O GÊNERO PEÇA DE TEATRO NA CLÍNICA FONOAUDIOLÓGICA: IMPLICAÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS EM LEITURA E ESCRITA Rita Signor – (UFSC) [email protected] Introdução A grande procura pelo atendimento fonoaudiológico por parte de sujeitos considerados portadores de supostos distúrbios/dificuldades de leitura e escrita tem demandado a implementação de pesquisas na área de intervenção fonoaudiológica em linguagem escrita. Grande parte desses estudos, no entanto, fundamenta-se em concepções de linguagem que desconsideram a história do indivíduo e suas relações com o objeto escrito, gerando, em muitos casos, diagnósticos equivocados, desprovidos de análises linguístico-discursivas aprofundadas (MASSI, 2004). Isso nos remete também a reflexões quanto à atuação de alguns profissionais (fonoaudiólogos/psicopedagogos), que se limitam a confirmar a queixa já muitas vezes prédiagnosticada pela escola. Pensamos que essa conduta terapêutica reforça no sujeito sentimentos de incapacidade e insegurança, afastando-o ainda mais das possibilidades de apropriação da linguagem escrita. Nesse sentido, torna-se relevante, na área da fonoaudiologia, a realização de pesquisas1 que tomem a linguagem em sua dimensão constitutiva, histórica e social (BERBERIAN; MASSI, 2005). Ao incorporar essa concepção, o sujeito passa a ser compreendido de outro modo. O processo de desenvolvimento da linguagem é visto como fruto de interações sociais mediadas por práticas discursivas. Nessa abordagem teórica, considera-se a singularidade do indivíduo no seu percurso histórico de apropriação da escrita. Nos termos de Abaurre, Fiad e Mayrink-Sabison (2006, p.22), [...] a aquisição da escrita é um momento particular de um processo mais geral de aquisição da linguagem. Nesse momento, em contato com a representação escrita da língua que fala, o sujeito reconstrói a história de sua relação com a linguagem. É exemplar, nesse sentido, a flagrante diversidade manifesta nos textos espontâneos. [...] A escrita é, assim, um espaço a mais, importantíssimo, de manifestação da singularidade dos sujeitos. Nesse contexto, a produção escrita é vista como um processo em que o sujeito, ao usar a linguagem, faz uso não de um sistema de unidades linguísticas inertes, mas de signos linguísticos significativos, materializados em enunciados proferidos em dada situação social de interação. Ainda, entendendo que a linguagem escrita não pode ser tomada como um código a ser reproduzido, consideramos os “erros” ortográficos, principal fonte de encaminhamentos à clínica, como hipóteses e reelaborações singulares acerca do sistema de escrita. Em outros termos, esses “erros” não são vistos como reflexos de uma “alteração de linguagem”, mas como decorrentes de um processo histórico e social de apropriação do sistema escrito de uma determinada língua. No entanto, boa parte das pesquisas e condutas terapêuticas em torno do objeto escrito vem sendo tomadas como manifestações sintomáticas de possíveis distúrbios de linguagem, dificuldades de escrita ou dislexia, gerando, ainda na esfera escolar, uma situação de pré-rotulagem. Em 1 A pesquisa apresentada neste artigo representa parte de uma dissertação de mestrado, realizada sob orientação da professora Dra. Rosângela Hammes Rodrigues. O estudo passou pela avaliação e aprovação dos Comitês de Ética da UFSC, sob número 132/2009, e do Comitê do HIJG, sob número 003/2009. Foram assinados os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido. 1 decorrência disso, a família passa a acreditar que possui uma criança com problemas de aprendizagem e sai em busca de um profissional especializado que possa realizar um “diagnóstico” e resolver o problema; frequentemente, esse profissional é o fonoaudiólogo. Todavia, alguns fonoaudiólogos, distantes dos resultados de investigações de vezo sociodiscursivo que objetivam explicar os processos inter e intrassubjetivos de apropriação da escrita, tendem a compactuar com o pré-diagnóstico, confirmando a suspeita da escola (BERBERIAN; MASSI, 2005). O aluno, por sua vez, duplamente rotulado, acaba por entrar em um processo de baixa autoestima quanto à sua condição de aprendiz e a assumir uma postura de rejeição em relação à escrita. Dizeres como não sei, não consigo, tá tudo errado, né? começam a fazer parte do discurso do sujeito que, afastado cada vez mais da escrita em construção, termina por absorver e sustentar uma postura de incompetência linguística. Em outros termos, o sujeito começa a se conceber como alguém que possui dificuldades de apropriação da leitura e escrita, desenvolvendo uma visão distorcida a respeito de si mesmo. A esse respeito, diz Berberian (2006, p.860): É sob esse efeito de uma identidade estereotipada, dissecada por discursos e conhecimentos que se pretendem científicos, que processos de aquisição de escrita são abortados e, por conseguinte, crianças são marginalizadas pelo estigma dos distúrbios de leitura. É nesse contexto, de violência cultural e de exclusão social que as práticas fonoaudiológicas se inscrevem. O mais dramático, sob nosso modo de ver, é que detectado o “desvio”, parte-se para o “tratamento” fonoaudiológico. Grande parte das abordagens terapêuticas reflete práticas de leitura e escrita totalmente desprovidas de significação, com enfoque (principalmente) em aspectos puramente formais da língua. Com base nessa perspectiva organicista, advinda das ciências naturais, a dimensão discursiva não é trabalhada, sequer considerada. Para Massi (2007), através da adoção de procedimentos mecanicistas, a criança fica impossibilitada de compreender a escrita enquanto linguagem. A autora enfatiza que práticas assim tendem a perpetuar as “dificuldades” apresentadas pelos sujeitos, na medida em que atividades descontextualizadas repetem as mesmas experiências vivenciadas pelas crianças em sala de aula. Considerando a problemática acima exposta e tomando como contraponto a posição de uma perspectiva terapêutica ancorada em uma concepção sócio-histórica da constituição do sujeito e da linguagem, levantamos a seguinte questão de pesquisa: Quais são as contribuições da teoria de gêneros do discurso de Bakhtin para o campo da clínica fonoaudiológica? Motivados por essa questão, propusemos como objetivo de pesquisa analisar o processo de apropriação e desenvolvimento de conhecimentos de leitura e escrita, por um grupo de sujeitos encaminhados para atendimento clínico, a partir de uma proposta teórico-terapêutica embasada na noção de gêneros do discurso de Bakhtin, observando o papel que a mediação embasada nessa perspectiva teórica pode desempenhar na atuação fonoaudiológica. Para dar conta do objetivo delineado elaboramos, desenvolvemos e avaliamos uma proposta de pesquisa e terapêutica, que configuramos como um estudo de caso de um atendimento fonoaudiológico em grupo. O grupo foi composto por cinco sujeitos, entre 11 e 13 anos, que foram encaminhados por suas escolas por apresentarem, segundo parecer dos professores, dificuldades relacionadas à linguagem escrita (compreensão e produção escrita). O atendimento clínico foi embasado na perspectiva enunciativo-discursiva de linguagem e a concepção bakhtiniana de gêneros do discurso fundamentou teoricamente a atuação fonoaudiológica. Assim, durante o processo, selecionamos um grupo de gêneros do discurso para nortear a nossa ação terapêutica: romance, peça de teatro, cartaz de divulgação e sinopse. Dentre esses, priorizamos a peça de teatro, sendo os demais decorrentes e necessários ao enfoque centrado em uma proposta de elaboração, publicação e encenação de uma peça. Para a escrita da peça de teatro, partimos da reenunciação de um romance lido em terapia. E para a publicação da peça em site e sua encenação, os sujeitos produziram os gêneros sinopse e cartaz de divulgação. Nesse contexto, os 2 participantes da pesquisa se inseriram em uma série de práticas sociais de leitura e escrita visando à concretização da ação fonoaudiológica voltada para a apropriação, pelos sujeitos, das práticas de leitura e produção de textos2 mediados por esses gêneros. Justificamos nossa opção em favor dos gêneros do discurso como mediadores do trabalho voltado para sujeitos considerados portadores de dificuldades de leitura e escrita, pois preconizamos que através das relações de sentido que a teoria pressupõe, seja possível reverter o quadro de instabilidades decorrentes de relações sofríveis com a modalidade escrita da linguagem. Concordamos com Berberian (2006) quando afirma que para ler e escrever com proficiência, criticidade e autonomia, faz-se primordial dominar a discursividade dos gêneros. De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), ensinar a ler e a escrever pressupõe a inserção e participação ativa do sujeito em uma sociedade letrada. Berberian, Mori de Angelis e Massi (2006, p.30) dizem que essa participação depende não apenas da decodificação da linguagem, mas, antes, da possibilidade de ler textos de gêneros discursivos diversos, “sendo capaz de abstrair deles a posição enunciativa, política e ideológica de seu autor, de reconhecer e interpretar seus recursos estéticos e de compreender (para discordar ou concordar) de seus conteúdos”. Depende também da possibilidade de produzir textos de gêneros orais e escritos, em que o sujeito imprima suas posições através do domínio das temáticas e de recursos linguísticos tipicamente mobilizados na produção de textos de tais gêneros. Resumindo, depende, antes de tudo, de o sujeito ser/estar inserido em interações mediadas pela linguagem escrita. Importante considerar que para este artigo, por questões de espaço, apresentaremos parte dos resultados da pesquisa, ou seja, um excerto da peça de teatro produzida por um dos sujeitos do grupo. 2 Aspectos metodológicos Os sujeitos de nossa pesquisa foram cinco adolescentes entre onze e treze anos de idade, estudantes de colégios públicos, do quarto e quinto anos do ensino fundamental. Todos os sujeitos residiam em Florianópolis. Os participantes da pesquisa realizaram avaliação fonoaudiológica feita pela pesquisadora/fonoaudióloga. Foram observados os seguintes aspectos: discurso familiar e escolar (por meio de entrevistas, questionários respondidos por escrito3 e relatórios); avaliação de linguagem oral e escrita (realizada através de análise de discurso oral em conversação, produção escrita e leitura) e audição (audiometria e imitanciometria). Fez parte dos critérios de seleção que os sujeitos não possuíssem alterações emocionais, visuais e auditivas significativas; que não tivessem alterações de linguagem oral, que existisse a possibilidade de realização de atendimento semanal por um período de duas a três horas por atendimento, que fossem assíduos e, por fim, que tivessem interesse em realizar o atendimento terapêutico e participar da pesquisa. Os dados foram gerados no período de novembro de 2008 a janeiro de 2010. As sessões foram documentadas com auxílio de um gravador de áudio e de um diário de pesquisa. As transcrições das falas seguiram a convenção da escrita. O atendimento foi realizado em uma sala do ambulatório de leitura e escrita de um hospital infantil. As sessões foram realizadas em grupo, com alguns atendimentos individuais. Em relação ao trabalho terapêutico com os gêneros do discurso, afirmamos que a seleção da peça de teatro ocorreu após conversas com os sujeitos e análises das condições do grupo. Inclusive, 2 A concepção de texto que adotamos nesta pesquisa é o de Bakhtin (2003), isto é, na qualidade de enunciado, que se manifesta na interação social. Assim, o texto só pode ser concebido na sua realidade concreta e viva, constituído por elementos verbais e extraverbais e, portanto, estabelecendo relações dialógicas com outros textos, anteriores e posteriores a ele. 3 Importante considerar que na seção de ‘apresentação do caso’, o discurso da família, quando em resposta escrita ao questionário, está transcrito de forma íntegra. 3 sugerimos aos sujeitos que, caso houvesse interesse na participação do trabalho envolvendo o gênero peça de teatro, escrevesse um texto4 dizendo por que deveria ser selecionado para participar do grupo. O texto de um dos sujeitos do grupo, o sujeito L, segue abaixo: [04/12/2008] Produção textual de L. Deve me escolher porque, eu sei dansar um pouco de rip rop, eu sou bom em finjir que estou chorando e sou bom em fazer coisas engrasadas, eu também sou bom em fingir coisas. Pela produção textual, L demonstrou ter algum conhecimento a respeito da arte dramática, já que referiu ter o domínio de competências que podem ser de interesse para aqueles que desejam interpretar, tais como, saber dançar, representar/ “fingir” (como ele menciona), interpretar diferentes estados emocionais (tristeza, graça/comédia). A seleção do gênero peça de teatro como recurso terapêutico teve o intuito de conquistar leitores e produtores de textos por meio da inserção dos sujeitos em uma atividade ligada à esfera da arte. Dessa maneira, distantes de propostas tradicionalistas realizadas no contexto de muitas escolas e clínicas, fundamentados em uma teoria bakhtiniana, pretendíamos dar novos sentidos a uma provável relação negativa dos sujeitos com a linguagem escrita. Pensamos que em meio a contextos significativos de produção de linguagem seja possível ampliar as capacidades discursivas dos aprendizes que nos vêm encaminhados com pré-diagnósticos de supostos distúrbios/dificuldades de escrita. Para dar tratamento analítico-qualitativo aos dados gerados nos episódios dialógicos, resultantes de um estudo longitudinal, tomamos como ponto de partida (e de chegada) a teoria enunciativo-discursiva explicitada por Bakhtin. O autor sugere, para uma análise sociológica da linguagem, que se parte da dimensão social para a linguística. Uma abordagem epistemológica sócio-histórica que se oriente pelas concepções bakhtinianas tem, como categoria central, o dialogismo, uma vez que busca atingir os sentidos estabelecidos e promovidos nas situações interacionais. O dialogismo é uma das teses centrais de Bakhtin. A palavra diálogo é entendida, nos estudos do Círculo, como reação do eu ao outro, como tensão de valores, crenças, atitudes, forças sociais. “A essa perspectiva, interessa não a palavra passiva e solitária, mas a palavra na atuação complexa e heterogênea dos sujeitos sociais, vinculada a situações, a falas passadas e antecipadas” (MARCHEZAN, 2006, p.123). Qualquer enunciado é essencialmente dialógico, mesmo quando o interlocutor não se encontra presente no momento da enunciação. A constituição do sujeito se dá nesse processo dialógico, pelas/nas interações sociais. Nossa análise engloba as situações de interação em virtude da concepção de linguagem que orienta tanto a avaliação como a terapia com sujeitos considerados portadores de dificuldades de leitura e escrita. Conforme aponta Freitas (2007, p.28-29), Bakhtin assume a interação como essencial no estudo dos fenômenos humanos. Salienta o valor da compreensão construída a partir dos textos signos criados pelo homem, portanto, assinalando o caráter interpretativo dos sentidos construídos. O sujeito é percebido em sua singularidade, mas situado em sua relação com o contexto histórico-social, portanto, na pesquisa, o que acontece não é um encontro de psiques individuais, mas uma relação de textos com o contexto. [...] Para Bakhtin, o objeto de estudo das ciências humanas é o homem ser expressivo e falante. [...] O homem sempre se expressa através do texto virtual ou real que requer uma 4 Nosso interesse com esta proposta de escrita foi também observar o conhecimento que os sujeitos já possuíam acerca do gênero. 4 resposta, uma compreensão. Se não há texto não há objeto para investigação e pensamento. Na sequência, tecemos considerações acerca do processo terapêutico com o gênero peça de teatro. 3 O trabalho com o gênero peça de teatro Para efetivarmos o trabalho com o gênero peça de teatro na clínica fonoaudiológica, partimos de uma proposta de elaboração de um enunciado escrito, uma peça de teatro, e de encenação da peça produzida. A produção escrita ocorreu a partir de uma adaptação de uma obra literária para o gênero peça de teatro. Desse modo, selecionamos a obra literária e depois de realizada a sua leitura, partimos para o processo de reenunciação do romance para a peça de teatro. A produção escrita foi dividida em duas partes, devido à complexidade do processo de elaboração, especificadas logo adiante. Ou seja, para a reenunciação, os sujeitos tiveram como proposta de lidar com uma série de aspectos: indicações de personagens, ações, cenários, divisão em cenas etc; então, consideramos prudente facilitar o processo de produção dividindo as estratégias de escrita em duas fases. A seguir, um resumo das sessões de terapia relacionadas ao trabalho com o gênero peça de teatro: 1a sessão: apresentação dos objetivos do trabalho terapêutico e de pesquisa; conversa inicial a respeito do gênero a ser trabalhado (estudo dos aspectos históricos e da esfera da arte dramática, segundo Berthold (2008); Peixoto (1981)). 2a a 4a sessões: seleção e leitura do romance (objeto de adaptação): Goosebumps – ele saiu debaixo da pia, de R. L Stine. O romance de 77 páginas foi dividido em três partes, e sugerimos (a terapeuta) que cada parte fosse lida em casa pelos sujeitos em um período de uma semana. Nas sessões foram realizadas leituras de trechos da obra (por parte de todos os integrantes do grupo) e feitas discussões orais a respeito do enredo. Também foram trabalhadas outras questões relacionadas às condições de produção do romance. 5a a 11a sessões: 1- leituras e análises de peças de teatro em diferentes modalidades (drama, comédia e tragédia). O objetivo desta conduta foi o de apresentar distintas modalidades de peças teatrais, intencionando, desse modo, ampliar os conhecimentos linguístico-discursivos dos participantes. Algumas perguntas serviram como baliza ao processo de análise, entre elas: Quem escreveu a peça? Você consegue, pela leitura, identificar o público que o autor pretendia atingir? De que trata a peça? Qual é o enredo? Existe conflito? Qual é? Como se dá o desfecho? Em que época a história aconteceu? Em que lugar se passa a história? Você consegue identificar se é um drama, uma comédia ou tragédia? Dê um exemplo ou localize uma passagem que confirme tal informação. Quem são os personagens e quais são as suas características? Qual é o objetivo do texto? O que o autor tenta provocar no espectador? Riso? Medo? Tensão? O que você sentiu ao lê-lo? Qual a relação entre o título e o desenvolvimento da peça? 2- estudo das propriedades textuais do gênero peça de teatro, como marcação das microrrubricas e macrorrubricas5, segundo Cobra (2006). 3- leituras de entrevistas com dramaturgos e elaboração de entrevista para 5 As rubricas são divididas em macrorubricas e microrubricas. As primeiras indicam o que ocorre em cena, se é dia ou noite, se a cena é interna ou externa, e traz indicação para a composição do cenário. Também é chamada de vista e fica no centro da página, na parte superior de cada cena, escrita em itálico ou em letra maiúscula. A microrubrica é mais específica, encontra-se no corpo do texto e afeta a ação cênica; são divididas em objetivas e subjetivas. As microrubricas objetivas se referem à movimentação dos atores e as subjetivas indicam estados emocionais dos personagens, bem como o tom das falas (COBRA, 2006). 5 um dramaturga. Objetivamos, com essa atividade, entre outras coisas, fazer com que os participantes da pesquisa interagissem com alguns dos agentes sociais do campo da arte dramática. 4- leituras de trechos das obras Clarissa, de Erico Veríssimo, e Crepúsculo, de Stephanie Meyer, para comparação entre gêneros (romance e peça de teatro). Esta atitude objetivou clarificar alguns aspectos relacionados à composição textual do gênero peça de teatro, como, por exemplo, a questão dos tempos verbais (tempo presente – nas indicações de cena - na peça e tempo pretérito no romance). Para isso, estudamos a função social de cada gênero (interação imediata com o público na peça de teatro e interação distante no romance). Nesse período foram realizadas leituras de peças de teatro com objetivos de entretenimento e também de análise e apropriação do gênero. Foram lidos, por meio de leitura compartilhada entre todos os componentes do grupo, onze peças e alguns trechos de outras, tais como, A comédia dos erros, de Shakespeare, e de peças de Nelson Rodrigues, extraídas de Berretini (1980). O grupo, antes de iniciar a escrita da peça, assistiu a uma peça de teatro (Infância), no teatro da UBRO, em Florianópolis. Isso aconteceu no final de semana. 12ª a 18ª sessões: escrita da peça (parte 1): os vinte e nove capítulos do romance Goosebumps: ele saiu debaixo da pia foram divididos entre os sujeitos para que eles realizassem a reenunciação do gênero romance para o gênero peça de teatro. Essa primeira parte de escrita foi centrada nos seguintes aspectos: indicação dos personagens no canto esquerdo da página e marcação das microrubricas. 19ª a 21ª sessões: escrita da peça (parte 2): após união dos capítulos6 do romance reenunciados para a peça de teatro, o grupo procedeu à divisão da peça em cenas (pautada na entrada e saída de personagens) do texto produzido pelo grupo; marcação das macrorubricas. 22ª a 25ª sessões: após o processo de escrita foi realizada a revisão da peça inteira produzida pelo grupo. Cada integrante revisou inclusive a parte escrita pelos colegas. As demais sessões, 46 ao todo, foram destinadas aos ensaios, encenação e também ao trabalho com os gêneros sinopse e cartaz de divulgação. 4 Resultados A seguir, apresentamos parte da peça produzida por um dos sujeitos do grupo, o sujeito M: 6 A terapeuta digitou, preservando a escritura dos sujeitos, todas as produções individuais, unindo-as em uma peça completa. Entregou uma cópia para cada participante do grupo para o seguimento do procedimento terapêutico. 6 KAT – (Pega o grool na mão e acaricia a cabeça) – Dorme, fofinho, tenha uma boa noite pequeno Grool eu amo você durma bem, pequeno Grool la la la la la Daniel – Kat estou preocupado com você (Diz nervoso) – para com isso, ta bom? Acho que você está meio confusa. Você precisa se deitar. KAT – [Kat continua a cantar suave] DANIEL – O que ela está fazendo? (pergunta para carlo) você esta entendendo alguma coisa? CARLO – (balança a cabeça.) KAT – Não da atenção ao daniel e carlo (fala baichin no ouvido do grool) – pequeno grool, lindo grool, você é tam legal, tão doce eu amo você grool. DANIEL – Kat para com isso, você está me deixando assustado estol muito preocupado com você Kat CARLO – Como você pode fazer carinho nesta coisa? Ele é muito nojento. 7 DANIEL – vou chamar os nossos pais (Daniel ameaça. ele começa a se afastar na direção da porta da cosia) KAT – SsssHhhh (poin o dedo na frente dos lábios e aponta para o grool. a forte palpitação diminuiu a cor vermelha foi caindo para rosa e finalmente a sua cor original) Na reenunciação de um dos capítulos do romance para a peça de teatro, podemos perceber que M opera de forma adequada à indicação dos personagens no canto esquerdo da página, bem como segmenta as ações e falas dos personagens com adequação. Como exemplo podemos citar a parte inicial de seu texto: KAT - (pega o grool na mão e acaricia a cabeça) – Dorme, fofinho tenha uma boa noite pequeno grool eu amo você durma bem, pequeno Grool la la la la la. Nesse trecho, é possível notar, na segmentação da movimentação da personagem pega o grool na mão e acaricia a cabeça, os verbos de indicação de cena no tempo presente, bem como a ação marcada entre parênteses, seguida da fala da personagem. Importante ainda que se faça uma análise relativa à seleção de recursos expressivos da língua para o processo de adaptação. A seleção desses recursos, denominada por Bakhtin (2003) de estilo, tal como discutimos nas seções anteriores, é fundamental nesse processo de reenunciação de um gênero para outro, de modo que se construa a adequação do texto produzido ao gênero peça de teatro, bem como se mantenha relações de sentido com o romance reenunciado. Assim, do romance: Acariciei a cabeça enrugada da criatura nojenta com suavidade. Então, cantei para ele docemente... para a produção de M: KAT – (pega o grool na mão e acaricia), podemos perceber, no processo de reenunciação, a adequação da escrita do texto de M ao gênero peça de teatro, ao mesmo tempo que podemos perceber a manutenção de relação de sentido com o texto lido, o romance, no que se refere às escolhas dos recursos linguísticos. Em outros momentos do texto de M, também é possível observar esse processo adequado de reenunciação. Assim, o trecho do romance abaixo - Sssshhhh- eu pus o dedo na frente dos lábios e então apontei para o Grool, deitado nos meus braços. – Olhem só meninos. A forte palpitação do Grool tinha diminuído e era só uma leve pulsação. Cantei mais um pouco bem baixinho, com delicadeza e doçura. E todos observamos, espantados, a cor da criatura ficar mais fraca. De vermelho para rosa e, finalmente, de volta à sua cor normal marrom e sem vida. transformou-se, por meio da adaptação de M, no seguinte trecho: KAT – SsssHhhh (poin o dedo na frente dos lábios e aponta para o Grool. a forte palpitação diminuiu a cor vermelha foi caindo para rosa e finalmente a sua cor original). Observamos que as adequações realizadas, necessárias à atividade de adaptação, aconteceram de forma a não comprometer a relação com o texto original. Por exemplo, quando do original, a forte palpitação do Grool tinha diminuído e era só uma leve pulsação, M transforma para a forte palpitação diminuiu, podemos dizer que o corte efetuado foi eficaz na medida em que o complemento e era só uma leve pulsação, necessário ao romance, pois traz a história de forma mais detalhada, pode ser suprimido na peça, que representa uma versão mais compacta do original. Também em Cantei mais um pouco bem baixinho, com delicadeza e doçura. E todos observamos, espantados, a cor da criatura ficar mais fraca. De vermelho para rosa e, finalmente, de volta à sua cor normal marrom e sem vida, que, na reenunciação torna-se: a cor vermelha foi caindo para rosa e finalmente a sua cor original, podemos observar uma adaptação escrita que omite algumas informações do texto original, uma vez que, na encenação, os espectadores veriam a esponja e sua mudança de cor na hora da apresentação do espetáculo. Por essa condição discursiva, orientada pelas condições de produção genéricas (de gênero) da peca de teatro, muitas das descrições presentes no romance puderam ser suprimidas quando da construção da peça. 8 A respeito das escolhas linguísticas operadas pelo sujeito, Vidon (2003, p.76) afirma que “o processo de escolha é assumido, assim, como constitutivo do estilo. Visto dessa forma, o estilo revelaria a manifestação da subjetividade nas preferências linguístico-discursivas de um sujeito.” Entendemos, no entanto, que essa subjetividade é construída nas relações dialógicas, na relação constitutiva do sujeito com o(s) outro(s). Ao refletirmos sobre as escolhas linguísticas de M, orientadas pelo estilo do gênero e pela relação dialógica com o romance, percebemos que a voz do outro, do autor do romance, da mesma forma como as vozes de outros outros, no caso específico, da terapeuta, dos colegas de grupo, agiram no sentido de discurso já-dito, de discurso partilhado nos processos interacionais, contribuindo para a constituição da subjetividade de M. Finalizando nossas considerações a respeito da produção textual de M, podemos notar como o texto está adequado ao estilo e à composição textual do gênero roteiro; apenas na última indicação de cena, percebemos um verbo colocado no passado a forte palpitação diminuiu... Desse modo, concluímos que M ao operar sobre e com a linguagem, num processo de adaptação de um estilo de gênero em outro, demonstrou a apropriação de conhecimentos em torno dos processos de leitura e escrita de textos do gênero peça de teatro. Considerações Finais A proposta terapêutica, após sua concretização, foi analisada à luz do dialogismo bakhtiniano. Os resultados sugerem que as práticas ancoradas em uma perspectiva enunciativo-discursiva foram efetivas, pois, por meio de contextos significativos de uso da língua, os sujeitos se aproximaram da escrita e da leitura e com isso desenvolveram competências linguísticas e discursivas necessárias à interação nessas práticas. Em outras palavras, os sujeitos produziram uma série de textos, realizaram leituras, interagiram com os colegas ora ensinando para eles, ora aprendendo com eles, revertendo-se, desse modo, a autoimagem abalada pelo estigma de uma suposta dificuldade de escrita. Assim, os efeitos da terapia baseada nos gêneros promoveram o redimensionamento de experiências negativas em torno da linguagem escrita. Conclui-se que a proposta terapêutica com os gêneros do discurso é viável, uma vez que motiva a interlocução, responsável pelo comprometimento dos sujeitos com as práticas de leitura e escrita promovendo-se, dessa forma, avanços em suas possibilidades como leitores e produtores de textos/autores. Referências ABAURRE, M. B. M., FIAD, R.S.F., MAYRINK-SABINSON, M. L. Cenas de aquisição da escrita: o sujeito e o trabalho com o texto. Campinas: Mercado de Letras, 2006. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BERBERIAN, A. P.; MORI-DE ANGELIS,C.; MASSI, G. Letramento: referenciais em educação e saúde. São Paulo: Plexus, 2006. BERBERIAN, A. P. Linguagem escrita no contexto da clínica fonoaudiológica. In: Lopes Filho, O. Tratado de Fonoaudiologia. São Paulo: Roca, 2006, p.846-861. BERBERIAN, A. P.; MASSI, G. A. M. A clínica fonoaudiológica voltada para os chamados distúrbios de leitura e escrita: uma abordagem constitutiva de linguagem. 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