KANT E A MEDIDA DA RAZÃO Passados 2 séculos desde o surgimento da Crítica da Razão Pura, pode-se dizer, com certa suficiência, que chegamos atrasados ao seu lançamento. Um atraso compreensível e, em certa medida benéfico, pois esse distanciamento permite-nos algumas lições que a contemporaneidade de Kant não teve acesso. Uma certa suficiência...uma certa medida... fórmula amena de gaguejar quando o assunto e a ocasião tem mais vulto que nossas certezas. Mas é dessa maneira que posso começar a tratar do tema, esperando uma maior firmeza no decorrer da exposição. Espero que a primeira afirmação tenha produzido a inquietude crítica de esperar-se dos ouvintes que são agredidos com absurdos, já que nenhuma insegurança sustentaria a incerteza de estarmos distantes da época de lançamento da obra magna de Immanuel Kant. Amparado na suposição de que tal coisa ocorreu, vou tentar justificar a relatividade com que adjetivei nosso atraso. E isso se deve ao fato de acreditar que a distância histórica nos aproxima da obra. A certa de medida de benefício, então aventada, é o que garante o complementar à suficiência, e nos torna aptos a tecer considerações adequadas a respeito. Pois bem, 1781, a Crítica da Razão Pura acaba de ser impressa nas gráficas de Grünert, em Halle. Kant está com 57 anos. A modernidade está sendo construída sobre sustentáculos racionalistas e empiristas. As metafísicas de Leibniz e de Descartes exorbitam o estreito mundo da experiência de Locke e Hume. Newton morreu há 54 anos, deixando os Principia como um devastador problema epistemológico às duas principais correntes de pensamento. Mas há mais coisas no ar; há 15 anos (1766) o próprio Kant publicara um ensaio sobre Swedenborg, denominado “Sonhos de um Visionário Interpretados Mediante os Sonhos da Metafísica”. O que já é uma marca da preocupação de Kant com a desrazão da Razão. A sua solução para o problema epistemológico seria composta por uma redução da Razão metafísica e um acréscimo ao Entendimento empirista. Nesse mesmo 1781, na França, são aceitos 138 homens em Saint-Eustache de Bicêtre, e 224 mulheres na Misericórdia, em Salpêtrière, todos com doenças venéreas. São personagens dos primórdios do asilamento da loucura. Em 1785, quando Kant publicar a “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” já haverá um decreto da Assembléia instituindo que se pergunte a cada internado na França “se ele é louco ou não”, indício de uma medicina da loucura. Entre 1787 e 1789, época do lançamento da “Crítica da Razão Prática”, Pinel escreve vários artigos sobre as 1 “doenças do espírito”, na Gazette de Santé. Afinal, em 1790, quando da publicação da “Crítica da Faculdade de Julgar”, a última delas, Weickhard, em “Der Philosophische Arzt” lista 9 tipos de Doenças do Espírito e 2 do Sentimento. Nesse mesmo ano surge a lei que prevê a criação dos hospícios na França. Essa introdução quer sugerir um fundo de contraste, contra o qual a Crítica da Razão Pura apareça como uma medida. E como contraponto antepor uma crítica da Crítica, no sentido de que a racionalidade que representa não é um absoluto nesse final de século iluminado pela Ilustração. Feita essa preliminar... Kant não publicava desde a sua admissão como professor titular de Lógica e Metafísica na Universidade de Königsberg. Onze anos, portanto, após a tese “Dissertação Sobre a Forma e os Princípios do Mundo Sensível e do Mundo Inteligível”, pela qual alcançara a qualificação para a docência, Kant explicita a audácia que lá se desenhava; colocar em xeque a metafísica. Ora, essa pseudo-ciência, cujas realizações jamais poderiam comparar-se aos feitos estonteantes da matemática e da física, desde os gregos, devia ser rigorosamente examinada mesmo que tal análise demolidora devesse ser feita por um amante seu. Esse amor de Kant pela metafísica não o impedia, no entanto, de reconhecer que o edifício metafísico havia sido construído sobre um equívoco fundamental; o de que o conhecimento intelectual pudesse se dar sem referência à experiência. Esse engano básico permitia o uso puro de noções só possíveis quando associadas ao sensível, o que expandia o uso da razão além da medida que lhe cabia. A reação ao surgimento da Crítica da Razão Pura poderia ser resumida no escândalo contido do discípulo Schütz, professor em Jena, à época: “O que torna mais difícil a leitura de seu livro não é apenas a dificuldade e sublimidade da especulação de que trata, mas o fato de estar escrito de um jato só e não conter nenhum parágrafo nem indicação de parágrafos. Tratei eu mesmo de dividi-lo em parágrafos, após o que restaram poucos pontos obscuros.”(10-07-1784) Kant não se iludia com relação à possibilidade de uma acolhida favorável. Em carta escrita a Marcus Herz, em 11-05-1781, exprime: “Tudo o que espero é um leitor que tenha consciência do lamentável estado em que se encontra a metafísica, em que ela sempre se encontrou: percorrendo este livro, talvez ele perceba como vale a pena 2 consagrar esforços a esta sorte de pesquisas, que devem produzir ‘uma mudança total no modo de pensar’.” A incompreensão é, portanto, inescapável. O conteúdo daquelas pesquisas era, aliás, expresso de uma forma hermética. Lebrun acentua a necessidade que tinha Kant de privilegiar “o rigor aos artifícios pedagógicos”. A 11 de maio de 1781 Kant teria advertido a Marcus Herz: “Esta espécie de investigação será sempre difícil, porque contém a metafísica da metafísica.” O pensamento pré-crítico já apontava para a insolubilidade das questões metafísicas por excelência; a alma, o mundo e Deus...a liberdade, a imortalidade. Seria, agora, a morte dessa metafísica? Ora, se estivéssemos condenados a conhecer as coisas somente como nos aparecem teríamos sérios problemas com relação à garantia daquelas mesmas ciências (matemática e física) que eram referência de conhecimento verdadeiro. O caráter da ciência é tal que as proposições científicas devem ser necessárias e universais, o que implica uma racionalidade independente das circunstâncias da experiência. Isso implica conceder que se as metafísicas defendidas até então (e o estarem no plural já é sinal de invalidez) não são possíveis, porque não houve uma preocupação anterior em conhecer os limites do pensar puro, não obstante a metafísica é possível, pelo menos em princípio, basta que seus argumentos se revistam do mesmo caráter de necessidade e universalidade que o do conhecimento das ciências (há certamente um privilégio para a matemática, dado o seu estrito formalismo). Nos Prolegômenos, em 1783, Kant aborda a possibilidade futura da metafísica via “juízo sintético a priori”. Fora desta perspectiva, porém, toda a investigação pura é vã, e séculos de especulação é resultado da vaidade. O mesmo golpe que desinstala a metafísica do berço esplêndido da a-criticidade em que reinou desde Aristóteles, instala a garantia do conhecimento racional puro. Paradoxo? É o que pareceria a uma leitura rápida. Como é possível um pensamento que acusa a metafísica de pensar somente, pretender um tão somente pensar? Ora, Kant resolvera o aparato cognoscente humano num entendimento fundado em conceitos e numa sensibilidade em termos de intuições, e ainda, garantira os conceitos puros e as intuições puras como sustentação do juízo sintético a priori. O primeiro e fundamental passo dado no sentido de compatibilizar o pensamento puro com os objetos da experiência, entre os quais haveria um hiato, foi o de propor que nosso conhecimento só se aplica a fenômenos, que são representações da empiria. Para Kant, todo o conhecimento deriva de juízos que, por sua vez, são operações com conceitos. Se nosso 3 conhecimento é em parte conceitual e a experiência só é possível se complementada com as representações sensíveis da intuição então nossos conceitos empíricos referem-se a representações sensíveis, e esse é, em última análise, o nosso conhecimento válido; a judicação sobre representações sensíveis tornadas conceitos pela subsunção em categorias. Essa aproximação da razão com o sensível não é suficiente para colocar-nos em contato com a coisa-em-si. Agora estamos, pelo menos teoricamente, alijados de Deus e do Ser. O que nos é concedido é a posição: relativa no juízo, absoluta na sensibilidade, portanto, relativamente absoluta se considerada na experiência. Nossos conhecimentos são de uma experiência possível, mesmo o mais rigoroso deles, o científico. Mas, e isso é fundamental, podemos conhecer a priori. Podemos tanto fundamentar uma ciência empírica (como a física) como desenvolver uma ciência formal (como a matemática1) e, é claro, resgatar a possibilidade de uma metafísica futura. Enfim, pode-se pensar conceitualmente sem confundir-se o intelectual e o sensível — até porque a fusão, ou síntese de ambos é agora pressuposta. Mais que isso, pode-se fundamentar o conhecimento fenomênico na necessidade universal do a priori, e assim dar a explicação de como era possível a física de Newton. A REVOLUÇÃO COPERNICANA Em 1787, Kant publica a 2a edição da Crítica. Sua preocupação com a modéstia desaparece (ou quase) das considerações a respeito. Entende seu trabalho como “uma revolução total no método que até agora foi seguido em Metafísica”. Muita coisa mudou desde o lançamento da 1a. edição. Os correspondentes não lhe dão descanso. Os holandeses lêem e comentam a Crítica (Jenisch - 14/5/87). Indignações como as de Bering (28/05/87) e de Born (06/10/88) com as versões “venenosas” de seus professores (Feder e Plattner, respectivamente) indicam, em conjunto com a disputa pelas anotações de curso de seus estudantes, uma crescente aceitação daquela mesma Crítica que chocara Garve e Mendelsohn, cada um à sua maneira, em 1783. Nos anos sessenta de sua vida, Kant tem um grupo de fiéis seguidores, seus antigos alunos, que liberam-no da maior parte do trabalho de elucidação dos pontos obscuros da obra. Kant se reserva a casos como o do professor Eberhard, que julga a Crítica desnecessária, dado que o 1 Em Kant o caráter “formal” da matemática deve ser visto com reservas, já que, como ciência a priori, depende da relação com as intuições de espaço - para a geometria - e de tempo - para os números. É, no entanto, diversa da ciência empírica, e é dessa distinção que se nutriu a referência que gerou esta nota. 4 problema já fora resolvido por Leibniz. É de se salientar que “Da Utilidade de uma Nova Crítica da Razão Pura (Resposta a Eberhard)” é considerado por Lebrun um dos melhores textos da pedagogia kantiana. A glória não tardou a mostrar o seu aspecto negativo, aparente em conflitos do tipo; Jacob Beck critica Fichte, o aluno mais brilhante e o predileto de Kant, anunciando que aquele devia andar à procura de sectários, como fê-lo com o próprio Beck, através da sugestão; “‘Sei muito bem que o senhor pensa, como eu, que é o entendimento que cria a coisa’ além de identificar filosofia teórica e filosofia moral...estupidez! Para falar assim é preciso nunca haver penetrado os princípios críticos...” (24-6-1797) À heresia de Fichte, Beck contrapõe o acréscimo à exposição impecável que fizera em 1794 de um capítulo, no qual propõe a necessidade de uma síntese entre intuição e entendimento em algo mais fundamental. Como esses, Reinhold e os antigos alunos dispunham-se a dar interpretações que tornassem a Crítica compreensível. Com esses retoques o sistema de Kant ficava, evidentemente, perfeito. A posição de Kant pode ser generalizada da resposta dada a Marcus Herz relativamente à apresentação do revisionista Maimon: “Pede-me, caro amigo, para incluir na edição desse livro uma apreciação minha: seria muito pouco oportuno, porque este livro, em grande medida, é dirigido contra mim” (26-05-1789) A distância entre o velho Kant e os “jovens kantianos” aumentava. Sua Metafísica não chegava nunca, e é possível que ele tenha tido consciência da fragilidade de demonstrações fundamentais. Em 1799, Fichte apresenta o sistema crítico “afinal completado”. Kant descontrola-se e, após uma calorosa defesa da Crítica como a filosofia pura em sua totalidade, sem a necessidade de remendos, desabafa o adágio popular: “Deus nos guarde dos amigos! Porque dos inimigos cuidamos nós mesmos.” (07-08-1799) Fichte tem 37 anos, Hegel 29, Schelling 24. Cada um dará um rumo próprio ao kantismo, identificando-lhe, é claro, o espírito, ao invés da letra. 5 REFLEXÃO FINAL Queria concluir essa apresentação com algumas considerações que me parecem complementar o exposto num aspecto relevante. Da forma como foi proposta a motivação principal de Kant ao escrever a Crítica da Razão Pura, fica clara a pressuposição de redefinição do papel da metafísica na filosofia. Todavia não é esta a única leitura possível. Os temas que originaram a Crítica podem ser questões de ordem cosmológica, provocadas pela reflexão de Kant sobre a física de Newton. O que implicaria uma reformulação da metafísica na medida em que a estrutura do aparato epistêmico do entendimento impossibilitava o acesso à coisa-em-si. O que, por sua vez, desertificava aquela metafísica. A ausência de sentido nas questões transcendentes provocaria então a sua desarticulação. O caráter negativo da Dialética Transcendental, comparativamente ao positivo da Analítica Transcendental, em que a Teoria do Entendimento é construída, se não implica ao menos possibilita uma postura céptica com relação à importância da metafísica na formulação da Crítica da Razão Pura. Independentemente das abstrações relativas às questões originárias da Crítica, fato inegável é que Kant introduz um novo critério epistemológico, fundado na noção de “juízo sintético a priori”, e que aparece como termo médio entre o racionalismo e o empirismo. O Idealismo Transcendental é o momento de uma concepção renovada da racionalidade moderna. Essa Razão, no entanto, pode ser problematizada, no mínimo para impedir que exceda o contexto histórico em que se justifica. Foucault define o que entende ser a essência da loucura, como vai ser implicitamente transmitida ao século seguinte; “Doravante, todo domínio objetivo sobre a loucura, todo o conhecimento, toda verdade formulada sobre ela será a própria razão recoberta e triunfante, o desenlace da alienação”2 A ironia com que porventura eu distinga os sucessores de Kant, quero crer, é da mesma ordem da que associei ao surgimento das Críticas, de modo que espero, humildemente, garantir a condição de isenção que seria de se esperar desse trabalho. 2 História da Loucura da Idade Clássica, p. 471. 6 (Este texto apoiou-se fundamentalmente no artigo de Gérard Lebrun - Os Duzentos anos desta Crítica, publicado em 16-05-1981, no Jornal da Tarde, e disponível em Passeios ao Léu, da Brasiliense. Socorri-me também de Michel Foucault - História da Loucura na Idade Clássica e de A Loucura na Razão Pura de Monique David-Ménard. ) Pelotas, 30 de setembro de 1997. Cesar Tadeu Fontoura 7