Document

Propaganda
B
Teatro
Nacional
São João
13-15
Out
2011
JÚLIA, JOÃO
E CRISTINA
a partir de
Menina Júlia
(Fröken Julie,
1888), de
August Strindberg
adaptação
e encenação
Margarita
Mladenova
cenografia
interpretação
produção
Espectáculo
e figurinos
Albena
Teatro­
em língua
Daniela Oleg
Georgieva
‑Laboratório
búlgara,
Liahova
Júlia
Sfumato
legendado
desenho de luz
Hristo Petkov
(Bulgária)
em português
Daniela Oleg
João
Liahova
Miroslava
estreia
qui-sáb 21:30
Margarita
Gogovska
2Fev2007
Mladenova
Cristina
Teatro­
dur. aprox. 1:20
‑Laboratório
M/12 anos
Sfumato
(Sófia)
“
O teatro representa para nós uma outra
forma de vida – mais concentrada,
mais pura e mais elevada. Pressupõe
a existência de uma comunidade de
pessoas que têm algo para trocar, que
se congratulam do seu encontro, que
o partilham e estão disponíveis para
dar muito de si próprias. Uma vida de
pessoas em comunhão, onde cada um se
descobre através do outro, partilhando
com ele a sua energia espiritual, numa
cumplicidade convertida em ritual
misterioso de almas, capaz de nos
restituir um sentimento perdido de
santidade, de pureza e calor humano.
O teatro é uma vida tumultuosa.
O teatro não é o lugar do encontro,
ele é o encontro.
margarita mladenova, ivan dobchev
In Théâtre­‑Laboratoire Sfumato: Trilogie August Strindberg: Programme. Paris: Théâtre de la Bastille, 2008. p. 4.
2
“
Diria que a força do seu
teatro é a de olhar através
das paredes. Ele confere
uma espectacularidade à
vida privada, aí incluído o
que é invisível, dissimulado.
Encontramos nele uma
dimensão épica no mais
íntimo. Strindberg é um
fabuloso narrador da
sociedade.
jean­‑pierre sarrazac
Théâtres du moi, théâtres du monde. Rouen: Éd. Médianes, 1995. p. 131.
3
“
Por infelicidade ou felicidade – a diferença
não é significativa –, um homem ambicioso
não pode ser amado durante muito tempo por
uma mulher. “As mulheres estão habituadas,
não sei por que inclinação dos seus espíritos, a
não ver num homem de talento mais do que os
seus defeitos, e num idiota mais do que as suas
qualidades. Elas sentem uma grande simpatia
pelas qualidades do idiota, que são uma adulação
perpétua dos seus próprios defeitos.” Estas
palavras pertencem ao meu mestre Honoré de
Balzac, o mais fiel inimigo das mulheres, o seu
mais fiel amante, apaixonado, até à morte. Mas
o que há de contraditório nestas duas palavras?
Amar… odiar… O amor, febre intermitente
entrecortada pelas síncopes do ódio.
Só a indiferença gera a impotência.
august strindberg
“Misogynie et gynolâtrie”. In Fernando Pessoa [et. al.].
Lexi­‑textes. 9: Inédits et commentaires. Paris: L’Arche,
impr. 2005. p. 206.
4
“OS MEDOS
E OS PESADELOS
DE STRINDBERG…”
margarita mladenova
Inquieta­‑me a ideia que ocupou
obsessivamente os filósofos na primeira
metade do século XX – o que acontece ao
homem, especialmente após as Grandes
Guerras, a partir do momento em que
deixou de ser o verdadeiro objecto da
civilização?
Ele já não ocupa o seu centro.
Algo sucede ao homem clássico e
no processo ele transforma­‑se numa
efígie da qual estão ausentes Deus
e as leis não­‑escritas, e para a qual
conceitos como consciência e ética são
anacronismos.
Os medos e os pesadelos de Strindberg
reflectem a vibração humana de um
espírito sensível e clarividente.
Isto interessa­‑nos. Cruza­‑se com a
nossa inquietude crescente, com o móbil
contínuo do Sfumato: não abandonar
o homem à amnésia das conquistas do
espírito humano.
5
“A LÓGICA DO VISÍVEL
AO SERVIÇO DO
INVISÍVEL”
O Teatro­‑Laboratório Sfumato
jean­‑pierre thibaudat*
Margarita Mladenova e Ivan Dobchev
tinham 40 anos quando criaram o Teatro
Sfumato em 1989, em Sófia. Um e outro
eram já encenadores reconhecidos e
pedagogos estimados – e embarcaram na
aventura um punhado de jovens actores
que tinham formado. Contribuíram
para a renovação de um teatro búlgaro
há demasiado tempo enredado nas
malhas do império soviético: instituições
pesadas e a fossilização dogmática do
ensino de Stanislavski. A força desta
ligação resultou porque fundada numa
comum e exigente visão do teatro – bem
sintetizada no nome da trupe, tomado de
empréstimo a Leonardo da Vinci –, que a
sua união iria radicalizar.
O sfumato designa uma técnica de
desenho, de pintura, que consiste em
esbater os contornos, em aprisionar,
pintar o ar, o impalpável. “O nome da
nossa trupe reflecte a nossa estratégia
poética”, dizem Mladenova e Dobchev.
Por outras palavras, menos o traço que
o seu movimento, mais o indefinido e
os seus mistérios do que a afirmação
peremptória, mais a dinâmica do
gesto do que o seu acabamento, mais
o processo do que o resultado. “Não
procuramos um teatro descritivo mas,
no jogo de actores, uma verdade do
movimento interior que não se esgota na
realidade visível”, acrescentam. Como
escreveu Heinz Wismann, “o Teatro
Sfumato privilegia a manifestação de
um impulso inicial, evitando que ele
seja absorvido pela lógica da eficácia”.
“Para nós”, continuam Margarita e
Ivan, “o espectáculo é uma acção, um
ritual espiritual que acontece aqui
e agora. Ora, o ritual não pode ser
imitado nem repetido. Isso determina
a essência da presença do actor nos
nossos espectáculos: todo o trabalho
desenvolvido nos ensaios consiste em
conduzir o actor na direcção dos reflexos
não­‑condicionados, em favorecer um
impulso criador”.
Rapidamente, tropeçaram nesta frase
do pintor Odilon Redon, que se tornaria
no seu santo­‑e­‑senha, na sua regra de
ouro: “A lógica do visível ao serviço do
invisível”. Todos os espectáculos do
Sfumato desenrolam­‑se num ambiente
de alta tensão. Foi um choque descobrir
esta aventura num país que acabava
de se abrir ao mundo ocidental e que
conhecíamos mais pelos seus iogurtes e
guarda­‑chuvas. Estamos em 1990, num
recanto de um gigantesco e pretensioso
Palácio da Cultura de Sófia, onde Lenine
havia sido repetidas vezes o herói de
espectáculos grandiloquentes. Aí, com
a cumplicidade de um vice­‑ministro
clarividente, o Sfumato instalou uma
espécie de acampamento, uma ilhota
de teatro vivo e incandescente no
interior de um mausoléu. À luz das velas,
actores de traços acerados conduzem­
‑nos pelos meandros de Petar Atanassov,
um Rimbaud búlgaro cuja obra foi
durante muito tempo proibida, ou
passeiam­‑nos pela obra da russa Ludmilla
Petrouchevskaïa, que nos deu a conhecer
a perestroika. Em 1991, acamparam no
subsolo de Beaubourg, convidados pelo
Festival d’Automne de Paris. Dobchev
veio com a encenação de Testemunho
de Luz Durante a Peste, um espectáculo
concebido a partir da obra de Atanassov,
em diálogo com passos da Bíblia e de
Banquete em Tempo de Peste de Púchkin.
Mladenova assinou Post Scriptum, uma
viagem pela obra de Tchékhov a partir
da cena final de A Gaivota: o suicídio de
Tréplev, filho da grande actriz Arkádina.
Cinco anos mais tarde, o Sfumato
apresentava­‑se no Festival Passages, em
Nancy, com duas peças de Tchékhov:
O Tio Vânia (Dobchev) e As Três Irmãs
(Mladenova). E, nesta temporada [2008­
‑2009], a trilogia Strindberg, intitulada
Para Damasco, passará pelo Festival
Passages em Maio de 2009, depois da sua
apresentação no Théâtre de la Bastille, no
quadro do Festival d’Automne.
Mais tarde denominada Teatro­
‑Laboratório Sfumato (um piscar de
olho ao mítico Teatro Laboratório
de Grotowski, com o qual o Sfumato
partilha alguns propósitos), a companhia
não empilha espectáculos, antes concebe
a sua deriva exploratória a partir de um
projecto, geralmente em torno de um
autor. Entre 1989 e 1996, Tchékhov,
depois Lovkov, Raditchkov, os mitos,
Dostoievski (2003­‑2005), o projecto Exit,
em torno dos últimos dias de Lev Tolstoi
e Marina Tsvétaïeva e, agora, Strindberg.
Tantas viagens de longo curso, ensaios,
improvisações ao longo de meses, um
tempo lento necessário para penetrar o
“espírito” do autor, para chegar perto do
seu “segredo” e, mais além, interrogar
“o grande enigma da existência”.
Há já muito tempo que o Sfumato
abandonou o sótão do Palácio da Cultura,
entretanto votado aos espectáculos de
entretenimento. Após muitas peripécias
– um teatro que ardeu, um outro de
onde foram expulsos por causa de uma
operação imobiliária –, instalaram­‑se
junto de um jardim no centro de Sófia,
num teatro que toda a equipa do Sfumato
construiu com as suas próprias mãos,
nas antigas termas da cidade há muito
abandonadas.
* In Théâtre­‑Laboratoire Sfumato: Trilogie August Strindberg:
Programme. Paris: Théâtre de la Bastille, 2008. p. 3­‑4.
7
MENINA JÚLIA, DE EROS
EM TÂNATOS
jean­‑pierre thibaudat*
Primeira etapa da trilogia Para
Damasco, que atravessa a obra de
August Strindberg a nado e a maior
parte das vezes em apneia, Menina
Júlia, uma peça em um acto, de um
fôlego, fulgurante. Em 1883, o autor
tinha abandonado a Suécia e os seus
teatros, colocando em perigo a carreira
8
de actriz da sua mulher Siri. Na véspera
da Primavera de 1888, na Dinamarca,
coloca um ponto final em Confissões
de um Louco (escrita em francês), uma
das suas obras autobiográficas onde
disseca com laivos de provocação
a sua vida de casado. Pouco depois,
descobre Friedrich Nietzsche, lê­‑o
com exaltação, “Está tudo lá!”, escreve
a um amigo. A família Strindberg (dois
filhos) passa o Verão na Dinamarca,
em Lyngby, onde aluga quartos num
castelo de uma condessa extravagante.
É aí que August escreve Menina Júlia
em duas semanas, seguramente
inspirado nas pessoas que viviam nesse
castelo, aí incluída a jovem Marta,
com quem Strindberg terá uma breve
aventura. Em cena, três personagens:
a menina Júlia, filha de um conde,
João, um criado, Cristina, a cozinheira.
A acção decorre numa cozinha do
castelo, na noite de São João. Uma noite
de festa, uma noite de loucura. “Esta
noite, a menina Júlia está doida outra
vez, completamente doida!”, primeira
deixa da peça. Ao fim da noite, a filha
do conde, tendo dormido com o criado,
que está noivo da cozinheira, obedece
à ordem do seu amante: sai para se
entregar ao suicídio.
Num longo prefácio, Strindberg
detém­‑se na ambivalência das
personagens. A menina Júlia “é um
carácter moderno”, mas “é também a
descendente de uma velha nobreza de
espada”. João, filho de um camponês, “já
se elevou acima da sua condição e é já
suficientemente forte para se servir dos
outros sem ter de os suportar”. Senhor
em potência, hesita “entre a simpatia
pelo que é elevado e o ódio por aqueles
que neste momento se encontram
ainda acima dele”. Por último, Cristina
é “uma escrava”, que vai “à igreja para
descarregar comodamente sobre Cristo
as suas falcatruas domésticas e para se
aprovisionar de inocência”.
Quando entra em cena, a menina
Júlia convida João a dançar com ela
uma vez mais. Ele obedece. Ela dá­‑se
ares de senhora, deseja­‑o, mas, uma
vez consumado o acto, tudo muda. De
Eros em Tânatos. “A vitória de Júlia
converte­‑se rapidamente na vitória
de João, que se fortalece ao misturar o
seu sangue com o sangue dos fortes.
A Júlia não restará outra saída que não a
de lhe obedecer, e quando João lhe pede
para se matar ela submete­‑se, como que
hipnotizada”, escreveu Arthur Adamov
num ensaio que dedicou a Strindberg.
Este acrescenta: “Penso que o amor é
como o jacinto, que deve tomar raiz de
noite antes de poder florir. Aqui, ele
cresce, começa a florir e dá o seu fruto
de repente, e é a razão pela qual a planta
morre tão depressa”.
Rejeitando aquilo que ele designa de
“diálogo francês”, Strindberg deixou
“os cérebros trabalhar de um modo
irregular, como na verdade o fazem
na conversação, onde nunca se esgota
completamente um assunto, mas onde
um pensamento oferece a outro a roda
a que pode agarrar­‑se”. Assim, a noite
branca de São João é atravessada por um
diálogo “errático” mas extremamente
denso.
Strindberg refere­‑se a Cristina como
uma personagem secundária. Não foi
esse o entendimento do Sfumato, que
intitulou a peça (a maior parte das vezes
encenada à volta de uma vedeta que
interpreta o papel titular) Júlia, João e
Cristina, sublinhando assim o jogo de
tensões entre as três personagens e as
devastações que daí resultam a todos os
níveis, num mundo onde o ser humano
“deixou de ser o verdadeiro objecto da
civilização”, como nos diz Margarita
Mladenova, que assina a encenação.
Uma fria cozinha metalizada domina
a cena, asséptica como um laboratório,
uma clínica. Um horror, de tão limpa.
A água escorre das vasilhas para lavar
a sujidade. À boca de cena, uma calha
conduz as águas conspurcadas. É no
interior desta paisagem quase clínica que
o Sfumato cozinha a peça.
* “Mademoiselle Julie, d’Eros en Thanatos”. In Théâtre­
‑Laboratoire Sfumato: Trilogie August Strindberg:
Programme. Paris: Théâtre de la Bastille, 2008. p. 5.
9
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Júlia
É um carácter moderno – não que a
mulher metade­‑mulher apenas, a que
odeia o homem, não tenha existido em
todos os tempos: mas acabamos de a
descobrir, ela chegou­‑se à frente e faz
barulho. A meia­‑mulher é um tipo que
abre uma via, que se vende pelo poder,
pelas condecorações, pelas distinções
e pelos diplomas, como fazia antes
por dinheiro: testemunho de uma
decadência. Não é um bom espécime,
porque não tem nenhuma resistência,
mas não deixa de se reproduzir,
conduzindo a sua miséria de geração
em geração; e os homens degenerados
parecem inconscientemente fazer a
sua escolha entre elas, de modo que se
multiplicam e fazem nascer esses seres
de sexo indeciso para os quais a vida é um
sofrimento, mas que acabam felizmente
por sucumbir, seja pela razão de estarem
em desacordo com a realidade, seja por
causa do desencadear dos seus instintos
contrariados, seja, enfim, quando vêem
desiludida a sua esperança de igualar o
homem. O tipo é trágico por nos oferecer
o espectáculo de uma luta desesperada
contra a natureza, trágico como essa
herança romântica que o naturalismo
dilapida, a qual só se interessa pela
felicidade. Mas para a felicidade são
precisos espécimes bons e fortes.
A menina Júlia é também a
descendente de uma velha nobreza
de espada, que a nova nobreza da
inteligência ou da sensibilidade
suplantou; a vítima da desarmonia
que o “crime” de uma mãe introduziu
numa família: uma vítima dos erros do
tempo, das circunstâncias, da sua fraca
natureza, o que constitui, em conjunto, o
equivalente ao antigo Destino ou Lei do
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Universo. O cientista suprimiu a culpa
ao mesmo tempo que negava a existência
de Deus, mas as consequências de
qualquer acto, a punição, a prisão ou o
temor que se tem disso não podem ser
suprimidos, subsistem quer ele queira
quer não, porque os homens lesados
são menos tolerantes do que pode ser,
sem custos, aquele que não foi lesado ou
aquele que está fora do assunto. Mesmo
que o pai renunciasse, contra vontade,
à sua vingança, a sua filha vingar­‑se­‑ia
em si própria, como o faz aqui, devido ao
sentimento de honra inato ou adoptado
que as classes elevadas herdaram não
sei de quem (dos bárbaros, das suas
origens arianas, da cavalaria medieval?).
É um sentimento muito bom, mas
actualmente nefasto à perenidade
da raça. É o haraquiri do fidalgo, a lei
interior do japonês que lhe ordena que
abra o ventre a si próprio, quando é ele o
ofendido, um sentimento que sobrevive
no duelo, privilégio da nobreza. É por
isso que João, o criado, viverá; enquanto
a menina Júlia, essa, não poderá viver na
desonra.
João
Ele é o filho do camponês, fez de
si próprio um futuro senhor. Teve
facilidade em aprender, tem os sentidos
desenvolvidos (o olfacto, o gosto, a vista)
e o sentido da beleza. Já se elevou acima
da sua condição e é já suficientemente
forte para se servir dos outros sem ter
de os suportar. Já é estranho ao que está
em seu redor, que despreza como um
meio ultrapassado; receia­‑o e foge dele,
porque ali conhecem os seus segredos,
antecipam as suas intenções, vêem
a sua ascensão com inveja e esperam
com satisfação a sua queda. É essa a
explicação para o seu carácter duplo,
indeciso, hesitando entre a simpatia
pelo que é elevado e o ódio por aqueles
que neste momento se encontram ainda
acima dele. É um aristocrata, diz ele
próprio, que aprendeu os segredos da
boa sociedade; é educado, mas sob essa
superfície encontra­‑se o homem em
bruto. Usa já o redingote com gosto, sem
que se possa ter a certeza de que o seu
corpo está limpo.
João tem respeito pela menina, mas
tem medo de Cristina. É que Cristina
conhece os seus perigosos segredos.
Ele é suficientemente insensível para
não deixar os acontecimentos da noite
perturbarem os seus projectos de
futuro. Com a grosseria do escravo e a
insensibilidade do amo, pode ver correr
o sangue sem desmaiar. Por isso sairá do
combate indemne e virá provavelmente
a ser dono de um hotel; e se ele próprio
nunca atingir a dignidade do conde
romeno, o seu filho obterá o bacharelato
e tornar­‑se­‑á talvez juiz.
[…] Que João tenha uma alma de
escravo, isso está patente no respeito
que revela pelo conde (as botas) e nos
sentimentos de superstição que dedica
à religião; mas se reverencia o conde, é
sobretudo porque este ocupa um posto
ao qual aspira; esse respeito permanece
vivo mesmo quando, tendo conquistado
a filha da casa, se apercebe de que há
apenas vazio por detrás dessa bela
fachada.
Não creio que um amor “mais elevado”
pudesse nascer entre duas almas de
qualidade tão diferente, e é por isso que
deixo a menina Júlia mascarar o seu amor
de protecção ou de desculpa; e deixo João
supor que o seu amor poderia nascer se as
condições sociais fossem outras.
e Cristina
É uma escrava, sem qualquer liberdade,
cheia de uma preguiça adquirida em
frente dos fogões, repleta de moral e
de religião, que lhe servem de bodes
expiatórios e de álibis. Vai à igreja
para descarregar comodamente sobre
Cristo as suas falcatruas domésticas e
para se aprovisionar de inocência.
É também uma personagem secundária,
logo apenas esboçada, como o pastor
ou o médico de O Pai, que eu queria
apresentar como homens de todos os
dias, como quase sempre são os pastores
e os médicos da província. Se essas
personagens secundárias parecem um
pouco abstractas, é porque os “homens
de todos os dias” são, em certa medida,
abstractos quando exercem as suas
profissões; privados de independência,
não mostram senão um aspecto de si
próprios no exercício da sua profissão;
enquanto o espectador não sentir
necessidade de os ver sob vários
aspectos, a minha descrição abstracta
continuará justa.
august strindberg
Excertos de “Prefácio”. In Menina Júlia. Lisboa:
Teatro Nacional D. Maria II; Quimera, D.L. 2009. p. 5­‑19.
13
“A CRISE DO DRAMA
EM MODO SACRIFICIAL”
jean­‑pierre sarrazac*
Mais radical ainda do que Tchékhov,
Strindberg faz tábua rasa das formas
legadas pela tradição. O autor
escandinavo vê a crise do drama em
modo sacrificial, como um potlatch de
formas onde o antigo é continuamente
destruído para produzir o novo. Atitude
expressa, no prefácio de Menina Júlia, a
propósito da divisão clássica em actos e
cenas: “No que toca ao aspecto técnico
da composição, tentei suprimir a divisão
em actos. […] Já experimentei esta forma
concentrada em 1872 com um dos meus
ensaios para o teatro, O Fora da Lei, se
bem que com pouco sucesso. Dei a peça
por terminada com cinco actos, quando
a impressão inquietante e fragmentada
que se desprendia dela se me tornou
sensível. Queimei­‑a, e das suas cinzas
saiu um único grande acto de cinquenta
páginas impressas que dura uma hora
completa”.
A este respeito, Strindberg – que,
do naturalismo ao expressionismo,
passando pelo simbolismo e o onirismo,
abriu novos caminhos à criação
dramática – merece amplamente o
epíteto de “pai do teatro moderno”. […]
Em primeiro plano, a concepção do
diálogo: “No que diz respeito ao diálogo”,
lê­‑se no prefácio de Menina Júlia,
“infringi um pouco as tradições. Não fiz
das minhas personagens catecúmenos
14
que apresentam questões parvas para
provocarem respostas espirituais. Evitei
o que há de simétrico, de matemático
no diálogo francês construído; deixei
os cérebros trabalhar de um modo
irregular, como na verdade o fazem
na conversação, onde nunca se esgota
completamente um assunto, mas onde
um pensamento oferece a outro a roda
a que pode agarrar­‑se. Por isso o diálogo
é errante e enriquece­‑se, durante as
primeiras cenas, de uma matéria que
mais tarde é retomada, trabalhada,
repetida, desenvolvida, sobrecarregada,
como o tema de uma composição
musical”. Mas a modernidade do
diálogo strindberguiano não se limita,
ao contrário do que esta citação poderia
fazer crer, a reflectir a conversação
real; ela afecta mais profundamente a
estrutura e a dinâmica do drama.
“O diálogo inconsistente devém monólogo
consistente”: esta fórmula de Szondi
a propósito de Tchékhov poderia
muito bem aplicar­‑se a Strindberg.
Com a ressalva de que, nos dramas
de Strindberg, o diálogo aparente do
conjunto das personagens tende a
converter­‑se em monólogo interior
de uma só: o protagonista da peça,
se quisermos, ou melhor, segundo as
expressões de Szondi, a sua “consciência
especular”, o seu “sujeito épico”.
* Théâtres du moi, théâtres du monde. Rouen: Éd. Médianes,
1995. p. 26­‑27.
AUGUST STRINDBERG
(1849­‑1912)
Filho de um membro da alta burguesia
sueca, Oskar Strindberg, e de uma
empregada de um albergue que se
tornaria governanta e amante do seu
pai, descendência plasmada no livro
autobiográfico O Filho da Criada (1886).
Concluído o ensino secundário em 1867,
inscreve­‑se na Universidade de Uppsala.
Por razões financeiras, experimenta vários
ofícios, como jornalista, actor no Teatro
Real Dramático, empregado no telégrafo
e na Biblioteca Real de Estocolmo. Depois
de um período de indecisões, funda a
associação Runa, votada ao culto do
passado e do ideal nórdicos. Descobre
então Schiller, Byron e Kierkegaard, e
começa a escrever: A Queda da Hélade
(1869), O Apóstata (1871) ou ainda Mestre
Olof (1872). Após o seu casamento com
Siri von Essen em 1877, de quem se
divorciará dez anos mais tarde, publica
O Povo Sueco (1882), uma narrativa
histórica, e O Novo Reino, um romance
que ridiculariza a sociedade sueca e as
instituições parlamentares recentemente
criadas. Atacado pela sua irreverência e
abatido pelos seus infortúnios conjugais,
Strindberg adoece gravemente. Decide
exilar­‑se em França, onde publica artigos
em várias revistas parisienses, bem como
uma recolha de poemas. Durante esta
estadia, onde descobre Zola e os irmãos
Goncourt, bem como os estudos de
Hippolyte Bernheim e Jean Charcot sobre
psiquismo, escreve uma série de tragédias
de cunho naturalista: O Pai (1887), Menina
Júlia (a mais representada das suas obras)
ou ainda Credores (1888). Contrariando a
corrente romântica ainda muito em voga
na Suécia, escreve obras satíricas sobre
o casamento, os conflitos sociais e as
contingências materiais.
Inspirado por Nietzsche, com quem
troca correspondência em meados dos
anos 1880, funda a sua concepção das
relações humanas sobre a noção de
desigualdade física e sobre a ideia do
“super­‑homem”: toda a vida social não é
mais do que um combate, vencido pelo
ser fisicamente mais forte. Em meados dos
anos 1890, após o fracasso do seu segundo
casamento, viaja pela Alemanha e Áustria,
passando pela Dinamarca e Inglaterra. De
novo doente, julga­‑se perseguido, tenta
suicidar­‑se, foge daqueles que lhe são
próximos. Descreve a violenta crise que
atravessa em Inferno (romance escrito em
francês, em 1897, posteriormente traduzido
para sueco). Regressa a Estocolmo, onde
se fixa definitivamente. Segue­‑se um
período de intensa produção: escreve
peças históricas – Gustav Adolf (1899),
A Rainha Cristina (1901) – e outras ditas
expressionistas, como a trilogia composta
por A Estrada de Damasco (1898­‑1904),
O Advento (1898) e Páscoa (1901), mas
também A Dança da Morte (1900) e
O Sonho (1901). Após um terceiro
casamento que redunda em novo fracasso,
Strindberg continua a escrever e funda
em 1907 um teatro de vanguarda, o Intima
Teatern (Teatro Íntimo). Morreu no dia 14
de Maio de 1912. Tinha 63 anos.
15
FICHA TÉCNICA
APOIOS
Teatro­‑Laboratório Sfumato
TEATRO­‑LABORATÓRIO SFUMATO
Rua Dimitar Grekov, 2
direcção
1504 Sófia, Bulgária
Margarita Mladenova
[email protected]
direcção artística
[email protected]
Ivan Dobchev
http://sfumato.info
relações internacionais e assessoria
de imprensa
Teatro Nacional São João
Rada Balareva
Praça da Batalha
4000­‑102 Porto
operação de som
Roumyana Avtanska
APOIOS À DIVULGAÇÃO
T 22 340 19 00
operação de luz
Dimitar Mihailov
Teatro Carlos Alberto
técnico de palco
Rua das Oliveiras, 43
Lyubomir Nestorov
4050­‑449 Porto
T 22 340 19 00
FICHA TÉCNICA TNSJ
AGRADECIMENTOS
coordenação de produção
Mr. Piano – Pianos Rui Macedo
Mosteiro de São Bento da Vitória
Maria João Teixeira
Polícia de Segurança Pública
Rua de São Bento da Vitória
direcção de palco
4050­‑543 Porto
Rui Simão
T 22 340 19 00
direcção de cena
Pedro Guimarães
www.tnsj.pt
maquinaria de cena
[email protected]
Filipe Silva (coordenação)
Paulo Ferreira, António Quaresma,
EDIÇÃO
Jorge Silva, Lídio Pontes,
Departamento de Edições
Adélio Pêra, Joel Santos
do TNSJ
luz
coordenação
Filipe Pinheiro (coordenação)
João Luís Pereira
José Rodrigues, Abílio Vinhas,
documentação
António Pedra, Nuno Gonçalves
Paula Braga
som
capa e modelo gráfico
Francisco Leal (coordenação)
Joana Monteiro
Joel Azevedo
paginação
assistência de camarins
João Guedes
Nazaré Fernandes
fotografia
Virgínia Pereira
Simon Varsano
legendagem
impressão
Cristina Carvalho
Empresa Diário do Porto, Lda.
Não é permitido filmar, gravar ou fotografar
durante o espectáculo. O uso de telemóveis
ou relógios com sinal sonoro é incómodo,
tanto para os intérpretes como para os
espectadores.
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