Anais do Seminário Nacional de História da Historiografia: historiografia brasileira e modernidade. O PANORAMA HISTORIOGRÁFICO NO BRASIL COLÔNIA Ana Claudia Alves de Aquino Garcia Mestranda/Universidade Federal de Goiás Este trabalho pretende investigar o processo de estabelecimento de relações entre a historiografia, a memória, o tropeirismo e a modernidade representada pelo trem de ferro, que chegou ao sertão goiano no início do século XX. Ao delimitar tais objetos de investigação, tornou-se necessário determinar um percurso teórico-metodológico para sustentar a análise. E é esse percurso que vai dar sentido ao objeto em estudo. Todo estudioso sabe que a memória, em seu diálogo permanente com a história, compõe-se de lembranças, esquecimentos e silêncios. Por sua vez, a história do tropeirismo goiano, é lacunar e permeada por profundos silêncios. A partir dessa constatação surgiu a idéia de investigar o tema, de singular importância para o desenvolvimento socioeconômico do Estado e merecedor de poucos estudos historiográficos. Sabe-se que, desde o século XVII até os primeiros decênios do século XX, um contínuo movimento de tropas traçou uma intensa rede de relações econômicas e socioculturais que interligou o território nacional. Mais que ranhuras, as lagartas do sertão traçaram teias. Teias de comércio, de vida e de silêncio... Na presente apresentação, busco perpassando os conceitos dos recuperar parte da historiografia nacional, autores considerados clássicos, a renovação historiográfica, as idéias mercantilistas e a organização do sistema de poder. 1.1 A HISTORIOGRAFIA NO PERÍODO COLONIAL A história do sertão se manteve articulada ao mundo litorâneo, marcado por homens e caranguejos. O sertão era bárbaro, a-histórico. As novas pesquisas revelaram, porém, uma outra face: a de um sertão mitificado sob o signo do isolamento. E foi nessa direção que se procedeu a um olhar distinto sobre as fontes da história econômica referentes aos séculos XVII e XVIII. Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007 1 Sob tal perspectiva, elegi como ponto de partida o relato do franciscano Vicente do Salvador, que redigiu, em 1627, a obra História do Brasil onde censura os portugueses por não ocuparem as terras do sertão, uma vez que, “ sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se em andar arranhando ao longo do mar como caranguejos” (CALDEIRA, 1999, p. 173). Jorge Caldeira ressalta a força da imagem que impôs um corte e, com isso, formou dois mundos: o sertão, já em parte adentrado, se mitifica como o “desconhecido” em relação à integração econômica do litoral. A partir desse dualismo surge uma matriz interpretativa da formação brasileira onde o que importa é o litoral civilizado, conhecido e português. O sertão, ainda no estágio da barbárie, produz apenas grunhidos inteligíveis. Decifrar esses sons é “irrelevante para a história” e, por isso, deve ser silenciado. Seguidor dessa forma de ver o Brasil, o jesuíta André João Antonil, em sua obra Cultura e opulência do Brasil, faz uma descrição das condições econômicas e sociais do período colonial brasileiro, que corresponde ao final do século XVII e no início do século XVIII. Em forma de relato de viagem realizada pelo interior da colônia, descreve as riquezas produzidas no Brasil e registra os principais produtos de uma terra que até então era considerada improdutiva. Em sua narrativa ,o engenho é descrito como uma unidade produtiva relevante, e a escravidão é a articulação necessária para a produção do açúcar a ser comercializado e consumido exteriormente. Com isso, estabelece-se um sistema ordenado, no qual os lugares e papéis são bem definidos, e a produção segue os critérios da ordem e da obediência. Tal ordenação é voltada para a produção exportável e a importância desse setor assume a frente de uma outra dimensão econômica que é naturalmente ocultada: “ Tudo que está para além do açúcar se faz fora da sociedade, e está no plano natural” (CALDEIRA, 1999, p. 174). Assim, no mundo colonial, somente a produção do açúcar tem sentido: o de enriquecer a metrópole. 1.2 AS MATRIZES INTERPRETATIVAS O dualismo expresso em frei Vicente do Salvador viceja em muitos textos atuais. É o caso das representações sobre a evolução política brasileira, de acordo com as interpretações clássicas de Caio Prado Jr. e de Celso Furtado (setor exportador/setor subsistência), bem como de Nelson Werneck Sodré (sertão pastoril/litoral agrícola). Assim, a dicotomia litoral–sertão permanece e rebaixa a economia do interior a um nível qualitativamente inferior, sendo o interior dependente do setor exportador. É nessa dependência que se estrutura o sentido da economia colonial: Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007 2 Além destas atividades fundamentais – fundamentais porque representam a base em que assenta a vida da colônia, e constituem mesmo a razão de sua existência –, poderíamos acrescentar outras, como a pecuária, certas produções agrícolas, em suma aquelas atividades que não têm por objeto o comércio externo [...].Mas não podemos colocá-las no mesmo plano, pois pertencem a outra categoria, [...] de segunda ordem. Trata-se de atividades subsidiárias destinadas a amparar e tornar possível a realização das primeiras. Não têm vida própria,autônoma, mas acompanham aquelas, a que se agregam como simples dependências. (PRADO JR., 2004, p. 124) Formação do Brasil contemporâneo, uma obra clássica de inspiração marxista, de autoria de Caio Prado Jr., continua sendo, decorridos 63 anos de sua redação, uma síntese magistral da existência material da colônia, em que o passado, cuja razão era a produção em larga escala para o mercado externo e o embasamento no trabalho escravo, continua impresso nas instituições econômicas, políticas e sociais do Brasil contemporâneo. Trata-se de uma economia que se organiza em função do “outro” e que, segundo o autor, propicia a desacumulação. Tem-se, assim, um sentido colonial que transforma essa economia em economia complementar, que pauperiza e explora a terra, ao retirar toda sua riqueza e enviá-la para fora. Nessa perspectiva, Prado Jr. instaura a percepção de uma terra desterritorializada, em razão dessa exterioridade, e de seu sentido complementar que faz com que as pessoas que aqui estejam não busquem estabelecer vínculos. O que se quer é enriquecer-se e ir embora. Cria-se uma percepção de tempo que não se organiza internamente. Apesar de magistral, a obra que traz a marca de uma reflexão fundamental dos anos 30 e de uma diretriz política para o Brasil mostra-se de certo modo hesitante, motivo esse que desperta a atenção de pesquisadores. No capítulo dedicado ao estudo da economia colonial, Prado Jr., ao mesmo tempo em que ressalta ser tal economia inteiramente subordinada à exportação – por isso, fixada próxima aos portos exportadores – e ser a agricultura de subsistência um setor insignificante, um mero apêndice do setor exportador, inclui a pecuária nesse ramo subsidiário. Cita o processo de penetração das fazendas de gado nordestinas, pelo interior do sertão, como um movimento contínuo que se inicia nos fins do século XVI e que teria inclusive provocado,em 1771, surpresa em Antonil (PRADO JR., 2004, p. 56). Em outro momento, ressalta que, “à parte a pecuária, reduzida é a atividade dos sertões Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007 3 nordestinos” (PRADO JR., 2004, p. 64). Ora, se a pecuária merece ser tratada como exceção, por que enquadrá-la como atividade de segunda ordem, que não tem vida própria e nem caracteriza a economia colonial brasileira por lhe servir apenas de acessório? Tais controvérsias vêm sendo apontadas em estudos recentes, como o de João Luís Fragoso (1990), que mostra claramente o sentido de acumulação interna que se dava na Colônia. São estudos que indicam que, ao se fixar na extroversão do sentido colonial, deixa-se de captar, sob a alegação de tratar-se de um “cipoal de incidentes secundários” (PRADO JR., 2004, p. 19), uma estrutura complementar que adquiriu importância inaudita. Ao se centrar na idéia de que as atividades subsidiárias, complementares, existiam apenas como fenômenos das atividades centrais, não se torna possível compreender a dinâmica do mundo colonial: um mundo onde os homens enriqueceram e onde se deu o processo de acumulação interna. É do conhecimento geral que grande parte da riqueza produzida na colônia era destinada ao exterior, mas é preciso considerar a pujança das “atividades subsidiárias”, que muitas vezes assumiram o papel principal na economia colonial. Mas o que impera, de Prado Jr. a Novais, é a vinculação à dimensão externa, que fixa uma leitura exata sobre a colonização em que a relação passado–presente–futuro está posta de modo que, ao definir o sentido, ao se desbastar o cipoal de incidentes secundários, organiza-se e estabelece-se uma leitura política em que o elemento dominante é a dependência ao mundo externo. A partir dessa matriz, buscar-se-á um projeto para o Brasil, ordenado internamente pela grande propriedade: que ordena e desordena, organiza e desorganiza, define a riqueza e a pobreza. É esse o eixo seguido por Prado Jr., que vê de forma negativa a grande propriedade monocultural trabalhada por escravos, destinada a fornecer gêneros tropicais ao comércio europeu. Uma economia subordinada a esse fim, em que “tudo mais que nela existe, e que aliás é pouca monta, será subsidiário e destinado unicamente a amparar e tornar possível a realização daquele fim especial” (PRADO JR., 2004, p. 119). Esses três elementos (grande propriedade, monocultura e trabalho escravo) se conjugam num sistema típico, a grande exploração rural [e constituem] a célula fundamental da economia agrária brasileira. Como constituirá também a base principal em que se assenta toda estrutura do país, econômica e social. (PRADO JR., 2004, p. 122-123) Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007 4 Como resultado dessa política colonizadora cria uma, matriz interpretativa que é a tal ponto internalizada e cristalizada que, com o decorrer do processo de colonização, já não mais se apóia unicamente na posição de subordinação da colônia e na administração do reino. Trata-se de uma matriz que “condiciona a formação e toda a evolução da economia brasileira” e se torna, ao fim da era colonial, “a natureza íntima de sua estrutura” (PRADO JR., 2004, p. 127). O argumento que sustenta tal afirmativa é, segundo Prado Jr., o fato de que, abolido o sistema colonial, advém a Independência. O sistema perpetua-se, e sua principal conseqüência é a evolução cíclica (no tempo e no espaço), em que se vêem suceder, na economia, fases de prosperidade seguidas de total aniquilamento. A importância em demonstrar as contradições fundamentais da sociedade brasileira colonial que permaneceram na Nação soberana relaciona-se ao fato de que, simplificando os traços dessa economia e criando uma relação polar entre senhores e escravos nos domínios da grande propriedade, chegar-se-á claramente à formulação de um projeto político de transformação e de revolução brasileira. Tal ênfase à grande lavoura não impede que se analisem e registrem dados significativos, como o crescimento demográfico. Esse fator, segundo Prado Jr., irá determinar o crescimento do mercado interno. Ao fazer tal diagnóstico, o autor retira da atividade subsidiária sua dinâmica interna própria. Prado Jr. reconhece o mercado interno, mas qualifica seu crescimento e, ao fazer isto, dá a dimensão de sua inorganicidade, uma vez que são mercados instáveis, revelando um crescimento mais quantitativo que qualitativo e, por isso, com um limite de poder de consumo definido. Constituído em sua maioria por escravos e homens livres pobres, somente a partir da transformação das relações escravistas de produção é que se alcançaria um mercado com força efetiva. Escrito em 1958, Formação econômica do Brasil é tido como um marco da consolidação do pensamento científico-econômico no Brasil, por ter contribuído epistemológica e metodologicamente para o estudo da sociedade brasileira. O cientista social Celso Furtado atinge o patamar de um dos principais intérpretes do Brasil, ao tentar decifrar os enigmas do subdesenvolvimento, desnudando suas manifestações no Brasil e na América Latina. Furtado segue a mesma matriz interpretativa ao situar a colonização do século XVI, fundamentalmente ligada à atividade açucareira exportadora-escravista, e ao fornecer pistas para o fracasso do processo produtivo do açúcar. O êxito da economia açucareira, no pequeno núcleo de São Vicente, pode ser creditado à abundância de mãoFlávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007 5 de-obra indígena e ao aparente desenvolvimento autônomo da região, na etapa da colonização. Ainda para este autor, outro setor que se expandiu à sombra do açúcar foi a pecuária nordestina. A impossibilidade de expansão na faixa litorânea, dentro das unidades produtoras de açúcar, provocou a separação das duas atividades – a açucareira e a criatória –, propiciando o surgimento de uma economia dependente. Tal economia, que tem como característica a ocupação de terras extensiva e itinerante, foi um fator fundamental de penetração e de ocupação do interior brasileiro. Mais uma vez esse movimento é lido como “ induzido pela economia açucareira e de rentabilidade relativamente baixa”, sendo a expansão do açúcar a chave que comandava o desenvolvimento ou a retração da pecuária, economia que representava, por si só, um “mercado de ínfimas dimensões ligado à subsistência da população” (FURTADO, 2005, p. 66). Furtado destaca o fato de as regiões mineiras não terem criado formas permanentes de atividade econômica. Segundo esse autor, a exceção está em algum tipo de agricultura de subsistência, fator desencadeante da decadência rápida e geral que acompanhou o declínio do ouro. Os empresários insistiam na inclusão de novas descobertas e não transferiram nenhum recurso para outras atividades econômicas, o que fez com que o sistema se atrofiasse lentamente, perdesse a vitalidade, até que finalmente se desagregasse em uma economia de subsistência.Tal análise é contestada por autores como Caldeira (1999), que aponta para a rápida reconversão econômica empreendida por Minas Gerais, em momento anterior ao declínio da mineração. 1.3 A RENOVAÇÃO DA HISTORIOGRAFIA 1.3.1 MARIA ODILA DIAS A renovação historiográfica começa a surgir com a apresentação dos trabalhos de Maria Odila Leite da Silva Dias e Fernando A. Novais. Dias publica, em 1972, A interiorização da metrópole, em que mostra traços específicos e peculiares do processo histórico brasileiro, na primeira metade do século XIX. Indica 1808 como o momento de interiorização da metrópole, quando houve o processo de enraizamento de interesses no centro-sul, e o Rio de Janeiro se tornou o centro, de onde começaram a ser definidos os interesses da colônia. Ao propor um levantamento historiográfico, Dias (2005) chama a atenção para o papel de destaque dado à questão da continuidade no processo de transição da Colônia Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007 6 para o Império e ressalta a importância de se desvincular o estudo da Independência da idéia de nacionalidade. Citando Buarque de Holanda, classifica “as lutas de Independência como uma guerra civil entre portugueses, desencadeada aqui pela revolução do porto” (DIAS, 2005, p. 11). Tal observação é pertinente e basilar, porque tratar a emancipação política brasileira como guerra civil entre portugueses é ter acesso a um olhar diferenciado, é reordenar o processo, desconstruindo a antecipação de um Brasil-nação que a história pedagógica promete. Centrar o olhar na luta entre portugueses nos leva a perguntar onde estariam os brasileiros e esta é a chave que nos abre à compreensão: não havia brasileiros, porque não havia Brasil como nação. O que existia era uma América Portuguesa, com seu fundamento voltado para a produção internacional e para o mercado externo. Não encontrando “brasileiros”, deparamo-nos com uma elite lusobrasileira que vai se diferenciar da elite portuguesa, apesar de tratarem-se todos de portugueses. Segundo Dias, a emancipação foi consumada em 1808, com a vinda da Corte para o Brasil e com abertura dos portos. A saída de D. João e a opção de fundar um novo Império nos trópicos significaram bruscas rupturas nos setores políticos do Velho Reino. Ao se dirigir à América Portuguesa, com aproximadamente 15 mil pessoas, o príncipe preocupava-se em organizar as bases de seu novo Império e, de algum modo, reerguer a metrópole. Nessa questão há dois aspectos importantes: o primeiro é que, estando o mundo europeu esgarçado e penalizado, tais reformas deveriam atingir também os interesses da elite portuguesa, o que desencadearia forte resistência. Em segundo lugar está posta também a questão levantada por Dias de que tais reformas econômicas e sociais no Reino Português visavam evitar “sobrecarregar a Corte, que começava a enraizar-se no estreitamento de seus laços de integração no centro-sul” (DIAS, 2005, p. 15), pois somente os impostos arrecadados nas províncias do Norte não seriam suficientes para reerguer a economia metropolitana. Este teria sido o nó da questão. Por um lado, a metrópole reage muito mal a essa tentativa de mexer nos direitos feudais. Não conseguindo empreender tais reformas modernizadoras, a Corte, pressionada pela cada vez maior divergência de interesses entre os portugueses radicados no Brasil e os portugueses do Reino, parcamente se equilibra, num crescente de tensão, que leva à revolução do Porto. Por outro lado, havia a consciência de que sobrecarregar o centro-sul com impostos significaria sobrecarregar a si mesmos. O que havia se interiorizado tinha sido uma elite portuguesa que se enraizara, misturando e Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007 7 organizando, a partir daí, uma vinculação com os luso-brasileiros. Nesse processo, o Rio de Janeiro tornou-se o centro, a nova metrópole interiorizada. A partir daí, a Corte passa ter suas expectativas ligadas ao mundo americano, com a definição de interesses próprios, internos.Contrariamente às observações de Prado Jr. de que a colônia teria se constituído e permanecido como colônia de exploração, Dias ressalta que a vinda da corte abriu um leque de perspectivas para a colônia, que passa a ser vista não mais como feitoria comercial ou colônia de exploração (DIAS, 2005, p. 34), mas sim de povoamento. 1.3.2 FERNANDO NOVAIS Contemporâneo de Maria Odila Dias, Fernando Novais também compõe o quadro de renovação de autores na década de 70. Novais publica, em 1979, Estrutura e dinâmica do antigo sistema colonial: séculos XVI e XVIII, em que defende a tese sobre o “antigo sistema colonial da era mercantilista”, fenômeno de longa duração, e que tem sua dinâmica determinada pelo exclusivo comercial. Tal sistema de relação metrópole– colônia insere-se no quadro internacional do capitalismo comercial. Tem-se então como projeto teórico básico, colônias que “se deviam constituir em fator essencial do desenvolvimento econômico da metrópole” (NOVAIS, 1986, p. 16). Essas colônias eram voltadas exclusivamente para o atendimento às necessidades do mercado externo ( a retaguarda econômica da metrópole), mas que, estando inseridas no complexo quadro da Era Moderna, apresentar-se-iam de forma diversa, ora aproximando-se, ora afastando-se do esquema original. De qualquer forma, estavam articuladas à doutrina mercantilista (com centralidade no metalismo, na balança comercial favorável, no protecionismo etc.) que predominava na Europa. Ainda segundo Novais, o processo de colonização da América, assim como a expansão ultramarina, faz parte da etapa intermediária (séculos XVI e XVII) quando se têm a gradual desagregação do sistema feudal e a eclosão do capitalismo. Em tal sistema, cabe ao capital comercial, gerado na circulação de mercadorias, a dinamização do sistema. É aí que o autor localiza a colonização e o povoamento do Novo Mundo: como complementaridade da produção econômica européia e como necessidade de se garantir a posse das terras americanas.Tais mecanismos eram instrumentos do processo de acumulação primitiva de capitais e apresentavam diferenciações quanto à forma. O que Novais não aborda, e que parece-me constituir-se uma das chaves para a compreensão da dinâmica da economia colonial, é o motivo pelo qual – em se tratando de uma economia escravista, voltada exclusivamente para atender às demandas do Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007 8 mercado externo –, encontra-se, na maior província escravista da colônia, o maior número de escravos empregados no setor subsidiário e divididos em pequenas unidades produtivas. 1.3.3 OS DISCÍPULOS DE MARIA ODILA DIAS Maria Odila Dias contribuiu para o surgimento de trabalhos que propuseram uma nova abordagem da sociedade brasileira, como os de Alcir Lenharo e João Luiz Fragoso. Lenharo enfoca o abastecimento da Corte, a diversificação da economia mineira, a integração do mercado interno que já vinha florescendo, as implicações sociais, os conflitos e as conseqüências dessa movimentação. O abastecimento é tratado via tropas, e a organização destas empresas como a complementação entre fazenda, rancho, vendas, pastagens, que se integram em serviço (LENHARO, 1979). Para isso, forma-se um novo setor social, oriundo da produção e distribuição de gêneros para o consumo interno. Esse setor se articulou politicamente e se projetou na corte. Fragoso é também parte desta corrente de autores que tenta retirar a dimensão da plantation como chave para se pensar o Brasil. Mesmo com a reincerçao do país no comércio internacional via café, esse autor enfoca a economia mercantil de pequeno fluxo, situada dentro do circuito interno regional, mostrando a complexidade do cenário econômico e a dimensão de sua reprodução de forma mercantil. Uma das principais questões debatidas por Fragoso é a existência de um número cada vez maior de homens livres e pobres que poderiam ser usados como mão-de-obra. Nesse sentido, a opção pelo escravismo não decorre da ausência de mão-de-obra, mas pelo fato de esse sistema se auto-reproduzir. Uma vez dada a ordenação escravista, os homens se comprometiam a defendê-la. Nesse sentido, a questão do escravismo foi menos de lucratividade e mais de ordenação do sistema. A estabilidade das famílias escravas mineiras indica que o grande número de escravos já não está mais girando em torno da grande produção. As relações se complexificam e indicam uma mudança no sistema de produção: na grande propriedade, tal estabilidade não se fazia possível já que o escravo masculino era o único que interessava à produção. 1.3.4 A DISCÍPULA DE FERNANDO NOVAIS Influenciada, em um primeiro momento pelas matrizes teóricas de Fernando Novais, seu orientador, Laura de Mello e Souza publica, em 1982, Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII, texto cujo eixo se centra no debate sobre a categoria dos vadios no mundo colonial. Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007 9 À medida que a notícia da descoberta de ouro se espalhou, iniciou-se, tanto na colônia quanto na metrópole, um grande movimento migratório em direção às minas, no qual estavam envolvidos indivíduos pertencentes a diferentes classes sociais. Tal afluxo de pessoas despertou a preocupação das autoridades metropolitanas, levando-as a implantar medidas que refreassem essa onda migratória. No entanto, os que para lá se dirigiram, encontraram uma situação diferente da anteriormente sonhada: a fome e as crises de abastecimento dificultavam o dia-a-dia, uma vez que os gêneros alimentícios eram vendidos a preços exorbitantes. Apesar de cíclicos, os períodos de fome e desabastecimento foram aos poucos melhorando. Nas imediações das lavras, plantaram-se roças e estruturou-se uma rede de abastecimento vinda da Bahia e das capitanias do Sul. Em 1776, a população das Minas Gerais era essencialmente urbana e compunhase de uma pequena camada de homens ricos e poderosos, uma camada média de artistas, pequenos comerciantes, artesãos e faiscadores (que viviam com o necessário para subsistência), uma extensa camada de homens livres e pobres, quase sempre desocupados ou entregues a atividades intermitentes – e que no trabalho de Laura Mello e Souza, corresponde ao desclassificado social – e uma numerosa camada de escravos. Em tal sociedade, o fausto era falso, pois a riqueza estava concentrada nas mãos de um pequeno número de pessoas. A pobreza grassava, disfarçada pelas intermináveis dobras do barroco e por um calendário recheado de festas religiosas que engendravam uma sociedade autoritária e cuja estrutura social era profundamente marcada pela desigualdade. A idéia que perpassa a historiografia brasileira de que em tal sociedade a abundância de ouro permitia uma maior possibilidade ao escravo de adquirir sua alforria é também discutida pela autora. Para Mello e Souza, o grau de dificuldades que assolava as minas, principalmente a partir do momento em que o ouro começou a escassear, era tão grande que os senhores, impossibilitados de arcar com os custos de manutenção de sua escravaria, decidiram libertar seus escravos. 1.4 MINAS GERAIS COMO CENTRO DE ABASTECIMENTO, NA VISÃO DE FRAGOSO Minas Gerais se especializa como centro de abastecimento e faz surgir um tipo de economia fundada no mercado interno. É uma nova forma de ordenação do mundo, embasada na malha de integração interna, na organização da produção em pequenas propriedades e trabalho familiar. Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007 10 Os dados que situam Minas Gerais como a maior província escravista do país, onde o maior contingente de escravos não estava ligado ao sistema exportador cafeeiro, mas sim ao mercado interno, apontam para o fato de que, apesar da hegemonia da produção escravista–exportadora, o país não estava limitado à plantation.O convívio da produção escravista com outras formas de produção indica que o abastecimento interno era feito via economia pré-capitalista. Por sua vez, as formas de produção não-capitalistas [...] podiam estar ligadas entre si e com a agricultura escravista exportadora. Essas ligações, além de apontarem para a existência de um mercado interno de caráter pré-capitalista, podiam influir nas próprias condições de reprodução da agroexportação escravista, já que parte dos insumos e alimentos desta última eram produzidos em condições não-capitalistas. (FRAGOSO, 1990, p. 132) As interligações indicam que, em dada medida, a compra da farinha produzida no mercado interno estava relacionada ao mercado externo. Essa interdependência afetava o seu custeio e o comportamento diante das flutuações do mercado internacional. É a partir daí que se entendem as assincronias entre a economia escravista interna e as variações internacionais de preços. O significado disso é que, em um dado momento, poderia existir uma economia interna com um grau de rentabilidade maior do que a externa, e o preço da farinha poderia estar afetando o preço e as condições de produção do café. Trata-se de um quadro de profunda complexidade. Esse mercado précapitalista interno, suas relações entre si e com a empresa escravista exportadora, somado às demais relações decorrentes dos mecanismos de reprodução da agroexportação, criam um amplo espaço para a realização de acomodações endógenas, propiciando, em dada medida, acumulação interna, em razão da o variação de ritmo e do nível de concentração de riquezas. É preciso perceber a heterogeneidade do sistema e a lenta adequação entre as demandas de modernização e as formas pré-capitalistas de produção que, de certo modo, davam resistência e autonomia ao setor exportador: externamente havia crise e queda dos preços, mas os homens continuavam produzindo e subsistiam porque estavam vinculados a diversas outras formas de relações, na maioria das vezes nãomonetárias, que permitiam a ordenação, o ganho e a reprodutividade do sistema. Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007 11 No estudo que apresenta em parceria com Manolo Florentino – O arcaísmo como projeto –, Fragoso apresenta dados que contrariam a matriz historiográfica de Prado Jr., ao enfatizar que os períodos em que se registraram uma maior atividade econômica colonial ocorreram em momentos em que a economia internacional encontrava-se em fase descendente. Para esses autores, não se pode compreender a economia colonial, sem se considerar os aspectos não-econômicos imbricados em seu funcionamento 1.7 JORGE CALDEIRA E O INSIGHT PODEROSO PARA SE PENSAR O BRASIL A importância da obra de Jorge Caldeira está no fato de abrir uma nova concepção para se pensar o Brasil e perceber o enriquecimento de uma elite que não se deu através do tradicional sistema colonial. Enquanto grande parte da historiografia sinaliza para a estagnação e para o atraso, que advêm com a crise da mineração, Caldeira está dentre os que apontam os progressos desse atraso. Ressaltando a dinamicidade do setor interno, chega, assim como Maria Odila Dias, a uma diferente concepção sobre o processo de emancipação. Caldeira se situa entre os autores que discutem a decadência das minas de forma diferenciada, pois, ao fazer sua análise sobre o Brasil, vê continuidades no sistema econômico (mesmo em decorrência da crise do setor agroexportador). Essa idéia confronta-se com um pensamento de Prado Jr., que identifica a economia brasileira a uma economia de ciclos alternados e seqüenciais de prosperidade e aniquilamento. Caldeira, na sua análise, registra um crescimento contínuo, ainda que limitado pelas dificuldades da economia exportadora. É em busca dessa economia invisível que se está à procura, e o grande desafio é encontrar uma forma de ler as economias regionais carentes de documentação. Apesar de inovador, o trabalho de Caldeira também lida com a dicotomia litoral– sertão e, a partir dela, aparecem dicotomias distintas como o público–privado. A partir da separação litoral e sertão, funda-se a idéia de que o sertão tem uma economia natural, e o litoral uma economia monetarizada, mas ressalta que o sertão não estava por demais isolado. Ao encontrar fluxos econômicos distantes das economias litorâneas, ressalta que no Brasil colonial não havia total isolamento em função da grande rede de relações que já havia se formado. Destaca também a importância da economia de trocas que permeia o intrincado fluxo de relações em que, por exemplo, pouco a pouco, o Rio Grande será integrado com a sua criação de muares. Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007 12 É preciso, portanto, perceber a complexa rede que se formou entre as atividades exportadoras e internas. Essa rede teria propiciado uma ordenação interna, e o mais importante é que esse fato deu-se na era colonial A leitura da acumulação interna funda uma outra compreensão sobre o Brasil que ainda não foi totalmente clarificada – em parte, em decorrência da tradição do dualismo, e, em parte, pela necessidade de estudos historiográficos regionais mais amplos, nos quais as lacunas sejam preenchidas e os nexos econômicos elucidados. Flávia Florentino Varella, Sérgio Ricardo da Mata & Valdei Lopes de Araujo (org.). Ouro Preto: EDUFOP, 2007 13