A triste marcha da desigualdade e da crise no espaço agrário do Rio de Janeiro Paulo Alentejano* Introdução O estado do Rio de Janeiro sofreu nas últimas cinco décadas um processo de esvaziamento do meio rural, ampliação da concentração fundiária e redução da importância da agricultura, seja em relação à produção, à área e, principalmente ao emprego, agravando um cenário de desigualdade social e crise que há muito se delineia no campo fluminense. Nunca é demais lembrar que o Rio já foi o principal produtor de café do país, no século XIX, de laranja, no século XX, e era até poucas décadas um dos importantes pólos de produção de cana-de-açúcar. Entretanto, hoje o estado não tem qualquer relevância na produção agropecuária brasileira, fruto do avanço da urbanização, mas também da falta de políticas de apoio à agricultura fluminense e de uma visão estratégica acerca da importância da reforma agrária para a soberania alimentar. O objetivo deste texto é analisar as transformações ocorridas no campo fluminense nas últimas décadas, tomando como base os dados de órgãos oficiais como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), bem como informações levantadas junto aos movimentos sociais rurais. A publicação em 2019 dos resultados finais do Censo Agropecuário, realizado pelo IBGE em 2017, possibilitou a atualização de algumas informações para as quais os últimos dados disponíveis já se encontravam bastante defasados, uma vez que o último Censo havia sido realizado em 2006. Vale registrar a necessidade de cautela na comparação dos dados dos Censos Agropecuários, dadas as mudanças na metodologia e na coleta dos dados entre os diferentes Censos.1 1. Desigualdade e crise no espaço agrário fluminense O espaço agrário do estado do Rio de Janeiro foi marcado nas últimas décadas pelo que Ribeiro et all. (2002) denominaram desagriculturalização, isto é, a perda crescente de espaço da agricultura no campo fluminense, em detrimento do avanço da urbanização, da pecuária e de outras atividades, muitas das quais não-agrícolas que se expandiram no meio rural, como o turismo. Também Souza (2019), em artigo recente no qual defende uma nova metodologia para a compreensão do processo de desenvolvimento rural no estado do Rio, aponta processo semelhante. Entende-se que, no estado do Rio de Janeiro, a tônica do processo de desenvolvimento rural em curso já não esteja calcada na atividade agropecuária, como fora em outrora (como no ciclo do café, por exemplo), mas, sim, nas diferentes funções que o meio rural passou a ter no período recente: lazer (turismo rural, ecológico, cultural), moradia (diante da especulação imobiliária presente nos centros urbanos ou mesmo por opção daqueles que buscam melhor qualidade de vida) e produção de bens * Professor do Departamento de Geografia da FFP/UERJ e integrante do Grupo de Assuntos Agrários da Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Seções Rio de Janeiro e Niterói. 1 Os Censos de 1970, 1975, 1980, 1985 e 2006 tomaram por base o ano civil, enquanto o Censo de 1995/1996 baseou-se no ano agrícola e o Censo de 2017 não usou nem o ano agrícola, nem o ano civil como base, o que acarreta a necessidade de certos cuidados na comparação entre os dados dos mesmos, pois muitos estabelecimentos de caráter temporário (sobretudo de parceiros e arrendatários) podem ter sido recenseados em alguns censos e não em outros. 2 ligados a nichos de mercados (produtos orgânicos, artesanais, ligados à agricultura familiar regional). Essas novas funções estão relacionadas à características determinantes presentes no espaço fluminense, mesmo que de forma não uniforme, que são: o relevo acidentado, dificultando a produção agrícola e pecuária, o solo com pouca fertilidade, a tradição turística e o alto grau de urbanização. (SOUZA, 2019: 110) Entretanto, consideramos que não devemos naturalizar tal processo, mas considerá-lo como decorrente de escolhas políticas associadas ao predomínio de classes/grupos sociais que direcionam o modelo de desenvolvimento adotado no estado do Rio de Janeiro. Em outras palavras, o abandono da agricultura não é uma decorrência de condições naturais, afinal, “o relevo acidentado” e o “solo com pouca fertilidade” não foram obstáculos para o desenvolvimento das monoculturas de cana e café em outras épocas e nem são empecilhos para o desenvolvimento de uma agricultura diversificada e intensiva em mão-de-obra e tecnologia. Tampouco a “tradição turística” pode ser evocada para justificar a decadência da agricultura, uma vez que a expansão da atividade turística não tem mais que 50 anos, o que convenhamos não chega a ser tempo suficiente para configurar uma “tradição”. Quanto ao alto grau de urbanização, não resta dúvida de seus impactos sobre a dinâmica rural, especialmente pelos efeitos especulativos sobre a terra, com a permanente pressão pela transformação de áreas rurais em urbanas para expansão das cidades, mas aqui também é fundamental não naturalizar tal processo, mas identificar quem são os interesses que se associam para viabilizar essas transformações espaciais. Assim, o que nos parece mover os caminhos recentes do desenvolvimento do estado do Rio de Janeiro é uma articulação entre o grande capital e o Estado, cujos interesses centrais se concentram nos setores de energia (petróleo e gás) e turismo (lazer e entretenimento), deslocando do centro do poder grupos que já tiveram maior influência política no estado, como, por exemplo, os usineiros do Norte Fluminense e mais remotamente os barões do café. Diante disso, as próprias terras antes destinadas a essas grandes monoculturas passam a ser também inseridas nesse circuito de valorização imobiliária associada à expansão dos setores de energia e turismo, seja de forma direta ou indireta. Alguns dos principais conflitos pela terra no Rio nas duas últimas décadas foram decorrentes da instalação de grande projetos de desenvolvimento ligados direta ou indiretamente à cadeia do petróleo e do gás – Porto do Açu, Comperj – ou a grandes empreendimentos imobiliários associados ao turismo – Aretê, Condomínio Laranjeiras (AGB, 2019). Todo esse processo tem reforçado desigualdades sociais e agravado a crise agrária e alimentar por que passa o estado, em que pese a atuação de diferentes movimentos sociais em defesa da reforma agrária e da agricultura fluminense (Alentejano, 2003 e 2019). Um dos aspectos dessa crise agrária é a ampliação da concentração fundiária, mesmo com a decadência das grandes monoculturas. O Gráfico 1 indica a persistência de elevada concentração fundiária no estado do Rio de Janeiro, uma vez que os pequenos estabelecimentos, com menos de 10 hectares (ha) são a maioria (58,3%) do total, mas possuem menos de 5% da área total dos estabelecimentos, ao passo que os maiores, com mais 500 ha são menos de 1%, mas controlam 31,8% da área, sendo que os com mais de 1.000 ha são 0,3% do total e 3 possuem mais de 20% da área. Isto significa dizer que os 37.892 estabelecimentos que têm entre 0 e 10 ha e que são quase 60% do total de estabelecimentos têm área média de 3,2 ha, ao passo que apenas 193 estabelecimentos que possuem mais que 1.000 ha (0,3% do total) têm área média de 2.613,9 ha. Gráfico 1 – Estrutura Fundiária – Estado do Rio de Janeiro - 2017 Fonte: IBGE – Censo Agropecuário – 2017. Elaboração do Autor. Vale dizer que em nenhum município do estado do Rio de Janeiro o módulo mínimo definido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é inferior a 5 ha, que seria a área mínima para assegurar a sobrevivência de uma família na terra em boas condições. Entretanto, temos 28.271 estabelecimentos agropecuários com menos de 5 ha no estado do Rio de Janeiro, o que corresponde a 43,3% do total de estabelecimentos. Quando comparados aos dados de 2006, evidencia-se uma ampliação da concentração fundiária, uma vez que os menores estabelecimentos mantiveram o percentual de estabelecimento (58,4% e 58,3%), mas perderam percentual de área (de 6% para 4,9%), ao passo que ocorreu o inverso com os maiores estabelecimentos, que mantiveram o percentual de estabelecimentos (0,8% e 0,9%) e aumentaram o percentual de área sob seu controle (de 28,9% para 31,8%). 4 Gráfico 2 – Estrutura Fundiária – Estado do Rio de Janeiro - 2006 Fonte: IBGE – Censo Agropecuário – 2006. Elaboração do Autor. Os gráficos 3 e 4 abaixo, reforçam esta interpretação, demonstrando que houve crescimento no número de estabelecimentos e na área ocupada por estes em todos os grupos de área, porém o maior crescimento em área se deu nos estabelecimentos com mais de 1.000 ha. A área média dos estabelecimentos com 0 a 10 ha em 2006 era de 3,4 ha e diminuiu para 3,2 ha em 2017, já a área média dos estabelecimentos com mais de 1.000 ha era de 1.832,9 ha em 2006 e aumentou para 2.613,9 ha em 2017, ou seja, os menores ficaram ainda menores e os maiores ficaram ainda maiores. Em outras palavras, há fortes indicações de que cresceu ainda mais a desigualdade no campo fluminense entre os dois últimos Censos Agropecuários. Gráficos 3 e 4 – Comparação entre os Censos Agropecuários de 2006 e 2017 – Estrutura Fundiária – Estado do Rio de Janeiro Fonte: IBGE – Censos Agropecuários – 2006 e 2017. Elaboração do Autor. 5 A Tabela 1, por sua vez, revela a redução do número de estabelecimentos agropecuários entre 1975 e 2017. Entretanto, não é uma redução linear, pois há oscilações ao longo do tempo. Entre 1975 e 1985 verifica-se o crescimento do número de estabelecimentos, atingindo nesse Censo o maior patamar da série histórica, com 91.280 estabelecimentos. Entre 1985 e 1995/96 há uma queda abrupta, superior a 40%, chagando ao mais baixo patamar da série histórica, com 53.680 estabelecimentos. Nos dos censos seguintes há um novo crescimento, chegando em 2017 a 65.224 estabelecimentos. Assim, temos uma tendência geral de redução, mas com oscilações recentes, o que pode estar relacionado à alteração da metodologia da coleta de dados entre os Censos de 1995/1996 e 2017 (vide nota 1). Tabela 1 - Confronto dos resultados dos dados estruturais dos Censos Agropecuários – Rio de Janeiro – 1970/2017 Censos Dados estruturais Estabelecimentos Área total (ha) Utilização das terras (ha) Lavouras permanentes Lavouras temporárias (1) Pastagens naturais Pastagens plantadas (2) Matas naturais (3) Matas plantadas Pessoal ocupado Tratores Efetivo de animais (4) Bovinos Bubalinos Caprinos Ovinos Suínos Aves (galinhas, galos, frangas e frangos) (1 000 cabeças) Produção animal Produção de leite de vaca (1 000 l) Produção de leite de cabra (1 000 l) Produção de lã ( t ) Produção de ovos de galinha (1 000 dúzias) 1975 1980 1985 1995-1996 2006 2017 76 235 77 671 91 280 53 680 58 493 65 224 3 446 176 3 181 385 3 264 149 2 416 305 2 059 462 2 375 373 166 081 451 464 1 580 487 278 551 488 327 34 213 145 115 456 298 1 466 220 278 394 420 945 32 160 153 974 470 725 1 437 879 319 227 463 183 39 663 78 758 258 483 901 030 644 093 323 105 25 881 77 450 272 383 657 716 632 646 297 438 13 884 59 014 131 508 891 320 670 899 491 940 27 872 278 564 301 688 321 912 174 274 157 696 160 571 5 897 9 070 9 822 8 796 7 666 10 748 1 658 534 1 408 14 190 13 139 260 038 1 745 152 1 986 18 391 15 875 281 631 1 788 180 3 087 22 124 21 019 274 893 1 813 743 3 485 13 452 18 698 169 338 1 924 217 3 556 15 884 44 061 113 433 1 982 295 5 520 15 676 24 286 66 598 12 249 13 903 10 180 21 256 12 779 11 018 362 816 452 435 424 191 434 719 432 355 511 895 104 0 271 - 743 - 848 2 1 051 2 875 0 34 041 34 667 28 845 18 717 7 527 12 880 Fonte: IBGE, Censos Agropecuários 1975/2017. (1) Lavouras temporárias e cultivo de flores, inclusive hidroponia e plasticultura, viveiros de mudas, estufas de plantas e casas de vegetação e forrageiras para corte na data de referência (5). (2) Pastagens plantadas,em más condições por manejo inadequado ou por falta de conservação, e em boas condições, incluindo aquelas em processo de recuperação em na data de referência (5). (3) Matas e/ou florestas naturais destinadas à preservação permanente ou reserva legal, matas e/ou florestas naturais e áreas florestais também usadas para lavouras e pastoreio de animais na data de referência (5). (4) Efetivo de animais – animais existentes no estabelecimento na data de referência (5). 6 (5) Data de referência: 1975, 1980, 1985 e 2006 em 31/12, Em 1995-1996 em 31/07 e em 2017 em 30/09. A mesma tendência geral de redução pode ser observada em relação à área dos estabelecimentos que cai de 3.446.176 ha em 1975 para 2.375.373 ha em 2017, mas com oscilações ao longo do período, em especial o crescimento de 300 mil ha entre os dois últimos Censos. Também no que se refere à área média dos estabelecimentos repete-se o quadro de uma tendência geral de redução, mas com oscilações. A maior área média foi registrada no Censo de 1975, com 45,2 ha, caindo sucessivamente nos dois Censos seguintes, mas aumentando no Censo de 1995/96 para 45,1 ha, caindo novamente para 35,2 ha no Censo de 2006 e oscilando levemente para 36,4 ha no Censo de 2017. Com as devidas ressalvas metodológicas, podemos apontar duas possíveis razões para o aumento do número de estabelecimentos (entre 1995/96 e 2017): a criação de assentamentos rurais em antigos latifúndios, seja pela desapropriação de terras (reforma agrária) ou pela compra (crédito fundiário), em especial nas áreas de usinas de açúcar e álcool falidas no Norte Fluminense; o avanço do cinturão verde em direção ao Noroeste, com a expansão de pequenas lavouras de tomate, pimentão, etc, sobre antigas áreas de pastagem. Já o aumento da área dos estabelecimentos entre 2006 e 2017 é mais difícil de explicar, o que reforça a desconfiança de que se deva aos diferentes momentos de coleta dos dados. Em relação ao pessoal ocupado na agropecuária, observa-se a mesma redução geral entre 1975 e 2017, mas uma pequena recuperação entre os dois últimos Censos, revertendo uma tendência de queda que vinha desde o Censo de 1985, quando atingiu o patamar máximo de 321.912 trabalhadores ocupados. De todo modo, mesmo com o aumento de cerca de 3 mil trabalhadores ocupados entre 2006 e 2017 hoje há menos da metade do pessoal ocupado na agricultura em relação a 1985, apenas 160.571 trabalhadores. Considerando que a população rural do estado é de 525.690 habitantes (Censo Demográfico de 2010), o pessoal ocupado na agricultura corresponde a 30% da população rural, indicando taxas expressivas de moradia rural desconectada de trabalho agrícola, como apontado por Souza (2019). Do ponto de vista da produção agropecuária, é nítido o refluxo da agricultura em detrimento do avanço da pecuária. A área plantada com lavouras caiu de 617.545 ha em 1975 para 190.522 ha em 2017, uma redução de quase 70%. No caso das lavouras permanentes a queda foi de 166.081 ha em 1975 para 59.014 em 2017, sem praticamente nenhuma oscilação ao longo de todo o período, resultando numa redução de dois terços da área. Já a área plantada com lavouras temporárias que cresceu de 451.464 ha no Censo de 1975 para 470.725 ha no Censo de 1985, despencou a partir de então – embora com leve oscilação entre os Censos de 1995/96 e 2006 – atingindo o patamar mínimo de 131.508 ha em 2017, uma redução de quase ¾ da área entre 1985 e 2017. Já área destinada a pastagens que se situava no patamar de 1.800.000 ha no Censo de 1975, caiu consecutivamente até o Censo de 2006, quando atingiu seu menor patamar, na faixa dos 1.200.000 ha, voltando a crescer no Censo de 2017 para a faixa de 1.500.000 ha. Causa estranheza o fato de que entre 1975 7 e 2006 se reduziu a área de pastagens naturais e aumentou a de pastagens plantadas, ao passo que entre 2006 e 2017 voltou a subir a área de pastagens naturais. Mais uma vez podemos estar diante de efeitos das mudanças metodológicas, mas também é provável que uma parte dessa alteração se deva ao avanço de processos especulativos, com a substituição de lavouras por pastagens, uma vez que no mesmo período a área de lavouras caiu 159.311 ha, enquanto a área de pastagens naturais aumentou 233.604 ha. É sempre bom lembrar que, historicamente, no rastro da crise das monoculturas, se expande a criação extensiva de gado, com o intuito de preservar o controle da terra pelo latifúndio, como ocorreu nos casos da cafeicultura em meados do século XX e da cana, no final do mesmo século (Alentejano, 2003). Há fortes evidências de que isto esteja ocorrendo nas últimas décadas no Norte Fluminense em decorrência do aprofundamento da crise do setor sucroalcooleiro. Outro fato que chama atenção é o crescimento da área de matas e florestas entre os dois últimos Censos, da ordem de impressionantes 67%, após um período de declínio entre 1975 e 2006, fazendo com que a área seja praticamente a mesma hoje que em 1975, mais de 500 mil ha. Assim, a área dos estabelecimentos agropecuários do estado do Rio de Janeiro estaria distribuída da seguinte forma em 2017: menos de 10% de áreas destinadas a lavouras, quase 70% destinadas a pastagens e pouco mais de 20% destinadas a matas (Gráfico 1). Se considerarmos que a área legalmente prevista como de reserva legal é de 20%, excluídas as áreas de preservação permanente (matas ciliares, áreas de grande declividade e entorno de nascentes), é bem provável que este dispositivo legal não esteja sendo cumprido. Gráficos 2 e 3 – Uso da Terra no Estado do Rio de Janeiro - 2017 Fonte: IBGE - Censo Agropecuário, 2017. Organizado pelo Autor. A Tabela 1 revela ainda uma retomada do crescimento da frota de tratores, pois esta, que crescera entre 1975 e 1985 de 5.897 para 9.822, recuara nos dois Censos seguintes, atingindo seu menor patamar em 2006, com 7.666 tratores. De lá pra cá houve expressivo aumento da frota, da ordem de 40%, atingindo um total de 10.748 tratores em 2017. É bem provável que este aumento esteja associado ao crescimento do acesso a crédito, em especial ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). 8 Por fim, a Tabela 1 revela a expansão dos rebanhos bovino e bubalino, assim como da produção leiteira no estado do Rio de Janeiro entre 1975 e 2017, em que pese certa oscilação na produção de leite. Mas também revela queda nos plantéis de suínos (em especial) e de aves (que oscila, mas decai, sobretudo nas duas últimas décadas), bem como da produção de ovos (em que pese certa recuperação na última década). Os rebanhos caprino e ovino oscilaram no período, crescendo entre 1075 e 1985, diminuindo na década seguinte e voltando a crescer entre os censos de 1995/96 e 2006. A partir de 2006 o rebanho caprino se mantém estável, mas o de ovinos volta a se reduzir. Já os dados da Tabela 2 são eloqüentes na caracterização da crise da agricultura fluminense, pois, em termos de área colhida houve redução em todas as lavouras analisadas 2 entre 1985 e 2017, ao passo que em termos de produção isto só não aconteceu com o tomate e a mandioca. Tabela 2 – Produção e área colhida das principais lavouras, segundo os Censos Agropecuários – Estado do Rio de Janeiro – 1985-2017 Lavouras Arroz Cana-de-açúcar Feijão Mandioca Milho Tomate Café 1985 85.200 8.030.833 9.184 128.011 75.385 83.248 17.282 Produção (T) 1995/6 2006 17.248 9.221 5.709.830 6.835.315 4.606 5.586 40.465 152.611 33.651 25.786 99.695 212.631 9.398 15.876 2017 1985 1.579 41.715 1.560.746 183.220 3.902 18.526 165.284 17.771 9.135 58.635 85.500 4.513 8.967 16.657 Área colhida (ha) 1995/6 2006 2017 10.548 2.684 525 136.693 151.816 31.689 11.515 6.390 1.885 6.197 10.167 15.638 23.741 10.891 3.186 5.819 2.289 2.325* 12.102 13.702 12.212* Fonte: IBGE, Censos Agropecuários 1985, 1995/96, 2006 e 2017. *Nestes dois casos foram usados dados de 2018 da Pesquisa Agrícola Municipal do IBGE, uma vez que o Censo 2017 registra a produção em mil pés, o que comprometeria a comparação com os anteriores. No caso da mandioca, tanto a produção quanto a área caíram entre 1985 e 1995/96, mas desde então houve crescimento, embora a área colhida em 2017 ainda tenha sido inferior a de 1985, mas a produção foi superior. Já em relação ao tomate, houve aumento da produção entre 1985 e 2006 e queda entre os últimos dois Censos, mas ainda em patamar superior a de 1985. No que se refere à área houve aumento entre 1985 e 1995/96 e queda desde então. A cultura da cana-de-açúcar, a última grande monocultura a se manter no estado, sofreu forte revés nas últimas três décadas. Em 1985, antes da crise do setor sucroalcooleiro na região Norte Fluminense, foram colhidos 183.220 ha de cana, gerando 8.030.333 toneladas do produto. Em 2017 a área colhida foi de apenas 31.689 ha (17,3% do total de 1985) e a produção correspondeu a meras 1.560.746 toneladas (19% do total de 1985). É verdade que entre 1995/96 e 2006 houve certa recuperação, tanto em área colhida como em produção, mas na última década a queda acentuou-se ainda mais. O que sobrou do setor sucroalcooleiro do 2 As lavouras selecionadas representam as mais expressivas em termos de produção no país (com exceção da Soja, cuja produção no estado do Rio sempre foi irrisória), além da importância para a alimentação da população, no caso do Arroz, do Feijão, da Mandioca e do Milho. A inclusão do Tomate deve-se à histórica relevância dessa produção no estado do Rio. 9 Norte Fluminense não é nem sombra do que já foi, o que não é exatamente algo a se lamentar, dado o histórico de violência, exploração do trabalho e devastação ambiental associado historicamente a esse setor, o problema é a falta de uma política que aproveite a crise do setor para impulsionar a reforma agrária e a produção de alimentos no estado do Rio de Janeiro (Alentejano, 2010). Já os casos mais drásticos de redução foram os do arroz e do milho, onde tanto a produção como a área colhida sofreram reduções sucessivas entre os quatro censos. No caso do arroz, a produção caiu em 2006 para 1,8% do que foi verificado em 1985 e a área colhida diminuiu quase 80 vezes. No milho a produção caiu para 12% e a área colhida encolheu quase vinte vezes. Quanto ao feijão houve queda da área colhida entre todos os Censos, mas ligeira elevação da produção entre 1995/96 e 2006, seguida de nova queda entre 2006 e 2017, fazendo com que a produção tenha se reduzido a 42% do total de 1985 e a área colhida a pouco mais de 10%. Por fim, no que se refere à cultura do café, temos uma tendência geral de queda, mas com oscilações entre cada um dos Censos. Entre 1985 e 1995/96 houve queda da produção e da área plantada, seguido de elevação de ambas entre 1995/96 e 2006, voltando a cair a produção e a área colhida entre 2006 e 2017. Portanto, se a crise da agricultura fluminense é generalizada, ela é mais expressiva no que diz respeito aos alimentos básicos, como arroz e feijão, fazendo com que a população fluminense seja obrigada a importar quase a totalidade destes alimentos. Este cenário combina-se com o aumento da especulação fundiária e a ineficácia das políticas agrárias para criar o pano de fundo para o acirramento dos conflitos no campo, como veremos adiante. 2. Os conflitos no campo e a política agrária Uma análise dos conflitos pela terra no Rio de Janeiro nas últimas três décadas indica que o Norte Fluminense foi o principal palco das lutas pela terra no estado do Rio de Janeiro neste período, em especial o município de Campos dos Goytacazes. Tradicional reduto da oligarquia canavieira, a região sofreu um abalo nas estruturas tradicionais de dominação com a presença de movimentos sociais rurais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que passaram a atuar na região depois que a crise do setor sucroalcooleiro nos anos 1990 levou à falência dezenas de usinas de açúcar e álcool. No rastro da crise, com a ociosidade das terras e um grande número de trabalhadores rurais desempregados, várias ocupações de terra foram organizadas, em especial pelo MST, forçando o Incra a intervir desapropriando as terras ociosas e improdutivas, inaugurando um novo momento histórico na região, rompendo com o domínio absoluto da monocultura da cana, embora muitas terras ainda continuem sob o controle do latifúndio, várias delas voltadas para a especulação. Das 27 ocupações feitas no Norte Fluminense em terras de Usina, das quais 21 realizadas pelo MST, 13 áreas foram conquistadas e transformadas em assentamentos rurais (menos da metade), sendo o maior e mais emblemático, o Zumbi dos Palmares, primeira ocupação realizada pelo MST em Campos dos 10 Goytacazes. Nos demais casos as Usinas conseguiram a reintegração de posse e o bloqueio dos processos de desapropriação. Ao todo, 8 usinas tiveram terras ocupadas, sendo que 5 tiveram terras desapropriadas. A Usina que conseguiu maior sucesso no confronto com os movimentos sociais foi a Cambaybha que só teve uma das suas 7 fazendas ocupadas desapropriada e conseguiu sustar os outros 6 processos de desapropriação, alguns arrastando-se na justiça há décadas (Alentejano, 2010). Vale registrar que 18 dessas 27 ocupações (mais da metade) ocorreram no município de Campos dos Goytacazes. O segundo município com maior número de ocupações foi Conceição de Macabu com apenas 3 ocupações. Cabe acrescentar que 5 fazendas pertencentes ao Complexo da Usina Novo Horizonte também foram desapropriadas para fins de reforma agrária, porém, sem que as terras tivessem sido ocupadas, ainda nos anos 1980, no âmbito do I Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Na década de 1990 foram realizadas 7 dessas ocupações, marcando o início da atuação do MST na região, como pode ser observado no Mapa 1. Mapa 1 - Número de Conflitos pela Terra no estado do Rio de Janeiro com início na década de 1990 Outra região do estado onde o MST também passa a atuar nos anos 1990 foi a das Baixadas Litorâneas, onde foram ocupadas terras públicas que estavam sendo griladas por fazendeiros no entorno da Reserva Biológica Poço das Antas, entre os municípios de Silva Jardim e Casimiro de Abreu. Trata-se de 11 terras que foram destinadas ainda nos anos 1970 para o Incra assentar famílias retiradas da área onde foi criada a reserva, porém, o Incra não assentou as famílias e fazendeiros grilaram as terras. Quando o MST descobre essa situação nos anos 1990, ocupa as áreas e pressiona pela destinação das mesmas para a criação de assentamentos, entretanto, só um foi criado à época – o Sebastião Lan I – e as demais terras continuaram em disputa, uma vez que o Ibama – e depois o ICMBio 3 – alegaram que a criação de assentamentos impactaria a Reserva Biológica, ameaçando a reprodução da principal espécie preservada na área, o MicoLeão Dourado. Com o incentivo do Ibama/ICMBio, os fazendeiros da região passaram a criar Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs), sob a alegação da criação de corredores para a circulação do Mico-Leão Dourado, estabelecendo uma blindagem contra as desapropriações de terra e limitando as possibilidades de avanço da reforma agrária nas Baixadas Litorâneas. Não à toa, Silva Jardim é o segundo município do estado do Rio de Janeiro com maior número de RPPNs, atrás somente de Nova Friburgo.4 Por fim, vale registrar em relação aos conflitos dos anos 1990 as ocupações realizadas pelo MST no Médio Vale do Paraíba, nos municípios de Barra Mansa e Resende, abrindo uma terceira frente de atuação do Movimento no estado do Rio, aproveitando as extensas áreas de pastagens que substituíram a cafeicultura na região desde meados do século XX. Na década de 2000 a interiorização dos conflitos continua sendo a tônica, assim como as ocupações de terras de usina, sendo Campos dos Goytacazes novamente o município onde mais ocorreram conflitos, com 13 registrados, a maioria ocupações de terra realizadas pelo MST, mas também pela FETAG. Registrese ainda os despejos violentos, como os que ocorreram na Usina Cambahyba, onde famílias que já se encontravam acampadas há quase uma década foram violentamente despejadas com a destruição de casas de alvenaria, chiqueiros, currais e árvores arrancadas. Também na região Sul Fluminense os conflitos seguem o mesmo padrão da década anterior, com a ocupação de antigas fazendas de café, transformadas em áreas de pecuária extensiva ou em áreas de plantio de eucalipto para uso industrial. Aparecem ainda os primeiros registros de conflitos envolvendo a implantação de grandes projetos de desenvolvimento, como no Porto do Açu, em São João da Barra, no Norte Fluminense. E na região Metropolitana, conflitos envolvendo quilombos e aldeamentos indígenas. 3 O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade foi criado em 2007, a partir de uma reestruturação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama, separando-se a gestão das unidades de conservação – que ficou a cargo do ICMBio, das demais ações ambientais – que permaneceram com o Ibama. 4 No portal do ICMBio constam 66 RPPNs no estado do Rio de Janeiro (http://sistemas.icmbio.gov.br/simrppn/publico/rppn/RJ acessado em 27 de janeiro de 2010) e na página do INEA (http://www.inea.rj.gov.br/Portal/Agendas/BIODIVERSIDADEEAREASPROTEGIDAS/RPPN/index.htm - acessado em 27 de janeiro de 2010) outras 84 RPPNs, totalizando 150 RPPNs, das quais 21 em Silva Jardim e 22 em Nova Friburgo. 12 Mapa 2 - Número de Conflitos pela Terra no estado do Rio de Janeiro com início na década de 2000 Os conflitos na década de 2010 no estado do Rio de Janeiro estão concentrados principalmente em duas regiões: Norte e Sul Fluminense. Como visto no mapa 4, essas são as duas regiões que somadas registram maior concentração de conflitos comparados às outras regiões. Mesmo assim, a região Norte Fluminense está na frente em número de conflitos, com aproximadamente 18 conflitos por terra. Esses conflitos do Norte do estado, principalmente os do município de São João da Barra, são causados por causa da construção do Complexo Industrial e Portuário do Açu, conforme apontado anteriormente. Despejos violentos, reocupações de terra, retirada forçada de gado são alguns dos inúmeros episódios que marcam o conflito do Açu. Mas é também no Norte Fluminense, mas em Campos dos Goytacazes que temos um dos episódios mais brutais da história recente dos conflitos pela terra no Rio de Janeiro, o assassinato de Cícero Guedes, liderança do MST, assentado no Zumbi dos Palmares, morto em 2013 no Acampamento Luís Maranhão, em área reocupada da Usina Cambahyba, por seu apoio à organização das famílias do acampamento. Também nesta década tivemos o assassinato de Regina Pinho, igualmente militante do MST e assentada no Zumbi dos Palmares. A segunda região que mais registrou conflitos na década foi a Sul, principalmente na parte litorânea, nos municípios de Paraty e Angra dos Reis, onde desde os anos 1970 não se observava tantos conflitos. Os conflitos na região envolvem comunidades caiçaras, como a da Praia do Sono em Paraty e o condomínio 13 Laranjeiras, que tem dificultado o acesso dos moradores e visitantes até a praia para usar os barcos e chegar até a Praia do Sono, forçando-os ao uso de uma longa trilha. E comunidades quilombolas, como a do Bracuí, em Angra dos Reis, onde recentemente a escola foi pichada com ameaças a lideranças locais. Mapa 3 - Número de Conflitos pela Terra no estado do Rio de Janeiro com início na década de 2010 Assim, um dos principais vetores dos conflitos por terra no estado do Rio de Janeiro na última década foi a implantação em diversas regiões do estado de grandes projetos de desenvolvimento com impactos nas áreas rurais, seja pela valorização das terras, seja pela expulsão de trabalhadores rurais de suas terras. O mapa 4 aponta a localização destes grandes projetos implantados ou projetados. 14 Mapa 4 – Grandes Projetos de Desenvolvimento no estado do Rio de Janeiro – 2007-2010 Há inclusive assentamentos sob impacto direto de grandes obras, como é o caso do Assentamento Terra Prometida, que fica no limites dos municípios de Nova Iguaçu e Duque de Caxias e foi cortado pelo Arco Metropolitano, assim como o Zumbi dos Palmares, em Campos dos Goytacazes que esteve ameaçado pela construção de uma variante da BR-101, e do Ilha Grande e do Che Guevara, também em Campos, atingidos pela criação de unidades de conservação criadas para compensar os impactos ambientais do Porto do Açu em São João da Barra. Isto sem falar nas antigas áreas de colonização do Vale do Guapiaçu em Cachoeiras de Macacu ameaçadas pela construção de uma barragem projetada como compensação ambiental da instalação do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj) no município vizinho de Itaboraí. Se a luta nos anos 1990 e 2000 levou à conquista de um número expressivo de assentamentos, na década de 2010 o cenário é bastante adverso neste sentido. A tabela 2, abaixo, expressa nitidamente essa diferença, pois ao passo que na década de 1990 foram criados 13 assentamentos e nos anos 2000 mais 22 assentamentos, este número cai para 5 na década de 2010, sendo que após o golpe de 2016 não foi mais criado nenhum assentamento. Além disso, dos 5 assentamentos criados nos anos 2010, um é resultado de uma ocupação realizada nos anos 1990 (Sebastião Lan, em Silva Jardim) e outro de uma ocupação realizada no início dos anos 2000 (Irmã Dorothy, em Quatis), ou seja, trata-se de acampamentos que duraram 10 ou até 20 anos. 15 Tabela 1 – Assentamentos criados pelo Incra no estado do Rio de Janeiro nas décadas de 1990, 2000 e 2010 Assentamentos Década de 1990 Década de 2000 Década de 2010 Municípios Capacidade criados 13 11 1631 22 10 1142 5 5 192 Fonte: Incra – Organização do Autor. Nº de Área total Famílias 1475 983 70 (ha) 20.274,97 18982,45 4.725,62 Assim, ao cenário histórico de entraves ao processo de reforma agrária no Brasil, somam-se nos últimos três anos desafios adicionais, decorrentes de uma orientação explícita de paralisação da política de criação de assentamentos. Entre os entraves históricos podemos apontar: 1. Os índices de produtividade que remontam aos anos 70 fazem com que muitas áreas vistoriadas sejam dadas como produtivas e, por outro lado, boa parte das que são enquadradas como improdutivas apresentam restrições ambientais e produtivas que levam os técnicos a não recomendar a desapropriação das áreas, o que resulta em um índice de vistorias frustradas superior ao de exitosas. 2. Diante desse cenário de dificuldades crescentes para obtenção de terras, quando as desapropriações ocorrem elas incidem sobre terras cada vez piores, sejam elas terras com alto grau de degradação resultantes de anos de monocultura ou pastagens, com inúmeros afloramentos rochosos ou ainda com sérios problemas de drenagem, o que torna cada vez mais complexo o desafio de torná-las produtivas e viabilizar os assentamentos. 3. Os mecanismos legais que protegem os proprietários de terra contra as desapropriações (como a notificação prévia das vistorias, o direito de contestar judicialmente a desapropriação, etc) 5, somados à interpretação conservadora dada pelo poder judiciário à legislação, resultam num bloqueio judicial que entrava o avanço da reforma agrária no país. 4. A morosidade e a ineficiência do Incra representam obstáculos adicionais, resultado do sucateamento material e funcional do órgão, carente de equipamentos, viaturas e pessoal, além das denúncias de corrupção que pairam sobre o órgão, em especial as relações promíscuas com os donos de terra – muitas vezes avisados anteriormente da ocorrência de vistorias – e as ações ilegais de regularização de venda de lotes em assentamentos. 5. A resistência dos setores conservadores presentes nos três poderes impede qualquer avanço na política agrária brasilera, seja a atualização dos índices de produtividade, a efetivação em sua integralidade do princípio da função social da terra – uma vez que permanecem sem regulamentação as dimensões trabalhista e ambiental – e a aplicação do dispositivo constitucional relativo às áreas 5 Interessante notar que estes procedimentos diferem dos que norteiam os processos de desapropriação de terras urbanas, pois neste caso, quando ao poder público interessa a desapropriação de uma área não há necessidade de notificação prévia, nem direito de contestação judicial. Quando uma prefeitura ou governo estadual ou federal decide realizar uma obra e para isso precisa derrubar uma casa ou desapropriar um terreno, ao proprietário só é dado o direito de contestar o valor da indenização, mas não de contestar a desapropriação em si. 16 remanescentes de quilombos, questionada judicialmente pelas entidades patronais e seus representantes políticos. A estes entraves históricos se somaram a partir do golpe de 2016 novos desafios. Primeiro, o governo Temer deixou claro seu posicionamento em relação às disputas no campo brasileiro logo em seus primeiros atos, quando extinguiu o Ministério do Desenvolvimento Agrário e cancelou desapropriações de terra e demarcações de terras indígenas e quilombolas. Ao fazê-lo atendeu reivindicações expressas da Bancada Ruralista. Em agosto de 2016, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) – nome oficial da Bancada Ruralista – e o Instituto Pensar Agropecuária (IPA) lançaram um documento denominado “Pauta Positiva – Biênio 2016-2017”, assinado pelas duas entidades e mais 38 associações ligadas ao agronegócio, encabeçado pela ABAG – Associação Brasileira do Agronegócio. Neste documento são elencadas as principais propostas do setor para o biênio 2016/2017, a partir de um diagnóstico das possibilidades abertas para a superação da crise econômica e política, com a efetivação do governo (golpista) de Temer e a concretização do afastamento da Presidente (eleita) Dilma Roussef. Na avaliação apresentada pelo documento, a concretização dessas medidas deveria ser conduzida por um Ministério da Agricultura fortalecido, sob o comando de “um líder diferenciado, que tenha conhecimento profundo do setor e que tenha, principalmente, estreito relacionamento com as entidades representativas e com as lideranças políticas.” (FPA/IPA, 2016: 1) Analisando a composição ministerial do governo Temer não resta dúvida de que esta reivindicação foi atendida, pois foi indicado para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) um dos maiores produtores rurais do país e senador por Mato Grosso (estado onde todos os parlamentares pertenciam à FPA na legislatura 2015-2018), Blairo Maggi. Após esta breve introdução, o documento lista a “Pauta Positiva” do setor, indicando os objetivos e as alterações legais necessárias para que os mesmos sejam atingidos. As propostas envolvem cinco temas: Governança Institucional; Política Agrícola; Direito de Propriedade e Segurança Jurídica; Meio Ambiente; Defesa Agropecuária; Relações Trabalhistas. No que diz respeito às questões atinentes a este texto as principais convergências entre as reivindicações da Bancada Ruralista e as ações do governo Temer podemos destacar a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA e a divisão de suas atribuições entre o MAPA e o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e a edição de uma nova legislação sobre regularização fundiária (facilitando a legalização de processo de grilagem), titulação dos assentamentos rurais (acelerando a titulação definitiva e regularizando ocupações irregulares), seleção de beneficiários da reforma agrária (enfraquecendo os movimentos de luta pela terra e fortalecendo o poder municipal). 17 Com isso, fortaleceu-se um movimento que já vinha se delineando desde o início do governo Dilma, sob intensa pressão dos grupos que capitanearam o golpe um ano mais tarde, em que as ações relacionadas à política de reforma agrária foram praticamente paralisadas. No ano de 2015 nenhuma terra foi desapropriada no Brasil e em 2016 apenas 21 imóveis foram desapropriados, somando minguados 35.089 hectares. Em compensação, após a consumação do golpe e sob nova orientação política do governo, foram entregues ao longo de 2017 um total de 123.553 títulos de terra a assentados, sendo 26.523 Títulos de Domínio e 97.030 Contratos de Concessão de Uso (Fonte: www.incra.gov.br – acessado em 05.02.2018). De acordo com o exposto na página do Incra na internet, o Contrato de Concessão de Uso (CCU) “transfere o imóvel rural ao beneficiário da reforma agrária em caráter provisório e assegura aos assentados o acesso à terra, aos créditos disponibilizados pelo Incra e a outros programas do Governo Federal (sic) de apoio à agricultura familiar.” (www.incra.gov.br – acessado em 05.02.2018). Essa é historicamente a forma de titulação da terra defendida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), por assegurar que a terra permanecerá no domínio público, sendo mantida geração após geração sob o controle das famílias assentadas, não sendo possível sua comercialização, o que significa que a terra se mantém como bem público sob usufruto dos camponeses e não como mercadoria disponível no mercado de terras. Já o Título de Domínio (TD) é definido como “o instrumento que transfere o imóvel rural ao beneficiário da reforma agrária em caráter definitivo. É garantido pela Lei 8.629/93, quando verificado que foram cumpridas as cláusulas do contrato de concessão de uso e que o assentado tenha condições de cultivar a terra e de pagar o título de domínio em 20 (vinte) parcelas anuais.” Neste caso, a terra, uma vez de posse definitiva da família assentada e paga por esta ao governo, pode retornar ao mercado de terras e ser comercializada, como qualquer outra terra privada. Embora conste da legislação brasileira sobre reforma agrária desde 1993, a prática de concessão de títulos definitivos pouco foi aplicada no Brasil desse então, prevalecendo a titulação provisória que impedia a recolocação da terra no mercado. Houve um breve período de exceção no final do II Governo FHC, quando foram emitidos 62.196 títulos definitivos entre 2000/2002, mas logo depois tal política foi praticamente abandonada, de forma que entre 2003 e 2015 foram emitidos apenas 22.729 títulos definitivos. A limitação da aplicação do dispositivo legal de titulação definitiva das terras dos assentamentos se devia, em larga medida, à oposição dos movimentos sociais, em especial do MST, mas também ao fato de que as condições legais para a titulação dificilmente eram atingidas, uma vez que quase nunca se observava o cumprimento das “cláusulas do contrato de concessão de uso”. Entretanto, o governo Temer, atendendo a reivindicação expressa da Bancada Ruralista, alterou a legislação relativa a essas cláusulas, reduzindo as exigências para a titulação definitiva, com o objetivo de acelerar o processo de disponibilização destas no mercado de terras. 18 Em entrevista coletiva destinada a apresentar um balanço das ações do Incra no ano de 2017, o presidente do órgão afirmou que: “No fim de 2016, 85% dos lotes da reforma agrária não tinham o documento. Concentramos esforços e reduzimos esse número de forma expressiva em apenas um ano”, salientou o presidente do Incra. (www.incra.gov.br – acessado em 05.02.2018) A comparação do número de títulos emitidos com o de terras desapropriadas deixa evidente qual a prioridade do governo Temer: só 21 desapropriações – isto é praticamente nenhuma terra transferida de latifundiários para assentados; 26.523 títulos definitivos entregues – terras que poderão agora inclusive ser vendidas, principalmente por aqueles que não tiverem condições de pagar as parcelas anuais, aos quais só restará o recurso de vender a terra ou parte dela para quitar sua dívida com o governo. Com a eleição de Bolsonaro o cenário ficou ainda pior, dada a posição explícita de não destinação de terras para a criação de assentamentos, territórios quilombolas e terras indígenas. Além disso, aumentou a pressão pela titulação privada definitiva dos lotes de assentamentos. No estado do Rio de Janeiro, a política de titulação de terras avançou pouco na direção da orientação política dos governos Temer e Bolsonaro de priorizar a entrega de títulos de domínio. No estado existem 80 assentamentos rurais, dos quais 64 do Incra (4 NCs, 52 PAs, 1 PCA, 2 PDS, 5 PICs e 1 RESEX MAR) , 1 Municipal e 14 Estaduais. A capacidade prevista para os 80 assentamentos é de 10.947 famílias, mas o número de famílias assentadas é de 5.882, numa área total de 177.638,4 ha. No que se refere aos 64 assentamentos do Incra, a área total é de 169.835,028 ha, a capacidade de assentamento é de 9.769 e o número de famílias assentadas de 5090. Cabe registrar, porém, que essa contabilidade envolve áreas muito antigas (como os NCs e PICs) e uma Reserva Extrativista Marinha relacionada a uma comunidade de pescadores. Se descontarmos essas áreas, teríamos uma capacidade de 4.949 e um total de 4.235 famílias assentadas. Dos 64 Assentamentos do Incra, 38 tiveram algum tipo de ação de Titulação realizada (59,4%), sendo 1 com CDR, 11 com TDs e 28 com CCUs. Foram emitidos um total de 1.664 títulos, sendo 1.127 CCUs (67,7%), 497 TDs (29,9%) e 40 CDRs (2,4%). Considerando que os governos Temer e Bolsonaro colocaram a emissão de TDs como objetivo político e prioridade absoluta do trabalho do Incra é possível afirmar que no caso do Rio de Janeiro este não tem sido cumprido, por razões que precisamos investigar para compreender melhor. Uma das possibilidades são os entraves judiciais, uma vez que só as áreas sob o controle definitivo do Incra podem ter emissão de TD. Como muitos processos de desapropriação não foram concluídos, devido a contestações dos antigos proprietários, seja em relação ao mérito, seja em relação ao valor das indenizações, o Incra não tem a propriedade destas terras e assim não pode transferi-las para os assentados. 19 Conclusão O estado do Rio de Janeiro é o mais urbanizado da federação, com aproximadamente 97% de população urbana. O que não significa dizer que as áreas rurais do estado sejam exatamente vazios demográficos, afinal, são mais de 500 mil pessoas vivendo no campo, mais do que em 10 outros estados e no DF, segundo o Censo Demográfico de 2010 do IBGE. Essa, população, porém, tem recebido muito pouca atenção dos sucessivos governos fluminenses, em especial a parcela desses que vive da agricultura, atividade cada vez mais negligenciada pelas políticas públicas no estado. Discursos como o da “vocação urbana”, da “vocação turística”, da “vocação energética”, buscam naturalizar os caminhos escolhidos para o desenvolvimento do estado do Rio de Janeiro, assim como os processos decorrentes destes. Foi o que se verificou com a instalação em diversas regiões do estado de grandes projetos de desenvolvimento com impactos nas áreras rurais, seja pela valorização das terras, seja pela expulsão de trabalhadores rurais de suas terras, atingindo inclusive assentamentos rurais como o Terra Prometida, cortado pelo Arco Metropolitano, o Zumbi dos Palmares, ameaçado pela construção de uma variante da BR-101 em Campos dos Goytacazes, e do Ilha Grande e do Che Guevara, também localizados em Campos, atingidos pela criação do Parque Estadual do Açu, compensação ambiental do Porto do Açu. Assim, o que se tem verificado no estado do Rio nas últimas décadas é o agravamento das desigualdades e da crise agrária, a partir do aumento da concentração fundiária, da expulsão de trabalhadores do campo e da redução generalizada da produção agrícola, em especial de alimentos básicos, com forte impacto sobre a soberania alimentar. E não se trata de processos naturais e inexoráveis, mas de escolhas políticas direcionadas pelas forças dominantes que articulam os novos interesses do grande capital (energia e turismo) com os velhos interesses das oligarquias fundiárias, que agora se capitalizam vendendo terras para a expansão urbana ou se associando a “novos” empreendimentos, como os hotéis-fazendas erguidos nas antigas sedes das fazendas de café, alguns dos quais chegam a encenar a escravidão para seus hóspedes do século XXI... Nada mais representativo da tradicional articulação entre o moderno e o arcaico no Brasil. Bibliografia ALENTEJANO, Paulo. 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