Ana Claudia Alves de Aquino Garcia

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Anais do Seminário Nacional de História da Historiografia:
historiografia
brasileira e modernidade.
O PANORAMA HISTORIOGRÁFICO NO BRASIL COLÔNIA
Ana Claudia Alves de Aquino Garcia
Mestranda/Universidade Federal de Goiás
Este trabalho pretende investigar o processo de estabelecimento de relações entre
a historiografia, a memória, o tropeirismo e a modernidade representada pelo trem de
ferro, que chegou ao sertão goiano no início do século XX. Ao delimitar tais objetos de
investigação, tornou-se necessário determinar um percurso teórico-metodológico para
sustentar a análise. E é esse percurso que vai dar sentido ao objeto em estudo.
Todo estudioso sabe que a memória, em seu diálogo permanente com a história,
compõe-se de lembranças, esquecimentos e silêncios. Por sua vez, a história do
tropeirismo goiano, é lacunar e permeada por profundos silêncios. A partir dessa
constatação surgiu a idéia de investigar o tema, de singular importância para o
desenvolvimento socioeconômico do Estado e merecedor de poucos estudos
historiográficos. Sabe-se que, desde o século XVII até os primeiros decênios do século
XX, um contínuo movimento de tropas traçou uma intensa rede de relações econômicas
e socioculturais que interligou o território nacional. Mais que ranhuras, as lagartas do
sertão traçaram teias. Teias de comércio, de vida e de silêncio...
Na presente apresentação, busco
perpassando
os
conceitos
dos
recuperar parte da historiografia nacional,
autores
considerados
clássicos,
a renovação
historiográfica, as idéias mercantilistas e a organização do sistema de poder.
1.1 A HISTORIOGRAFIA NO PERÍODO COLONIAL
A história do sertão se manteve articulada ao mundo litorâneo, marcado por
homens e caranguejos. O sertão era bárbaro, a-histórico. As novas pesquisas revelaram,
porém, uma outra face: a de um sertão mitificado sob o signo do isolamento. E foi nessa
direção que se procedeu a um olhar distinto sobre as fontes da história econômica
referentes aos séculos XVII e XVIII.
Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto:
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Sob tal perspectiva, elegi como ponto de partida o relato do franciscano Vicente
do Salvador, que redigiu, em 1627, a obra História do Brasil onde censura os
portugueses por não ocuparem as terras do sertão, uma vez que, “ sendo grandes
conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se em andar
arranhando ao longo do mar como caranguejos” (CALDEIRA, 1999, p. 173). Jorge
Caldeira ressalta a força da imagem que impôs um corte e, com isso, formou dois
mundos: o sertão, já em parte adentrado, se mitifica como o “desconhecido” em relação
à integração econômica do litoral. A partir desse dualismo surge uma matriz
interpretativa da formação brasileira onde o que importa é o litoral civilizado, conhecido
e português. O sertão, ainda no estágio da barbárie, produz apenas grunhidos
inteligíveis. Decifrar esses sons é “irrelevante para a história” e, por isso, deve ser
silenciado.
Seguidor dessa forma de ver o Brasil, o jesuíta André João Antonil, em sua obra
Cultura e opulência do Brasil, faz uma descrição das condições econômicas e sociais do
período colonial brasileiro, que corresponde ao final do século XVII e no início do
século XVIII. Em forma de relato de viagem realizada pelo interior da colônia, descreve
as riquezas produzidas no Brasil e registra os principais produtos de uma terra que até
então era considerada improdutiva. Em sua narrativa ,o engenho é descrito como uma
unidade produtiva relevante, e a escravidão é a articulação necessária para a produção
do açúcar a ser comercializado e consumido exteriormente. Com isso, estabelece-se um
sistema ordenado, no qual os lugares e papéis são bem definidos, e a produção segue os
critérios da ordem e da obediência. Tal ordenação é voltada para a produção exportável
e a importância desse setor assume a frente de uma outra dimensão econômica que é
naturalmente ocultada: “ Tudo que está para além do açúcar se faz fora da sociedade, e
está no plano natural” (CALDEIRA, 1999, p. 174). Assim, no mundo colonial, somente
a produção do açúcar tem sentido: o de enriquecer a metrópole.
1.2 AS MATRIZES INTERPRETATIVAS
O dualismo expresso em frei Vicente do Salvador viceja em muitos textos atuais.
É o caso das representações sobre a evolução política brasileira, de acordo com as
interpretações clássicas de Caio Prado Jr. e de Celso Furtado (setor exportador/setor
subsistência), bem como de Nelson Werneck Sodré (sertão pastoril/litoral agrícola).
Assim, a dicotomia litoral–sertão permanece e rebaixa a economia do interior a
um nível qualitativamente inferior, sendo o interior dependente do setor exportador. É
nessa dependência que se estrutura o sentido da economia colonial:
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Além destas atividades fundamentais – fundamentais porque representam
a base em que assenta a vida da colônia, e constituem mesmo a razão de
sua existência –, poderíamos acrescentar outras, como a pecuária, certas
produções agrícolas, em suma aquelas atividades que não têm por objeto
o comércio externo [...].Mas não podemos colocá-las no mesmo plano,
pois pertencem a outra categoria, [...] de segunda ordem. Trata-se de
atividades subsidiárias destinadas a amparar e tornar possível a realização
das primeiras. Não têm vida própria,autônoma, mas acompanham
aquelas, a que se agregam como simples dependências. (PRADO JR.,
2004, p. 124)
Formação do Brasil contemporâneo, uma obra clássica de inspiração marxista,
de autoria de Caio Prado Jr., continua sendo, decorridos 63 anos de sua redação, uma
síntese magistral da existência material da colônia, em que o passado, cuja razão era a
produção em larga escala para o mercado externo e o embasamento no trabalho escravo,
continua impresso nas instituições econômicas, políticas e sociais do Brasil
contemporâneo. Trata-se de uma economia que se organiza em função do “outro” e que,
segundo o autor, propicia a desacumulação. Tem-se, assim, um sentido colonial que
transforma essa economia em economia complementar, que pauperiza e explora a terra,
ao retirar toda sua riqueza e enviá-la para fora. Nessa perspectiva, Prado Jr. instaura a
percepção de uma terra desterritorializada, em razão dessa exterioridade, e de seu
sentido complementar que faz com que as pessoas que aqui estejam não busquem
estabelecer vínculos. O que se quer é enriquecer-se e ir embora. Cria-se uma percepção
de tempo que não se organiza internamente.
Apesar de magistral, a obra que traz a marca de uma reflexão fundamental dos
anos 30 e de uma diretriz política para o Brasil mostra-se de certo modo hesitante,
motivo esse que desperta a atenção de pesquisadores. No capítulo dedicado ao estudo da
economia colonial, Prado Jr., ao mesmo tempo em que ressalta ser tal economia
inteiramente subordinada à exportação – por isso, fixada próxima aos portos
exportadores – e ser a agricultura de subsistência um setor insignificante, um mero
apêndice do setor exportador, inclui a pecuária nesse ramo subsidiário. Cita o processo
de penetração das fazendas de gado nordestinas, pelo interior do sertão, como um
movimento contínuo que se inicia nos fins do século XVI e que teria inclusive
provocado,em 1771, surpresa em Antonil (PRADO JR., 2004, p. 56). Em outro
momento, ressalta que, “à parte a pecuária, reduzida é a atividade dos sertões
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nordestinos” (PRADO JR., 2004, p. 64). Ora, se a pecuária merece ser tratada como
exceção, por que enquadrá-la como atividade de segunda ordem, que não tem vida
própria e nem caracteriza a economia colonial brasileira por lhe servir apenas de
acessório?
Tais controvérsias vêm sendo apontadas em estudos recentes, como o de João
Luís Fragoso (1990), que mostra claramente o sentido de acumulação interna que se
dava na Colônia. São estudos que indicam que, ao se fixar na extroversão do sentido
colonial, deixa-se de captar, sob a alegação de tratar-se de um “cipoal de incidentes
secundários” (PRADO JR., 2004, p. 19), uma estrutura complementar que adquiriu
importância inaudita. Ao se centrar na idéia de que as atividades subsidiárias,
complementares, existiam apenas como fenômenos das atividades centrais, não se torna
possível compreender a dinâmica do mundo colonial: um mundo onde os homens
enriqueceram e onde se deu o processo de acumulação interna. É do conhecimento geral
que grande parte da riqueza produzida na colônia era destinada ao exterior, mas é
preciso considerar a pujança das “atividades subsidiárias”, que muitas vezes assumiram
o papel principal na economia colonial.
Mas o que impera, de Prado Jr. a Novais, é a vinculação à dimensão externa, que
fixa uma leitura exata sobre a colonização em que a relação passado–presente–futuro
está posta de modo que, ao definir o sentido, ao se desbastar o cipoal de incidentes
secundários, organiza-se e estabelece-se uma leitura política em que o elemento
dominante é a dependência ao mundo externo. A partir dessa matriz, buscar-se-á um
projeto para o Brasil, ordenado internamente pela grande propriedade: que ordena e
desordena, organiza e desorganiza, define a riqueza e a pobreza. É esse o eixo seguido
por Prado Jr., que vê de forma negativa a grande propriedade monocultural trabalhada
por escravos, destinada a fornecer gêneros tropicais ao comércio europeu. Uma
economia subordinada a esse fim, em que “tudo mais que nela existe, e que aliás é
pouca monta, será subsidiário e destinado unicamente a amparar e tornar possível a
realização daquele fim especial” (PRADO JR., 2004, p. 119).
Esses três elementos (grande propriedade, monocultura e trabalho escravo)
se conjugam num sistema típico, a grande exploração rural [e constituem]
a célula fundamental da economia agrária brasileira. Como constituirá
também a base principal em que se assenta toda estrutura do país,
econômica e social. (PRADO JR., 2004, p. 122-123)
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Como resultado dessa política colonizadora cria uma, matriz interpretativa que é
a tal ponto internalizada e cristalizada que, com o decorrer do processo de colonização,
já não mais se apóia unicamente na posição de subordinação da colônia e na
administração do reino. Trata-se de uma matriz que “condiciona a formação e toda a
evolução da economia brasileira” e se torna, ao fim da era colonial, “a natureza íntima
de sua estrutura” (PRADO JR., 2004, p. 127). O argumento que sustenta tal afirmativa
é, segundo Prado Jr., o fato de que, abolido o sistema colonial, advém a Independência.
O sistema perpetua-se, e sua principal conseqüência é a evolução cíclica (no tempo e no
espaço), em que se vêem suceder, na economia, fases de prosperidade seguidas de total
aniquilamento. A importância em demonstrar as contradições fundamentais da
sociedade brasileira colonial que permaneceram na Nação soberana relaciona-se ao fato
de que, simplificando os traços dessa economia e criando uma relação polar entre
senhores e escravos nos domínios da grande propriedade, chegar-se-á claramente à
formulação de um projeto político de transformação e de revolução brasileira.
Tal ênfase à grande lavoura não impede que se analisem e registrem dados
significativos, como o crescimento demográfico. Esse fator, segundo Prado Jr., irá
determinar o crescimento do mercado interno. Ao fazer tal diagnóstico, o autor retira da
atividade subsidiária sua dinâmica interna própria. Prado Jr. reconhece o mercado
interno, mas qualifica seu crescimento e, ao fazer isto, dá a dimensão de sua
inorganicidade, uma vez que são mercados instáveis, revelando um crescimento mais
quantitativo que qualitativo e, por isso, com um limite de poder de consumo definido.
Constituído em sua maioria por escravos e homens livres pobres, somente a partir da
transformação das relações escravistas de produção é que se alcançaria um mercado
com força efetiva.
Escrito em 1958, Formação econômica do Brasil é tido como um marco da
consolidação do pensamento científico-econômico no Brasil, por ter contribuído
epistemológica e metodologicamente para o estudo da sociedade brasileira. O cientista
social Celso Furtado atinge o patamar de um dos principais intérpretes do Brasil, ao
tentar decifrar os enigmas do subdesenvolvimento, desnudando suas manifestações no
Brasil e na América Latina.
Furtado segue a mesma matriz interpretativa ao situar a colonização do século
XVI, fundamentalmente ligada à atividade açucareira exportadora-escravista, e ao
fornecer pistas para o fracasso do processo produtivo do açúcar. O êxito da economia
açucareira, no pequeno núcleo de São Vicente, pode ser creditado à abundância de mãoFlávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto:
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de-obra indígena e ao aparente desenvolvimento autônomo da região, na etapa da
colonização.
Ainda para este autor, outro setor que se expandiu à sombra do açúcar foi a
pecuária nordestina. A impossibilidade de expansão na faixa litorânea, dentro das
unidades produtoras de açúcar, provocou a separação das duas atividades – a açucareira
e a criatória –, propiciando o surgimento de uma economia dependente. Tal economia,
que tem como característica a ocupação de terras extensiva e itinerante, foi um fator
fundamental de penetração e de ocupação do interior brasileiro. Mais uma vez esse
movimento é lido como “ induzido pela economia açucareira e de rentabilidade
relativamente baixa”, sendo a expansão do açúcar a chave que comandava o
desenvolvimento ou a retração da pecuária, economia que representava, por si só, um
“mercado de ínfimas dimensões ligado à subsistência da população” (FURTADO, 2005,
p. 66).
Furtado destaca o fato de as regiões mineiras não terem criado formas
permanentes de atividade econômica. Segundo esse autor, a exceção está em algum tipo
de agricultura de subsistência, fator desencadeante da decadência rápida e geral que
acompanhou o declínio do ouro. Os empresários insistiam na inclusão de novas
descobertas e não transferiram nenhum recurso para outras atividades econômicas, o
que fez com que o sistema se atrofiasse lentamente, perdesse a vitalidade, até que
finalmente se desagregasse em uma economia de subsistência.Tal análise é contestada
por autores como Caldeira (1999), que aponta para a rápida reconversão econômica
empreendida por Minas Gerais, em momento anterior ao declínio da mineração.
1.3 A RENOVAÇÃO DA HISTORIOGRAFIA
1.3.1 MARIA ODILA DIAS
A renovação historiográfica começa a surgir com a apresentação dos trabalhos de
Maria Odila Leite da Silva Dias e Fernando A. Novais. Dias publica, em 1972, A
interiorização da metrópole, em que mostra traços específicos e peculiares do processo
histórico brasileiro, na primeira metade do século XIX. Indica 1808 como o momento
de interiorização da metrópole, quando houve o processo de enraizamento de interesses
no centro-sul, e o Rio de Janeiro se tornou o centro, de onde começaram a ser definidos
os interesses da colônia.
Ao propor um levantamento historiográfico, Dias (2005) chama a atenção para o
papel de destaque dado à questão da continuidade no processo de transição da Colônia
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para o Império e ressalta a importância de se desvincular o estudo da Independência da
idéia de nacionalidade.
Citando Buarque de Holanda, classifica “as lutas de Independência como uma
guerra civil entre portugueses, desencadeada aqui pela revolução do porto” (DIAS,
2005, p. 11). Tal observação é pertinente e basilar, porque tratar a emancipação política
brasileira como guerra civil entre portugueses é ter acesso a um olhar diferenciado, é
reordenar o processo, desconstruindo a antecipação de um Brasil-nação que a história
pedagógica promete. Centrar o olhar na luta entre portugueses nos leva a perguntar onde
estariam os brasileiros e esta é a chave que nos abre à compreensão: não havia
brasileiros, porque não havia Brasil como nação. O que existia era uma América
Portuguesa, com seu fundamento voltado para a produção internacional e para o
mercado externo. Não encontrando “brasileiros”, deparamo-nos com uma elite lusobrasileira que vai se diferenciar da elite portuguesa, apesar de tratarem-se todos de
portugueses.
Segundo Dias, a emancipação foi consumada em 1808, com a vinda da Corte
para o Brasil e com abertura dos portos. A saída de D. João e a opção de fundar um
novo Império nos trópicos significaram bruscas rupturas nos setores políticos do Velho
Reino. Ao se dirigir à América Portuguesa, com aproximadamente 15 mil pessoas, o
príncipe preocupava-se em organizar as bases de seu novo Império e, de algum modo,
reerguer a metrópole. Nessa questão há dois aspectos importantes: o primeiro é que,
estando o mundo europeu esgarçado e penalizado, tais reformas deveriam atingir
também os interesses da elite portuguesa, o que desencadearia forte resistência. Em
segundo lugar está posta também a questão levantada por Dias de que tais reformas
econômicas e sociais no Reino Português visavam evitar “sobrecarregar a Corte, que
começava a enraizar-se no estreitamento de seus laços de integração no centro-sul”
(DIAS, 2005, p. 15), pois somente os impostos arrecadados nas províncias do Norte não
seriam suficientes para reerguer a economia metropolitana. Este teria sido o nó da
questão. Por um lado, a metrópole reage muito mal a essa tentativa de mexer nos
direitos feudais. Não conseguindo empreender tais reformas modernizadoras, a Corte,
pressionada pela cada vez maior divergência de interesses entre os portugueses
radicados no Brasil e os portugueses do Reino, parcamente se equilibra, num crescente
de tensão, que leva à revolução do Porto. Por outro lado, havia a consciência de que
sobrecarregar o centro-sul com impostos significaria sobrecarregar a si mesmos. O que
havia se interiorizado tinha sido uma elite portuguesa que se enraizara, misturando e
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organizando, a partir daí, uma vinculação com os luso-brasileiros. Nesse processo, o
Rio de Janeiro tornou-se o centro, a nova metrópole interiorizada. A partir daí, a Corte
passa ter suas expectativas ligadas ao mundo americano, com a definição de interesses
próprios, internos.Contrariamente às observações de Prado Jr. de que a colônia teria se
constituído e permanecido como colônia de exploração, Dias ressalta que a vinda da
corte abriu um leque de perspectivas para a colônia, que passa a ser vista não mais como
feitoria comercial ou colônia de exploração (DIAS, 2005, p. 34), mas sim de
povoamento.
1.3.2 FERNANDO NOVAIS
Contemporâneo de Maria Odila Dias, Fernando Novais também compõe o
quadro de renovação de autores na década de 70. Novais publica, em 1979, Estrutura e
dinâmica do antigo sistema colonial: séculos XVI e XVIII, em que defende a tese sobre
o “antigo sistema colonial da era mercantilista”, fenômeno de longa duração, e que tem
sua dinâmica determinada pelo exclusivo comercial. Tal sistema de relação metrópole–
colônia insere-se no quadro internacional do capitalismo comercial.
Tem-se então como projeto teórico básico, colônias que “se deviam constituir em
fator essencial do desenvolvimento econômico da metrópole” (NOVAIS, 1986, p. 16).
Essas colônias eram voltadas exclusivamente para o atendimento às necessidades do
mercado externo ( a retaguarda econômica da metrópole), mas que, estando inseridas no
complexo quadro da Era Moderna, apresentar-se-iam de forma diversa, ora
aproximando-se, ora afastando-se do esquema original. De qualquer forma, estavam
articuladas à doutrina mercantilista (com centralidade no metalismo, na balança
comercial favorável, no protecionismo etc.) que predominava na Europa.
Ainda segundo Novais, o processo de colonização da América, assim como a
expansão ultramarina, faz parte da etapa intermediária (séculos XVI e XVII) quando se
têm a gradual desagregação do sistema feudal e a eclosão do capitalismo. Em tal
sistema, cabe ao capital comercial, gerado na circulação de mercadorias, a dinamização
do sistema. É aí que o autor localiza a colonização e o povoamento do Novo Mundo:
como complementaridade da produção econômica européia e como necessidade de se
garantir a posse das terras americanas.Tais mecanismos eram instrumentos do processo
de acumulação primitiva de capitais e apresentavam diferenciações quanto à forma.
O que Novais não aborda, e que parece-me constituir-se uma das chaves para a
compreensão da dinâmica da economia colonial, é o motivo pelo qual – em se tratando
de uma economia escravista, voltada exclusivamente para atender às demandas do
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mercado externo –, encontra-se, na maior província escravista da colônia, o maior
número de escravos empregados no setor subsidiário e divididos em pequenas unidades
produtivas.
1.3.3 OS DISCÍPULOS DE MARIA ODILA DIAS
Maria Odila Dias contribuiu para o surgimento de trabalhos que propuseram uma
nova abordagem da sociedade brasileira, como os de Alcir Lenharo e João Luiz
Fragoso. Lenharo enfoca o abastecimento da Corte, a diversificação da economia
mineira, a integração do mercado interno que já vinha florescendo, as implicações
sociais, os conflitos e as conseqüências dessa movimentação. O abastecimento é tratado
via tropas, e a organização destas empresas como a complementação entre fazenda,
rancho, vendas, pastagens, que se integram em serviço (LENHARO, 1979). Para isso,
forma-se um novo setor social, oriundo da produção e distribuição de gêneros para o
consumo interno. Esse setor se articulou politicamente e se projetou na corte.
Fragoso é também parte desta corrente de autores que tenta retirar a dimensão da
plantation como chave para se pensar o Brasil. Mesmo com a reincerçao do país no
comércio internacional via café, esse autor enfoca a economia mercantil de pequeno
fluxo, situada dentro do circuito interno regional, mostrando a complexidade do cenário
econômico e a dimensão de sua reprodução de forma mercantil.
Uma das principais questões debatidas por Fragoso é a existência de um número
cada vez maior de homens livres e pobres que poderiam ser usados como mão-de-obra.
Nesse sentido, a opção pelo escravismo não decorre da ausência de mão-de-obra, mas
pelo fato de esse sistema se auto-reproduzir. Uma vez dada a ordenação escravista, os
homens se comprometiam a defendê-la. Nesse sentido, a questão do escravismo foi
menos de lucratividade e mais de ordenação do sistema. A estabilidade das famílias
escravas mineiras indica que o grande número de escravos já não está mais girando em
torno da grande produção. As relações se complexificam e indicam uma mudança no
sistema de produção: na grande propriedade, tal estabilidade não se fazia possível já que
o escravo masculino era o único que interessava à produção.
1.3.4 A DISCÍPULA DE FERNANDO NOVAIS
Influenciada, em um primeiro momento pelas matrizes teóricas de Fernando
Novais, seu orientador, Laura de Mello e Souza publica, em 1982, Desclassificados do
ouro: a pobreza mineira no século XVIII, texto cujo eixo se centra no debate sobre a
categoria dos vadios no mundo colonial.
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À medida que a notícia da descoberta de ouro se espalhou, iniciou-se, tanto na
colônia quanto na metrópole, um grande movimento migratório em direção às minas, no
qual estavam envolvidos indivíduos pertencentes a diferentes classes sociais.
Tal afluxo de pessoas despertou a preocupação das autoridades metropolitanas,
levando-as a implantar medidas que refreassem essa onda migratória. No entanto, os
que para lá se dirigiram, encontraram uma situação diferente da anteriormente sonhada:
a fome e as crises de abastecimento dificultavam o dia-a-dia, uma vez que os gêneros
alimentícios eram vendidos a preços exorbitantes. Apesar de cíclicos, os períodos de
fome e desabastecimento foram aos poucos melhorando. Nas imediações das lavras,
plantaram-se roças e estruturou-se uma rede de abastecimento vinda da Bahia e das
capitanias do Sul.
Em 1776, a população das Minas Gerais era essencialmente urbana e compunhase de uma pequena camada de homens ricos e poderosos, uma camada média de artistas,
pequenos comerciantes, artesãos e faiscadores (que viviam com o necessário para
subsistência), uma extensa camada de homens livres e pobres, quase sempre
desocupados ou entregues a atividades intermitentes – e que no trabalho de Laura Mello
e Souza, corresponde ao desclassificado social – e uma numerosa camada de escravos.
Em tal sociedade, o fausto era falso, pois a riqueza estava concentrada nas mãos
de um pequeno número de pessoas. A pobreza grassava, disfarçada pelas intermináveis
dobras do barroco e por um calendário recheado de festas religiosas que engendravam
uma sociedade autoritária e cuja estrutura social era profundamente marcada pela
desigualdade. A idéia que perpassa a historiografia brasileira de que em tal sociedade a
abundância de ouro permitia uma maior possibilidade ao escravo de adquirir sua alforria
é também discutida pela autora. Para Mello e Souza, o grau de dificuldades que assolava
as minas, principalmente a partir do momento em que o ouro começou a escassear, era
tão grande que os senhores, impossibilitados de arcar com os custos de manutenção de
sua escravaria, decidiram libertar seus escravos.
1.4 MINAS GERAIS COMO CENTRO DE ABASTECIMENTO, NA VISÃO DE
FRAGOSO
Minas Gerais se especializa como centro de abastecimento e faz surgir um tipo
de economia fundada no mercado interno. É uma nova forma de ordenação do mundo,
embasada na malha de integração interna, na organização da produção em pequenas
propriedades e trabalho familiar.
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Os dados que situam Minas Gerais como a maior província escravista do país,
onde o maior contingente de escravos não estava ligado ao sistema exportador cafeeiro,
mas sim ao mercado interno, apontam para o fato de que, apesar da hegemonia da
produção escravista–exportadora, o país não estava limitado à plantation.O convívio da
produção escravista com outras formas de produção indica que o abastecimento interno
era feito via economia pré-capitalista.
Por sua vez, as formas de produção não-capitalistas [...] podiam estar
ligadas entre si e com a agricultura escravista exportadora. Essas
ligações, além de apontarem para a existência de um mercado interno de
caráter pré-capitalista, podiam influir nas próprias condições de
reprodução da agroexportação escravista, já que parte dos insumos e
alimentos desta última eram produzidos em condições não-capitalistas.
(FRAGOSO, 1990, p. 132)
As interligações indicam que, em dada medida, a compra da farinha produzida
no mercado interno estava relacionada ao mercado externo. Essa interdependência
afetava o seu custeio e o comportamento diante das flutuações do mercado
internacional. É a partir daí que se entendem as assincronias entre a economia escravista
interna e as variações internacionais de preços. O significado disso é que, em um dado
momento, poderia existir uma economia interna com um grau de rentabilidade maior do
que a externa, e o preço da farinha poderia estar afetando o preço e as condições de
produção do café. Trata-se de um quadro de profunda complexidade. Esse mercado précapitalista interno, suas relações entre si e com a empresa escravista exportadora,
somado às demais relações decorrentes dos mecanismos de reprodução da
agroexportação, criam um amplo espaço para a realização de acomodações endógenas,
propiciando, em dada medida, acumulação interna, em razão da o variação de ritmo e do
nível de concentração de riquezas.
É preciso perceber a heterogeneidade do sistema e a lenta adequação entre as
demandas de modernização e as formas pré-capitalistas de produção que, de certo
modo, davam resistência e autonomia ao setor exportador: externamente havia crise e
queda dos preços, mas os homens continuavam produzindo e subsistiam porque
estavam vinculados a diversas outras formas de relações, na maioria das vezes nãomonetárias, que permitiam a ordenação, o ganho e a reprodutividade do sistema.
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No estudo que apresenta em parceria com Manolo Florentino – O arcaísmo
como projeto –, Fragoso apresenta dados que contrariam a matriz historiográfica de
Prado Jr., ao enfatizar que os períodos em que se registraram uma maior atividade
econômica colonial ocorreram em momentos em que a economia internacional
encontrava-se em fase descendente. Para esses autores, não se pode compreender a
economia colonial, sem se considerar os aspectos não-econômicos imbricados em seu
funcionamento
1.7 JORGE CALDEIRA E O INSIGHT PODEROSO PARA SE PENSAR O BRASIL
A importância da obra de Jorge Caldeira está no fato de abrir uma nova
concepção para se pensar o Brasil e perceber o enriquecimento de uma elite que não se
deu através do tradicional sistema colonial. Enquanto grande parte da historiografia
sinaliza para a estagnação e para o atraso, que advêm com a crise da mineração,
Caldeira está dentre os que apontam os progressos desse atraso. Ressaltando a
dinamicidade do setor interno, chega, assim como Maria Odila Dias, a uma diferente
concepção sobre o processo de emancipação.
Caldeira se situa entre os autores que discutem a decadência das minas de forma
diferenciada, pois, ao fazer sua análise sobre o Brasil, vê continuidades no sistema
econômico (mesmo em decorrência da crise do setor agroexportador).
Essa idéia confronta-se com um pensamento de Prado Jr., que identifica a
economia brasileira a uma economia de ciclos alternados e seqüenciais de prosperidade
e aniquilamento. Caldeira, na sua análise, registra um crescimento contínuo, ainda que
limitado pelas dificuldades da economia exportadora. É em busca dessa economia
invisível que se está à procura, e o grande desafio é encontrar uma forma de ler as
economias regionais carentes de documentação.
Apesar de inovador, o trabalho de Caldeira também lida com a dicotomia litoral–
sertão e, a partir dela, aparecem dicotomias distintas como o público–privado. A partir
da separação litoral e sertão, funda-se a idéia de que o sertão tem uma economia natural,
e o litoral uma economia monetarizada, mas ressalta que o sertão não estava por demais
isolado. Ao encontrar fluxos econômicos distantes das economias litorâneas, ressalta
que no Brasil colonial não havia total isolamento em função da grande rede de relações
que já havia se formado. Destaca também a importância da economia de trocas que
permeia o intrincado fluxo de relações em que, por exemplo, pouco a pouco, o Rio
Grande será integrado com a sua criação de muares.
Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto:
EDUFOP, 2007
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É preciso, portanto, perceber a complexa rede que se formou entre as atividades
exportadoras e internas. Essa rede teria propiciado uma ordenação interna, e o mais
importante é que esse fato deu-se na era colonial
A leitura da acumulação interna funda uma outra compreensão sobre o Brasil que
ainda não foi totalmente clarificada – em parte, em decorrência da tradição do dualismo,
e, em parte, pela necessidade de estudos historiográficos regionais mais amplos, nos
quais as lacunas sejam preenchidas e os nexos econômicos elucidados.
Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto:
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