GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 23, pp. 30 - 43, 2008 CIDADES E METRÓPOLES: UMA PERSPECTIVA GEOGRÁFICA PARA A ANÁLISE DOS “PROBLEMAS AMBIENTAIS URBANOS” Ângelo Serpa* RESUMO: Parte-se do pressuposto de que os problemas ambientais urbanos são de ordem sobretudo ética, política e econômica e que a Geografia deve se debruçar sobre a problemática ambiental buscando desvendar essas dimensões no contexto urbano e metropolitano, a partir do entendimento das relações sociedade-natureza numa perspectiva ao mesmo tempo temporal e espacial. Assim, questões emblemáticas como a distribuição espacial dos espaços públicos de natureza nas cidades, por exemplo, deveriam ser o cerne de uma discussão acadêmica profunda, que pudesse fundamentar em outras bases a gestão de áreas assim nos territórios municipais e metropolitanos. Também a gestão dos resíduos sólidos no contexto urbano e metropolitano coloca as dimensões políticas, e conômi cas e é ti cas que p er me iam os cham ad os “p robl em as am bi entais” urb anos na contemporaneidade. Neste artigo aprofunda-se essa discussão, analisando-se as estratégias de gestão dos resíduos sólidos e das áreas verdes, a partir do exemplo da Região Metropolitana de Salvador. PALAVRAS-CHAVE: Problemas ambientais urbanos; Gestão de resíduos sólidos; Gestão de áreas verdes; Cidade; Região metropolitana. ABSTRACT: The article starts from the purpose that the urban environmental problems are mainly on the ethical, politic and economic way, and that the Geography have to study the environmental problem looking for to disclose these aspects in metropolitan and urban context from the understanding of society and nature relations on a perspective also spatial and temporal. So, emblematic questions as spatial distribution of nature public spaces in the cities for example, needed to be the core of a deep academic debate able to offer other basis to these areas management in municipal and metropolitan territories. Also the solid residue management in urban and metropolitan context presents the politic, economic and ethical dimensions that are in the nowadays called urban “environmental problems”. This article deepens this debate, analyzing the solid residues and green areas management strategies using the Salvador Metropolitan Region example. KEY WORDS: Urban environmental problems; Solid residues management; Green areas management; City; Metropolitan region. Uma mesa redonda que se propõe a colocar a Ge ogr af ia diant e d os pr obl em as ambientais urbanos nas cidades e metrópoles é particularmente instigante, especialmente no contexto de um simpósio nacional de Geografia Física Aplicada1 . *Professor Associado Doutor do Departamento de Geografia da Universidade Federal da Bahia e Pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected] Cidades e metrópoles: uma perspectiva geográfica para a análise dos “problemas ambientais urbanos”, pp. 30 - 43 31 Para a Geografia, trata-se (sempre!) da reconstituição do todo espacial, como proposto por Santos (1992), que pressupõe o abandono das velhas dicotomias - Geografia Humana versus Geografia Física, por exemplo - e a busca não só das semelhanças, mas também das diferenças entre os lugares, regiões, paisagens e territórios que expressam a totalidade do espaço. É preciso, sobretudo, pensar o espaço com o al go di nâmi co e mutáve l, re fl ex o e condição da/ para a ação dos seres humanos, com o espaço vi vi do, al go passív el d e “apropriação” (SERPA, 2006). 1972, marcada pelo acirrado debate em torno dos riscos da degradação ambie ntal e das necessidades de desenvolvimento de algumas nações, e que resultou na emergência de um novo agente/sujeito, as organizações nãogovernamentais, assim como na formulação de políticas de zoneamento ambiental e na criação de órgãos de competência preservacionista. Isso tudo implicou também na institucionalização de unidade s de conservação, inclusiv e em conte xt os urb anos/ me tr op oli tanos, e d e inst rument os de mensuração da quali dade ambiental (MENEZES, 1999). A seg unda q uestão susci tada p el a temática da mesa proposta leva também à discussão da problemática ambiental no mundo contemporâneo, especificamente sobre o papel da Geografia frente aos “problemas ambientais urbanos”, que pode ser desdobrada – talvez de modo pouco consensual e polêmico – nos seguintes questionamentos: Nos anos 1980, a noção de sustentabilidade ecológica vai substituir paulatinamente a ênfase na preservação, explicitando a diferença entre preservação, ligada à intocabilidade dos ecossistemas naturais, e a conservação, como combinação dinâmica entre as características inovadoras e as preexistentes. A ECO 92 no Rio de Janeiro vai enfatizar, dentro desse contexto, o debate sobre a qualidade ambiental, a participação social e a cidadania, as densidades urbanas, o emprego urbano, o direito ao habitat e a divulgação das boas práticas de gestão/intervenção (MENEZES, 1999). - Qual a especificidade dos “problemas ambientais” no contexto urbano e metropolitano? - Qual o papel da Geografia frente a uma natureza “ocultada” pelas estratégias dos agentes hegemônicos de produção do espaço urbano e metropolitano? A hipótese aqui defendida é que os problemas ambientais urbanos são de ordem sobretudo ética, política e econômica e que a Geografia deve se debruçar sobre a problemática ambiental buscando desvendar essas dimensões no contexto urbano e metropolitano, a partir do entendimento das relações sociedade-natureza numa perspectiva ao mesmo tempo temporal e espacial. É necessário situar, antes de tudo, a discussão em um contexto mais geral, na escala do Planeta. Os movimentos ecológicos têm sua origem vinculada às conferências internacionais das comunidades científicas e, inicialmente, se posicionavam em relação à preservação de nichos da paisagem natural, à manutenção do “equilíbrio ecológico”. Um marco histórico desse momento foi a Conferência de Estocolmo, em Os novos paradigmas ambientais vão explicitar, no entanto, uma contradição, já que a sociedade capitalista contemporânea está fundada na produção e no consumo de bens oligárquicos, bens que só existem se forem para poucos e uma sociedade fundada na produção de bens oligárquicos é uma sociedade insustentável (ALTVATER, apud GONÇALVES, 2001). Sustentabilidade ambiental pressupõe, portanto, equidade social. O que está em jogo aqui é o paradoxo entre a multiplicação do consumo (desigual) ou o estímulo ao consumismo desenfreado e a idéia mesma de “desenvolvimento sustentável”, cuja cientificidade é cada vez mais difícil de sustentar. A idéia de desenvolvimento sustentável é uma idéia diluidora, entre outras coisas, porque tem origem num campo do agir humano cuja natureza é produzir consensos. Sabemos que a idéia de desenvolvimento sustentável não surgiu e m ne nhum a ár ea acad êm ica, nem e m 32 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 23, 2008 nenhuma área científica. É uma idéia que surgiu no campo diplomático. Foi no interior da Comissão Brundtland da ONU que essa idéia ganhou, por assim dizer, cidadania, como uma idéia que agradaria a todo mundo e, portanto, não diria o que precisava ser dito. Aliás, sublinhe-se, é da natureza do campo diplomático buscar os consensos, até porque o diplomata é aquel e cuja função é e vi t ar a g ue rr a (GONÇALVES, 2001, p. 143). Como o famoso e infundado índice de “metros quadrados de áreas verdes por habitante”, cuja origem deve-se muito provavelmente a um “boato ecológico” 2 (YÁZIGI, 1994), erramos ao considerar científicos conceitos, índices e variáveis que não possuem legitimidade acadêmica. O índice de áreas verdes, além de não possuir fundamentação teórica e empírica, diz pouco, muito pouco, sobre as verdadeiras raízes do problema, assim como a idéia de Desenvolvimento Sustentável. Desenvolvimento Sustentável para quem? Metros quadrados de áreas verdes para quem? A questão emblemática da distribuição espacial dos espaços públicos de natureza nas cidades, por exemplo, deveria ser o cerne de uma discussão acadêmica profunda, que pudesse fundamentar em outras bases a gestão de áreas assim nos territórios municipais e metropolitanos. Também a questão da gestão dos resíduos sólidos no contexto urbano e metropolitano coloca as dimensões políticas, econômicas e éticas que permeiam os chamados “problemas ambientais” urbanos na contemporaneidade. Pretende-se aprofundar agora essa discussão, baseados na análise das estratégias de gestão dos resíduos sólidos e das áreas verdes, a partir do exemplo da Região Metropolitana de Salvador. SERPA, A. Gestão de Resíduos Sólidos na Região Metropolitana de Salvador Em Salvador e sua região metropolitana, o aterro sanitário foi adotado como a solução mais “adequada” para a disposição final dos re sí duos sól id os. As razões ale gadas pe la CONDER – Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia, órgão ligado ao Governo do Estado, foram principalmente a t ecnologi a, que conj ugari a baix os cust os, e fi ci ência e f aci li dade op er acional , e a p re se rv ação am bi ental, associ ad a à implantação desses equipamentos. O órgão ganhou o Prêmio Top de Ecologia 1996 pelo programa de implantação dos aterros sanitários na RMS. De acordo com o site da CONDER, o Programa de Destinação Final de Resíduos Sól id os f oi iniciado na R MS, be nef iciand o d ir et am ente se us d ez m uni cí pi os, com a construção de quatros grandes aterros (Fig. 1): Ate rr o Me tr opoli tano C ent ro ( para as populações de Salvador, Lauro de Freitas e Simões Filho – Fig 2), Aterro Integrado Ponta do Fer rol ho ( Candeias e São Franci sco do Conde), Aterro Integrado Camaçari/Dias D’Ávila (Camaçari e Dias D’Ávila) e Aterro Integrado Ilha (Vera Cruz e Itaparica – Fig. 3). Para implantação na RMS, o programa contou com financiamento do Banco Mundial e contrapartida do Governo do Estado. Depois disso a CONDER construiu mais 12 aterros sanitários no Estado da Bahia, geralmente de uso compartilhado por dois ou três municípios. Cerca de 95% do lixo produzido na metrópole soteropolitana são depositados nos aterros3 . Cidades e metrópoles: uma perspectiva geográfica para a análise dos “problemas ambientais urbanos”, pp. 30 - 43 D ef endi da com o a sol ução m ai s adequad a ambientalm ente, o prog rama de implantação dos aterros sanitários obedeceu a uma lógica sobretudo econômica, explicitada p oste ri orm ente na g estão t er ce ir i zada d o principal aterro – o Aterro Metropolitano Centro – pela empresa Vega Bahia Tratamento de Resíduos S.A. A Vega Bahia, empresa coligada da VEGA e sucedânea do consórcio VEGASatrod, é a operadora do Aterro Centro até 33 2020. A concessão, ganha em 2000, prevê a r eali zação d os ser vi ços d e const rução e operação do sistema de transporte e destinação f inal d os re sí duos d e Sal vador. A Veg a Ambiental, que já era responsável pelos serviços de coleta e varrição do município de Salvador, p assou at rav és de sua col ig ad a a responsabilizar-se também pelos serviços de t ratame nt o e d esti nação d est es m esmos resíduos (www.vega.com.br). 34 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 23, 2008 A idéia de “gestão eficiente e moderna” do Aterro Centro pela Vega esconde a discussão sobre os aspectos éticos, econômicos e políticos, r el acionados à i mp lant ação de t ai s equipamentos no contexto metropolitano, já que a questão da coleta seletiva e da reciclagem de lixo passa a significar menos lucro para a gestão empresarial dos aterros: É a quantidade d e li xo r e colhid a que i mp or ta e não se u reaproveitamento. Pouco se fala também da vida útil desses equipamentos, que poderia ser SERPA, A. along ad a caso o pr og rama de g estão e implantação dos aterros estivesse associado a programas de coleta e reciclagem de lixo no contexto urbano e metropolitano. Mesmo diante das ações tímidas dos poderes públicos nessa direção, catadores, O rg anizaçõe s Não- g ov er name nt ai s e cooperativas de reciclagem acabam cumprindo um papel social importante. Parte do lixo lançado no Aterro Metropolitano Centro, localizado nas Cidades e metrópoles: uma perspectiva geográfica para a análise dos “problemas ambientais urbanos”, pp. 30 - 43 proximidades do Centro Industrial de Aratu, poderia ser reaproveitada, aumentando sua vida útil e retardando a necessidade de criar novos aterros, o que beneficiaria o ambiente urb ano e p oupari a, se m dúvi da, r ecur sos p úb li cos. Alg umas inst it uiçõe s doam às 35 cooperativas objetos recicláveis retirados do seu lixo. Mas a maioria ainda descarta pápeis, plásticos e vidros misturados ao lixo doméstico - restos de vegetais e alimentos - nos caminhões convencionais de coleta diária (Jornal da Facom, 15 de junho de 2007). 36 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 23, 2008 Os técnicos da Diretoria de Operações da Limpurb, o órgão municipal de limpeza urbana de Salvador, confessam não haver uma política pública de assistência às cooperativas de catadores da cidade. Eles reconhecem os p áp ei s sóci o- amb ie nt al e econôm ico das cooperativas de reciclagem, contudo descrevem a postura delas como cômoda: “Não temos orçamento específico para esse setor. Fazemos o p ossí ve l ced endo t e rr enos, cam inhões, máquinas às cooperativas que alegam essas necessidades, mas elas precisam se esforçar mais. Afinal, o dinheiro público não pode ser injetado em lugar algum sem segurança e planejamento” (Jornal da Facom, 15 de junho de 2007). Para a Limpurb, a criação de novas cooperativas reduz ou desconcentra o pouco incentivo dado a projetos de reciclagem, não consi de rando i sso r esponsab i li dade d a administração municipal: “É da natureza das cooperativas serem originadas de um grupo m ob il izad o de pe ssoas. Não cr iamos coope rati v as. El as são cr iad as e seus idealizadores pedem nosso reconhecimento e auxílio”. Mesmo assim, existem 18 cooperativas de coleta de lixo reciclável em Salvador, porém elas são incapazes de absorver a maioria dos catadores. A burocracia não é o único empecilho à e nt rada de ssa massa d e cat ad or es e m cooperativas: O aumento extraordinário de pessoas envolvidas com reciclagem fe z os preços caírem e as cooperativas não podem ampliar seus quadros. Depois de subtraídas as despesas com água, luz e impostos, o restante do faturamento é dividido entre os sócios ou cooperados e, quanto mais sócios, menores os salários (Jornal da Facom, 15 de junho de 2007). Gestão territorial dos espaços públicos de natureza em Salvador Os espaços públicos de natureza são ab or d a d os no Pl a no D i r e t or de Desenvolvimento Urbano de Salvador sob dois aspectos: pela ótica ambiental, vistos como “espaços verdes” e de conservação, e pela SERPA, A. ót i ca d o l aze r, v i s t os e n q ua nt o e s p aç os p ú b l i c os v ol t ad os p ar a a r e c r e aç ão e o entretenimento. Sob a ótica ambiental, os parques compõem um sistema de espaços de preservação ambiental, subdividido em dois subsistemas: o das áreas de conservação, cu j a i m p or t ân ci a d e v e - se ao se u v al or e c ol óg i co ou à s ua s i g n i f i cânc i a p ar a a qualidade urbano-ambiental, caracterizadas pelos Parques de Natureza (exemplos: São Ba r t ol om e u e Ab a e t é ) e p e l o s P ar q u e s Urbanos (exemplos: Zoobotânico, da Cidade e Pituaçu); e o das áreas de valor urbanoambiental, do qual fazem parte os Parques de Re cr e a ção ( D i q ue d o Tor or ó, J ar d i m d os Namor ad os, Cost a Azul e Ae roclub e) e os Es p aço s A b e r t os U r b a ni z ad os ( p r aça s, m i r ant e s, j ar d i ns p úb l i cos , ár e as v e r d e s i n t e g r ant e s d e l ot e a m e n t os, ca m p os e quadras poliesportivas). O r el atóri o f inal q ue f und am e nt a o Plano Diretor indica, no tocante à distribuição espacial da cobertura vegetal no município de Sa l vad or, a p r e s e nç a d e t r ê s m acr ocompartimentos com configurações distintas, cuja relevância deveria determinar políticas diferenciadas para conservação e recuperação dos padrões observados. O mesmo relatório analisa também a distribuição espacial das ár e as com m ai or “ v al or e col ó g i c o” 1 no território municipal, identificando três grandes bolsões de cobertura vegetal correspondentes às f l o r e st as om b r óf i l as e m e st á g i o d e recuperação avançado e/ ou às restingas. Ver i fi ca- se que alg uns dos p ar q ue s ur b ano s e d e nat u r e z a m e nci onad os an t e r i or m e nt e ( P i t u açu, Ab ae t é , S ão Bartolomeu e da Cidade) aparecem entre as ár e as d a c i d a d e c om m é d i o a al t o v al or ecológico, o que deveria determinar, como indicado pelo Plano Diretor, políticas públicas de conservação, preservação e recuperação am b i e n t al ; no e nt ant o , as p o l í t i cas d e r e q ual i f i caçã o do e s p aço p ú b l i c o, empreendidas no território municipal a partir dos anos 19 90, parecem contr adi zer essa lógica, como veremos a seguir. Cidades e metrópoles: uma perspectiva geográfica para a análise dos “problemas ambientais urbanos”, pp. 30 - 43 Depois da segunda metade dos anos 1990, a cidade do Salvador empreendeu uma política sistemática de criação e reabilitação de parques e jardins públicos. Não por acaso, esse p er íodo coinci de com duas i m port ante s mudanças relativas ao conjunto das grandes cidades do mundo e, em particular, daquelas situadas nos países ditos “emergentes”, onde e sses f enôm e nos vão ocor r er com m ai s intensidade. A primeira corresponde a uma nova ideologia cuja origem situa-se no continente europeu: as noções de desenvolvimento e da cidade “sustentáveis” (EMELIANOFF, 2004). O princípio de base se apóia na idéia de que a melhoria da qualidade de vida urbana valoriza a imagem e a atratividade das cidades, as áreas verdes servindo a esse fim. A segunda mudança e st á re laci onada com a e v ol ução sócioeconômica do Brasil. Se os anos 1970-1980 f or am m ar cad os p el o aume nto d o pode r (econômico e político) das classes médias, em meados dos anos 1990 assiste-se, nas maiores aglomerações urbanas do país, um aumento 37 expressivo das desigualdades entre ricos e pobres. Est a evolução encontra reflexo na paisagem urbana, que testemunha o surgimento d e novos bair ros re si d enci ai s se rv id os d e centros comerciais e boa infra-estrutura urbana, do mesmo tipo que aqueles encontrados nos países mais prósperos. A leitura do mapa de áreas protegidas (Fig. 4), do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador, mostra de modo eloqüente e st a nova i de ologi a de d e se nv ol vi me nt o sustentável. A cidade inventariou de modo sistemático as potencialidades ecológicas do conjunto da aglomeração. O inventário dividiu a cidade em unidades de conservação, com gr aus di st intos de qual id ad e ecol óg ica da cobertura vegetal. Constata-se que uma grande parte da aglomeração urbana é composta por áre as p rote gi das, q ue ocupam supe rf ície s consi de r áv ei s do te ci do ur bano: é o caso precisamente da Baía de Todos os Santos e de toda a parte norte da cidade, que correspondem também às reservas hídricas necessárias ao abastecimento da aglomeração. 38 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 23, 2008 A qualidade ecológica da cobertura vegetal não parece constituir, no entanto, um critério determinante para a implantação de áreas protegidas. Isso pode ser constatado, por exemplo, para o Parque de Pituaçu (alta qualidade ecológica da cobertura vegetal existente, mas sem proteção em toda sua extensão). Inversamente, unidades de conservação mais importantes em superfície (Parque Metropolitano de Pirajá e São Bartolomeu) apresentam qualidade ecológica média e são protegidas em toda sua extensão. SERPA, A. Neste documento aparecem igualmente e freqüentemente superpostas as áreas de dom ínio públi co (e ntre elas, os p arque s e jardins) e as zonas não edificáveis. Essas zonas apare ce m de stacadas nas áre as m ai s d ensame nt e p ov oadas d a ag l om er ação, correspondendo sempre aos parques e jardins p úb li cos: Essas ár e as são rarame nt e protegidas, não apresentando, em geral, uma qualidade ecológica digna de nota (como, por exemplo, os Parques Costa Azul, das Esculturas Cidades e metrópoles: uma perspectiva geográfica para a análise dos “problemas ambientais urbanos”, pp. 30 - 43 e o Jardim dos Namorados). Enquanto alguns p ar ques são ex tr em am ent e pobr es e m cobertura vegetal, não possuindo também nada d e ex ce pci onal e m t er mos de qual id ad e estética, e representam um papel significativo na cena urbana, outros, preciosos em termos ecológicos, não r ece bem qualq uer ti po de projeto ou intervenção. Como interpretar essa contradição? A correlação entre riqueza e pobreza de certos bairros da cidade e o valor ecológico de certas áreas – classificadas como unidades de conservação – são fatores importantes para a compreensão dos processos de segregação sócio-espacial em Salvador, especialmente se analisarmos a distribuição da renda dos chefes de domicílio, com foco naqueles de maior (acima de 20 salários mínimos – Fig. 5) e de menor poder aquisitivo (até dois salários mínimos – Fig. 6), que podem ajudar na tentativa de elucidação desses processos. Constata-se, em primeiro lugar, que as camadas de baixa renda ocupam a maior parte da superfície da aglomeração, com exceção d aq ue las áre as l it or âne as b anhad as p el o Oceano Atlântico, situadas na porção sudeste 39 e norte da península soteropolitana, onde se concentram as camadas de maior renda. Os r esponsáve is p el os domi cíl ios mai s ri cos concentram-se espacialmente na parte litorânea atlântica sul e sudeste e em torno do Parque de Pituaçu. A repartição das classes de renda mais alta, incluindo as classes médias, coincide exatamente com a localização dos projetos mais r ecente s d e cr iação ou r eq uali fi cação d e parques públicos. Parques que passaram por processos recentes de reabilitação urbana como os de Pituaçu ou d a C idad e encont ram- se i me di at am ent e pr óx im os aos bair ros considerados “nobres”. Assim , fi ca ev id ente q ue pr oj et os, pr og ramas e inte rv ençõe s re ce nt es f or am r eali zados em função d e e st raté gi as d e valorização do solo urbano, em bairros com maior concentração de população de melhor poder aquisitivo. Estas estratégias baseiam-se em um modelo ideal de cidade, onde a criação d e espaços p úb li cos, o “e mb e le zame nt o urbano”, entre outros, constituem estratégias de m ar k et i ng ur bano, d e acor d o com o paradigma de Barcelona. As opções de desenho urbano adotadas e a estética desses espaços reforçam seu caráter mercadológico. 40 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 23, 2008 A e st r at é g i a d e p r o m oç ão d e u m a i m ag e m p osi t i v a d e Sal v ad o r at r av é s d a revalorização de seus espaços públicos faz p a r t e d o r e ce i t u ár i o d o p l a ne j am e n t o estratégico. Este modelo aposta na criação de holdings, consórcios ou empresas mistas para executar ações de desenvolvimento urbano. Tant o a r e q ual i f icação com o a ad oção d e e s p aço s p ú b l i cos p or e m p r e sa s p r i v ad as segue a lógica da visibilidade e da expectativa d e r e t or no at r av é s d a p r op ag and a e d o marketing. SERPA, A. O problema é que esses programas não atendem, via de regra, as áreas periféricas da cidade, onde o abandono de parques e praças é notório. É este exatamente o caso do Parque de São Bartolomeu, localizado no Subúrbio Ferroviário, um remanescente de Mata Atlântica q ue abr ig a a nasce nt e do Ri o do C ob re , considerado espaço sagrado para os praticantes do Candomblé (SERPA, 1996; 1998). O estado d e ab andono, os assalt os fr eq üe nt es, o descaso e a ausência de políticas públicas para o parque inviabilizam os ritos do Candomblé, afastando seus praticantes do local. Cidades e metrópoles: uma perspectiva geográfica para a análise dos “problemas ambientais urbanos”, pp. 30 - 43 À guisa de conclusão: problemas ambientais ou problemas éticos, políticos e econômicos? R et om ando a questão col ocad a inicialmente, reafirma-se que os problemas ambientais urbanos são, sobretudo, problemas éticos, políticos e econômicos, o que reafirma também o papel da Geografia no sentido de discutir as relações sociedade-natureza em suas dimensões espaço-temporais, vendo a cidade e a metrópole como formações sócio-econômicas específicas. 41 A g estão de sse s pr ob l em as r eq ue r iniciativas de articulação intermunicipal e uma cooperação interadministrativa eficiente, o que pressupõe governos municipais com autonomia de gestão. No Brasil, ainda são limitadas as competências locais e, na Região Metropolitana d e Salvad or, é e vi d ente a conf usão d e com pe tê ncias na ge st ão do e sp aço m et ropoli t ano. G rande s pr ogr am as d e saneamento e habitação popular são conjuntos de projetos articulados no âmbito estadual, com financiamento do Governo Federal, e executados 42 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 23, 2008 no espaço metropolitano com pouca participação das administrações municipais. Por outro lado, a terceirização dos serviços – como no caso da gestão dos resíduos sólidos ou na adoção de espaços públicos de natureza por empresas privadas – pode inviabilizar o surgimento de soluções inovadoras. O q ue e st á em j og o, port anto, é a sustentabilidade política de programas de cunho social, econômico e ambiental, o que requer inovações político-administrativas para gerar m ecanismos d e part i ci pação cid ad ã e cooperação social entre os diferentes agentes produtores de espaço, no contexto urbano e metropolitano. E a Geografia certamente tem muito a dizer e a propor nesse contexto! Em primeiro lugar, por ser uma disciplina de síntese, não SERPA, A. podendo se permitir autonomizar quaisquer asp ectos, sej am el es f ísicos ou hum anos, ambientais ou culturais, políticos, econômicos ou sociais. Em segundo lugar, porque, no caso do “ambiente urbano e metropolitano”, o discurso ambiental acaba afastando-se muitas vezes da questão central posta pelo “desenvolvimento d a soci ed ad e urb ana – a cri se urb ana – inventando o anti-urbano, criando a cidade desumana” e, com isso, perdendo de vista t am bé m “o se nt id o d a ob ra do hom em ” (CARLOS, 1994, p. 75). Trata-se, para a Geografia, de analisar dialeticamente os problemas postos por uma sociedade urbana que, ao longo da história, foi hum anizand o a natur eza, constr ui nd o e reconstruindo o mundo material como extensão de si mesma, ampliando a própria natureza orgânica dos seres humanos sobre o Planeta. Notas 1 O te xto , a qui ap rese nta do com algum as modificações, subsidiou a participação do autor como palestrante da mesa-redonda “Cidades e Regiões Metropolitanas: a Geografia frente aos problemas ambientais urbanos”, no âmbito do XII Simpósio Brasileiro de Geografia Física Aplicada, realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, entre 9 e 13 de Julho de 2007. 2 “No Brasil se repete muito que a ONU estabelece para os centros urbanos, um mínimo de 16 m2 de áreas verdes por habitante; já ouvimos o índice de 12 m2 apenas. Em colóquios com funcionários da ONU, ouvimos que até então a ONU jamais estabelecera este patamar, que talvez tenha sido a opinião pessoal de alguém da ONU que visitou o Brasil há duas décadas...” (YÁZIGI, 1994, p. 89-90). 3 Os aterros são construídos em sistema de células, es cav adas no so lo c omo va las em for ma retangular e recobertas posteriormente com uma manta de Polietileno de Alta Densidade (PEAD) e camadas de argila, o que impede a contaminação do solo pelo líquido percolado produzido pelo lixo, mais conhecido como “chorume”. O sistema de manta protetora e de condutores subterrâneos agiliza e direciona a coleta do chorume para lagoas artificiais de tratamento, e posterior liberação sem nenhum risco ao meio-ambiente. As células destinadas à disposição do lixo, ocupam geralmente as cumeadas dos terrenos escolhidos em forma de platôs, sendo sempre recobertas por novas camadas de argila para evitar a exposição do lixo e o conseqüente atrativo para urubus, roedores e insetos. As áreas escolhidas para a implantação dos aterros são sempre submetidas a Estudos e Relatórios de Impactos Ambientais (EIA-RIMA) promovidos pela Conder, apresentados posteriormente às comunidades en volvid as, ana lis ado s e ap rova dos pe lo Conselho Estadual do Meio Ambiente (Cepram) (www.conder.ba.gov.br). 4 Para avaliação do valor ecológico foram utilizados os seguintes indicadores: Importância do ecotopo sobre funções particulares do sistema Þ presença de componentes chaves na manutenção da din âmica do sistema, conc orren do par a a ma nut enç ão do seu equ ilíbrio d inâ mic o; endemismo e valor biogeográfico Þ presença de espécies endêmicas, representativas do ambiente em te rmos da su a b iog eogr afia; representatividade ecológica Þ presença de Cidades e metrópoles: uma perspectiva geográfica para a análise dos “problemas ambientais urbanos”, pp. 30 - 43 ec oss ist ema s impo rta nte s c om representatividade geográfica, considerando-se a totalidade do sistema objeto da análise; raridade / unicidade Þ presença de espécies raras 43 e de sistemas raros, considerando-se áreas adjacentes e de influência direta; naturalidade Þ presença de ambientes onde as tipologias vegetais aproximam-se do estado climático. 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