A EXCEÇÃO COMO REGRA: AS FORÇAS POLICIAIS E A

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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO
DE 9 A 12 DE OUTUBRO
A EXCEÇÃO COMO REGRA: AS FORÇAS POLICIAIS E A
CONSTRUÇÃO DOS TERRITÓRIOS DA VIOLÊNCIA NA CIDADE DO
RIO DE JANEIRO
LEONARDO FREIRE MARINO1
Resumo:
A sensação de que a violência nos centros urbanos atinge patamares cada vez mais
elevados tornou-se comum. Tal sensação, parece nos levar a um quadro de barbárie
e de violência generalizada. Ao passo que ficamos amedrontados passamos a viver
cada vez mais em ambientes vigiados e controlados, onde os aparatos de
segurança são uma constante. Vivemos em um mundo em que esperamos por uma
segurança integral, que os riscos de vitimização desapareçam e que possamos viver
permanentemente protegidos. É sobre as relações entre o Estado, através dos
aparatos de segurança pública, e os diferentes estratos sociais que o presente artigo
se assentará. Seu objetivo reside em discutir de que maneira a exceção e a
apartação social se materializam espacialmente na Cidade do Rio de Janeiro.
Palavras-chave: Geografia da Violência; Forças Policias; Rio de Janeiro
Abstract:
The feeling that violence in urban centers reaches ever higher levels became
common. Such sensation, seems to lead us to a barbaric framework and widespread
violence. While we were afraid we lived increasingly monitored and controlled
environments, where security devices are a constant. We live in a world where we
waited for a full security, that the risks of victimization disappear and we can live
permanently protected. It's about the relationship between the State, through the
public security apparatus, and the different social strata that this article will sit. Their
goal lies to discuss how the exception and social apartheid materialize spatially in the
city of Rio de Janeiro.
Key-words: Geography of Violence ; Cops forces ; Rio de Janeiro
1
Doutor em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense.
Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. E-mail de contato:
[email protected]
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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO
DE 9 A 12 DE OUTUBRO
1 - Introdução
“As pessoas dormem tranquilamente à noite porque existem homens brutos dispostos a
praticar violência em seu nome”
George Orwell
Atualmente, temos a sensação de que a violência nos grandes centros
urbanos atinge patamares cada vez mais elevados. Tal sensação, parece nos levar
a um quadro de barbárie e de violência generalizada. Ao passo que ficamos
amedrontados passamos a viver cada vez mais em ambientes vigiados e
controlados, onde os aparatos de segurança são uma constante. Vivemos em um
mundo em que esperamos por uma segurança integral, que os riscos de vitimização
desapareçam e que possamos viver permanentemente protegidos. A aguda e
crônica sensação de insegurança e de medo é um efeito colateral da convicção de
que, com as capacidades adequadas e os esforços necessários, é possível uma
segurança completa, permanente e integral.
Os índices de criminalidade violenta, mas do que produzirem vítimas diretas,
produzem um gigantesco contingente de vítimas indiretas, vítimas que encontram
nas taxas criminais, em conversas informais e nos meios de comunicação as bases
para o cálculo subjetivo de probabilidades de vitimização. A disseminação do medo
pela sociedade leva a produção de manifestações culturais cada vez mais
amparadas pela banalização da violência.
Coletivamente instituído, o medo, tende a se personificar em atores e grupos
sociais específicos, o que faz com que determinados estereótipos sejam construídos
e aceitos. Sobre olhares estereotipados, diversos indivíduos, especialmente, os
oriundos das camadas mais empobrecidas da sociedade, passam a ser encarados
como a fonte de diversos males sociais e, gradativamente, a serem objeto das ações
que buscam solucionar tais problemas.
Frente a este processo, a violência assume um papel de causa e efeito, uma
vez que representa um dos principais motivos do medo e uma das formas mais
usuais de intervenção empregada. O medo generalizado, obsessivo e a insegurança
difusa, que podem ser encontrados em qualquer lugar e em todos os estratos
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sociais, permanecem em constante simbiose, em um processo de auto alimentação,
de causa e efeito. Ao passo que a violência assusta a todos os cidadãos, ela é
encarada como solução para as tensões provenientes da generalização do medo
pelos gestores públicos. Pautada pela simbiose entre causa e efeito, as medidas
arbitrárias, violentas e discriminatórias, instituídas pelo aparato estatal passam a ser
legitimadas e transformam as vítimas e algozes e, novamente, em vítimas.
É sobre as relações estabelecidas entre o Estado, através dos aparatos
institucionais de segurança pública, e os diferentes estratos sociais existentes na
Cidade do Rio de Janeiro que o presente artigo se assentará. Seu objetivo reside em
discutir de que maneira a exceção, a transgressão de direitos e apartação social se
materializam espacialmente na Cidade do Rio de Janeiro.
2 - O poder do Estado e o Direito de Fazer Morrer
Giorgio Agamben, em seu livro intitulado Estado de Exceção, publicado no
Brasil em 2004, procurou esclarecer o que ele considerava como uma contradição
central nos regimes democráticos contemporâneos, o fato de que, no exercício
cotidiano de suas práticas políticas, os Estados aplicariam ações e medidas que
poderiam ser classificadas como formas totalitárias de governo.
Para Agamben (2004), o „estado de exceção‟ teria suas origens atreladas aos
primórdios de formação do Estado Democrático de Direito, sobretudo, à época da
primeira Assembleia Constituinte Francesa (1789/1791), que instituiu por decreto o
que na época se convencionou chamar de „estado de sítio‟. De maneira resumida, o
estado de sítio significaria a suspensão da lei com o objetivo de defesa da própria
lei. Ele constituiria um mecanismo de suspensão do regime democrático com vistas
a salvação do próprio regime. O estado de sítio apresentaria um caráter de utilização
emergencial, sendo empregado apenas em momentos de crises de grandes
magnitudes, como guerras, insurreições e convulsões sociais.
Presentemente, vivenciamos um intenso e contínuo processo de utilização de
medidas excepcionais. Vivenciamos a exceção transmutada em normalidade, sendo
utilizada cotidianamente por diversos governos. O resultado da utilização
indiscriminada de medidas excepcionais tem sido a formação de um cenário de
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indeterminação política entre a Democracia e o Absolutismo, sobretudo, pelo fato de
que o cenário que emerge desse processo se assemelha a uma circunstância de
guerra civil permanente, um „estado de exceção permanente‟. Diferentemente de
sua origem, o estado de exceção permanente não se apresenta como uma medida
extrajurídica e arbitrária de supressão de direitos estabelecidos, pelo contrário, o
estado de exceção permanente aparece como norma inserida nas doutrinas
jurídicas vigentes2.
A exceção tomada como regra se manifesta no caráter rotineiro dos
assassinatos em massa ocorridos em nome do Estado e da Segurança de
determinados grupos sociais. É sobre a relação entre a morte objetivada pelo Estado
que se encontraria o princípio político da „soberania moderna‟. Ao traçar o limite
entre a proteção e a morte, a soberania moderna, politiza o fenômeno da vida ao
inclui-la e exclui-la da esfera jurídica, motivo pelo qual podemos afirmar a existência
de um regime biopolítico que ao passo em que incentiva a vida de alguns estabelece
a morte de outros como processo dialético.
Na modernidade, a vida e seus fenômenos vitais se politizaram, ao passo que
a política passou a versar exatamente sobre os fenômenos inerentes a existência
humana. Medidas relacionadas à saúde pública, as condições de trabalho, ao
controle de imigração, a proibição e ao controle do consumo de drogas servem para
revelar a eminente natureza biopolítica das diversas políticas públicas. Fato,
especialmente, evidenciado quando pensamos nas vidas tomadas como categorias
e dispositivos de um poder que as tratam como vidas expostas e administradas.
Pensam-se imediatamente nos indivíduos considerados como sem-papéis, seres de
pouca relevância social, encarados como refugos da sociedade, objetos de campos
muito reais, mas também, nos consumidores de drogas, nos desempregados, nos
refugiados e em todos os seres passíveis de ações corretivas e adestrastes3.
2
“A declaração de um estado de exceção é progressivamente substituída por uma generalização sem
precedentes do paradigma da segurança como técnica normal de governo”. AGAMBEN, Giorgio. 2004: 27-28.
3
“A dinâmica de uma sociedade ‘do descarte’, como a apelidaram escritores como Alvin Tofler (1970),
começou a ficar evidente durante os anos 60. Ela significa mais do que jogar fora bens produzidos (criando um
monumental problema sobre o que fazer com o lixo); significa também ser capaz de atirar fora valores, estilos
de vida, relacionamentos estáveis, apego a coisas, edifícios, lugares, pessoas e modos adquiridos de agir e
ser. (...) Por intermédio desses mecanismos (altamente eficazes forçadas a lidar com a descartabilidade, a
novidade e as perspectivas de obsolescência instantânea.” HARVEY, David. 2007:258.
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Em vista das dimensões que o poder biopolítico assume em nossos dias, os
episódios de violência estatal vivenciados nas periferias e áreas pobres das grandes
cidades, especialmente, naqueles casos em que a polícia e os grupos
criminalizados, produzem um espaço de indistinção e indeterminação em que a
autoridade, legal ou ilegal, se encontra diante da vida sem significado e importância
que pode ser descartada a qualquer momento, ganham significado de procedimento
normalizado e não de fato esporádico. Em nome da manutenção da vida de alguns
se exige a destruição da vida de outros. É justamente em nome da sacralidade da
vida que se determina aquela que pode ser exterminada. O preso, o favelado, o
migrante e o imigrante, em suma, o pobre e o miserável das modernas Democracias
Liberais ou dos velhos redutos autoritários constituem figuras que confirmam o
caráter biopolítico e aporético da política contemporânea4.
A obsessão pela segurança tem reforçado esse quadro, contribuindo ainda
mais, para a construção de aparatos repressivos e, principalmente, constituindo a
justificativa necessária para destinar todo esse aparato para os indesejados. O
estado de exceção, no qual a vida nua é, ao mesmo tempo, excluída e capturada
pelo ordenamento, constituí, na verdade, em seu apartamento, o fundamento oculto
sobre o qual repousa o inteiro sistema político contemporâneo5. Ao passo que as
sociedades de controle extrapolam os limites da coerção, atuando de forma ilimitada
e extrapolando os limites dos aparelhos espacialmente localizados, a exceção tornase regra e a violência assume proporções significativas.
No cenário atual, quando as suas fronteiras desaparecem e se indeterminam,
a vida nua que o habita libera-se na cidade e torna-se simultaneamente o sujeito e o
objeto do ordenamento territorial e de seus conflitos, o ponto comum tanto da
organização do poder estatal quanto da emancipação dele. É sobre este cenário, em
que o estado de exceção torna-se permanente, que a seguir estaremos discutindo
4
“(...) a violência parece a tal ponto corresponder a um novo paradigma, ele próprio inscrito no contexto geral
da crise da modernidade, é que ela parece, bem mais do que antes, carregada significações mais culturais que
sociais, ligada a atores que se definem acima de tudo por uma identidade. Purificação étnica, sectarismo,
integrismo, fundamentalismo, etc.: o vocabulário corrente remete constantemente à imagem de movimentos e
de atores cuja violência é tanto mais terrível na medida em que não se acomoda com nenhum tipo de
negociação, nenhum compromisso e que veicula significações que são necessariamente da ordem do tudo ou
nada.” WIEVIORKA, Michel. 1997:34.
5
AGAMBEN, Giorgio. 2002:16-17.
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os efeitos desse processo sobre o espaço das cidades e especialmente sobre os
locus da vida dos indesejados, as chamadas Favelas.
3 - As Favelas: os campos do mundo contemporâneo
Nas primeiras décadas do século XXI, a urbanização atingiu índices
elevadíssimos
no
mundo.
O
processo
de
urbanização
acelerado
atinge,
especialmente, os países mais pobres, que presenciam a multiplicação de moradias
precárias situadas, muitas vezes, em áreas insalubres. A superurbanização, como
apontado por Mike Davis (2006) tem sido impulsionada pela reprodução e ampliação
da pobreza e não pela oferta de empregos e melhoria na qualidade de vida6. Davis
(2006) acredita que neste cenário, marcado pelo crescimento da população pobre
urbana, existam provavelmente mais de 200 mil Favelas em todo o mundo,
concentrando em cada uma delas uma população que varia de algumas centenas de
pessoas a mais de 1 milhão seres humanos. Desta forma, podemos afirmar que a
maior parte da população mundial vive ou viverá em áreas urbanas, porém, não
contará com melhorias sociais e programas assistenciais.
Em todo o mundo, as elites pós-coloniais herdaram e reproduziram as marcas
físicas das cidades coloniais segregadas. Mesmo com o processo de libertação
nacional e dos históricos discursos de liberdade e de justiça social, o zoneamento
colonial não foi abandonado e os espaços urbanos se estruturaram preservando os
privilégios de classe e a exclusividade espacial. O enclausuramento urbano, ao
longo deste processo, representa uma „guerra social incessante‟ na qual o Estado
intervém regularmente em nome do „progresso‟ e do „embelezamento‟ e até mesmo
da justiça social para os pobres, para redesenhar as fronteiras espaciais em prol de
proprietários de terrenos. Como na Paris do passado, marcada pelas intervenções
de Haussmann, a reconstrução urbana ainda luta para maximizar ao mesmo tempo
o lucro particular e o controle social. A escala contemporânea de remoção
populacional é imensa. Anualmente, milhares de indivíduos, tanto aqueles que têm a
posse legal quanto os invasores, são despejados à força de bairros do mundo
6
DAVIS, Mike. 2006:58.
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subdesenvolvido7. Nos países mais empobrecidos, as populações pauperizadas
temem os eventos internacionais de alto nível, pois os mesmos acarretam
verdadeiras cruzadas de „limpeza da cidade’. Os favelados, neste sentido, sabem
que são a „sujeira‟, a „escória‟ ou a „praga‟ que seus governos preferem que o mundo
não veja.
Desde a década de 1970, tornou-se lugar-comum para os governos do mundo
justificar a remoção de Favelas como modo indispensável de combater o crime. Os
moradores dos bairros pobres, considerados como „produtores‟ da violência
humana, segundo a crença de que a miséria tornaria o homem violento, são, em
realidade, suas maiores vítimas. A indústria da segurança dirige os planos de
urbanismo, os escritórios de arquitetura trabalham sob as ordens da polícia ou, em
outras palavras, sob o auspício da segurança pública. Todo esse cenário, quando
associado a definição de Agamben (2002) de que o Campo é um território colocado
fora do ordenamento jurídico normal, mas que em seu funcionamento não
representa um espaço externo, encontramos na cidade moderna, sob a forma de
Favelas, Guetos e Periferias, o Campo constituindo o principal espectro da „vida
nua‟, da vida que não merece ser vivida.
Neste sentido, o caso brasileiro é esclarecedor, pois o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), ao conceituar as Favelas como „aglomerados
subnormais‟ acaba por definir uma distinção espacial entre espaços considerados
normais e anormais. O subnormal se torna uma categoria pertencente à
normalidade, mas que, permanece exterior a ela. Deste modo, a Favela torna-se um
híbrido, localizado entre o Direito e a exceção, no qual os dois termos se tornam
indiscerníveis. No mesmo sentido, os indivíduos que residem nestes espaços são
vítimas, enclausuradas, geridas e controladas.
Tal fato não quer dizer que os indivíduos que habitam esses espaços não
desenvolvam estratégias de existência. As Favelas existem, igualmente, porque são
espaços de resistência, locais em que as populações mais pauperizadas buscam
7
“E como os sans-culottes expulsos dos seus antigos quartiers por Haussmann – a quem Blanqui apostrofou
uma famosa reclamação – ‘estão cansados de grandiosos atos homicidas (...) essa vasta troca de pedras pelas
mãos do despotismo’. Também estão exasperados com a antiga linguagem da modernização que os define
como ‘entraves humanos’.” DAVIS, Mike. 2006:106.
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viver e democratizar o espaço das cidades. Em outras palavras, o que é apartação
também é, por outro lado, a luta pela permanência na cidade, pelo usufruto do
espaço, diante do Mercado e do Estado. Ao abandono das condições políticas de
acesso à Cidadania as populações Faveladas tornam-se bandidas, ou, em outras
palavras, assumem o seu „Bando‟, a sua condição de exceção em relação à lei.
4 - O Caso do Rio de Janeiro: o exemplo das UPP’s
Os elevados índices de violência criminal presenciados na Cidade do Rio de
Janeiro e retratados nos diversos veículos de comunicação tornaram o debate em
torno da segurança pública essencial. A população da Cidade do Rio de Janeiro, em
vista da sensação de insegurança e do medo socialmente compartilhado passou a
cobrar das autoridades medidas que permitissem resolver as questões inerentes a
criminalidade, sobretudo, a criminalidade violenta associada ao tráfico de drogas.
O cenário de medo generalizado sofreu uma grande alteração nos últimos
anos, passando a vigorar uma gradual e sensível melhoria na percepção de
segurança. A chave do sucesso residiria na implantação das chamadas Unidades de
Polícia Pacificadora (UPPs). As UPPs, de maneira resumida, se apoiariam na visão
de que a presença ostensiva e permanente das forças policiais em algumas Favelas
seria capaz de reduzir a dinâmica criminal na totalidade do espaço urbano.
Tal
visão,
extremamente
simplificadora
da
realidade,
despreza
a
complexidade que envolve a dinâmica do crime, especialmente, no que diz respeito
a sua inerente temporalidade e espacialidade.
É quase que senso comum entre os estudiosos do crime que análises com
recortes temporais muito pequenos não permitem afirmações categóricas ou
precisas, o que deriva, sobretudo, da sazonalidade intrínseca à dinâmica criminal. A
variação numérica da criminalidade é natural, constante e ininterrupta, portanto,
alterações com acréscimos ou decréscimos são comuns e devem ser esperadas.
Não obstante, afirmações precisas e definitivas, como as que são realizadas
atualmente, só se efetivam como verdadeiras, em recortes temporais longos.
Infelizmente, os números que envolvem as análises das UPPs não respeitam o
fundamento analítico da temporalidade, uma vez que se apoiam em um recorte de
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tempo reduzido, de no máximo cinco anos, tempo de implantação da primeira UPP
na cidade do Rio de Janeiro.
Neste sentido, são ilustrativas as discussões que envolvem o número total de
homicídios na cidade do Rio de Janeiro. Para os defensores da política estadual,
existe uma relação direta entre a implantação das UPPs e a diminuição do número
de crimes contra a vida. Contudo, uma análise mais apurada desmistifica tal visão.
De acordo com dados divulgados pela Secretaria Nacional de Segurança Pública
(SENASP), desde o ano de 2001, há uma tendência de redução do número de
homicídios em algumas cidades brasileiras, especialmente, São Paulo e Rio de
Janeiro. No mesmo sentido, os dados divulgados pelo SIM-Datasus, apontam que
entre 2000 e 2009, ocorreu uma redução de aproximadamente 80% no número de
homicídios do Rio de Janeiro. Portanto, mesmo em um período anterior a
implantação das UPPs havia uma tendência de decréscimo no número de
assassinatos.
Tais dados não são desprezíveis e contribuem efetivamente para uma visão
mais crítica e desmistificada da política de segurança implantada no Rio de Janeiro,
pois situa o movimento de redução do número de homicídios em um período
posterior ao de implantação da primeira UPP e apontam para um processo que não
pode ser atribuído diretamente a essa política.
No que tange a espacialidade, podemos afirmar que por sua natureza, o
espaço das cidades é marcado pela heterogeneidade, pelas diferenças econômicas
existentes entre os bairros e distritos ou pelas diversas dinâmicas sociais que lhe
dão sentido. As cidades são constituídas de múltiplos territórios que se unem em
uma trama diária. A criminalidade e a violência ilustram a multiplicidade territorial,
pois não atingem todos os espaços e habitantes com a mesma intensidade, existem
claramente territórios marcados pela violência e pelo crime, concentrando as vítimas
e a maior parte dos autores, e territórios com reduzida dinâmica criminal. Assim, de
acordo com os dados divulgados pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, as
maiores vítimas da criminalidade violenta estão concentradas em bairros e Favelas
das zonas norte e oeste da Cidade. Área que por sua histórica ocupação
concentram uma população mais pauperizada. De acordo com o portal de notícias
UOL, os bairros localizados no subúrbio carioca concentram uma taxa de homicídios
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de até 1.900% do que a de bairros mais abastados da cidade. Isso significa, por
exemplo, que um morador de Acari, bairro extremamente pobre localizado na zona
norte da capital fluminense, corre um risco 20 vezes maior de ser assassinado do
que um morador de Copacabana, localizado na área mais abastada da Cidade.
Mesmo com números impressionantes, a „Geografia do Crime‟ parece não ter
sido levado em consideração na escolha das Comunidades que seriam ocupadas
pelas forças policiais. A distribuição espacial das „Comunidades Pacificadas‟
demonstra claramente que o objetivo planejado não se associa a preservação da
vida dos estratos sociais mais vulneráveis, mas o estabelecimento de estratégias de
segurança associadas aos Megaeventos que o Rio de Janeiro sediou e sediará nos
próximos anos. Não se tratam de Favelas localizadas nas áreas mais violentas da
Cidade ou com os maiores índices de homicídios, são comunidades territorialmente
localizadas no chamado „Polígono de Segurança dos Jogos‟.
Não devemos admitir que as principais diretrizes da Política de Segurança
centre-se apenas em interesses passageiros. Se tal fato é admitido, devemos
acreditar que não estamos diante de uma Política Pública, mas apenas de uma
Estratégia de Segurança voltada para os Megaeventos. Para que a Política de
Segurança estadual se efetive, as ações pensadas devem focar em políticas
voltadas para a promoção e consolidação de uma cidade mais igualitária e
democrática, o que não será obtido apenas com a ocupação territorial de Favelas
estrategicamente localizadas.
Não obstante, as forças policias da Cidade continuam a operar de forma
extremamente violenta, cometendo transgressões legais cotidianamente, não
respeitando os direitos dos moradores das áreas ocupadas. Apenas com mudanças
concretas na forma de atuação das instituições governamentais que operam nesta
área é que a realidade violenta vivenciada no Rio de Janeiro será superada.
Infelizmente, parece que estamos distantes de medidas neste sentido.
Com as UPPs as Favelas tornaram campos de concentração, senzalas
vigiadas e monitoradas por uma estrutura policial, permanente, que historicamente
desrespeita os direitos de seus moradores. São comuns os relatos de transgressões
e violência policial, no entanto, em nome de uma „Política‟ centrada em um bem
maior, a segurança da Cidade, tais questões são aceitas e normalizadas, assumindo
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o papel de um estado de exceção permanente. Nos novos campos a morte não é
mais a morte, mas alguma coisa infinitamente mais escandalosa, pois não se morre
apenas, mas se produz cadáveres de forma cotidiana. Cadáveres sem morte, não
homens, apenas seres viventes e indesejados, cujo falecimento é rebaixado ao grau
de produção em série.
5 - Conclusão
Mediante o entrelaçamento estratégico dos dois paradigmas, do estado de
exceção e do inimigo interno, define-se uma ordem em que é impossível diferenciar
a guerra e a paz. Nessa perspectiva, o Estado, o medo e a violência se transformam
em um único sistema, onde uma das bases dessa tríade serve para justificar as
atitudes do outro, tornando difícil distinguir cada um desses elementos. Desta forma,
as UPPs são a militarização, representam a exceção tornada como regra, e
consolidam uma lógica de controle social/espacial necessário para a implementação
de um Estado Policial nas Favelas.
Não estamos diante de uma politica de Segurança Pública, mas de um projeto
de cidade, uma cidade excludente para os pobres, elitizada e mercantilizada. O
„totalitarismo moderno‟ pode ser definido como a instauração através do estado de
exceção, de uma guerra civil legal, que permite a eliminação física não apenas dos
adversários políticos, mas de categorias inteiras de cidadãos que, por uma razão ou
outra, pareçam não se integrar neste sistema político.
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