Resumo

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SPGD 2016
2º SIMPÓSIO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESIGN DA ESDI
Rio de Janeiro, 9 a 11 de novembro de 2016
Hermenêutica de profundidade:
um método para interpretação
da ideologia no âmbito do design
Depth hermeneutics: a method for ideology
interpretation in design
ZARUR, Ana Paula; NIEMEYER, Lucy
RESUMO: O artigo apresenta as possibilidades da Hermenêutica de Profundidade (HP),
referencial teórico-metodológico sistematizado por John B. Thompson, para a análise
ideológica no âmbito do design. O método consiste em um processo interpretativo que é
composto por três fases interdependentes e complementares: a análise sócio histórica, a
análise formal ou discursiva e a interpretação/re-interpretação. De acordo com esta
abordagem, os produtos de design podem ser compreendidos como “formas simbólicas”,
ou seja, como manifestações de uma linguagem e instrumentos mediadores pelos quais se
passa nossa compreensão de mundo. O artigo delimita os atributos que estão tipicamente
envolvidos na constituição das formas simbólicas e descreve como eles se apresentam nos
artefatos industriais. Além disso, relata procedimentos envolvidos em cada uma das
etapas da HP e estabelece o modo pelo qual tais procedimentos podem ser abordados para
interpretar ideologia expressa pelos produtos de design.
Palavras-chave: Design de produto; Cultura e Sociedade; Hermenêutica; Ideologia;
Método de Pesquisa.
ABSTRACT: The paper presents the possibilities of Depth Hermeneutics (HP), theoretical and
methodological framework systematized by John B. Thompson, for ideological analysis in
design. The method consists of an interpretive process that is composed of three
interdependent and complementary phases: the historical social analysis, formal or
discursive analysis and interpretation/re-interpretation. According to this approach,
products design can be understood as "symbolic forms", in other words, as language
manifestations and mediators instruments by which it transmits our understanding to the
world. The article defines the attributes that are typically involved in the creation of symbolic
forms and describes how they are shown in industrial artifacts. In addition, it reports
procedures involved in each HP steps and the way such procedures may be addressed to
interpret the expressed ideology by product design.
Keywords: Product design; Culture and society;
ZARUR; NIEMEYER.
Hermenêutica de Profundidade: um método para a interpretação da ideologia no âmbito do design.
1 — Introdução
Pesquisa é um processo de investigação que tem como meta principal gerar novos
conhecimentos. Para ser considerada científica ela deve ser conduzida de acordo com um
método que crie condições para que as conclusões sejam estabelecidas mais com base nas
evidências do que em conjectura, superstição ou conhecimento comum. Pode-se definir o
método como um caminho, uma vez que ele consiste no conjunto sistemático de
procedimentos intelectuais e técnicas empregados para se atingir a explicação de
fenômenos.
O presente artigo visa apresentar o referencial metodológico da tese de doutorado
intitulada “A juventude como valor para o design contemporâneo”, pesquisa que vem
sendo desenvolvida dentro do programa de Pós-graduação em Design da ESDI na linha de
Teoria e Crítica do Design. O referido trabalho baseia-se na hipótese de que mudanças
ocorridas no cenário cultural, causadas pela condição hipermoderna, abriram espaço no
campo do design para expressão de uma nova subjetividade na qual a juventude se
constitui em um valor. Seu objetivo é interpretar a ideologia subjacente às mensagens
transmitidas pelos produtos desta corrente.
2 — A juventude como um valor na hipermodernidade
A tese defende a ideia que a hipermodernidade (LIPOVETSKY, 2004) promove em muitos
aspectos, um culto a juventude. A nova condição cultural exige capacidade de adaptação,
flexibilidade, beleza, energia, disposição, saúde, uma série de qualidades que podem ser
resumidas neste conceito. Em um ambiente em constante transformação, a maturidade e a
sabedoria, frutos da experiência acumulada, perderam seu valor. Há um profundo temor
em tornar-se ultrapassado e descartável, como alguns produtos velhos que são deixados
nas prateleiras de supermercados. A velhice passou a ser “um modo de expressar uma
atitude de negligência com o corpo e de falta motivação para a vida, uma espécie de
doença auto infligida” (DEBERT, 2010, p. 51).
Para o indivíduo contemporâneo, aceitar o envelhecimento é identificar-se com um
estereótipo negativo. Em uma sociedade centrada novo, o velho é estigmatizado como
“ultrapassado”. Nas culturas tradicionais, nas quais a velhice e a morte eram
simbolicamente incorporadas ao dia-a-dia, os idosos consistiam em “elos geracionais”,
transmissores de conhecimento e sabedoria. Mas, no contexto do capitalismo flexível e do
mundo informatizado, a experiência e o saber acumulado ao longo de uma vida tornam-se,
frequentemente, obsoletos e intransferíveis, ou pior, acabam virando obstáculos para a
abertura e a adaptação às inovações.
Isso resulta em uma realidade onde um conjunto de significados associados ao jovem
passou a ser acionado por setores mais velhos. Os produtos que significam juventude
ganham uma cotação comercial alta: “no mercado de bens simbólicos ser jovem é ter
prestígio” (MARGULIS e URRESTI, 1998, p. 5). Desconectada de um grupo etário específico,
a juventude passou a significar um valor que deve ser conquistado e mantido, em qualquer
idade, através da adoção de formas de consumo de bens e serviços apropriados. Tornou-se
um conceito publicitário, estrategicamente aplicado para criar, consolidar ou modificar o
posicionamento de marcas, produtos e instituições.
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ISSN 2447-3499
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Hermenêutica de Profundidade: um método para a interpretação da ideologia no âmbito do design.
Em um cenário consumista, hedonista e narcísico a juventude conquistou um status de
produtora de gostos e costumes, o que lhe confere poder. Signos a ela atribuídos se
constituem em uma estética cujo espectro engloba artefatos e costumes relacionados ao
corpo, à indumentária e ao comportamento (MARGULIS e URRESTI, 1998). Nas sociedades
de consumo, a reificação desse ideal estético se tornou um paradigma para tudo o que é
desejável, atuando no mercado como um veículo de distinção e de legitimidade.
3 — Os produtos de design como formas simbólicas
A pesquisa adota como referencial teórico metodológico a Hermenêutica de Profundidade
proposta pelo sociólogo norte-americano John B. Thompson (2007). O método é fruto dos
esforços do autor no sentido de estabelecer uma teoria que possibilitasse um tratamento
adequado da natureza e do impacto dos meios de comunicação no mundo contemporâneo.
Desde o início dos anos noventa, a relação entre ideologia e mídia, bem como as
consequências dessa relação para a vida social e política, vêm sendo sistematicamente por
ele analisadas.
De acordo com esta abordagem os fenômenos culturais são entendidos como formas
simbólicas, ou seja, como construções significativas em virtude das quais os indivíduos se
comunicam, partilham suas experiências, concepções e crenças. No livro Ideologia e
cultura moderna, o Thompson delimita os atributos que estão tipicamente envolvidos na
constituição das formas simbólicas, os quais descreve como seus aspectos intencional,
convencional, estrutural, referencial e contextual. De acordo com sua definição os
produtos de design consistem em formas simbólicas uma vez que é possível identificar
nestes artefatos os cinco aspectos que as caracterizam.
O aspecto intencional dos produtos de design
Segundo Thompson (2007, p.183), “as formas simbólicas são expressões de um sujeito e
para um sujeito (ou sujeitos) ”. Elas são produzidas, construídas e empregadas por um
sujeito que está buscando certos objetivos e propósitos, ou seja, manifestam uma intenção.
É possível identificar esse caráter nos produtos de design. Eles são resultantes de um
projeto, de um plano intencional para realização de uma ação. Possuem um objetivo, um
propósito comunicacional. Como aponta Niemeyer (2010, p. 28), para que algo seja
produzido, empresário e designer se articulam no lugar do gerador de uma mensagem,
definido estratégias para que a forma do produto carregue os elementos que viabilizarão a
sua comunicação. Esses elementos consistem em algo que não se destina somente ao
usuário, mas a toda uma gama de sujeitos que não necessariamente utilizarão o produto,
mas o reconhecerão e atuarão para que ele estruture um processo de identificação. Estes
indivíduos também atuam como interlocutores do processo de comunicação do produto,
agindo como seus interpretadores. Configurado como mensagem o produto possui então
dois objetivos: persuadir o interpretador, o levando a crer algo, e promover uma mudança
no seu comportamento, fazendo que ele assuma as atitudes esperadas que lhe foram
comunicadas. Por exemplo, ao projetar uma cadeira um designer pode ter a intenção de
fazer com que o interpretador do objeto acredite que tal artefato sirva como um bom
assento e se disponha a comprá-lo e usá-lo para este fim.
O aspecto convencional dos produtos de design
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Hermenêutica de Profundidade: um método para a interpretação da ideologia no âmbito do design.
De acordo com Thompson (2007, p.185), “a produção, construção e emprego das formas
simbólicas, bem como a interpretação das mesmas pelos sujeitos que as recebem, são
processos que, caracteristicamente, envolvem a aplicação de regras, códigos e convenções
de vários tipos”.
Um produto de design é culturalmente edificado a partir de preceitos que regem o sua
fabricação e uso. Tais preceitos envolvem desde a normatização dos desenhos técnicos ferramenta necessária para a interpretação e representação de um projeto - até a
necesssidade de se considerar todo um conjunto hábitos e costumes vigentes em uma
sociedade para se projetar um objeto que possa ser por ela compreendido, aceito e usado.
Normas, regras e convenções são geralmente aplicadas como esquemas implícitos ou
indiscutíveis para a geração e interpretação destes artefatos. Elas fazem parte do
conhecimento tácito que os sujeitos empregam no curso de seu cotidiano, criando,
constantemente, expressões significativas e dando significado às expressões criadas pelos
outros. Embora tácito este conhecimento é social, compartilhado por mais de um
indivíduo e passível de correções e sanções pelo grupo. Para Thompson (2007, p.186) é
justamente a possibilidade de se corrigir ou sancionar a produção e interpretação das
formas simbólicas que demonstra o fato delas possuírem um caráter convencional.
O aspecto estrutural dos produtos de design
As formas simbólicas “são construções que exibem uma estrutura articulada”,
(THOMPSON, 2007, p.187) consistem de elementos que se colocam e determinadas
relações uns com os outros. Estes elementos e suas inter-relações compõem uma
conformação que pode ser analisada formalmente, do mesmo modo, por exemplo, que se
pode analisar a justaposição de palavras e de imagens em um cartaz ou estrutura narrativa
de um mito.
No caso do design, aspecto estrutural abrange a dimensão sintática do produto: suas
partes e o modo como elas estão conectadas umas às outras. Quando um objeto é
projetado, desenhado e construído, sua composição é feita a partir e uma lista básica de
elementos: o ponto, a linha, a forma, a direção, o tom, a cor, a textura, a dimensão, a escala
e o movimento. (DONDIS, 1991). Esses elementos e suas inter-relações, dentro
determinada composição visual, consistem no sistema corporificado do design. O
significado de um produto é construído com essas unidades estruturais, transmitido por
elas, embora, como aponta Thompson, nunca seja totalmente exaurido por elas. “As formas
simbólicas não são apenas concatenações de elementos e suas inter-relações: são também,
tipicamente, representações” (THOMPSON, 2007, p.189). ]
O aspecto referencial dos produtos de design
As formas simbólicas são também “construções que tipicamente representam algo,
referem-se a algo, dizem algo sobre alguma coisa.” (THOMPSON, 2007, p.190). Se o
gerador da mensagem tem a intenção de dizer algo (aspecto intencional), certamente dirá
algo sobre alguma coisa (aspecto referencial), objeto de sua produção.
É possível observar esta característica nos produtos de design, como qualquer outra forma
simbólica, eles podem fazer referência aos mais diversos conceitos - status, gênero,
autencidade, valor - representar estilos de vida e até contribuir para formação de
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Hermenêutica de Profundidade: um método para a interpretação da ideologia no âmbito do design.
identidades. Nesse sentido, o design é usado para moldar percepções de como os objetos
devem ser compreendidos. Como argumenta Deyan Sudjic, diretor do Design Museum,
trata-se de uma linguagem “que a sociedade usa para criar objetos que reflitam seus
objetivos e valores” (2010, p. 49).
O aspecto contextual dos produtos de design
A quinta característica das formas simbólicas descrita por Thompson refere-se ao fato de
que “as formas simbólicas estão sempre inseridas em processos e contextos sóciohistóricos específicos, dentro dos quais e por meio dos quais elas são produzidas,
transmitidas e recebidas” (THOMPSON, 2007, p.192).
Qualquer produto de design está inserido em um contexto social estruturado e, de
diversos modos, carrega os traços das condições sociais de sua produção. Como afirma
Denis (1998, p.37), “ao realizar o ato de projetar, o indivíduo que o faz não somente
projeta uma forma ou um objeto, mas, necessariamente, também se projeta naquela forma
ou naquele objeto”. Assim, a solução de design desenvolvida reflete a visão de mundo, a
consciência do projetista e, consequentemente, da sociedade e da cultura, as quais ele
pertence.
Além disso, os produtos de design são recebidos e interpretados por indivíduos que estão
também situados dentro de contextos sócio históricos específicos e o modo particular
como serão compreendidos depende do repertório que eles estão aptos a empregar no
processo de decodificação. Como bem aponta Thompson, a recepção das formas
simbólicas não é uma ação passiva de assimilação, ao contrário, é uma ação criativa, na
qual os interpretadores ativamente atribuem significados ao que lhe é oferecido.
4 — A Hermenêutica de Profundidade
Compreendendo a análise cultural como “o estudo da constituição significativa e da
contextualização social das formas simbólicas” (THOMPSON, 2007, p.180), Thompson
defende que a hermenêutica pode oferecer tanto uma reflexão de cunho filosófico quanto
uma ferramenta metodológica para compreender situações sociais. Em sua argumentação
afirma que no campo das ciências sociais a herança do positivismo é forte e por isso há
uma tendência constante em se tratar os fenômenos sociais em geral, e as formas
simbólicas, em particular, como se fossem objetos naturais, passíveis de vários tipos de
análise formal, estatística e objetiva. Para o autor é necessário erradicar esta herança
positivista pois, na melhor das hipóteses, tais tipos de análise se constituem em um
enfoque parcial ao estudo dos fenômenos sociais. Sob sua ótica, “as formas simbólicas são
construções significativas que, embora possam ser analisadas pormenorizadamente por
métodos formais e objetivos, inevitavelmente apresentam problemas qualitativamente
distintos de interpretação e compreensão” (THOMPSON, 2007, p. 358). Assim, baseado
principalmente nas considerações dos filósofos hermeneutas do século XIX e XX - Dilthey,
Heidegger, Gadamer e Ricoeur – Thompson fundamenta seu referencial metodológico na
tradição da hermenêutica propondo um processo que não exclui radicalmente uma análise
formal ou objetiva, mas inclui a interpretação como um procedimento indispensável.
A Hermenêutica de Profundidade (HP) consiste em um processo interpretativo composto
por três fases ou procedimentos principais que são interdependentes e complementares
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Hermenêutica de Profundidade: um método para a interpretação da ideologia no âmbito do design.
entre si: a análise sócio histórica, a análise formal ou discursiva e a interpretação/
reinterpretação. Dentro de cada uma destas fase, diversos métodos de pesquisa podem ser
utilizados, sendo alguns deles mais adequados que outros, dependendo do objeto
específico de análise e das circunstâncias específicas da investigação.
A primeira fase, a análise sócio histórica, tem por meta “reconstruir as condições sociais
e históricas de produção, circulação e recepção das formas simbólicas” (THOMPSON, 2007,
p.366). No caso do trabalho aqui apresentado, nesta etapa serão empreendidos esforços
no sentido de delinear os aspectos do contexto social hipermoderno que promovem o
atual protagonismo juvenil e suas consequentes expressões no campo do design de
produto. Esta primeira análise tentará contemplar, na medida do possível, os aspectos
básicos dos contextos sociais elencados por Thompson(2007): situações espaçotemporais, campos de interação, instituições sociais, estrutura social e meios técnicos de
construção e transmissão.
• Situações Espaços-Temporais: trata-se das características espaciais do “lugar” e do
“tempo”, do período em que as formas simbólicas são produzidas e nas quais são
recebidas pelo público ao qual, inicialmente, são endereçadas;
• Campos de interação: consiste no espaço de posições e no conjunto de trajetórias que
determinam as relações existentes entre os indivíduos e as oportunidades acessíveis a
eles.
• Instituições sociais: podem ser vistas como conjuntos relativamente estáveis de regras
e recursos, juntamente com relações sociais que são estabelecidas por eles. Situam-se
dentro de campos de interação, aos quais configuram através da fixação de uma gama de
posições e trajetórias.
• Estrutura Social: refere-se às assimetrias e diferenças relativamente estáveis que
caracterizam as instituições sociais e os campos de interação.
• Meios técnicos de construção e transmissão: referem-se ao modo com que a forma
simbólica se manifesta na concretude do mundo, às tecnologias utilizadas para sua
produção, aos materiais usados para sua elaboração etc.
A segunda fase da HP, a análise formal ou discursiva, tem por finalidade examinar a
organização interna das formas simbólicas, com suas características estruturais, seus
padrões e relações. Nesta dimensão o presente trabalho se dispõe a analisar, com base na
semiótica de extração peirceana, produtos de design contemporâneo. O objetivo é
compreender como produtos do design contemporâneo manifestam significados que
valorizam o conceito de juventude.
Na apresentação de seu referencial metodológico Thompson sugere, além da semiótica,
algumas outras possibilidades para a realização da análise formal ou discursiva. A opção
por buscar na obra de Peirce os princípios guias para o método de análise a ser aplicado
nesta etapa do processo se deve ao fato de sua teoria oferece conceitos gerais, que contém
em um nível abstrato, elementos que permitem descrever, analisar e avaliar toda espécie
de signos: verbais, não verbais e naturais. Deste modo, ela habilita a penetrar no
movimento interno das mensagens transmitidas pelos produtos de design, e fornece a
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Hermenêutica de Profundidade: um método para a interpretação da ideologia no âmbito do design.
possibilidade de compreender os procedimentos e recursos empregados na dimensão
semântica destes artefatos.
Por último, a terceira fase da HP, a interpretação/ reinterpretação desenvolve-se com o
estudo das aproximações e divergências detectadas na comparação entre os elementos
que os momentos anteriores de análise permitiram construir. Trata-se de um processo de
síntese que integra o conteúdo das formas simbólicas à análise do contexto de sua
produção. Consiste em uma explicação interpretativa, plausível e bem fundamentada, de
um campo já pré-interpretado pelos sujeitos que constituem o mundo sócio histórico e,
por isso, trata-se de fato de uma re-interpretação. Nesta etapa focalizaremos o aspecto
referencial das formas simbólicas, no intuito de demonstrar como o design, ao conformar
mensagens em artefatos, pode ser usado para expressar ideias e crenças, manifestar
valores e, em circunstâncias específicas, estabelecer e sustentar ideologias.
Thompson sustenta que a ideologia permanece uma noção útil e importante no
vocabulário intelectual da análise social e política. Em sua visão, interpretar a ideologia
implica em explicitar a conexão entre os significados mobilizados pelas formas simbólicas
as relações de dominação que estes ajudam a instituir e manter. O autor bebe na fonte
marxista ao manter o sentido negativo do conceito. Entretanto, rompe com a perspectiva
de que são as relações de subordinação de classe que constituem necessariamente os eixos
da exploração e da desigualdade, hoje.
Thompson também rejeita a ideia de que a ideologia forçosamente se opere através do
ocultamento e mascaramento das relações sociais. Para o autor, estas são apenas
possibilidades contingentes e não uma característica necessária ao fenômeno. No que
tange a este aspecto a hermenêutica de profundidade difere das abordagens tradicionais
da ideologia, pois invoca a necessidade de se propor sentidos, discuti-los, desdobrá-los e
não, desvela-los. Trata-se de construir uma análise plausível, dentro de um paradigma
compreensivo; não de acessar e revelar a verdade, mas de fazer uma leitura qualificada da
realidade tal qual ela se apresenta, no nível do significado apreendido do fenômeno, no
campo investigado.
5 — A importância da crítica ideológica para o design
Atividade de natureza projetual por excelência, o design processa o ato criativo visando à
objetivação no sentido estrito, ou seja, atribuindo existência concreta e autônoma a
conceitos abstratos e subjetivos (DENIS, 1998, p.19). Os objetos resultantes desta ação
consistem em um ordenamento específico de materiais destinados a atender
determinadas finalidades humanas não definidas pela natureza. Como qualquer outro
produto material do saber humano eles representam também manifestações de seu
espírito: expressam valores e conceitos. Neste sentido, o design pode ser compreendido
como um processo de significação que define a linguagem e a mensagem de um produto.
Os significados transmitidos pelos produtos de design não dependem exclusivamente de
da ação individual de designers. Como sinaliza Cipiniuk (2014, p. 74) “o objeto é sempre
produzido em colaboração”. O designer costuma ser percebido como o único responsável
pelas decisões tomadas nas diversas fases de construção do artefato, mas as condições
históricas, de produção, circulação e consumo dos objetos influenciam diretamente em
suas decisões projetivas. Deste modo, uma ampla rede de participantes intervém direta ou
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Hermenêutica de Profundidade: um método para a interpretação da ideologia no âmbito do design.
indiretamente no processo de configuração final de um artefato: empresários, engenheiros
de produção, operários, profissionais de marketing etc. Além disso, a ação individual ou
subjetiva do designer não é determinada exclusivamente por movimentos internos e
independentes do contexto social. Todo o arsenal crítico que este profissional mobiliza
para realização de suas funções partiu de noções coletivas que o precediam como sujeito
constituído e que foram por ele incorporadas ao longo de sua experiência de vida.
Ao afirmar a impossibilidade de uma ação subjetiva fora das estruturas sociais, não
estamos defendendo, de modo simplista, que as escolhas realizadas pelos designers são
puras respostas a um estímulo externo e completamente determinadas pela sociedade,
mas apenas afirmando que a subjetividade humana se constitui socialmente. O conceito de
habitus desenvolvido por Bourdieu (2005) é de fundamental relevância para o
esclarecimento desta questão. Refere-se a esta disposição social adquirida, fruto de um
processo de condicionamento e internalização inconsciente de regras, práticas e
comportamentos sociais. O habitus funciona como espécie de bússola social, uma matriz
de percepções e apreciações que orienta a ação dos indivíduos perante novas situações.
Leva o sujeito a participar de sua coletividade, de seu período histórico e, sem que este
tenha consciência, orienta e dirige sua ação criativa. Por isso os produtos de design
proclamam e traem a simbólica de uma época e de uma sociedade. Como resultado de
uma herança coletiva no inconsciente individual, o habitus funciona como uma força
conservadora interna da ordem social. Mas esta “gramática geradora de condutas” não
oferece situações prontas para cada momento. Assim, o habitus é basicamente adaptativo.
Ele se modifica e adequa a cada nova situação e a cada nova mudança na estrutura social.
Se as características dos contextos sociais são constitutivas da produção do design,
igualmente também são constitutivas dos modos pelos quais seus produtos são recebidos
e compreendidos. Com aponta Thompson (2007, p.201), a recepção não é um simples
processo de assimilação, ao contrário, “é um processo criativo de interpretação e avaliação
no qual o significado das formas simbólicas é ativamente constituído e reconstituído”. Os
sujeitos não absorvem passivamente as mensagens expressas nos objetos, mas, ativa e
criativamente, dão-lhes significados. Nesta ação baseiam-se em recursos, regras e
esquemas a eles disponíveis. Assim, as maneiras como o objeto é compreendido e pelas
quais é avaliado e valorizado é orientada pelo habitus de seus interpretadores.
A geração e recepção dos produtos de design é um processo contínuo de constituição e
reconstituição de significados. Este processo é, tipicamente, parte do que Thompson
(2007, p.202) denomina de “reprodução simbólica dos contextos sociais”: o significado
que é carregado pelas formas simbólicas e reconstituído no curso de sua recepção pode
servir para manter e reproduzir os contextos de produção e recepção e,
consequentemente, as relações estruturadas características destes contextos. Assim, as
maneiras como os significados são construídos e transmitidos pelos produtos de design
podem servir, em circunstâncias particulares, para estabelecer e sustentar relações sociais
estruturadas nas quais alguns indivíduos se beneficiam mais do que outros, e que alguns
grupos têm o interesse de preservar enquanto outros procuram contestar.
Aceitar o papel do design na reprodução simbólica de ideologias implica reconhecimento
de sua responsabilidade social. Esta responsabilidade passa pela instância ideológica pois
é ela que enlaça os valores sociais e pode determinar novas práticas de mudança.
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Hermenêutica de Profundidade: um método para a interpretação da ideologia no âmbito do design.
Ao acentuar as relações e o contexto social hipermoderno e demonstrar como objetos de
uso cotidiano podem servir, nos tempos atuais, para sustentar determinados tipos de
relações sociais, a interpretação da ideologia subjacente aos produtos de design
contemporâneo pode estimular uma reflexão crítica sobre as relações de poder e
dominação que são mediadas pelos artefatos.
Aos moldes de Thompson(2007, p. 416),, defendemos aqui que esta reflexão crítica deve
ser governada pelo que ele denomina “princípio de não-exclusão” apresentando um viés
concreto em favor dos que, nas circunstâncias presentes da vida cotidiana, são geralmente
excluídos de posições poder. Como aponta o autor,
Afirmar que existe grande exigência para uma reflexão crítica desse tipo é fato que não
pode ser colocado em dúvida por ninguém que esteja familiarizado com as múltiplas
formas de desigualdade e conflito, que permanecem como características
generalizadas, explosivas e aparentemente intocáveis do mundo moderno
(THOMPSON, 2007, p. 417).
O design representa, na sociedade contemporânea, um espaço privilegiado para geração
artefatos. Limitando a análise ao conjunto de bens móveis – em contraposição aos bens
imóveis que são do âmbito engenharia ou da arquitetura – o desenho industrial se
configura “como o foro principal para o planejamento e o desenvolvimento da maioria
absoluta dos objetos que constituem a paisagem artificial (no sentido de não natural) do
mundo moderno” (DENIS, 1988, p.22). Desse modo, a atividade é relevante fonte de
cultura material em uma sociedade que, “ mais que qualquer outra sociedade que já
existiu, pauta a sua identidade cultural na abundância material que tem conseguido gerar”
(DENIS, 1988, p.22). Este cenário torna particularmente importante a constituição de um
design mais ciente de sua ação transformadora dentro da cultura e da sociedade.
É necessário que os designers compreendam as dinâmicas sociais que envolvem sua
atividade para assumirem suas funções como materializadores de conceitos com a devida
prudência. Sem maiores questionamentos, o design se enfraquece de possibilidades e
acaba atuando na perpetuação dos valores predominantes na sociedade, correndo o risco
de se tornar ferramenta para permanência e manutenção de relações assimétricas de
poder.
Referências
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2005
CIPINIUK, Alberto, Design: o livro dos porquês: o campo do design compreendido como
produção social. São Paulo: Editora Reflexão, 2004.
DENIS, Rafael Cardoso. Design, cultura material e o fetichismo dos objetos. Arcos Design,
v.1, n. único, p 15-39, 1998.
DEBERT, Guita Grin. “A dissolução da vida e a juventude como valor”. Horizontes
Antropológicos, vol.16, 34, Porto Alegre, jul./dec.2010. Disponível em:
< http://www.scielo.br/pdf/ha/v16n34/03.pdf> . Acesso em: 7 set. 2016.
LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004.
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ISSN 2447-3499
ZARUR; NIEMEYER.
Hermenêutica de Profundidade: um método para a interpretação da ideologia no âmbito do design.
MARGULIS, Mario e URRESTI, Marcelo. “La construcción social de la condición de
juventud”. In: CUBIDES, Humberto J., OSCANO, Maria C. L. e VALDERRAMA, Carlos E. H.
(orgs.). Viviendo a toda: Jóvenes, territorios culturales y nuevas sensibilidades. Bogotá:
Siglo del Hombre/DIUC, 1998.
NIEMEYER, Lucy. Elementos de semiótica aplicados ao design. Rio de Janeiro: 2AB,
2010.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios
de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
Notas sobre os autores:
ZARUR, Ana Paula; Mestre em Design; Bolsista do UniFOA; Título provisório da Tese: A
juventude como um valor para o design contemporâneo; Orientador: Lucy Niemeyer; Ano
previsto para defesa: 2018; Link para Currículo Lattes
http://lattes.cnpq.br/3009464048359469
[email protected]
NIEMEYER, Lucy; Doutora; Link para Currículo Lattes
http://lattes.cnpq.br/9230527583400338
[email protected]
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