B Teatro Nacional São João 13-15 Out 2011 JÚLIA, JOÃO E CRISTINA a partir de Menina Júlia (Fröken Julie, 1888), de August Strindberg adaptação e encenação Margarita Mladenova cenografia interpretação produção Espectáculo e figurinos Albena Teatro­ em língua Daniela Oleg Georgieva ‑Laboratório búlgara, Liahova Júlia Sfumato legendado desenho de luz Hristo Petkov (Bulgária) em português Daniela Oleg João Liahova Miroslava estreia qui-sáb 21:30 Margarita Gogovska 2Fev2007 Mladenova Cristina Teatro­ dur. aprox. 1:20 ‑Laboratório M/12 anos Sfumato (Sófia) “ O teatro representa para nós uma outra forma de vida – mais concentrada, mais pura e mais elevada. Pressupõe a existência de uma comunidade de pessoas que têm algo para trocar, que se congratulam do seu encontro, que o partilham e estão disponíveis para dar muito de si próprias. Uma vida de pessoas em comunhão, onde cada um se descobre através do outro, partilhando com ele a sua energia espiritual, numa cumplicidade convertida em ritual misterioso de almas, capaz de nos restituir um sentimento perdido de santidade, de pureza e calor humano. O teatro é uma vida tumultuosa. O teatro não é o lugar do encontro, ele é o encontro. margarita mladenova, ivan dobchev In Théâtre­‑Laboratoire Sfumato: Trilogie August Strindberg: Programme. Paris: Théâtre de la Bastille, 2008. p. 4. 2 “ Diria que a força do seu teatro é a de olhar através das paredes. Ele confere uma espectacularidade à vida privada, aí incluído o que é invisível, dissimulado. Encontramos nele uma dimensão épica no mais íntimo. Strindberg é um fabuloso narrador da sociedade. jean­‑pierre sarrazac Théâtres du moi, théâtres du monde. Rouen: Éd. Médianes, 1995. p. 131. 3 “ Por infelicidade ou felicidade – a diferença não é significativa –, um homem ambicioso não pode ser amado durante muito tempo por uma mulher. “As mulheres estão habituadas, não sei por que inclinação dos seus espíritos, a não ver num homem de talento mais do que os seus defeitos, e num idiota mais do que as suas qualidades. Elas sentem uma grande simpatia pelas qualidades do idiota, que são uma adulação perpétua dos seus próprios defeitos.” Estas palavras pertencem ao meu mestre Honoré de Balzac, o mais fiel inimigo das mulheres, o seu mais fiel amante, apaixonado, até à morte. Mas o que há de contraditório nestas duas palavras? Amar… odiar… O amor, febre intermitente entrecortada pelas síncopes do ódio. Só a indiferença gera a impotência. august strindberg “Misogynie et gynolâtrie”. In Fernando Pessoa [et. al.]. Lexi­‑textes. 9: Inédits et commentaires. Paris: L’Arche, impr. 2005. p. 206. 4 “OS MEDOS E OS PESADELOS DE STRINDBERG…” margarita mladenova Inquieta­‑me a ideia que ocupou obsessivamente os filósofos na primeira metade do século XX – o que acontece ao homem, especialmente após as Grandes Guerras, a partir do momento em que deixou de ser o verdadeiro objecto da civilização? Ele já não ocupa o seu centro. Algo sucede ao homem clássico e no processo ele transforma­‑se numa efígie da qual estão ausentes Deus e as leis não­‑escritas, e para a qual conceitos como consciência e ética são anacronismos. Os medos e os pesadelos de Strindberg reflectem a vibração humana de um espírito sensível e clarividente. Isto interessa­‑nos. Cruza­‑se com a nossa inquietude crescente, com o móbil contínuo do Sfumato: não abandonar o homem à amnésia das conquistas do espírito humano. 5 “A LÓGICA DO VISÍVEL AO SERVIÇO DO INVISÍVEL” O Teatro­‑Laboratório Sfumato jean­‑pierre thibaudat* Margarita Mladenova e Ivan Dobchev tinham 40 anos quando criaram o Teatro Sfumato em 1989, em Sófia. Um e outro eram já encenadores reconhecidos e pedagogos estimados – e embarcaram na aventura um punhado de jovens actores que tinham formado. Contribuíram para a renovação de um teatro búlgaro há demasiado tempo enredado nas malhas do império soviético: instituições pesadas e a fossilização dogmática do ensino de Stanislavski. A força desta ligação resultou porque fundada numa comum e exigente visão do teatro – bem sintetizada no nome da trupe, tomado de empréstimo a Leonardo da Vinci –, que a sua união iria radicalizar. O sfumato designa uma técnica de desenho, de pintura, que consiste em esbater os contornos, em aprisionar, pintar o ar, o impalpável. “O nome da nossa trupe reflecte a nossa estratégia poética”, dizem Mladenova e Dobchev. Por outras palavras, menos o traço que o seu movimento, mais o indefinido e os seus mistérios do que a afirmação peremptória, mais a dinâmica do gesto do que o seu acabamento, mais o processo do que o resultado. “Não procuramos um teatro descritivo mas, no jogo de actores, uma verdade do movimento interior que não se esgota na realidade visível”, acrescentam. Como escreveu Heinz Wismann, “o Teatro Sfumato privilegia a manifestação de um impulso inicial, evitando que ele seja absorvido pela lógica da eficácia”. “Para nós”, continuam Margarita e Ivan, “o espectáculo é uma acção, um ritual espiritual que acontece aqui e agora. Ora, o ritual não pode ser imitado nem repetido. Isso determina a essência da presença do actor nos nossos espectáculos: todo o trabalho desenvolvido nos ensaios consiste em conduzir o actor na direcção dos reflexos não­‑condicionados, em favorecer um impulso criador”. Rapidamente, tropeçaram nesta frase do pintor Odilon Redon, que se tornaria no seu santo­‑e­‑senha, na sua regra de ouro: “A lógica do visível ao serviço do invisível”. Todos os espectáculos do Sfumato desenrolam­‑se num ambiente de alta tensão. Foi um choque descobrir esta aventura num país que acabava de se abrir ao mundo ocidental e que conhecíamos mais pelos seus iogurtes e guarda­‑chuvas. Estamos em 1990, num recanto de um gigantesco e pretensioso Palácio da Cultura de Sófia, onde Lenine havia sido repetidas vezes o herói de espectáculos grandiloquentes. Aí, com a cumplicidade de um vice­‑ministro clarividente, o Sfumato instalou uma espécie de acampamento, uma ilhota de teatro vivo e incandescente no interior de um mausoléu. À luz das velas, actores de traços acerados conduzem­ ‑nos pelos meandros de Petar Atanassov, um Rimbaud búlgaro cuja obra foi durante muito tempo proibida, ou passeiam­‑nos pela obra da russa Ludmilla Petrouchevskaïa, que nos deu a conhecer a perestroika. Em 1991, acamparam no subsolo de Beaubourg, convidados pelo Festival d’Automne de Paris. Dobchev veio com a encenação de Testemunho de Luz Durante a Peste, um espectáculo concebido a partir da obra de Atanassov, em diálogo com passos da Bíblia e de Banquete em Tempo de Peste de Púchkin. Mladenova assinou Post Scriptum, uma viagem pela obra de Tchékhov a partir da cena final de A Gaivota: o suicídio de Tréplev, filho da grande actriz Arkádina. Cinco anos mais tarde, o Sfumato apresentava­‑se no Festival Passages, em Nancy, com duas peças de Tchékhov: O Tio Vânia (Dobchev) e As Três Irmãs (Mladenova). E, nesta temporada [2008­ ‑2009], a trilogia Strindberg, intitulada Para Damasco, passará pelo Festival Passages em Maio de 2009, depois da sua apresentação no Théâtre de la Bastille, no quadro do Festival d’Automne. Mais tarde denominada Teatro­ ‑Laboratório Sfumato (um piscar de olho ao mítico Teatro Laboratório de Grotowski, com o qual o Sfumato partilha alguns propósitos), a companhia não empilha espectáculos, antes concebe a sua deriva exploratória a partir de um projecto, geralmente em torno de um autor. Entre 1989 e 1996, Tchékhov, depois Lovkov, Raditchkov, os mitos, Dostoievski (2003­‑2005), o projecto Exit, em torno dos últimos dias de Lev Tolstoi e Marina Tsvétaïeva e, agora, Strindberg. Tantas viagens de longo curso, ensaios, improvisações ao longo de meses, um tempo lento necessário para penetrar o “espírito” do autor, para chegar perto do seu “segredo” e, mais além, interrogar “o grande enigma da existência”. Há já muito tempo que o Sfumato abandonou o sótão do Palácio da Cultura, entretanto votado aos espectáculos de entretenimento. Após muitas peripécias – um teatro que ardeu, um outro de onde foram expulsos por causa de uma operação imobiliária –, instalaram­‑se junto de um jardim no centro de Sófia, num teatro que toda a equipa do Sfumato construiu com as suas próprias mãos, nas antigas termas da cidade há muito abandonadas. * In Théâtre­‑Laboratoire Sfumato: Trilogie August Strindberg: Programme. Paris: Théâtre de la Bastille, 2008. p. 3­‑4. 7 MENINA JÚLIA, DE EROS EM TÂNATOS jean­‑pierre thibaudat* Primeira etapa da trilogia Para Damasco, que atravessa a obra de August Strindberg a nado e a maior parte das vezes em apneia, Menina Júlia, uma peça em um acto, de um fôlego, fulgurante. Em 1883, o autor tinha abandonado a Suécia e os seus teatros, colocando em perigo a carreira 8 de actriz da sua mulher Siri. Na véspera da Primavera de 1888, na Dinamarca, coloca um ponto final em Confissões de um Louco (escrita em francês), uma das suas obras autobiográficas onde disseca com laivos de provocação a sua vida de casado. Pouco depois, descobre Friedrich Nietzsche, lê­‑o com exaltação, “Está tudo lá!”, escreve a um amigo. A família Strindberg (dois filhos) passa o Verão na Dinamarca, em Lyngby, onde aluga quartos num castelo de uma condessa extravagante. É aí que August escreve Menina Júlia em duas semanas, seguramente inspirado nas pessoas que viviam nesse castelo, aí incluída a jovem Marta, com quem Strindberg terá uma breve aventura. Em cena, três personagens: a menina Júlia, filha de um conde, João, um criado, Cristina, a cozinheira. A acção decorre numa cozinha do castelo, na noite de São João. Uma noite de festa, uma noite de loucura. “Esta noite, a menina Júlia está doida outra vez, completamente doida!”, primeira deixa da peça. Ao fim da noite, a filha do conde, tendo dormido com o criado, que está noivo da cozinheira, obedece à ordem do seu amante: sai para se entregar ao suicídio. Num longo prefácio, Strindberg detém­‑se na ambivalência das personagens. A menina Júlia “é um carácter moderno”, mas “é também a descendente de uma velha nobreza de espada”. João, filho de um camponês, “já se elevou acima da sua condição e é já suficientemente forte para se servir dos outros sem ter de os suportar”. Senhor em potência, hesita “entre a simpatia pelo que é elevado e o ódio por aqueles que neste momento se encontram ainda acima dele”. Por último, Cristina é “uma escrava”, que vai “à igreja para descarregar comodamente sobre Cristo as suas falcatruas domésticas e para se aprovisionar de inocência”. Quando entra em cena, a menina Júlia convida João a dançar com ela uma vez mais. Ele obedece. Ela dá­‑se ares de senhora, deseja­‑o, mas, uma vez consumado o acto, tudo muda. De Eros em Tânatos. “A vitória de Júlia converte­‑se rapidamente na vitória de João, que se fortalece ao misturar o seu sangue com o sangue dos fortes. A Júlia não restará outra saída que não a de lhe obedecer, e quando João lhe pede para se matar ela submete­‑se, como que hipnotizada”, escreveu Arthur Adamov num ensaio que dedicou a Strindberg. Este acrescenta: “Penso que o amor é como o jacinto, que deve tomar raiz de noite antes de poder florir. Aqui, ele cresce, começa a florir e dá o seu fruto de repente, e é a razão pela qual a planta morre tão depressa”. Rejeitando aquilo que ele designa de “diálogo francês”, Strindberg deixou “os cérebros trabalhar de um modo irregular, como na verdade o fazem na conversação, onde nunca se esgota completamente um assunto, mas onde um pensamento oferece a outro a roda a que pode agarrar­‑se”. Assim, a noite branca de São João é atravessada por um diálogo “errático” mas extremamente denso. Strindberg refere­‑se a Cristina como uma personagem secundária. Não foi esse o entendimento do Sfumato, que intitulou a peça (a maior parte das vezes encenada à volta de uma vedeta que interpreta o papel titular) Júlia, João e Cristina, sublinhando assim o jogo de tensões entre as três personagens e as devastações que daí resultam a todos os níveis, num mundo onde o ser humano “deixou de ser o verdadeiro objecto da civilização”, como nos diz Margarita Mladenova, que assina a encenação. Uma fria cozinha metalizada domina a cena, asséptica como um laboratório, uma clínica. Um horror, de tão limpa. A água escorre das vasilhas para lavar a sujidade. À boca de cena, uma calha conduz as águas conspurcadas. É no interior desta paisagem quase clínica que o Sfumato cozinha a peça. * “Mademoiselle Julie, d’Eros en Thanatos”. In Théâtre­ ‑Laboratoire Sfumato: Trilogie August Strindberg: Programme. Paris: Théâtre de la Bastille, 2008. p. 5. 9 10 11 Júlia É um carácter moderno – não que a mulher metade­‑mulher apenas, a que odeia o homem, não tenha existido em todos os tempos: mas acabamos de a descobrir, ela chegou­‑se à frente e faz barulho. A meia­‑mulher é um tipo que abre uma via, que se vende pelo poder, pelas condecorações, pelas distinções e pelos diplomas, como fazia antes por dinheiro: testemunho de uma decadência. Não é um bom espécime, porque não tem nenhuma resistência, mas não deixa de se reproduzir, conduzindo a sua miséria de geração em geração; e os homens degenerados parecem inconscientemente fazer a sua escolha entre elas, de modo que se multiplicam e fazem nascer esses seres de sexo indeciso para os quais a vida é um sofrimento, mas que acabam felizmente por sucumbir, seja pela razão de estarem em desacordo com a realidade, seja por causa do desencadear dos seus instintos contrariados, seja, enfim, quando vêem desiludida a sua esperança de igualar o homem. O tipo é trágico por nos oferecer o espectáculo de uma luta desesperada contra a natureza, trágico como essa herança romântica que o naturalismo dilapida, a qual só se interessa pela felicidade. Mas para a felicidade são precisos espécimes bons e fortes. A menina Júlia é também a descendente de uma velha nobreza de espada, que a nova nobreza da inteligência ou da sensibilidade suplantou; a vítima da desarmonia que o “crime” de uma mãe introduziu numa família: uma vítima dos erros do tempo, das circunstâncias, da sua fraca natureza, o que constitui, em conjunto, o equivalente ao antigo Destino ou Lei do 12 Universo. O cientista suprimiu a culpa ao mesmo tempo que negava a existência de Deus, mas as consequências de qualquer acto, a punição, a prisão ou o temor que se tem disso não podem ser suprimidos, subsistem quer ele queira quer não, porque os homens lesados são menos tolerantes do que pode ser, sem custos, aquele que não foi lesado ou aquele que está fora do assunto. Mesmo que o pai renunciasse, contra vontade, à sua vingança, a sua filha vingar­‑se­‑ia em si própria, como o faz aqui, devido ao sentimento de honra inato ou adoptado que as classes elevadas herdaram não sei de quem (dos bárbaros, das suas origens arianas, da cavalaria medieval?). É um sentimento muito bom, mas actualmente nefasto à perenidade da raça. É o haraquiri do fidalgo, a lei interior do japonês que lhe ordena que abra o ventre a si próprio, quando é ele o ofendido, um sentimento que sobrevive no duelo, privilégio da nobreza. É por isso que João, o criado, viverá; enquanto a menina Júlia, essa, não poderá viver na desonra. João Ele é o filho do camponês, fez de si próprio um futuro senhor. Teve facilidade em aprender, tem os sentidos desenvolvidos (o olfacto, o gosto, a vista) e o sentido da beleza. Já se elevou acima da sua condição e é já suficientemente forte para se servir dos outros sem ter de os suportar. Já é estranho ao que está em seu redor, que despreza como um meio ultrapassado; receia­‑o e foge dele, porque ali conhecem os seus segredos, antecipam as suas intenções, vêem a sua ascensão com inveja e esperam com satisfação a sua queda. É essa a explicação para o seu carácter duplo, indeciso, hesitando entre a simpatia pelo que é elevado e o ódio por aqueles que neste momento se encontram ainda acima dele. É um aristocrata, diz ele próprio, que aprendeu os segredos da boa sociedade; é educado, mas sob essa superfície encontra­‑se o homem em bruto. Usa já o redingote com gosto, sem que se possa ter a certeza de que o seu corpo está limpo. João tem respeito pela menina, mas tem medo de Cristina. É que Cristina conhece os seus perigosos segredos. Ele é suficientemente insensível para não deixar os acontecimentos da noite perturbarem os seus projectos de futuro. Com a grosseria do escravo e a insensibilidade do amo, pode ver correr o sangue sem desmaiar. Por isso sairá do combate indemne e virá provavelmente a ser dono de um hotel; e se ele próprio nunca atingir a dignidade do conde romeno, o seu filho obterá o bacharelato e tornar­‑se­‑á talvez juiz. […] Que João tenha uma alma de escravo, isso está patente no respeito que revela pelo conde (as botas) e nos sentimentos de superstição que dedica à religião; mas se reverencia o conde, é sobretudo porque este ocupa um posto ao qual aspira; esse respeito permanece vivo mesmo quando, tendo conquistado a filha da casa, se apercebe de que há apenas vazio por detrás dessa bela fachada. Não creio que um amor “mais elevado” pudesse nascer entre duas almas de qualidade tão diferente, e é por isso que deixo a menina Júlia mascarar o seu amor de protecção ou de desculpa; e deixo João supor que o seu amor poderia nascer se as condições sociais fossem outras. e Cristina É uma escrava, sem qualquer liberdade, cheia de uma preguiça adquirida em frente dos fogões, repleta de moral e de religião, que lhe servem de bodes expiatórios e de álibis. Vai à igreja para descarregar comodamente sobre Cristo as suas falcatruas domésticas e para se aprovisionar de inocência. É também uma personagem secundária, logo apenas esboçada, como o pastor ou o médico de O Pai, que eu queria apresentar como homens de todos os dias, como quase sempre são os pastores e os médicos da província. Se essas personagens secundárias parecem um pouco abstractas, é porque os “homens de todos os dias” são, em certa medida, abstractos quando exercem as suas profissões; privados de independência, não mostram senão um aspecto de si próprios no exercício da sua profissão; enquanto o espectador não sentir necessidade de os ver sob vários aspectos, a minha descrição abstracta continuará justa. august strindberg Excertos de “Prefácio”. In Menina Júlia. Lisboa: Teatro Nacional D. Maria II; Quimera, D.L. 2009. p. 5­‑19. 13 “A CRISE DO DRAMA EM MODO SACRIFICIAL” jean­‑pierre sarrazac* Mais radical ainda do que Tchékhov, Strindberg faz tábua rasa das formas legadas pela tradição. O autor escandinavo vê a crise do drama em modo sacrificial, como um potlatch de formas onde o antigo é continuamente destruído para produzir o novo. Atitude expressa, no prefácio de Menina Júlia, a propósito da divisão clássica em actos e cenas: “No que toca ao aspecto técnico da composição, tentei suprimir a divisão em actos. […] Já experimentei esta forma concentrada em 1872 com um dos meus ensaios para o teatro, O Fora da Lei, se bem que com pouco sucesso. Dei a peça por terminada com cinco actos, quando a impressão inquietante e fragmentada que se desprendia dela se me tornou sensível. Queimei­‑a, e das suas cinzas saiu um único grande acto de cinquenta páginas impressas que dura uma hora completa”. A este respeito, Strindberg – que, do naturalismo ao expressionismo, passando pelo simbolismo e o onirismo, abriu novos caminhos à criação dramática – merece amplamente o epíteto de “pai do teatro moderno”. […] Em primeiro plano, a concepção do diálogo: “No que diz respeito ao diálogo”, lê­‑se no prefácio de Menina Júlia, “infringi um pouco as tradições. Não fiz das minhas personagens catecúmenos 14 que apresentam questões parvas para provocarem respostas espirituais. Evitei o que há de simétrico, de matemático no diálogo francês construído; deixei os cérebros trabalhar de um modo irregular, como na verdade o fazem na conversação, onde nunca se esgota completamente um assunto, mas onde um pensamento oferece a outro a roda a que pode agarrar­‑se. Por isso o diálogo é errante e enriquece­‑se, durante as primeiras cenas, de uma matéria que mais tarde é retomada, trabalhada, repetida, desenvolvida, sobrecarregada, como o tema de uma composição musical”. Mas a modernidade do diálogo strindberguiano não se limita, ao contrário do que esta citação poderia fazer crer, a reflectir a conversação real; ela afecta mais profundamente a estrutura e a dinâmica do drama. “O diálogo inconsistente devém monólogo consistente”: esta fórmula de Szondi a propósito de Tchékhov poderia muito bem aplicar­‑se a Strindberg. Com a ressalva de que, nos dramas de Strindberg, o diálogo aparente do conjunto das personagens tende a converter­‑se em monólogo interior de uma só: o protagonista da peça, se quisermos, ou melhor, segundo as expressões de Szondi, a sua “consciência especular”, o seu “sujeito épico”. * Théâtres du moi, théâtres du monde. Rouen: Éd. Médianes, 1995. p. 26­‑27. AUGUST STRINDBERG (1849­‑1912) Filho de um membro da alta burguesia sueca, Oskar Strindberg, e de uma empregada de um albergue que se tornaria governanta e amante do seu pai, descendência plasmada no livro autobiográfico O Filho da Criada (1886). Concluído o ensino secundário em 1867, inscreve­‑se na Universidade de Uppsala. Por razões financeiras, experimenta vários ofícios, como jornalista, actor no Teatro Real Dramático, empregado no telégrafo e na Biblioteca Real de Estocolmo. Depois de um período de indecisões, funda a associação Runa, votada ao culto do passado e do ideal nórdicos. Descobre então Schiller, Byron e Kierkegaard, e começa a escrever: A Queda da Hélade (1869), O Apóstata (1871) ou ainda Mestre Olof (1872). Após o seu casamento com Siri von Essen em 1877, de quem se divorciará dez anos mais tarde, publica O Povo Sueco (1882), uma narrativa histórica, e O Novo Reino, um romance que ridiculariza a sociedade sueca e as instituições parlamentares recentemente criadas. Atacado pela sua irreverência e abatido pelos seus infortúnios conjugais, Strindberg adoece gravemente. Decide exilar­‑se em França, onde publica artigos em várias revistas parisienses, bem como uma recolha de poemas. Durante esta estadia, onde descobre Zola e os irmãos Goncourt, bem como os estudos de Hippolyte Bernheim e Jean Charcot sobre psiquismo, escreve uma série de tragédias de cunho naturalista: O Pai (1887), Menina Júlia (a mais representada das suas obras) ou ainda Credores (1888). Contrariando a corrente romântica ainda muito em voga na Suécia, escreve obras satíricas sobre o casamento, os conflitos sociais e as contingências materiais. Inspirado por Nietzsche, com quem troca correspondência em meados dos anos 1880, funda a sua concepção das relações humanas sobre a noção de desigualdade física e sobre a ideia do “super­‑homem”: toda a vida social não é mais do que um combate, vencido pelo ser fisicamente mais forte. Em meados dos anos 1890, após o fracasso do seu segundo casamento, viaja pela Alemanha e Áustria, passando pela Dinamarca e Inglaterra. De novo doente, julga­‑se perseguido, tenta suicidar­‑se, foge daqueles que lhe são próximos. Descreve a violenta crise que atravessa em Inferno (romance escrito em francês, em 1897, posteriormente traduzido para sueco). Regressa a Estocolmo, onde se fixa definitivamente. Segue­‑se um período de intensa produção: escreve peças históricas – Gustav Adolf (1899), A Rainha Cristina (1901) – e outras ditas expressionistas, como a trilogia composta por A Estrada de Damasco (1898­‑1904), O Advento (1898) e Páscoa (1901), mas também A Dança da Morte (1900) e O Sonho (1901). Após um terceiro casamento que redunda em novo fracasso, Strindberg continua a escrever e funda em 1907 um teatro de vanguarda, o Intima Teatern (Teatro Íntimo). Morreu no dia 14 de Maio de 1912. Tinha 63 anos. 15 FICHA TÉCNICA APOIOS Teatro­‑Laboratório Sfumato TEATRO­‑LABORATÓRIO SFUMATO Rua Dimitar Grekov, 2 direcção 1504 Sófia, Bulgária Margarita Mladenova [email protected] direcção artística [email protected] Ivan Dobchev http://sfumato.info relações internacionais e assessoria de imprensa Teatro Nacional São João Rada Balareva Praça da Batalha 4000­‑102 Porto operação de som Roumyana Avtanska APOIOS À DIVULGAÇÃO T 22 340 19 00 operação de luz Dimitar Mihailov Teatro Carlos Alberto técnico de palco Rua das Oliveiras, 43 Lyubomir Nestorov 4050­‑449 Porto T 22 340 19 00 FICHA TÉCNICA TNSJ AGRADECIMENTOS coordenação de produção Mr. Piano – Pianos Rui Macedo Mosteiro de São Bento da Vitória Maria João Teixeira Polícia de Segurança Pública Rua de São Bento da Vitória direcção de palco 4050­‑543 Porto Rui Simão T 22 340 19 00 direcção de cena Pedro Guimarães www.tnsj.pt maquinaria de cena [email protected] Filipe Silva (coordenação) Paulo Ferreira, António Quaresma, EDIÇÃO Jorge Silva, Lídio Pontes, Departamento de Edições Adélio Pêra, Joel Santos do TNSJ luz coordenação Filipe Pinheiro (coordenação) João Luís Pereira José Rodrigues, Abílio Vinhas, documentação António Pedra, Nuno Gonçalves Paula Braga som capa e modelo gráfico Francisco Leal (coordenação) Joana Monteiro Joel Azevedo paginação assistência de camarins João Guedes Nazaré Fernandes fotografia Virgínia Pereira Simon Varsano legendagem impressão Cristina Carvalho Empresa Diário do Porto, Lda. Não é permitido filmar, gravar ou fotografar durante o espectáculo. O uso de telemóveis ou relógios com sinal sonoro é incómodo, tanto para os intérpretes como para os espectadores.