Revolução cubana, 50 - Amazon Web Services

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Revolução cubana, 50
O aniversário da ascensão de Fidel Castro ao poder traz a
oportunidade de discutir os rumos do socialismo e dos
capitalismo e as diferenças entre esquerda e direita
Ana Rita Martins
Poucos assuntos são tão polêmicos e
complexos de abordar em sala quanto a
Revolução Cubana, que acaba de completar
50 anos. Tratado segundo diferentes visões
de mundo pela imprensa, o tema pode deixar
a garotada repleta de dúvidas, que os livros
didáticos não costumam ajudar muito a
resolver. Se já existe economia de mercado
na ilha, por que Cuba ainda é tratada como
um país socialista? Seu governo pode ser
considerado de esquerda pelos padrões de
hoje? Os avanços nas áreas sociais
compensam a falta de liberdade e a pobreza?
Você pode encarar o saudável desafio de
responder a todas essas questões apoiado
em sólidos conhecimentos. Para isso, é
HASTA LA VICTORIA Um grupo
guerrilheiro liderado por Fidel Castro
preciso apresentar à turma duas oposições
(à esq.) e Che Guevara depôs o governo
clássicas do terreno político: esquerda x
em 1959. Foto: AFP
direita e socialismo x capitalismo. O ponto
fundamental é que os quatro termos sejam
analisados como conceitos históricos, cujo significado é continuamente
revisto para dar conta das transformações do mundo ou do aparecimento de
novas interpretações.
Um caminho é começar examinando a realidade cubana antes da revolução.
Em 1959, o país tinha uma das maiores rendas per capita do Caribe, mas a
estatística escondia uma brutal desigualdade. Enquanto alguns poucos se
beneficiavam da exportação de açúcar, a maioria da população vivia na
penúria, sem acesso a serviços públicos e enfrentando altas taxas de
desemprego.
A presença dos Estados Unidos, país que em 1888 ajudou a ilha a se livrar de
quatro séculos de colonização espanhola (leia o quadro abaixo), era
ostensiva: empresários americanos controlavam a economia, dominando
75% das terras agricultáveis. Sob os olhos complacentes do ditador Fulgencio
Batista, a capital, Havana, virou um paraíso de cassinos e bordéis, que
atraíram milhares de estrangeiros especialmente entre 1920 e 1933, período
em que a venda e o consumo de álcool foram proibidos nos EUA.
Fatos que marcaram uma ilha
1888 Com a ajuda dos Estados Unidos, o país consegue a independência da
Espanha. Mas os americanos cobram um preço alto: o direito de intervir nos
assuntos internos.
1953 O jovem Fidel Castro e mais 165 homens tentam tomar os quartéis
cubanos para depor o ditador Fulgencio Batista. Acaba preso por dois anos.
Depois, exila-se no México.
1956 Fidel e outros 81 exilados, incluindo o argentino Ernesto "Che" Guevara,
retornam a Cuba e se estabelecem na região de Sierra Maestra, iniciando
uma guerrilha.
1959 A guerrilha de Fidel, Raúl Castro e Che Guevara derrota as forças de
Batista e toma Havana, fuzilando ex-membros do governo. Acuado, o ditador
foge para o exílio.
1960 Cuba passa a fornecer açúcar à União Soviética em troca de petróleo a
preços subsidiados. Essa transação é fundamental para o investimento em
Educação e saúde.
1961 Exilados cubanos treinados pelos EUA planejam derrubar Fidel, na
tentativa de invasão da baía dos Porcos. Com o apoio da URSS, os
revolucionários vencem.
1962 Em resposta à instalação de mísseis soviéticos na ilha, americanos
impõem um bloqueio a Cuba e instalam mísseis na Turquia, quase gerando
uma guerra nuclear.
1991 Com a dissolução da União Soviética, Cuba perde seu principal parceiro
comercial e afunda numa crise econômica, com constantes blecautes e falta
de alimentos.
2008 Fidel Castro renuncia à presidência. Seu irmão, Raúl Castro, assume o
poder e anuncia reformas liberalizantes, abrindo a economia do país.
2009 Barack Obama, novo presidente americano, se diz disposto a conversar
com Cuba e sinaliza com o fim do bloqueio econômico se houver democracia.
Na luta pela igualdade, reformas políticas polêmicas
BEM PARA QUEM? A
propaganda exalta o
governo socialista, mas a
população não é livre para
opinar.
Foto: AFP
Foi nesse cenário de terra arrasada que um
grupo de guerrilheiros liderados por Che
Guevara, Fidel Castro e seu irmão Raúl tomou
o poder, em 1º de janeiro de 1959. De cara,
centenas de simpatizantes de Batista foram
julgados por abuso dos direitos humanos e
crimes de guerra. Muitos foram fuzilados.
Outros, sentenciados à prisão perpétua.
A ascensão dos guerrilheiros veio
acompanhada de ambiciosas reformas
políticas, que incluíram melhoria e ampliação
de serviços públicos, especialmente de saúde e
Educação (que passaram a ser gratuitos para
todos), reforma agrária (com a nacionalização das terras e de empresas
privadas que estavam em mãos americanas) e a planificação da economia
(salários, metas de produção e empregos passaram a ser controlados pelo
governo central). Consolidando uma aproximação com a União Soviética
(URSS), de quem Cuba recebia petróleo e alimentos em troca de açúcar, Fidel
declarou num discurso, em maio de 1961, que seu regime era socialista.
O termo define um sistema socioeconômico em que o Estado é dono de
todos os serviços e atividades produtivas de um país. Seu objetivo principal é
garantir a igualdade, fazendo com que a riqueza e as oportunidades sejam
distribuídas para todos os cidadãos. Para o filósofo alemão Karl Marx (18181883), o socialismo era visto como um estágio transitório, um caminho que
transportaria uma sociedade do capitalismo ao comunismo, um sistema sem
classes nem governo.
O avanço do socialismo por diversos países - nas décadas de 1950 e 60, um
terço da população mundial era governada por esse regime - redefiniu outro
conceito clássico da política, o de esquerda. Originário da Revolução Francesa
(1789-1799), quando designava a posição que os deputados radicais
ocupavam no plenário da Assembleia Constituinte, o termo passou a ser
sinônimo de socialismo e comunismo. Até hoje, o conceito mais aceito é o de
filósofos como o italiano Norberto Bobbio (1909-2004), que coloca a defesa
da igualdade como o critério que separa esquerda e direita.
Fim da URSS trouxe crise à ilha e questionou: o que é esquerda?
Atenção, porém, para não cair no maniqueísmo: dizer que a direita é
inigualitária não significa dizer que ela é má. Em sua obra, Bobbio diz que os
direitistas consideram que as desigualdades são úteis porque melhoram a
sociedade (por meio da meritocracia, os melhores e mais bem preparados
ganham mais, o que os incentiva a evoluir). Eles também argumentam que,
sempre que se tenta obter a igualdade,
sufoca-se a liberdade, o valor principal para
os direitistas. Não é à toa que o capitalismo,
sistema socioeconômico mais identificado
com a direita, tem como bases teóricas uma
série de liberdades - de abrir empresas, de
escolher sócio, de decidir seu patrão etc.
PARA CUBANO VER Na capital Havana,
resorts e hotéis de luxo convivem com
moradias em estado precário.
Foto: Getty Images / Steen Larsen
Conforme a História seguiu seu curso, o
significado dos termos foi se alterando. As
práticas autoritárias dos governos socialistas,
por exemplo, fizeram com que o conceito
fosse associado ao totalitarismo e ao
desrespeito aos direitos humanos. Por outro
lado, a queda do Muro de Berlim, em 1989, e
a dissolução da URSS, em 1991, abalaram a
esquerda. Sua "morte" foi decretada em 1992
pelo cientista político Francis Fukuyama,
argumentando que todas as alternativas
políticas de esquerda haviam sido derrotadas
pelo capitalismo.
Se existe alguma certeza entre os especialistas é que a implosão dos regimes
socialistas serviu para descolar a associação automática entre socialismo e
esquerda e entre capitalismo e direita. "Percebemos que não houve apenas a
esquerda comunista, houve também, e há ainda, uma esquerda no interior
do regime capitalista", escreveu Norberto Bobbio, para quem a igualdade
continua sendo o norte que separa as duas ideologias. Outros pesquisadores,
porém, apontam que os movimentos de esquerda atuais se abrigam sob um
guarda-chuva mais amplo de ideologias, que incluem o combate ao
autoritarismo e a defesa da nãoviolência. Mas isso está longe de ser um
consenso. Movimentos antiglobalização, por exemplo, rejeitam essa postura,
argumentando que os protestos pacíficos não conseguiram mudar nada.
Por fim, para estudiosos como o sociológo Anthony Giddens, simplesmente
não faz sentido seguir usando esses conceitos, pois eles não dão mais conta
de explicar o cenário político do século 21. "Presenciei esse embaralhamento
de conceitos em 1989, quando estive na União Soviética para estudar a
perestróica, a abertura econômica e financeira do país. Na época, os
comunistas ortodoxos, que não queriam mudanças, eram chamados de
direitistas, enquanto os que defendiam transformações para a economia de
mercado eram considerados esquerdistas. Eu esperava o contrário", diz
Ângelo Segrillo, historiador da Universidade de São Paulo e pesquisador do
Instituto Pushkin, de Moscou, na Rússia.
Hoje, o socialismo em Cuba dá espaço para o livre mercado
E Cuba com isso? Pelas definições atuais, é controverso encarar seu governo
como "de esquerda" - isso se considerarmos que o conceito ainda é válido.
Afinal, a revolução produziu uma casta de funcionários públicos privilegiados
(o que fere o critério de igualdade), segue aplicando a pena de morte (o que
atinge o princípio da não-violência) e bloqueia a livre manifestação de
opositores (o que impede o combate ao autoritarismo).
O socialismo, por sua vez, também não é mais o mesmo. A mudança mais inf
luente vem da China e atende pelo nome de "socialismo de mercado",
caracterizado por uma abertura para a livre iniciativa e a concorrência em
algumas áreas da economia, enquanto o governo continua controlando com
mão forte o poder político. Cuba tem seguido a mesma tendência. Algumas
medidas do atual presidente Raúl Castro sinalizam concessões ao
capitalismo: o direito à propriedade de imóveis, a permissão do uso de hotéis
e o acesso a bens de consumo.
Também é inegável que 50 anos de socialismo produziram avanços. Hoje, a
ilha ostenta índices sociais dignos de países desenvolvidos. A taxa de
analfabetismo é de apenas 0,2% (a segunda melhor do mundo), a
mortalidade infantil é a menor das Américas e todos têm casa e comida
garantidos pelo governo. Em compensação, a alimentação é racionada, faltam
produtos básicos e a ilha sofre com apagões de energia - para os defensores
do regime, a penúria é causada pelo bloqueio imposto pelos Estados Unidos,
que trava as transações comerciais de Cuba. Apresentar relatos para levar a
turma a refletir se as conquistas compensam as privações econômicas e as
restrições à liberdade de expressão é uma ótima forma aprofundar o debate.
Quer saber mais?
CONTATO
Daniel Vieira Helene, [email protected]
BIBLIOGRAFIA
Direita e Esquerda - Razões e Significados de uma Distinção Política, Norberto Bobbio, 190 págs., Ed. Unesp, tel.
(11) 3242-7171 , 30 reais
O Fim da História e o Último Homem, Francis Fukuyama, 488 págs., Ed. Rocco, tel. (21) 3525-2000 , 49 reais
Endereço da página:
https://novaescola.org.br/conteudo/2389/revolucao-cubana-50
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Publicado em NOVA ESCOLA Edição 219, 01 de Janeiro de 2009
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