; à desagregação político partidária e à deslegitimação das instituições democráticas; à desmoralização da sociedade e ao seu divórcio do regime. Acabaria por cair, pela força das armas, às mãos de um golpe militar que abriu caminho a 48 anos de autoritarismo. Mas essa é uma outra história. Na entrada de Portugal em guerra, na sociedade, nas forças políticas e na opinião pública portuguesa foi consensual a intervenção militar em África. Porque estava em causa o território nacional e no imaginário político da época, as colónias eram parte integrante do território nacional. Não foi consensual – pelo contrário e abriu clivagens profundas na sociedade portuguesa – a participação militar no teatro europeu. Estas clivagens podem sintetizar-se em três grandes fracturas: - A primeira, no seio do regime republicano, entre os partidos republicanos moderados, não intervencionistas, e o partido mais radical do republicanismo, intervencionista. - A segunda linha de fractura, fora do sistema político, à direita do regime republicano, com os monárquicos divididos entre aliadófilos e germanófilos. - E, finalmente, a terceira linha de fractura, também ela fora do sistema político mas à esquerda do regime republicano, com o movimento operário, o movimento socialista e o movimento anarquista, dividido entre, guerristas e pacifistas. A estas clivagens na sociedade, acrescem as clivagens no interior do sistema político. E durante os anos da guerra, a República conheceu vários Governos. Todos eles com posições diferentes perante a Guerra. Mais, os governos caem por causa da guerra e chegam ao poder para mudar a política de guerra. Todos com diferentes objectivos. Todos com diferentes estratégias. Sem que, por isso mesmo, Portugal pudesse ter uma estratégia nacional. 129 Grande Guerra • Ensaios Ora, é este o contexto em que Portugal entra em guerra, em Maio de 1916, em que as tropas portuguesas chegam às trincheiras da Flandres, em Janeiro de 1917 e em que participa na guerra até ao armistício em Novembro de 1918. No imaginário político de então, era difícil perceber que, nas trincheiras da Flandres, se jogava a defesa da Pátria. Esta não era uma missão tradicional de defesa do território, era, em boa verdade, avant la lettre, uma missão de apoio à política externa do Estado, em tudo, percursora do tipo de missões militares internacionais que são nos nossos dias, as chamadas missões de paz. A presença de Portugal na Grande Guerra é a marca da intervenção militar portuguesa no teatro europeu no princípio do século XX, teatro a que só regressaria, no fim do século numa missão com a mesma natureza de apoio à política externa, agora, sob a égide das Nações Unidas e no quadro da operação de paz nos Balcãs. Certamente, a História não é mestra da vida. Mas talvez possa ajudar a evitar, hoje, os erros de ontem. Nesse sentido, o conhecimento que se produz na academia é um “bem público” e deve ser posto ao serviço da sociedade. Ora, olhando para o passado, a pensar no futuro, talvez o que os historiadores escreveram sobre a experiência portuguesa em 1914/1918 nos possa ajudar, pelo menos, a reflectir sobre os erros que cometemos na Primeira Guerra que talvez não devêssemos cometer nas Operações de Paz. Em primeiro lugar, não partir para uma intervenção internacional desta natureza sem um largo consenso político e sem o apoio da opinião pública. Em segundo lugar, não partir para uma intervenção internacional desta dimensão sem o treino completo e o equipamento militar de acordo com os standards internacionais das Forças Armadas ao lado das quais as forças portuguesas vão operar. Em terceiro lugar, manter constante a posição política do país e estreita a relação entre os responsáveis políticos e as chefias-militares, no apoio às forças no terreno. Isto é, assegurar uma estratégia nacional. 130 Grande Guerra • Ensaios E, finalmente, depois do regresso, não esquecer o reconhecimento, material e simbólico, aos combatentes e, em particular, à memória dos que caíram. Os contextos são diferentes: ontem, tratava-se de campanhas de guerra. De uma guerra entre nações. Hoje, tratase de operações de paz. Muitas vezes, para pôr fim à guerra entre nações. Mas, ontem como hoje, do que se trata é do apoio à política externa e do lugar de Portugal no mundo. VOLTAR AO ÍNDICE 131 Grande Guerra • Ensaios Lições económicas da Primeira Guerra Mundial O governo da República teve de financiar a aventura da guerra através da emissão monetária e de dívida. O aumento da circulação monetária traduziu-se em níveis de inflação dos mais elevados da Europa, numa forte desvalorização cambial, e no agravamento do desequilíbrio externo do país. Paradoxalmente, o período a seguir ao fim da primeira Guerra Mundial, que ocorreu num contexto de proteccionismo generalizado, foi palco de uma transformação de certo modo excepcional da economia portuguesa. Ensaio de: Pedro Lains, Investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa Preparativos para o embarque das tropas que vão combater na Primeira Guerra Mundial, Rua Augusta, Lisboa, 1916 JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA 132 Grande Guerra • Ensaios O século que começou com a paz de Viena e acabou com a primeira Guerra Mundial foi marcado pela industrialização do continente europeu, pautada por progressos em todas as frentes. A guerra alterou as regras do jogo económico internacional, deixando marcas que trazem lições até aos dias de hoje. Dado o mote da primeira revolução industrial, os países ou regiões mais próximos da Grã-Bretanha seguiram um caminho de imitação ou substituição dos elementos que estruturam essa grande transformação económica. Por trás desse impulso industrial esteve a possibilidade que a paz de 1815 trouxe ao crescimento das trocas intra-europeias de produtos, serviços, capitais e, então em menor grau, pessoas, pautado pelo padrãoouro, o regime de estabilidade cambial mais conseguido da história. O facto de a Europa ser cada vez mais o continente de monarquias ou repúblicas constitucionais, regimes em que os cidadãos têm alguma voz, embora muitas vezes imperfeita, foi também de grande importância ao contribuir para o clima de abertura de fronteiras. Entre os elementos do crescimento oitocentista contam-se, não necessariamente por esta ordem, economias à época já relativamente avançadas, elevados níveis de capital físico e humano, instituições O período a seguir financeiras experientes, recursos naturais de exploração competitiva, ao fim da primeira sectores agrícolas capitalizados e Guerra Mundial virados para os mercados locais, foi palco de uma regionais ou internacionais, tradições transformação manufactureiras seculares e redes de estradas e canais a ligar cidades, de certo modo campos, minas e portos. Este padrão excepcional da favorável à industrialização era comum economia portuguesa nas regiões do noroeste europeu, do em muitas frentes.” norte de França à Bélgica, do ocidente 133 Grande Guerra • Ensaios da futura Alemanha às cidades do norte de Itália e foi potenciado pelas possibilidades abertas pelo desenvolvimento de novas tecnologias, formas de organização do trabalho e financiamento. Houve todavia regiões da Europa que, apesar de também terem conhecido algum crescimento económico e desenvolvimento institucional e abertura ao exterior, não conseguiram acompanhar de perto os avanços nas partes que se destacaram do continente europeu. Portugal, como outros países das periferias mais distantes a Sul e a Leste, foi um desses casos de relativo atraso no progresso geral. A industrialização portuguesa oitocentista não trouxe convergência económica. A primeira Guerra Mundial teve consequências humanas trágicas, que precisam de ser recordadas, e interrompeu gravemente o desenvolvimento da economia internacional. Todavia, uma vez terminado o conflito, em poucos anos as principais economias beligerantes puseram-se novamente de pé, o que deve ser compreendido à luz dos desenvolvimentos precedentes que tinham tornado a Europa no continente mais evoluído do Mundo. Terminada a guerra, os agricultores e os industriais franceses, suecos, catalães, italianos, alemães ou checoslovacos voltaram-se para a economia da paz, apesar de todas as dificuldades. Em meados da década de 1920 já se havia atingido, um 134 Grande Guerra • Ensaios pouco por todo o lado, os níveis de produção – e de produtividade – existentes nas vésperas da guerra. Mas a recuperação económica das nações não foi acompanhada pela recuperação da economia internacional, o que acabou por revelar problemas insanáveis. A disfunção registada prendese directamente com o impacto da guerra nos equilíbrios financeiros e económicos internacionais, e pela incapacidade dos governos nacionais de levarem a cabo políticas de coordenação internacional. Casa Old England, Lisboa JOSHUA BENOLIEL/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA Esses efeitos traduziramse, em primeiro lugar, em níveis elevados de inflação, decorrentes da necessidade que os estados tiveram de financiar as despesas de guerra com recurso aos défices públicos e à correspondente emissão monetária e de dívida pública, interna e externa. A inflação não subiu da mesma maneira em todo o lado, já que a forma e o esforço de financiamento da guerra variaram de país para país, o que levou a disparidades elevadas na evolução do valor das moedas nacionais. Por isso, tornou-se virtualmente impossível restabelecer um novo regime de paridades cambiais internacionais que replicasse o padrão-ouro do século XIX. 135 Grande Guerra • Ensaios Sem finanças internacionais equilibradas, os estados recorram ao proteccionismo alfandegário e de outros tipos, limitando severamente as trocas internacionais de produtos, capitais e, ulteriormente, de pessoas. O mundo voltou a ficar compartido, só que desta vez as barreiras às trocas internacionais separavam economias evoluídas com fortes interdependências que assim foram interrompidas. A economia portuguesa acompanhou os passos do resto da Europa, na medida da distância a que estava do coração económico do continente. O governo da primeira República entrou na guerra, de forma talvez inesperada, em 1916, tendo sido igualmente obrigado a financiar a aventura através de emissão monetária e de dívida, esta em grande parte contraída junto do aliado britânico. O aumento da circulação monetária traduziu-se em níveis de inflação dos mais elevados da Europa de então, e implicaram uma forte desvalorização cambial, e o agravamento do desequilíbrio externo do país. Os problemas financeiros acabariam por levar a uma grande instabilidade política e eventualmente à mudança de regime, alguns anos depois de terminada a guerra. Mas a instabilidade financeira e política escondia algo de positivo. Com efeito, o período a seguir ao fim da primeira Guerra Mundial foi palco Sem finanças de uma transformação de certo modo excepcional da economia portuguesa internacionais em muitas frentes, transformação equilibradas, os que ocorreu num contexto de Estados recorreram proteccionismo generalizado, o que ao proteccionismo, de certa forma a torna paradoxal. Esse crescimento, detectado apenas limitando as trocas recentemente através de estimativas de produtos, capitais da evolução da economia, ainda não e, ulteriormente, foi suficientemente compreendido e de pessoas integrado nas interpretações gerais 136 Grande Guerra • Ensaios Militares do CEP em Brest, França, no início de 1917 AGENCE ROL / BIBLIOTHÉQUE NATIONALE DE FRANCE sobre o período de entre as guerras, que ainda são dominadas pela análise dos efeitos do permanente estado de crise financeira e política que o país então viveu. As crises financeiras e políticas são evidentes mas não dominaram a situação económica do país. Efectivamente, o PIB per capita nacional cresceu a um ritmo médio de cerca de 1,5% ao ano, em muito superior ao registado ao longo das melhores décadas do século XIX, e pela primeira vez em linha com o que aconteceu contemporaneamente em outros países europeus. Ao mesmo tempo, a produção industrial expandiu de forma generalizada, tendo surgido sectores tecnologicamente mais avançados, à escala do país atrasado que Portugal era, tais como os adubos químicos, os cimentos, a metalurgia ou algumas indústrias alimentares. A agricultura também cresceu razoavelmente, sofrendo transformações estruturais 137 Grande Guerra • Ensaios na produção, com o aumento do peso de culturas mais produtivas. E o sector dos serviços, dos transportes ao comércio, dos bancos aos serviços de educação e assistência na doença, acompanharam de perto o desenvolvimento das demais actividades. O único sector, considerado de forma generalizada, que não conheceu estes sinais positivos foi o sector externo, incluindo as relações económicas com as colónias. E aí reside, precisamente, a fonte do paradoxo do crescimento económico português a seguir à primeira Guerra Mundial. Apesar dos avanços da economia portuguesa durante o período em causa, o rol de problemas manteve-se enorme no contexto europeu, já que duas décadas não permitiram ultrapassar o fosso de desenvolvimento que separava o país dos seus principais parceiros ocidentais, incluindo naturalmente a Espanha ou a Itália. Todavia, esses lentos progressos preparam de forma inequívoca o forte crescimento que se viria a registar a seguir à segunda Guerra Mundial, durante a idade de ouro do crescimento económico europeu e mundial, entre 1950 e 1973. O desenvolvimento da economia portuguesa pouco se distingue do que aconteceu em muitos países da Europa, onde o período de entre as guerras também foi de crescimento e também criou bases de crescimento futuro. Assim, o paradoxo português tem de ser compreendido no contexto europeu e de certa forma a sua explicação poderá ajudar a compreender o crescimento com fronteiras fechadas, crises financeiras e cambiais, políticas instáveis e graves manifestações de repressão política. Todavia, dado que o período foi relativamente curto, pois viria a ser interrompido pelo novo conflito internacional, de proporções ainda maiores, as lições que dele se retiram são necessariamente breves. Mesmo assim, uma das principais conclusões será a de que, afinal, a abertura económica pode não ser determinante do progresso económico. A abertura será provavelmente mais importante para o entendimento e a paz entre as nações do que para a prosperidade de cada nação, tomada isoladamente. O século XIX mostrou crescimento sustentado ao longo 138 Grande Guerra • Ensaios de décadas e dependente da liberdade económica e política a nível internacional. A guerra interrompeu esses desenvolvimentos, dando lugar a um período de crescimento de fronteiras fechadas e substancialmente mais curto. Se alguma lição há a tirar desta comparação, será que a abertura de fronteiras é mais importante para a estabilidade e a paz internacionais do que para o crescimento económico de cada nação. Esta lição não foi ainda cabalmente compreendida, a nível internacional. Mas devemos seguramente prestar-lhe a devida atenção num momento como o actual, em que alastram em alguns países políticas de austeridade de índole marcadamente isolacionista. VOLTAR AO ÍNDICE 139 Grande Guerra • Ensaios A Primeira Guerra Mundial e a Queda da República. Uma relação Complexa O fim da guerra esteve no centro do projecto autoritário de Sidónio Pais, mas as sequelas do conflito estiveram longe de ser essenciais no percurso político da direita e da extremadireita que culminaram no golpe do 28 de Maio. Nem o apelo aos militares, constante na vida política da República no pósguerra por parte da oposição ao Partido Democrático, nem as críticas ferozes aos erros das campanhas militares da República impediram que, nos anos 20, os rumos da política se traçassem sobre uma memória já longínqua da Grande Guerra. Ensaio de: António Costa Pinto, investigador no ICS-ULisboa 140 Grande Guerra • Ensaios 1 Quase tudo foi dito sobre a Primeira Guerra Mundial entre os especialistas, mas a memória contemporânea desta é escassa em Portugal. Para dizer a verdade, se fossem alvo de um inquérito, poucos portugueses saberiam que Portugal participou nesta guerra apoteótica da modernidade, que interrompeu aquilo a que muitos cientistas sociais chamaram a primeira vaga da democratizações, afogando essa gloriosa etapa de uma globalização optimista do capitalismo liberal e do hoje tão atormentado capital financeiro. O Portugal republicano e nacionalista conseguiu participar nesta guerra (mais europeia do que mundial, apesar do nome), com grande esforço e à revelia dos sentimentos da sociedade portuguesa, no que aliás não foi singular. Portugal não só participou nela em África e na frente europeia como a terminou com um enorme número de mortos e feridos, bem maior dos da guerra de que todos se lembram. Pequenos monumentos de homenagem aos mortos, de Naulila a La Lys, também não faltaram, mas a longa duração do Salazarismo conseguiu apagar esta “guerra republicana” de que não gostava. Os factores que levaram a elite republicana a forçar a participação militar na Guerra mobilizaram os historiadores portugueses e deram origem a várias explicações, mais complementares, do que alternativas. Reconheça-se que o debate era importante. O que levou um País pequeno, periférico e pobre como Portugal, sem que o tenham chamado, a “querer” entrar a sério na Guerra deste 1914? A defesa do património colonial africano, sempre periclitante e ameaçado, era um factor óbvio, mas para Afonso Costa e para o Partido Democrático, o partido dominante da jovem Primeira República, outras motivações também estiveram presentes, mas a “União Sagrada” cedo se esboroou e os partidos republicanos conservadores tiraram o tapete ao ensaio de mobilização patriótica do partido dominante. Um ano e meio depois de o Governo mandar apresar os barcos alemães no Tejo já a elite republicana era apeada do poder por um bem sucedido golpe de estado conservador. 141 Grande Guerra • Ensaios A complexa relação entre a participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial e a emergência do autoritarismo moderno não pode ser reduzida àquela intuição sempre dita e redita sobre a Guerra como causa da queda da Iª República. No caso português o mais interessante em comparação foi vitória quase imediata de um golpe de Estado que tenta institucionalizar o que poderia ter sido uma bem-sucedida experiência autoritária, mas que vai sucumbir por outras clivagens que pouco têm a ver com ela. 2 Sidónio Pais, um militar e professor universitário reconvertido à vida política, membro de um partido republicano conservador, deputado e ex-embaixador em Berlim, dirigiu o golpe de Dezembro de 1917, com um programa relativamente simples: retirar Portugal da guerra. A Ditadura de Sidónio seria derrubada um ano depois, quando o assassínio do seu chefe colocou o País à beira da guerra civil, com uma revolta monárquica no Norte. Após algumas hesitações programáticas, Sidónio enveredou por um presidencialismo populista. Ao mesmo tempo que limitou a actividade dos partidos republicanos, alterou a lei eleitoral proclamando o sufrágio universal e fez-se plebiscitar presidente. Inspirado pelos integralistas, apresentou um esboço de representação corporativa, tentou agregar alguns partidos conservadores num partido único, permitindo apenas a organização autónoma dos monárquicos e do pequeno partido católico. Após algumas hesitações iniciais perante o novo regime, dada a sua pretensão de afastar Portugal da guerra, os sindicatos foram violentamente reprimidos enveredando por uma tentativa de greve geral. O discurso político de Sidónio, em plena crise de abastecimentos devida à guerra, foi o do antiplutocratismo, da luta contra as oligarquias partidárias, e o de um nacionalismo messiânico. Sidónio conseguiu unir conjunturalmente monárquicos e republicamos conservadores, ao mesmo tempo que utilizou os seus recursos carismáticos de forma eficaz, rodeando-se de um grupo de jovens oficiais do exército que 142 Grande Guerra • Ensaios Revolução de Sidónio Pais, 1917 ALBERTO CARLOS LIMA/ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA o acompanhavam nas manifestações. Após o seu assassínio por um sindicalista rural em finais de 1918, declarou-se uma revolta monárquica no Norte, os republicanos mobilizaram o universo urbano e várias unidades militares declararam-se neutrais, permitindo a vitória dos democráticos e o regresso ao regime constitucional. O breve consulado de Sidónio, com a sua presença carismática, com a sua mobilização da província, com o seu discurso populista, representou a primeira tentativa conseguida de mobilização popular da direita portuguesa, desde a revolução de 1910. Mas a ditadura de Sidónio, que poderia ter constituído o cimento sociológico para um fascismo mobilizador nos anos 20, foi abalada pela reabertura da clivagem monarquia-república, com a instauração da chamada Monarquia do Norte, abrindo uma chaga fatal na unidade de direita antidemocrática. 143 Grande Guerra • Ensaios O Sidonismo constituiu no pós-guerra uma referência para o fascismo português, sobretudo para os jovens oficiais, intelectuais e estudantes republicanos de direita, que criaram diversos partidos onde o exemplo do partido de Mussolini era crescentemente referido, mas que foram sempre marginais. O outro pólo, mais importante veio do Integralismo Lusitano, este movimento de intelectuais e activistas monárquicos tradicionalistas que foram os pais ideológicos de quase tudo à direita nos primórdios do Século XX. As primeiras tentativas golpistas dos anos 20 foram acompanhadas por um segmento civil onde pontificavam intelectuais nacionalistas. Muitos destes intelectuais eram activos participantes no movimento modernista português, caso de António Ferro, que As primeiras mais tarde moderou os seus ímpetos tentativas golpistas fascistas como chefe da propaganda do dos anos 20 foram regime de Salazar. Em 1923, surgiram as primeiras acompanhadas por publicações que se reivindicavam um segmento civil «do fascismo português», e criou-se o onde pontificavam primeiro partido fascista, o Nacionalismo intelectuais Lusitano, onde pontificava Castro Osório, filho de uma conhecida figura nacionalistas. republicana, Ana de Castro Osório. Muitos destes Recém-licenciado em Direito, estreou-se intelectuais eram no campo literário com algumas peças activos participantes de teatro de cariz ultranacionalista. António de Cértima, escritor prolífero e no movimento colaborador regular de A Ditadura, seria modernista o grande explorador do tema da guerra português, caso e do soldado traído pelos governos de de António Ferro Lisboa. Este apelo ao ex-combatente 144 Grande Guerra • Ensaios associava-se também ao apelo à juventude, à nova geração «que tem ideias para melhorar o Portugal moralmente doente» e que, como geração do «aprés guerre, é uma geração de sacrifício». Mas os Republicanos não deixaram fugir para estas caricaturas do fascismo lusitano a memória da Guerra que não foi deles. 3 Parte integrante da vaga autoritária dos anos 20 na Europa, o golpe de Estado de 28 de Maio de 1926 não foi apenas uma intervenção militar de tipo pretoriano na vida política. Não foi a hierarquia militar estabelecida que decidiu derrubar mais um governo, mas uma coligação heterogénea de militares, com o apoio decidido de diversos partidos e grupos de pressão. O liberalismo republicano foi derrubado por um exército dividido e politizado, sofrendo apelos golpistas de fracções organizadas no seu interior, que iam desde os republicanos conservadores, aos católicos-sociais e à extrema-direita integralista e correlativos apêndices fascistas, particularmente influentes junto dos jovens oficiais. O apelo aos militares foi uma constante na vida política da República no pós-guerra, por parte da oposição ao partido dominante, o Partido Democrático. Quase por definição, o sistema político republicano não teve uma “oposição leal”, para usar a terminologia de um politólogo recentemente falecido, Juan Linz, já que era patente para os actores políticos que a possibilidade de chegada ao poder por via eleitoral era nula. Desde cedo que os partidos republicanos conservadores, pequenos agrupamentos de notáveis ligados a grupos de interesses, se tinham habituado a recorrer a meios extraparlamentares para se aproximarem do poder. No pós-guerra existiram alguns governos de coligação ou mesmo conservadores, mas sempre ligados a situações de crise. A radicalização dos pequenos partidos republicanos conservadores (Nacionalistas, Reconstituintes, União Liberal Republicana, etc.) foi um factor fundamental na queda da República, levando-os a “apelar aos militares”, 145 Grande Guerra • Ensaios General Gomes da Costa e a oficialidade saindo da tenda de campanha onde foi servida uma taça de champagne, para comemorar a vitória do golpe militar de 28 de Maio, Junho de 1926 FERREIRA DA CUNHA/ ARQUIVO MUNICIPAL DE LISBOA quando, na sequência das eleições de 1925, o Partido Democrático as ganhou mais uma vez. Neste espectro de pequenos partidos de quadros, emergiram algumas figuras carismáticas que juntaram a sua voz à pequena, aguerrida e elitista extrema-direita, como a Cruzada Nuno Álvares, no apelo à intervenção militar e, mais do que isso, à constituição de grupos organizados no interior das Forças Armadas. Cunha Leal foi talvez, entre os dirigentes republicanos, o mais importante. O papel de grupos como os integralistas foi importante. Em termos de conspiração e propaganda da opção ditatorial seguramente mais do que o Centro Católico, ligado à hierarquia da Igreja e mais prudente. O movimento conducente ao 28 de Maio esboça-se como um golpe militar que cooptou uma parte da elite política do regime liberal (que, tal como muitos dos 146 Grande Guerra • Ensaios militares, tinha como objectivo expresso o futuro restabelecimento de uma ordem constitucional reformada), integrando também a “oposição desleal”, e que excluiu do poder o partido dominante. O produto foi uma ditadura militar que afastou rapidamente uma parte da componente republicana, em golpes posteriores, e que viria a ser incapaz de se institucionalizar. Portugal teve tudo o que os clássicos apontaram como as “origens” do fascismo: modernismo e futurismo, nacionalismo, traumas da primeira guerra, ofensiva operária, anticomunismo, jovens militares politizados pela extrema-direita, o fascismo avant la lettre de Sidónio Pais, massificação da política, crise de legitimidade do liberalismo e, mesmo, fascistas… Mas aqui a coligação de forças políticas que apoiaram este derrube caracterizou-se, desde o seu início, pela predominância dos partidos conservadores e de direita radical, sendo o fascismo, agora entendido como movimento, um parceiro fragmentado e menor. Portugal chegou ao turbilhão desencadeado pela Grande Guerra sem alguns dos factores perturbadores, determinantes em outros Países Europeus. Tinha resolvido, no fundamental, a “questão nacional”: “Estado” e “Nação” andavam de boas relações e coincidiam com significativa homogeneidade cultural; não conhecia minorias nacionais ou A participação étnico-culturais no seu interior; não tinha reivindicações territoriais a portuguesa na I Guerra não provocou fazer no espaço europeu; encontravase na esfera de influência britânica danos na estrutura que garantia o seu vasto património produtiva e social colonial; chegou à “era das massas” sem alguns dos temas mobilizadores do comparáveis aos radicalismo geralmente associados aos sofridos pelos movimentos fascistas. Acresce ainda que contendores no esta “massificação da política” deve ser centro da Europa moderada no caso português. 147 Grande Guerra • Ensaios Por outro lado a participação portuguesa na I Guerra não provocou danos na estrutura produtiva e social, comparáveis aos sofridos pelos contentores no centro da Europa. Não favoreceu também as condições para a emergência de grupos susceptíveis de constituir uma primeira base para movimentos fascistas, alargando o núcleo original de intelectuais que lhe deram origem. A clivagem da secularização foi talvez a mais importante das abertas pela Iª República. Desde os anos 10 que um pequeno núcleo de católicos se organizou em torno de um programa político que unia a restauração dos direitos da Igreja com uma alternativa autoritária ao liberalismo. Mesmo em termos culturais, Portugal foi um claro exemplo de como existe pouco espaço para a emergência de uma intelligentsia fascista e a Igreja e o centro católico constituíram um competidor poderoso à fascização das elites universitárias e intelectuais, ocupando um espaço político determinante na reacção antidemocrática. Outra clivagem importante foi a do regime. O restauracionismo monárquico continuou a inibir, quer ideologicamente, via integralismo, quer no campo político, ao destruir a mobilização populista da ditadura de Sidónio Pais, a unificação política da direita antidemocrática. O IL protagonizou as bases ideológicas para um fascismo português no pósguerra mas, preso pelo seu restauracionismo, limitou as potencialidades de mobilização do Sidonismo. Foi também a questão do regime que fracturou o entendimento entre integralistas e católicos sociais, ambos defensores de um corporativismo autoritário como alternativa ao liberalismo. No meio disto a memória da Guerra, mesmo ali tão perto, já andava longe. VOLTAR AO ÍNDICE 148 Grande Guerra • Ensaios Guerra e revolução na Rússia de 1917 A impreparação do exército russo impôs-lhe pesadas derrotas na guerra, o que, com o agravamento das condições de vida, ditou o surto insurrecional que afastou os Romanov. O novo regime, porém, dividir-se-ia entre a continuidade da guerra e a celebração da paz. No final, a exigência do fim do conflito imposta pelos bolcheviques triunfou com a revolução de Outubro. O armistício com a Alemanha seria assinado em Dezembro de 1917, mas o tratado teria de esperar por Fevereiro. A Rússia conquistou a paz à custa de pesadas cedências territoriais. Ensaio de: Fernando Rosas Revolucionários em Petrogrado CORBIS 149 Grande Guerra • Ensaios F oram de curta duração a euforia nacionalista e o ardor fanático com que a Rússia czarista se lançou na Grande Guerra, alinhada com as potências da Entente contra os impérios centrais, soprada pelo consenso da “união sagrada” em torno da “defesa da pátria”. Ao qual não faltou o apoio dos liberais, dos mencheviques (a ala direita do movimento social-democrata russo) e do partido camponês, herdeiro do populismo russo, que dava pelo nome de socialista revolucionário (SR). Apesar de alguns ilusórios sucessos iniciais, a falta de preparação, a brutal prepotência da oficialidade, o défice de treino e municiamento, a incapacidade de poder armar um imenso exército de 16 milhões de soldados (a larga maioria camponeses analfabetos) “dirigidos por uma nobreza cuja arrogância só era equivalente à incompetência”, tudo rapidamente degenerou em desastre. “Desde as primeiras batalhas na ofensiva de Tannenberg, a primeira fila entrou em combate com espingardas e botas, a segunda com espingardas e sem botas e a terceira sem botas nem espingardas” [1 - Ver notas em final de texto]. A tática das “vagas humanas” fez disparar as baixas que, em 1917, atingiam os 4 milhões de soldados. Faltavam armas adequadas, munições, transportes, oficialidade sintonizada com a guerra moderna, cuidados decentes para os feridos, logística eficaz, respeito pelos soldados. A revolução de Fevereiro de 1917 No outono de 1916 começaram as deserções em larga escala. Para a imensa massa de soldados camponeses a guerra transformara-se numa terrível agonia sem sentido e os seus mandantes, desde logo o czar, o czarismo, a oficialidade aristocrática (muitos deles poderosos terratenentes), em inimigos a abater. A situação militar era desesperada: a tropa russa só não fora levada de roldão porque a resistência francesa na frente ocidental impedia o reforço alemão a leste, e a entrada da Itália no conflito, em 1915, agarrava parte das forças austríacas nos Alpes. 150 Grande Guerra • Ensaios Rendição de tropas russas aos alemães CORBIS Mas, nesse ano de 1916, os territórios ocidentais do império czarista economicamente mais relevantes tinham já sido, quase todos, ocupados pelos alemães na sequência de pesadas derrotas militares. A elas juntava-se o descontentamento generalizado nos centros urbanos e no mundo rural contra os dramáticos efeitos económico-sociais do conflito. A aguda escassez de géneros para os trabalhadores e mesmo para as camadas inferiores das classes médias, a inflação sem controlo, a especulação, a incúria do governo, os escândalos e a decadência da corte czarista alimentavam a revolta. O redespertar da agitação grevista em 1916 e as manifestações operárias de Janeiro de 1917 nas principais cidades russas (em Petrogrado parte dos soldados fazem causa comum com os manifestantes) prenunciam a tempestade. A 18 de Fevereiro [2], em Petrogrado, a gigantesca metalúrgica Putilov entra em greve. Quatro dias depois aderem os operários da maioria das grandes empresas. E a 23 de Fevereiro, assinalando o dia internacional da mulher, as operárias têxteis descem à rua contra a fome, a guerra e o czarismo. Desencadeiase então a greve geral política na cidade, desdobrada em manifestações 151 Grande Guerra • Ensaios e confrontos com a polícia que a 26 de Fevereiro, com o armamento dos operários, se transformam em tentativa insurrecional. Parte da tropa chamada a reprimi-la abre fogo sobre a polícia a cavalo. A 27 de Fevereiro há já mais de 60 000 soldados revoltosos ao lado dos trabalhadores e isso decide a sorte da autocracia czarista: os sublevados prendem os ministros e generais czaristas e libertam os presos políticos. A notícia da vitória da revolução em Petrogrado leva, nas outras cidades e na frente, à deposição das autoridades czaristas. Cinco dias consecutivos de luta nas ruas de Petrogrado – de 23 a 27 de Fevereiro de 1917 – derrubavam a dinastia dos Romanov: a 2 de Março o czar abdica a favor do grão-duque Miguel que recusa a regência do trono. Atabalhoada e apressadamente a Duma[3] forma um governo provisório presidido pelo príncipe Lvov que reúne políticos liberais e um deputado aparentado com os socialistas revolucionários moderados, ponte com os movimentos populares, Kerenski. Decreta-se a amnistia para os presos políticos e exilados e estabelecem-se as liberdades fundamentais. É a fase pacífica da revolução russa que começa. O duplo poder Uma das características historicamente essenciais da revolução de Fevereiro é que o seu triunfo cria uma situação de duplo poder. Por um lado, os sovietes[4] de operários, soldados e camponeses que tinham reaparecido em força nos dias da revolução e depois dela em Petrogrado, no seu centro vital, mas também nas fábricas, nos bairros, nos quartéis, na frente e nos meios rurais de toda a Rússia. Eram os órgãos de vontade popular, eleitos de baixo para cima e progressivamente coordenados, através dos seus deputados, à escala local, sectorial, regional e nacional. Constituíam uma gigantesca organização armada do poder popular vitorioso. 152 Grande Guerra • Ensaios Depositários das aspirações populares à paz e ao fim da guerra, à reforma agrária e à divisão da terra pelos camponeses, ao pão (8 horas de trabalho, salário mínimo, melhoria de condições de vida dos operários), à autodeterminação das nacionalidades subjugadas pelo czarismo, os sovietes tinham aceitado, sob influência dos socialistas de direita, maioritários no soviete de Petrogrado e no Comité Executivo dos sovietes, entregar o poder ao governo provisório. E ainda que não participando inicialmente nele, pretendiam fiscalizá-lo e, se necessário, pressioná-lo no sentido das suas aspirações. No outro polo o governo provisório, arranjado entre os partidos liberais burgueses e a ala moderada da social-democracia e dos SR. A sua prioridade absoluta era continuar a guerra, rechaçar e vencer os alemães, agora em nome de salvar a revolução democrática (era, como Lenine o designaria, o “defensismo revolucionário”). As reformas que A aguda escassez o povo reclamava viriam depois. A tensão evidente que esta estratégia de géneros para originava face às aspirações populares os trabalhadores que os sovietes veiculavam só pôde ser e mesmo para as arbitrada pela influência preponderante camadas inferiores dos mencheviques e SR nos meio populares e nos sovietes nos primeiros das classes médias, a inflação sem controlo, meses após a queda do czarismo. Os mencheviques eram guerristas e, a especulação, a sobretudo, agarravam-se à concepção incúria do governo, etapista da revolução bebida numa certa ortodoxia marxiana segundo os escândalos e a a qual, sendo essa a etapa burguesa decadência da corte da revolução, era a burguesia que a czarista alimentavam devia conduzir, dela resultando um a revolta desenvolvimento de forças produtivas 153 Grande Guerra • Ensaios e do proletariado que, numa segunda etapa futura, permitiria instalar uma ordem socialista num país atrasado. Na prática, o seu papel seria o de subordinar os sovietes às prioridades da nova ordem liberal e consequentemente, à continuação da guerra. Convém referir que os bolchevistas[5], sendo vigorosamente adversários da continuação da “guerra imperialista” (sem isso nenhuma reforma progressista seria possível), mobilizando os operários, os soldados e os camponeses em torno de um programa radical para a paz, pela expropriação e divisão das terras do latifúndio, pelos direitos dos operários e das nacionalidades oprimidas à separação e criticando o caracter “conciliador” da política menchevique-SR, em substância, e até à guinada tática das “teses de Abril”, como veremos, não estavam longe dessa política etapista. Isto é, exigiam a paz, pressionavam criticamente, mas não punham em causa o governo provisório, nem a condução da revolução democrática pelos partidos burgueses. Toda a história da revolução russa neste curto e crucial ano de 1917 se resume a essa contradição essencial: entre a onda crescente das reivindicações da vasta rede de poder popular onde se cruzam sovietes, sindicatos, assembleias, comités, milícias armadas e a intransigência e insensibilidade do governo provisório em crescente perca de pé, condicionando as reformas desejadas à prioridade da guerra ou, depois, à reunião de uma futura assembleia constituinte. As “teses de Abril” e as “jornadas de Julho” Dois acontecimentos, quase simultâneos, marcam a radicalização deste processo. O primeiro é a chegada de Lenine à gare da Finlândia em Petrogrado, a 3 de Abril, regressado do exílio com a sua controversa proposta de uma nova política para o partido bolchevista. São as famosas “teses de Abril” que, no meio de viva polémica na direção bolchevique, são adotadas pela Conferência Nacional do partido reunida a 24 de Abril. 154 Grande Guerra • Ensaios Basicamente, retomando escritos anteriores e demarcando-se do etapismo ortodoxo dominante, Lenine vem defender que o proletariado russo e os seus aliados deviam tomar o comando da revolução burguesa e transformá-la, num processo ininterrupto, numa revolução socialista. A forma concreta de o fazer seria chamar os sovietes de operários, soldados e camponeses a conquistar revolucionariamente o poder de Estado, em vez de continuar a “pugnar” pela inadmissível e ilusória “exigência” de que o governo provisório “deixasse de ser imperialista”, pusesse fim à guerra ou cumprisse as suas promessas. “Nenhum apoio ao governo provisório!”, “todo o poder aos sovietes!” são agora as palavras de ordem dos bolcheviques. A revolução socialista estava na ordem do dia e havia que mobilizar e conquistar os sovietes para a tarefa da tomada do poder, única forma que teriam de alcançar a paz, a terra, o pão. Precisamente, a 20 de Abril, uma nota aos aliados do ministro dos Negócios Estrangeiros, P. Miliukov, declarando que a Rússia democrática mantinha os objetivos de guerra do regime czarista, levanta uma gigantesca onda de indignação popular. Cerca de 100 mil pessoas, uma enorme massa de operários e soldados, desce as ruas de Petrogrado para protestar contra o governo provisório e reclamar a paz. Miliukov é forçado a demitir-se e o novo governo provisório tenta reforçar a sua estratégia de neutralização de sovietes, cooptando para o seu elenco, pela primeira vez, deputados do executivo do soviete de Petrogrado numa coligação formal com os mencheviques e os SR, destes saindo o ministro da guerra e futuro chefe do governo, Kerenski. Talvez o aparente sucesso com que se ultrapassa esta primeira crise, levasse o novo governo, contra a corrente geral a favor do fim da guerra, a decidir lançar as tropas russas numa “última ofensiva” contra os alemães, a 18 de Junho. O desastre era previsível e quando a notícia chega à capital, a indignação popular explode espontaneamente. Os marinheiros da base de Krondstadt em revolta avançam sobre a capital, e durante o dia 3 de Julho as manifestações populares massivas assumem aspetos 155 Grande Guerra • Ensaios insurrecionais. Destacamentos de junkers[6] e tropas vindas da frente abrem fogo sobre a multidão e controlam a situação. O governo tem de demitir-se. Mas Kerenski, agora à frente do ministério, responsabilizará o partido bolchevique pela tentativa de um golpe de Estado e por “alta traição”: as sedes e inúmeros jornais bolcheviques são encerrados, pretende-se desarmar os guardas vermelhos, ordena-se a marcha para a frente das unidades militares revolucionárias da capital, vários dirigentes bolcheviques são presos (Kamenev, Trotsky), Lenine é obrigado a passar à clandestinidade. O golpe de Kornilov e alteração da relação de forças Parecia ser o momento certo para a direita mais conservadora, reunida em torno do general Kornilov, desencadear um golpe fulminante: marchar sobre Petrogrado, esmagar os sovietes e impor uma ditadura militar. A 25 de Agosto Kornilov lança sobre a capital a 3º Corpo de Cavalaria. Com uma energia inesperada, respondendo ao apelo dos bolcheviques, os sovietes de operários e camponeses preparam-se para ripostar: rearmam-se as guardas vermelhas, mobilizam-se os marinheiros de Kronstadt e os soldados das guarnições revolucionárias, cavam-se trincheiras e enviam-se delegações de soldados ao encontro das tropas de Kornilov que, informadas por elas, se recusam a marchar sobre Petrogrado. O golpe é derrotado, Kornilov e os seus generais são presos. Kerenski que se dessolidarizara do golpe e os chefes mencheviques e SR, eles próprios acabaram por se abrigar sob a proteção dos bolcheviques, reconhecendo-os objetivamente como a única força na capital capaz de derrotar Kornilov. Sob a influência destes acontecimentos opera-se, então, uma decisiva alteração da correlação de forças: a maioria dos sovietes das grandes cidades (Petrogrado, Moscovo) passa a apoiar o programa dos bolcheviques, o mesmo acontecendo em vários pontos da frente e até no mundo rural. A maioria dos deputados ao II Congresso Pan-russo dos 156 Grande Guerra • Ensaios Sovietes (convocados para 24 de Outubro) apoia os bolcheviques. Nos campos, os mujiques passam à ação, os comités camponeses ocupam e dividem as terras (entre 1 de Setembro e 20 de Outubro registam-se 5 140 conflitos nos campos em mais de 300 distritos); os soldados, camponeses fardados, sabendo disso e sendo época de semeaduras, desertam em massa da frente e regressam às suas terras, o Exército desintegra-se. Conservadores, liberais, socialistas moderados, passam à defensiva. A revolução de Outubro O desenlace aproximava-se. Kerenski organiza ainda, a 12 de Setembro, um Conselho Provisório da República (o “pré-parlamento”) para reinventar um arremedo de legitimidade face à maioria dos sovietes agora sob hegemonia bolchevique e convoca eleições para a assembleia Constituinte. Era uma corrida contra o tempo, mas o tempo esgotara-se para o governo provisório. A 10 de Outubro, não sem alguma oposição e controvérsia, Lenine convence o Comité Central do partido bolchevique de que, face à favorável correlação e forças descrita, perante a ameaça do governo abandonar Petrogrado aos alemães e com as potências imperialistas envolvidas na guerra entre si, o momento da insurreição chegara. Adiála podia deitar tudo a perder. A 24 de Outubro de 1917 (6 de Novembro), respondendo a uma medida de encerramento do órgão central do partido bolchevique, o Robotchi Pout (Via Operária), e pretextando a defesa da liberdade das organizações populares, o Comité Revolucionário do Soviete de Petrogrado, presidido por Trostsky, ordena a ocupação pelos destacamentos dos guardas vermelhos, pelos marinheiros, pelos soldados das unidades revolucionárias, dos pontos estratégicos da cidade. O estado-maior da revolução instala-se no palácio Smolny, sede do soviete de Petrogrado, onde Lenine chega nessa noite. A 25 de Outubro (7 de Novembro), a cidade é ocupada quase sem oposição. O couraçado Aurora 157 Grande Guerra • Ensaios Parada à frente do palácio do czar CORBIS bombardeia o palácio de Inverno e nessa noite forças da infantaria revolucionária tomam-no de assalto, vencendo a solitária resistência dos junkers e prendendo o governo provisório. O II Congresso Pan-russo dos sovietes inicia-se no Smolny nessa noite de 25 de Outubro (7 de Novembro), quando a insurreição triunfa na capital, e, ratificando-a, proclama que o poder passou para as mãos dos sovietes e para as suas próprias mãos. A 26 de Outubro (8 de Novembro) são aprovados os 2 decretos-chaves da revolução emergente: o Decreto sobre a Paz propondo a imediata assinatura de um armistício e o início de conversações de paz, e o Decreto sobre a Terra nacionalizando toda a terra, confiscando a propriedade dos latifundiários, da família real e da Igreja que seriam entregues ao usufruto gratuito dos camponeses e por 158 Grande Guerra • Ensaios eles distribuídos pelos seus comités: o campesinato recebia assim 150 milhões de hectares de terra. O poder não passou para os sovietes nem fácil nem repentinamente. Em Petrogrado haveria ainda confrontos com os cossacos fiéis a Kerenski nos dias seguintes, em Moscovo lutou-se durante vários dias com pesadas baixas para os insurrectos e com Moguilev, no Grande Quartel-general dos Exércitos, o general Doukhonine tentou rebelar-se contra o governo soviético e foi morto pelos soldados, sendo o QG desmantelado. O poder executivo foi delegado no Conselho dos Comissários de Povo eleito pelo II Congresso dos sovietes. O novo governo impunha-se na capital, em Moscovo e em outras cidades apoiado no operariado e nas guardas vermelhas, mas estava cercado por um oceano de ruralidade em ebulição e ao sabor das legiões de milhões de soldados que abandonavam a frente. Os decretos sobre a paz e a terra, precisamente, materializavam uma aliança política e social que, em termos imediatos, assegurava a viabilidade da revolução e do governo dos sovietes. O II Congresso PanRusso camponês, reunido em dezembro de 1917, ratificou a revolução de Outubro e o seu programa. Os SR de esquerda autonomizaram-se e são então integrados no Conselho de Comissários do Povo. A consolidação do governo revolucionário. A paz de Brest-Litovsk Forte desse apoio e da legitimidade da representação soviética, o novo governo dissolve a Assembleia Constituinte que entretanto fora eleita (e onde os socialistas não bolchevistas eram maioritários) quando esta se recusa a ratificar os decretos do II congresso dos sovietes. A democracia dos sovietes impunha-se sobre a parlamentar. Faltava ainda firmar a paz com os alemães. O armistício fora assinado em 5 de Dezembro de 1917, mas as negociações arrastavam-se devido às duríssimas condições que a Alemanha queria impor e porque Trotsky, chefe da delegação soviética, as arrastava na espera da eclosão da 159 Grande Guerra • Ensaios revolução alemã. A 5 de Janeiro de 1918 há um ultimato germânico com condições draconianas. Os dirigentes bolchevistas dividem-se e segue-se a posição de Trotsky: parar a guerra, mas sem assinar a paz. Resultado: ofensiva alemã quase até às portas de Petrogrado. O ataque é travado, mas os sovietes são obrigados a assinar a paz de Brest-Litovsk, a 23 de Fevereiro, em condições ainda mais duras: perdem 26% da população do país, 27% das terras férteis, 26% dos caminhos-de-ferro, 75% do carvão e 50% da indústria do ferro e do aço. Salva-se a revolução. Esta, entre 1918 e 1922 ainda teria que travar uma cruente guerra civil e enfrentar a invasão dos exércitos da Grã-Bretanha, dos EUA, da França, da Itália e do Japão. Para surpresa do mundo inteiro, a Rússia soviética sairia dela vencedora. Mas o preço dessa vitória seria terrivelmente pesado e marcaria definitivamente a natureza do regime que dela emergiria. Notas [1] Ottaviano de Fiore, “Guerra Civil. Trostky e o Exército Vermelho” in, 90 anos. Os Anos da Revolução Russa, ed. História Viva, S. Paulo, pág 51 e segs. [2] Na Rússia czarista funcionava o calendário Juliano que tinha uma desfasagem de 13 dias relativamente ao Gregoriano, usado no ocidente e adotado pelo governo soviético em 1918. Neste texto usaremos a datação do calendário Juliano, o que vigorava à data dos acontecimentos descritos. [3] A Duma (assembleia deliberativa do Estado) era um arremedo de parlamento fruto das tímidas concessões da autocracia czarista após a revolução de 1905; [4] Soviete: palavra derivada do termo russo sove’t (soviet), que significa conselho. Os primeiros sovietes de deputados operários e soldados surgiram espontaneamente na revolução russa de 1905, reaparecendo na de Fevereiro de 1917 e espalhando-se depois, como órgãos de poder popular, por toda a Rússia e na frente de guerra; 160 Grande Guerra • Ensaios [5] Bolchevistas: ala leninista e revolucionária da social-democracia russa autonomizada como partido em 1912, quando organizativamente se separa dos menchevistas. O termo bolchevique (partidário da maioria) e menchevique (partidário da minoria) exprimia a relação de forças entre as duas correntes saída do segundo congresso do Partido Social Democrata Russo em 1903; [6] Junkers: soldados cadetes da escola de guerra VOLTAR AO ÍNDICE 161 Grande Guerra • Ensaios Os choques da civilização: testemunhos, horrores e silêncios A guerra europeia em África foi essencialmente protagonizada por africanos, os soldados e participantes mais desconhecidos de todos. Como carregadores ou como soldados, foram vítimas de horrores que só agora estão ser devidamente reconhecidos, ainda que tardiamente, na Europa. O “imposto de vidas” assim o exige. Ensaio de: Miguel Bandeira Jerónimo, investigador na ICS-UL Trincheiras junto ao Rio Rovuma ARQUIVO HISTÓRICO MILITAR 162 Grande Guerra • Ensaios “O s indígenas mais válidos da Província têm sido violentamente recrutados para fins expedicionários e já há hoje quem calcule o número de mortos em perto de 50 mil. Porque os indígenas só voltam quando moribundos ou estropiados, a repugnância pelo recrutamento e pelo nome português tem-se espalhado através do sertão; contam as vicissitudes porque passam, dias sem alimentação muitas vezes, ou com alimentação imprópria; os mortos e os moribundos abandonados pelo caminho como animais; a lenda funesta alastra-se, os pretos emigram em massa, a agricultura e a indústria Zambeziana lutam com falta de braços, e o Governo é vítima dos seus próprios métodos, só pela violência encontra quem o sirva, e chegará o momento, se os métodos não mudarem, em que nem carregadores encontre e em que as empresas da Zambézia tenham de assistir à ruína e transformação de tanto esforço e dinheiro empregado em puras perdas por falta de indígenas para o trabalho”. Assim sendo, não era de estranhar que o “indígena” tivesse começado a “odiar os que o arrancam ao seu lar e às suas florestas para o ir matar sem piedade, à míngua de tudo, nos trabalhos forçados das expedições”. Era este o retrato sombrio constante numa carta, datada do dia 6 de Maio de 1918, enviada conjuntamente pelo Grémio de Proprietários e Agricultores da Zambézia, pela Companhia do Boror e pela Sociedade de Recrutamento de Indígenas ao Governadorgeral de Moçambique, Manuel Luís Moreira da Fonseca. A citação é longa mas descreve e resume, de modo assertivo, os principais processos que resultaram da extensão da primeira guerra mundial aos contextos coloniais, sobretudo chamando a atenção para o papel, infelizmente desvalorizado e ignorado por muitos, desempenhado pelas populações coloniais, neste caso africanas. Os acordos feitos pelas autoridades portuguesas com o General Jacob van Deventer, comandante militar sul-africano que liderava as forças imperiais britânicas, para o recrutamento de carregadores em função das necessidades destas estavam, há muito, a ter consequências nefastas. 163 Grande Guerra • Ensaios Posto de observação junto ao Rio Rovuma, 1916 ARQUIVO HISTÓRICO MILITAR O envolvimento coincidente de “gente portuguesa” no recrutamento de “levas de milhares de carregadores (...) compelidos à força a irem servir as expedições inglesas” reforçava o seu efeito nocivo. Face à inconsequência mobilizadora da legislação vigente na Niassalândia (protectorado colonial britânico, hoje Malawi), que apenas autorizava o recrutamento voluntário, os territórios coloniais portugueses tornaram-se o principal reservatório de mão-de-obra para os esforços de guerra. “Sabendo que recrutamos à força e tão à força que os nossos carregadores vêm amarrados como servos ou como animais para os locais de recrutamento, sem o que não se conseguiria um só”, as autoridades administrativas e militares imperiais britânicas viravam-se para o “melhor sangue”, leia-se, os melhores braços, da colónia. Conscientes de que não se “consentiriam tais processos de servidão” na 164 Grande Guerra • Ensaios Niassalândia e contando com a “complacência e cumplicidade da soberania portuguesa”, “um papel humilhante que aceitamos”, as autoridades britânicas “vêm estimulá-lo no nosso território”, concluíam os signatários. O desrespeito pelos africanos e a avidez pelos seus braços compelidos eram os mesmos. O grau de envolvimento na Atrás de nós deixamos sua mobilização e a tolerância para com os procedimentos desumanos associados campos destruídos, é que pareciam variar. lojas saqueadas e, A tudo isto juntava-se o problema da num futuro imediato, “fome”, que ameaçava tornar-se uma realidade generalizada, e, mais tarde, o a fome. Já não somos da pneumónica. Na ânsia de evitar “ser agentes de cultura; o apanhado à força pelas autoridades, nosso caminho está escondido pelo mato, ou ao abrigo das leis inglesas do Nyassaland”, o “indígena marcado pela morte, foragido ou emigrante (...) não culima pela pilhagem e por [cultiva], não trabalha”. As pilhagens e a aldeias evacuadas”. costumeira estratégia de terra queimada Ludwig Deppe, no seu diário decerto não ajudavam. A “fome com todos os seus horrores” já tinha invadido a região, “mortos de fome” eram encontrados “pelos caminhos e pelo mato”. Na mesma altura, a 15 de Setembro de 1918, Ludwig Deppe, médico que acompanhou as movimentações militares alemã na África Oriental lideradas pelo General alemão Paul von Lettow-Vorbeck, a quem muitos atribuem grandiosas qualidades militares, escreveu no seu diário: “Atrás de nós deixamos campos destruídos, lojas saqueadas e, num futuro imediato, a fome. Já não somos agentes de cultura; o nosso caminho está marcado pela morte, pela pilhagem e por aldeias evacuadas”. Quase um ano depois, a 15 de Março de 1919, o Grémio de Proprietários e Agricultores da Zambézia reincidia na descrição de um bárbaro estado de coisas, juntando, no entanto, novos dados. Mais uma vez, um longo 165 Grande Guerra • Ensaios excerto que merece ser reproduzido pelo seu carácter elucidativo: “Veio há pouco a guerra com a ‘German East Africa’ em que a nossa infeliz província sofreu o mais cruel imposto de vidas que é lícito conceber. Para alimentar de carregadores as forças inglesas, e de carregadores e soldados as forças portuguesas, não houve recurso nem violência de que se não lançasse mão, pondo em risco e prejudicando não só o prestígio da nossa soberania, mas obrigando a prejuízos inenarráveis todas as indústrias e os imensos interesses e sacrifícios que significam a nossa acção económica e civilizadora naquela província. Não se pode avaliar em menos de 80 mil os indígenas portugueses mortos por virtude da guerra contra o alemão, e para cúmulo da desgraça, o flagelo da pneumónica, ao findar a guerra, veio completar a obra de devastação iniciada, por vezes com perfeita inconsciência, pelas próprias autoridades”. Por vezes, apenas por vezes, com “perfeita inconsciência”, note-se. Impressões semelhantes foram transmitidas para Lisboa pela Companhia do Boror: abusos em excesso, sem controlo oficial ou protagonizado mesmo pelas autoridades; uma pressão constante e agressiva para garantir o recrutamento forçado de carregadores africanos ao serviço de britânicos e portugueses; revoltas “indígenas” generalizadas; e, por fim, a “morte de cerca de 80 mil carregadores”. É certo que ambas as companhias procuravam, acima de tudo, bloquear o desvio de mão-de-obra africana das suas plantações para as necessidades insaciáveis das forças militares. Procuravam ainda questionar, como faziam com frequência, as políticas e a economia, formal e informal, da circulação de trabalhadores africanos para as minas do Transvaal. A deslocação da “população válida” para o serviço militar, para servir de carregadores e “nunca mais voltarem”; a sua utilização “em grande número” para suprir as “necessidades da administração”; a sua emigração para a Niassalândia e a sua fuga para o “mato” constituíam uma combinação de factores danosos insuperável. O uso de “braços para tão desvairadas aplicações” tinha de ser imediatamente restringido. O recrutamento forçado enquanto “acção 166 Grande Guerra • Ensaios Coluna apeada de reabastecimento de géneros, entre Mocímboa do Rovuma e Negomano, 1917 DR económica e civilizadora” era certamente aceitável. Se este representasse a cedência a interesses económicos externos, tornava-se questionável enquanto política. Já o seu usufruto para esforços de guerra era intolerável, mesmo se por forças aliadas. Para os ingleses, contudo, as causas da resistência e insatisfação generalizadas residia noutro sítio: na natureza débil da soberania colonial portuguesa e do seu aparato administrativo, na inexistência de uma rule of law (com mecanismos de regulação, inspecção e justiça) e na escassa qualidade dos seus funcionários. A autocracia não vigiada dos chefes de posto, cuja acção era no essencial determinada pela aquisição de benefícios económicos, e a acção descontrolada dos cipaios (polícia nativa) que “aterrorizavam o nativo, batendo, assassinando, violando e roubando”, eram sublinhadas em vários memorandos britânicos como exemplos maiores da inaceitável administração portuguesa de Moçambique, e não apenas em contexto de guerra. Esta “forma brutal e autocrática de governo” explicava o “estado de guerra permanente entre as autoridades portuguesas e os desafortunados nativos”. A concorrência por trabalhadores africanos conduziu a conflitos vários entre os múltiplos interesses europeus e as comunidades locais. Provocou ainda momentos de inflamada competição interimperial e de indignação internacional, como os casos do Congo Belga de Leopoldo II e do cacau 167 Grande Guerra • Ensaios escravo de São Tomé, ambos com o seu auge no início do século XX, demonstram. A dinâmica militar da guerra só acentuou esses processos. O escasso desenvolvimento infra-estrutural e comunicacional nas colónias, marcado pela quase ausência de estradas, rios navegáveis e caminhosde-ferro, exigia um recurso desmesurado aos carregadores, cujo recrutamento assentava em violentas operações de resgate por cipaios e por outro tipo de recrutadores, públicos e privados (ainda que esta distinção fizesse pouco sentido a maior parte das vezes). Calcula-se que cerca de 60 mil a 90 mil carregadores tenham sido usados pelos portugueses durante a guerra em Moçambique. Cerca de 30 mil terão sido fornecidos às forças expedicionárias britânicas, o que não impediu inúmeras acusações britânicas de incumprimento dos acordos estabelecidos. A procura suplantava a oferta. Em virtude do conflito que envolveu os alemães, os britânicos (incluindo a África do Sul) e os portugueses na África Oriental, calculase que tenham sido mobilizados entre Por ordem superior 500 mil a 700 mil carregadores foram enforcados africanos. Destes, calcula-se que bastantes pretos e tenham falecido entre 200 mil a 400 mil: em combate, por subnutrição (em pretas (...). Os pretos 1917, os carregadores recebiam apenas eram enforcados 1000 calorias por dia), por doenças nas árvores e para várias (incluindo as disseminadas isso utilizaram, por em campos de concentração), por vezes, arame farpado. deserção (que era endémica e conduzia a execuções sumárias). Não sabemos Eram os landins quantos ficaram inválidos ou para os executantes dos sempre com a marca das agruras e enforcamentos. crueldades associadas a este processo. Uma outra estimativa considera que Testemunho de Joaquim Pinto (Março de 1917) as forças britânicas sozinhas recrutaram 168 Grande Guerra • Ensaios mais de um milhão de trabalhadores para a campanha na África Oriental, provenientes do Congo Belga, do Ruanda, do Quénia, do Uganda, da Rodésia, da Niassalândia, da África Oriental Alemã e, claro, do norte de Moçambique. Só no Tanganica, cerca de um terço da população masculina taxável foi recrutada. Contrariamente ao que pensavam (ou alegavam) as companhias da Zambézia, na Niassalândia cerca de 4/5 da mão-de-obra disponível (200,000 homens) foi utilizada. No total, estima-se que cerca de dois milhões de Africanos estiveram directamente envolvidos no conflito, tanto como soldados como como “trabalhadores”. A guerra contra os nativos Em 1917, como em 1914, a soberania colonial continuava a ser uma soberania de jure, não de facto, feita de fronteiras instáveis e turbulentas, de entendimentos frágeis e clientelares, sustentada na violência exemplar, onde pontuavam regularmente as expedições punitivas. E mesmo do ponto de vista estritamente legal, esta soberania não era rigorosa. Por exemplo, a fronteira entre os Portugueses e os alemães no sul de Angola estava tenuemente definida. Ao contrário da retórica civilizadora, esta soberania restrita visava essencialmente dois grandes objectivos. Por um lado, assegurar, de modo coercivo se necessário, o contínuo recrutamento, uso e distribuição, para fins públicos e privados, de mão-de-obra nativa. Esta operação era o principal mecanismo de extracção colonial, uma receita importante para a administração colonial. Por outro, garantir um aparato administrativo capaz de estabelecer mecanismos eficazes para a execução da exacção fiscal. A dimensão imperial da guerra, constitutiva do conflito europeu, constituiu uma oportunidade de prolongamento e intensificação desta soberania colonial. Em certo sentido, o estado de excepção que a guerra sempre acarreta foi particularmente benéfico para a prossecução dos interesses do Estado-império português, como 169 Grande Guerra • Ensaios de outros impérios coloniais. Em contextos coloniais, a Grande Guerra facilitou o enraizamento imperial. O argumento que concebe este conflito como o início do fim dos impérios coloniais europeus tem de ser tomado com muitas reservas. A guerra reforçou conflitos já existentes e estimulou motivações e formas de protesto e resistência antigas, revelando, de modo claro, a natureza e o alcance da soberania colonial portuguesa, que era, no essencial, uma mera realidade legal. Por exemplo, a segunda expedição para Angola (15 de Março de 1915), liderada pelo General Pereira d’Eça, tinha um duplo objectivo: reagir ao desastre de Naulila e pacificar insurreições nativas, nomeadamente a dos Cuamatas e dos Cuanhamas, reforçando a presença colonizadora. A batalha de Môngua, entre 18 e 20 de Agosto de 1915, foi um dos mais violentos conflitos, marcado pela maciça conscrição forçada de mão-de-obra africana para combater...comunidades africanas, não alemãs. Cerca de quatro mil soldados africanos foram mobilizados no início de 1915, sendo, de forma notória, deficientemente dirigidos e violentamente tratados. Mais de 50% foram mantidos em serviço para lá do tempo legalmente permitido e o número de soldados jovens (com 10, 15 e 18 anos de idade) era bastante elevado. A expedição foi, assim, um mecanismo de sedimentação do poder coercivo da administração colonial e uma conclusão violenta de conflitos antigos, iniciados aquando do começo das campanhas de pacificação em finais do século XIX. As sessões secretas ocorridas na Câmara dos Deputados em Julho de 1917 são esclarecedoras. No dia 18 de Julho de 1917, Alexandre de Vasconcelos e Sá, que esteve nas campanhas no Sul de Angola, declarava ser “verdade que se enforcaram pretos adultos Humbes Cuamates e Cuanhamos” e não negava a “morte de mulheres grávidas abaionetadas, de crianças, enterramento delas vivas ainda”, “horrores” que tinham sido confirmados por oficiais e soldados portugueses sob juramento. Tais comportamentos, que não testemunhara, eram “represálias” 170 Grande Guerra • Ensaios relativas aos “massacres cruéis” feitos pelos nativos “após a revolta depois do desastre de Naulila nos nossos soldados”. O deputado militar português compreendia ainda “as selvajarias praticadas no inimigo pelos auxiliares indígenas que em todas as campanhas africanas as praticam”. A “necessidade da sua utilização” era motivo suficiente para “se fechar os Calcula-se que olhos a barbaridades”. Estas palavras cerca de 60 mil a 90 faziam parte de uma resposta a inúmeros mil carregadores documentos que comprovavam as iniquidades, apresentados na Câmara tenham sido usados pelo deputado coronel Tomás de Sousa pelos portugueses Rosa. durante a guerra em Eis alguns exemplos de testemunhos Moçambique. Cerca de militares portugueses envolvidos nas campanhas do sul de Angola. de 30 mil terão sido A 19 de Março de 1917, Joaquim Pinto fornecidos às forças testemunhou que “por ordem superior expedicionárias foram enforcados bastantes pretos e britânicas pretas (...). Os pretos eram enforcados nas árvores e para isso utilizaram, por vezes, arame farpado. Eram os landins os executantes dos enforcamentos (...). Consta-me que foram enterrados vivos uma criança e um homem (...). Consta-me também que muitos enforcamentos eram feitos sem que os pretos ou pretas hostilizassem as forças. Matavam-se os pretos que eram encontrados e parece até que isso se fazia por divertimento”. A 28 de Março de 1917, Frutuoso Alves declarou: “vi enterrar crianças semi-vivas, esfaquear mulheres grávidas”. Tal como Frutuoso Alves, Francisco Filipe de Sousa também mencionou, numa declaração sob compromisso de honra datada de 18 de Março de 1917, a existência do “imbundeiro fatal”, uma “árvore no Humbe” onde estava um “verdadeiro cacho humano” de enforcados. Outros “pretos eram enterrados antes 171 Grande Guerra • Ensaios de completamento mortos”, sendo que o “preto carrasco” indicara o “manéputo” – o General, nesta ocasião o General Pereira d’Eça – como responsável pelo sanguinário procedimento. Francisco Filipe de Sousa declarou ainda: “Tenho conhecimento que houve ordem para se lascarem as ogivas das balas para as transformarem em balas “Dun-Dun” por forma a causarem os maiores destroços no organismo humano, dando lugar a que ao espalhar-se entre os pretos o nome do general, nunca mais o esquecessem ou o conservassem na memória, pelo menos durante cinco anos, após a vitória das armas portuguesas”. Perante estes testemunhos, Afonso Costa advertiu: “nãos nos deixemos mover por idealismos nem esqueçamos o conceito e impressão dos pretos perante respeitos humanitários que ele considera como fraqueza ou pusilanimidade”. Já Brito Camacho argumentou que “civilizar com a navalha e a carabina, não é humanitário nem científico”. As atrocidades e os massacres de africanos, por portugueses e por africanos sob comando português, resultaram, em larga medida, dos ciclos de violência associados à ocupação colonial efectiva, não apenas da dinâmica cruel da grande guerra. Como seria de esperar, o impacto local destas dinâmicas combinadas foi significativo: reactivação e acréscimo de tensões várias entre autoridades coloniais e comunidades locais (europeias e africanas), redundando em numerosos e violentos conflitos e em êxodos maciços, forçados e voluntários, nas comunidades africanas. Estas tensões foram decerto ampliadas pelas movimentações das forças alemãs: as promessas de término da exacção forçada de impostos e de mão-de-obra foram certamente acolhidas com entusiasmo em inúmeros locais. Mas estas tensões não se podem compreender com o mero recurso a esta explicação, que foi usada então para desresponsabilizar as autoridades portuguesas e para justificar o descontentamento nativo com causas em nada relacionadas com a acção civilizadora dos portugueses. 172 Grande Guerra • Ensaios O recrutamento forçado de africanos para serem carregadores, militares e para trabalhar na construção de estradas (que reforçavam a comunicação de guerra e também o alcance do aparelho coercivo da administração colonial) reacendeu numerosos conflitos. Alguns destes adquiriram um carácter pan-étnico, como sucedeu, por exemplo, na Zambézia. A agitação e as Não nos deixemos revoltas em Tete e no Barué em 1917, que mover por idealismos envolveram cerca de 15,000 combatentes nem esqueçamos africanos numa região que fora objecto de pacificação uns anos antes, estiveram o conceito e certamente relacionadas com as impressão dos pretos movimentações da guerra, embora não perante respeitos se possam compreender senão num humanitários enquadramento histórico mais amplo, do ponto de vista cronológico, e mais que ele considera aprofundado, de um ponto de vista como fraqueza ou analítico. pusilanimidade As revoltas tornaram-se assim Afonso Costa momentos importantes na história Presidente do Ministério da insurreição anticolonial, tendo sobrevivido ao fim da Grande Guerra. Foram também sintomas da prolongada e violenta consolidação da administração colonial. Como em Angola, onde em 1917 ocorreram os violentos conflitos nas plantações de café de Amboim e Novo Redondo, as dinâmicas e particularidades do contexto de guerra acarretaram o (re) questionamento da ténue soberania colonial Portuguesa em Moçambique. Como em Angola, a dinâmica da guerra encontrou-se umbilicalmente ligada aos esforços de décadas de consolidação da ocupação colonial. E é esta intersecção de eventos e processos, que importa, mais do que nunca, compreender, nomeadamente no que concerne às causas, motivações e desideratos dos ciclos de violência que ambos os processos espoletaram. 173 Grande Guerra • Ensaios 1917 foi um ano importante na história da Grande Guerra em contextos coloniais e nas histórias da resistência, protesto e revolta contra a investida colonizadora. Foi ainda um ano particularmente relevante nas histórias da colonização portuguesa, nomeadamente no que concerne aos projectos de expansão da dominação colonial, em parte baseados no recrutamento local de soldados auxiliares africanos, fornecidos por clientes regionais, em resultado das costumeiras políticas de aliança com potentados locais, por vezes relacionadas com estratégias de dividirpara-reinar, por via da instigação e uso instrumental de conflitos locais. Por exemplo, cerca de 10 mil a 15 mil Angunes foram decisivos na resolução da revolta do Barué; nas revoltas de Amboim, cerca de três mil auxiliares africanos participaram na resposta portuguesa. Em Moçambique, ao lado dos militares portugueses, estavam cerca de 11 mil soldados africanos e várias dezenas de milhar de carregadores “indígenas”; em Angola calcula-se que cerca de 10,000 soldados nativos tenham sido mobilizados. Os soldados africanos eram mal pagos, quando o eram de todo. Devido a uma alimentação desadequada ou escassa, entre outros factores de relevo, os problemas de saúde foram numerosos: pneumonia, disenteria, subnutrição. Cerca de 2487 morreram por doença (dos dois mil soldados portugueses que faleceram, apenas 142 morreram em combate). Os carregadores carregavam cerca de 30 quilos de carga, estando usualmente presos entre si, com arame no pescoço. O uso de tropas nativas não foi apenas mais um exemplo da improvisação generalizada que caracterizou o esforço de guerra nacional. Foi também mais uma entrada no vasto catálogo de atrocidades que pautaram a acção portuguesa (e europeia) na altura. Os voluntários da corda – ou seja, os africanos “vadios” e “indolentes” que eram capturados, atados a uma corda e conduzidos a instalações militares, num processo em muito semelhante ao recrutamento de mão-de-obra para trabalhos públicos e privados – detiveram um papel fundamental nestes conflitos. 174 Grande Guerra • Ensaios A guerra europeia em África foi essencialmente protagonizada por africanos. Estes, sim, são os soldados e participantes mais desconhecidos de todos. Um pouco por toda a Europa estão ser devidamente reconhecidos, ainda que tardiamente. O “imposto de vidas” assim o exige Bibliografia sumária Richard Fogarty e Andrew Jarboe, eds., Empires in World War I: shifting frontiers and imperial dynamics in a global conflict (London: I.B. Tauris, 2014) Robert Gerwarth e Erez Manela, eds., Impérios em Guerra: 19111923 (Lisboa: Dom Quixote/Leya, 2014). 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