É com enorme satisfação que iniciamos hoje, no salão nobre do Supremo Tribunal de Justiça (S.T.J.) de Portugal, este debate sobre o futuro da justiça europeia. Dificilmente se encontraria local mais adequado: o edifício onde foi instalado, logo em 1837, o S.T.J. como produto directo da vitória definitiva do liberalismo sobre as forças absolutistas ao cabo de uma guerra civil de dois anos. Dificilmente se encontraria também melhor temática para nos debruçarmos sobre o futuro jurídico da União, neste período de perplexidades várias. Suponho que a construção da Europa pelos seus povos corresponde à superação definitiva dos limites espaciais que os romanos nos legaram e que marcaram por séculos a aculturação diferenciada dos europeus. Roma deixou-nos três grandes espaços: um, para os povos a norte das suas fronteiras setentrionais; outro, no seu império ocidental; outro ainda, no seu império oriental. Nesses espaços, correspondendo cada um deles a zonas políticas diferenciadas com maior ou menor coesão interna, a aculturação dos europeus foi diferente ( nomeadamente, no aspecto religioso) a tal ponto que povos iguais se tornaram política e culturalmente diferentes por se terem sedentarizado em territórios geopolíticos diversos. A construção da União será o cair do pano sobre esse tempo passado; e provavelmente as dificuldades e dúvidas que ciclicamente assomam ao espírito dos europeus sobre o futuro a trilhar, remetem-nos ainda para essa lembrança que marcou a nossa ancestralidade. É aqui que o Direito se revela uma ferramenta fundadora. Fundadora tanto por força do seu passado, quanto por força do seu futuro. O Estado de Direito foi-se construindo ao longo das linhas da tipicidade e legalidade dos crimes, da igualdade e do contraditório das partes, da definição constitucional de direitos e deveres até se cristalizar no catálogo de direitos liberais fundamentais, de direitos sociais e na segurança jurídica que várias décadas sem guerras intra-continentais sedimentaram. Este conjunto normativo funciona, hoje, como o nosso bilhete identitário, nomeadamente quando nos confrontamos com outros ou com outrem. Poderemos manter entre nós particularismos autónomos que obviamente perdurarão; mas a imagem de marca, que o estado de direito cinzelou, permanecerá para além de qualquer regionalismo porque esse é o meeting point onde todos nos encontramos e nos revemos. 2 Se o direito teve em nós essa importância passada, ela não se desvanecerá no futuro. O séc. XXI será, tudo o indica, o tempo dos grandes blocos geoestratégicos que a globalização parturejou e que visualizamos já em alto relevo com o surgimento dos colossos orientais. Daí que a nossa voz apenas se possa ouvir se a Europa for verdadeiramente a Europa e não mais o mosaico fragmentado de onde partiram os visionários de há cinquenta anos. No novo mundo (admirável ou não) não haverá lugar para os pequenos, porque a globalização apagará até o equilíbrio relativo das médias dimensões. Ainda aqui o direito que criamos terá o seu papel garantido; porque é impossível que a sua ética hegemónica não venha um dia a contaminar – ainda que parcial ou parcelarmente – as concepções jurídicas de espaços diferentes do nosso. O maior desafio que teremos, situar-se-á, sim, a outro nível: o de garantir a segurança sem sacrificar a liberdade e os direitos fundamentais. Com quedas demográficas generalizadas típicas das civilizações ricas, com um novo ermamento do território, situados na margem de um mar interior onde a mobilidade migratória foi sempre intensa em todas as 3 direcções, com o receio crescente de que as novas migrações sejam acompanhadas de novas legitimações, corremos a tentação de visualizar a Europa como uma fortaleza assediada e, a partir daí, desfigurar o direito que laboriosamente construímos durante séculos. Com razão ou sem ela para uma visão assim, temos que procurar o justo equilíbrio entre os princípios estruturantes do nosso direito de modo a obviar a que ele se desfoque. Excelências: Há quarenta anos um estudioso francês da metodologia histórica das civilizações escreveu: O Palácio de Versalhes não é, de modo algum, «a jóia da arte francesa» desde a sua construção no século XVIII; até 1789 é, antes de tudo, a morada do rei e da corte; foi necessária a Revolução para fazer dele, no sentido próprio e figurado, esse bem nacional por excelência que hoje é. Sem mexer uma pedra, a Revolução modificou-o profundamente, até mesmo no seu estilo, se é verdade que a sua grandeza e beleza são feitas também, daqui para o futuro, de algo que se completou, de solidão. Portanto, em vez de ter apenas resistido ao tempo e de ter impunemente atravessado a História, Versalhes vive do tempo e só sobreviveu pela nossa História; ele é a história e o momento de uma contradição ultrapassada, quer dizer, dum 4 passado simultaneamente abolido e conservado, dum passado superado. Mas se a nação é toda a nossa história decorrente das suas contradições, a civilização seria toda a nossa história sem as suas contradições; seria o que restaria dela quando se tivesse esquecido tudo. Nela, a contradição não se supera; extingue-se como se extinguem umas após outras as formações sociais que a transportaram. É então que Versalhes se torna uma jóia, um templo de cultura. O que dizemos de Versalhes poder-se-ia dizer de uma infinidade de outros bens comuns, como, por exemplo, a democracia. Sem esquecer a referência datada de que a cultura é o que resta depois de se esquecer tudo, bem podemos entrever, nesta passagem, a figura daquela mulher, chamada Europa, que Júpiter raptou por causa da sua beleza e colocou aqui, neste pedaço do mundo. 5