A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO A EXCEÇÃO COMO REGRA: AS FORÇAS POLICIAIS E A CONSTRUÇÃO DOS TERRITÓRIOS DA VIOLÊNCIA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO LEONARDO FREIRE MARINO1 Resumo: A sensação de que a violência nos centros urbanos atinge patamares cada vez mais elevados tornou-se comum. Tal sensação, parece nos levar a um quadro de barbárie e de violência generalizada. Ao passo que ficamos amedrontados passamos a viver cada vez mais em ambientes vigiados e controlados, onde os aparatos de segurança são uma constante. Vivemos em um mundo em que esperamos por uma segurança integral, que os riscos de vitimização desapareçam e que possamos viver permanentemente protegidos. É sobre as relações entre o Estado, através dos aparatos de segurança pública, e os diferentes estratos sociais que o presente artigo se assentará. Seu objetivo reside em discutir de que maneira a exceção e a apartação social se materializam espacialmente na Cidade do Rio de Janeiro. Palavras-chave: Geografia da Violência; Forças Policias; Rio de Janeiro Abstract: The feeling that violence in urban centers reaches ever higher levels became common. Such sensation, seems to lead us to a barbaric framework and widespread violence. While we were afraid we lived increasingly monitored and controlled environments, where security devices are a constant. We live in a world where we waited for a full security, that the risks of victimization disappear and we can live permanently protected. It's about the relationship between the State, through the public security apparatus, and the different social strata that this article will sit. Their goal lies to discuss how the exception and social apartheid materialize spatially in the city of Rio de Janeiro. Key-words: Geography of Violence ; Cops forces ; Rio de Janeiro 1 Doutor em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. E-mail de contato: [email protected] 339 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO 1 - Introdução “As pessoas dormem tranquilamente à noite porque existem homens brutos dispostos a praticar violência em seu nome” George Orwell Atualmente, temos a sensação de que a violência nos grandes centros urbanos atinge patamares cada vez mais elevados. Tal sensação, parece nos levar a um quadro de barbárie e de violência generalizada. Ao passo que ficamos amedrontados passamos a viver cada vez mais em ambientes vigiados e controlados, onde os aparatos de segurança são uma constante. Vivemos em um mundo em que esperamos por uma segurança integral, que os riscos de vitimização desapareçam e que possamos viver permanentemente protegidos. A aguda e crônica sensação de insegurança e de medo é um efeito colateral da convicção de que, com as capacidades adequadas e os esforços necessários, é possível uma segurança completa, permanente e integral. Os índices de criminalidade violenta, mas do que produzirem vítimas diretas, produzem um gigantesco contingente de vítimas indiretas, vítimas que encontram nas taxas criminais, em conversas informais e nos meios de comunicação as bases para o cálculo subjetivo de probabilidades de vitimização. A disseminação do medo pela sociedade leva a produção de manifestações culturais cada vez mais amparadas pela banalização da violência. Coletivamente instituído, o medo, tende a se personificar em atores e grupos sociais específicos, o que faz com que determinados estereótipos sejam construídos e aceitos. Sobre olhares estereotipados, diversos indivíduos, especialmente, os oriundos das camadas mais empobrecidas da sociedade, passam a ser encarados como a fonte de diversos males sociais e, gradativamente, a serem objeto das ações que buscam solucionar tais problemas. Frente a este processo, a violência assume um papel de causa e efeito, uma vez que representa um dos principais motivos do medo e uma das formas mais usuais de intervenção empregada. O medo generalizado, obsessivo e a insegurança difusa, que podem ser encontrados em qualquer lugar e em todos os estratos 340 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO sociais, permanecem em constante simbiose, em um processo de auto alimentação, de causa e efeito. Ao passo que a violência assusta a todos os cidadãos, ela é encarada como solução para as tensões provenientes da generalização do medo pelos gestores públicos. Pautada pela simbiose entre causa e efeito, as medidas arbitrárias, violentas e discriminatórias, instituídas pelo aparato estatal passam a ser legitimadas e transformam as vítimas e algozes e, novamente, em vítimas. É sobre as relações estabelecidas entre o Estado, através dos aparatos institucionais de segurança pública, e os diferentes estratos sociais existentes na Cidade do Rio de Janeiro que o presente artigo se assentará. Seu objetivo reside em discutir de que maneira a exceção, a transgressão de direitos e apartação social se materializam espacialmente na Cidade do Rio de Janeiro. 2 - O poder do Estado e o Direito de Fazer Morrer Giorgio Agamben, em seu livro intitulado Estado de Exceção, publicado no Brasil em 2004, procurou esclarecer o que ele considerava como uma contradição central nos regimes democráticos contemporâneos, o fato de que, no exercício cotidiano de suas práticas políticas, os Estados aplicariam ações e medidas que poderiam ser classificadas como formas totalitárias de governo. Para Agamben (2004), o „estado de exceção‟ teria suas origens atreladas aos primórdios de formação do Estado Democrático de Direito, sobretudo, à época da primeira Assembleia Constituinte Francesa (1789/1791), que instituiu por decreto o que na época se convencionou chamar de „estado de sítio‟. De maneira resumida, o estado de sítio significaria a suspensão da lei com o objetivo de defesa da própria lei. Ele constituiria um mecanismo de suspensão do regime democrático com vistas a salvação do próprio regime. O estado de sítio apresentaria um caráter de utilização emergencial, sendo empregado apenas em momentos de crises de grandes magnitudes, como guerras, insurreições e convulsões sociais. Presentemente, vivenciamos um intenso e contínuo processo de utilização de medidas excepcionais. Vivenciamos a exceção transmutada em normalidade, sendo utilizada cotidianamente por diversos governos. O resultado da utilização indiscriminada de medidas excepcionais tem sido a formação de um cenário de 341 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO indeterminação política entre a Democracia e o Absolutismo, sobretudo, pelo fato de que o cenário que emerge desse processo se assemelha a uma circunstância de guerra civil permanente, um „estado de exceção permanente‟. Diferentemente de sua origem, o estado de exceção permanente não se apresenta como uma medida extrajurídica e arbitrária de supressão de direitos estabelecidos, pelo contrário, o estado de exceção permanente aparece como norma inserida nas doutrinas jurídicas vigentes2. A exceção tomada como regra se manifesta no caráter rotineiro dos assassinatos em massa ocorridos em nome do Estado e da Segurança de determinados grupos sociais. É sobre a relação entre a morte objetivada pelo Estado que se encontraria o princípio político da „soberania moderna‟. Ao traçar o limite entre a proteção e a morte, a soberania moderna, politiza o fenômeno da vida ao inclui-la e exclui-la da esfera jurídica, motivo pelo qual podemos afirmar a existência de um regime biopolítico que ao passo em que incentiva a vida de alguns estabelece a morte de outros como processo dialético. Na modernidade, a vida e seus fenômenos vitais se politizaram, ao passo que a política passou a versar exatamente sobre os fenômenos inerentes a existência humana. Medidas relacionadas à saúde pública, as condições de trabalho, ao controle de imigração, a proibição e ao controle do consumo de drogas servem para revelar a eminente natureza biopolítica das diversas políticas públicas. Fato, especialmente, evidenciado quando pensamos nas vidas tomadas como categorias e dispositivos de um poder que as tratam como vidas expostas e administradas. Pensam-se imediatamente nos indivíduos considerados como sem-papéis, seres de pouca relevância social, encarados como refugos da sociedade, objetos de campos muito reais, mas também, nos consumidores de drogas, nos desempregados, nos refugiados e em todos os seres passíveis de ações corretivas e adestrastes3. 2 “A declaração de um estado de exceção é progressivamente substituída por uma generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica normal de governo”. AGAMBEN, Giorgio. 2004: 27-28. 3 “A dinâmica de uma sociedade ‘do descarte’, como a apelidaram escritores como Alvin Tofler (1970), começou a ficar evidente durante os anos 60. Ela significa mais do que jogar fora bens produzidos (criando um monumental problema sobre o que fazer com o lixo); significa também ser capaz de atirar fora valores, estilos de vida, relacionamentos estáveis, apego a coisas, edifícios, lugares, pessoas e modos adquiridos de agir e ser. (...) Por intermédio desses mecanismos (altamente eficazes forçadas a lidar com a descartabilidade, a novidade e as perspectivas de obsolescência instantânea.” HARVEY, David. 2007:258. 342 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO Em vista das dimensões que o poder biopolítico assume em nossos dias, os episódios de violência estatal vivenciados nas periferias e áreas pobres das grandes cidades, especialmente, naqueles casos em que a polícia e os grupos criminalizados, produzem um espaço de indistinção e indeterminação em que a autoridade, legal ou ilegal, se encontra diante da vida sem significado e importância que pode ser descartada a qualquer momento, ganham significado de procedimento normalizado e não de fato esporádico. Em nome da manutenção da vida de alguns se exige a destruição da vida de outros. É justamente em nome da sacralidade da vida que se determina aquela que pode ser exterminada. O preso, o favelado, o migrante e o imigrante, em suma, o pobre e o miserável das modernas Democracias Liberais ou dos velhos redutos autoritários constituem figuras que confirmam o caráter biopolítico e aporético da política contemporânea4. A obsessão pela segurança tem reforçado esse quadro, contribuindo ainda mais, para a construção de aparatos repressivos e, principalmente, constituindo a justificativa necessária para destinar todo esse aparato para os indesejados. O estado de exceção, no qual a vida nua é, ao mesmo tempo, excluída e capturada pelo ordenamento, constituí, na verdade, em seu apartamento, o fundamento oculto sobre o qual repousa o inteiro sistema político contemporâneo5. Ao passo que as sociedades de controle extrapolam os limites da coerção, atuando de forma ilimitada e extrapolando os limites dos aparelhos espacialmente localizados, a exceção tornase regra e a violência assume proporções significativas. No cenário atual, quando as suas fronteiras desaparecem e se indeterminam, a vida nua que o habita libera-se na cidade e torna-se simultaneamente o sujeito e o objeto do ordenamento territorial e de seus conflitos, o ponto comum tanto da organização do poder estatal quanto da emancipação dele. É sobre este cenário, em que o estado de exceção torna-se permanente, que a seguir estaremos discutindo 4 “(...) a violência parece a tal ponto corresponder a um novo paradigma, ele próprio inscrito no contexto geral da crise da modernidade, é que ela parece, bem mais do que antes, carregada significações mais culturais que sociais, ligada a atores que se definem acima de tudo por uma identidade. Purificação étnica, sectarismo, integrismo, fundamentalismo, etc.: o vocabulário corrente remete constantemente à imagem de movimentos e de atores cuja violência é tanto mais terrível na medida em que não se acomoda com nenhum tipo de negociação, nenhum compromisso e que veicula significações que são necessariamente da ordem do tudo ou nada.” WIEVIORKA, Michel. 1997:34. 5 AGAMBEN, Giorgio. 2002:16-17. 343 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO os efeitos desse processo sobre o espaço das cidades e especialmente sobre os locus da vida dos indesejados, as chamadas Favelas. 3 - As Favelas: os campos do mundo contemporâneo Nas primeiras décadas do século XXI, a urbanização atingiu índices elevadíssimos no mundo. O processo de urbanização acelerado atinge, especialmente, os países mais pobres, que presenciam a multiplicação de moradias precárias situadas, muitas vezes, em áreas insalubres. A superurbanização, como apontado por Mike Davis (2006) tem sido impulsionada pela reprodução e ampliação da pobreza e não pela oferta de empregos e melhoria na qualidade de vida6. Davis (2006) acredita que neste cenário, marcado pelo crescimento da população pobre urbana, existam provavelmente mais de 200 mil Favelas em todo o mundo, concentrando em cada uma delas uma população que varia de algumas centenas de pessoas a mais de 1 milhão seres humanos. Desta forma, podemos afirmar que a maior parte da população mundial vive ou viverá em áreas urbanas, porém, não contará com melhorias sociais e programas assistenciais. Em todo o mundo, as elites pós-coloniais herdaram e reproduziram as marcas físicas das cidades coloniais segregadas. Mesmo com o processo de libertação nacional e dos históricos discursos de liberdade e de justiça social, o zoneamento colonial não foi abandonado e os espaços urbanos se estruturaram preservando os privilégios de classe e a exclusividade espacial. O enclausuramento urbano, ao longo deste processo, representa uma „guerra social incessante‟ na qual o Estado intervém regularmente em nome do „progresso‟ e do „embelezamento‟ e até mesmo da justiça social para os pobres, para redesenhar as fronteiras espaciais em prol de proprietários de terrenos. Como na Paris do passado, marcada pelas intervenções de Haussmann, a reconstrução urbana ainda luta para maximizar ao mesmo tempo o lucro particular e o controle social. A escala contemporânea de remoção populacional é imensa. Anualmente, milhares de indivíduos, tanto aqueles que têm a posse legal quanto os invasores, são despejados à força de bairros do mundo 6 DAVIS, Mike. 2006:58. 344 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO subdesenvolvido7. Nos países mais empobrecidos, as populações pauperizadas temem os eventos internacionais de alto nível, pois os mesmos acarretam verdadeiras cruzadas de „limpeza da cidade’. Os favelados, neste sentido, sabem que são a „sujeira‟, a „escória‟ ou a „praga‟ que seus governos preferem que o mundo não veja. Desde a década de 1970, tornou-se lugar-comum para os governos do mundo justificar a remoção de Favelas como modo indispensável de combater o crime. Os moradores dos bairros pobres, considerados como „produtores‟ da violência humana, segundo a crença de que a miséria tornaria o homem violento, são, em realidade, suas maiores vítimas. A indústria da segurança dirige os planos de urbanismo, os escritórios de arquitetura trabalham sob as ordens da polícia ou, em outras palavras, sob o auspício da segurança pública. Todo esse cenário, quando associado a definição de Agamben (2002) de que o Campo é um território colocado fora do ordenamento jurídico normal, mas que em seu funcionamento não representa um espaço externo, encontramos na cidade moderna, sob a forma de Favelas, Guetos e Periferias, o Campo constituindo o principal espectro da „vida nua‟, da vida que não merece ser vivida. Neste sentido, o caso brasileiro é esclarecedor, pois o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ao conceituar as Favelas como „aglomerados subnormais‟ acaba por definir uma distinção espacial entre espaços considerados normais e anormais. O subnormal se torna uma categoria pertencente à normalidade, mas que, permanece exterior a ela. Deste modo, a Favela torna-se um híbrido, localizado entre o Direito e a exceção, no qual os dois termos se tornam indiscerníveis. No mesmo sentido, os indivíduos que residem nestes espaços são vítimas, enclausuradas, geridas e controladas. Tal fato não quer dizer que os indivíduos que habitam esses espaços não desenvolvam estratégias de existência. As Favelas existem, igualmente, porque são espaços de resistência, locais em que as populações mais pauperizadas buscam 7 “E como os sans-culottes expulsos dos seus antigos quartiers por Haussmann – a quem Blanqui apostrofou uma famosa reclamação – ‘estão cansados de grandiosos atos homicidas (...) essa vasta troca de pedras pelas mãos do despotismo’. Também estão exasperados com a antiga linguagem da modernização que os define como ‘entraves humanos’.” DAVIS, Mike. 2006:106. 345 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO viver e democratizar o espaço das cidades. Em outras palavras, o que é apartação também é, por outro lado, a luta pela permanência na cidade, pelo usufruto do espaço, diante do Mercado e do Estado. Ao abandono das condições políticas de acesso à Cidadania as populações Faveladas tornam-se bandidas, ou, em outras palavras, assumem o seu „Bando‟, a sua condição de exceção em relação à lei. 4 - O Caso do Rio de Janeiro: o exemplo das UPP’s Os elevados índices de violência criminal presenciados na Cidade do Rio de Janeiro e retratados nos diversos veículos de comunicação tornaram o debate em torno da segurança pública essencial. A população da Cidade do Rio de Janeiro, em vista da sensação de insegurança e do medo socialmente compartilhado passou a cobrar das autoridades medidas que permitissem resolver as questões inerentes a criminalidade, sobretudo, a criminalidade violenta associada ao tráfico de drogas. O cenário de medo generalizado sofreu uma grande alteração nos últimos anos, passando a vigorar uma gradual e sensível melhoria na percepção de segurança. A chave do sucesso residiria na implantação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). As UPPs, de maneira resumida, se apoiariam na visão de que a presença ostensiva e permanente das forças policiais em algumas Favelas seria capaz de reduzir a dinâmica criminal na totalidade do espaço urbano. Tal visão, extremamente simplificadora da realidade, despreza a complexidade que envolve a dinâmica do crime, especialmente, no que diz respeito a sua inerente temporalidade e espacialidade. É quase que senso comum entre os estudiosos do crime que análises com recortes temporais muito pequenos não permitem afirmações categóricas ou precisas, o que deriva, sobretudo, da sazonalidade intrínseca à dinâmica criminal. A variação numérica da criminalidade é natural, constante e ininterrupta, portanto, alterações com acréscimos ou decréscimos são comuns e devem ser esperadas. Não obstante, afirmações precisas e definitivas, como as que são realizadas atualmente, só se efetivam como verdadeiras, em recortes temporais longos. Infelizmente, os números que envolvem as análises das UPPs não respeitam o fundamento analítico da temporalidade, uma vez que se apoiam em um recorte de 346 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO tempo reduzido, de no máximo cinco anos, tempo de implantação da primeira UPP na cidade do Rio de Janeiro. Neste sentido, são ilustrativas as discussões que envolvem o número total de homicídios na cidade do Rio de Janeiro. Para os defensores da política estadual, existe uma relação direta entre a implantação das UPPs e a diminuição do número de crimes contra a vida. Contudo, uma análise mais apurada desmistifica tal visão. De acordo com dados divulgados pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), desde o ano de 2001, há uma tendência de redução do número de homicídios em algumas cidades brasileiras, especialmente, São Paulo e Rio de Janeiro. No mesmo sentido, os dados divulgados pelo SIM-Datasus, apontam que entre 2000 e 2009, ocorreu uma redução de aproximadamente 80% no número de homicídios do Rio de Janeiro. Portanto, mesmo em um período anterior a implantação das UPPs havia uma tendência de decréscimo no número de assassinatos. Tais dados não são desprezíveis e contribuem efetivamente para uma visão mais crítica e desmistificada da política de segurança implantada no Rio de Janeiro, pois situa o movimento de redução do número de homicídios em um período posterior ao de implantação da primeira UPP e apontam para um processo que não pode ser atribuído diretamente a essa política. No que tange a espacialidade, podemos afirmar que por sua natureza, o espaço das cidades é marcado pela heterogeneidade, pelas diferenças econômicas existentes entre os bairros e distritos ou pelas diversas dinâmicas sociais que lhe dão sentido. As cidades são constituídas de múltiplos territórios que se unem em uma trama diária. A criminalidade e a violência ilustram a multiplicidade territorial, pois não atingem todos os espaços e habitantes com a mesma intensidade, existem claramente territórios marcados pela violência e pelo crime, concentrando as vítimas e a maior parte dos autores, e territórios com reduzida dinâmica criminal. Assim, de acordo com os dados divulgados pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, as maiores vítimas da criminalidade violenta estão concentradas em bairros e Favelas das zonas norte e oeste da Cidade. Área que por sua histórica ocupação concentram uma população mais pauperizada. De acordo com o portal de notícias UOL, os bairros localizados no subúrbio carioca concentram uma taxa de homicídios 347 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO de até 1.900% do que a de bairros mais abastados da cidade. Isso significa, por exemplo, que um morador de Acari, bairro extremamente pobre localizado na zona norte da capital fluminense, corre um risco 20 vezes maior de ser assassinado do que um morador de Copacabana, localizado na área mais abastada da Cidade. Mesmo com números impressionantes, a „Geografia do Crime‟ parece não ter sido levado em consideração na escolha das Comunidades que seriam ocupadas pelas forças policiais. A distribuição espacial das „Comunidades Pacificadas‟ demonstra claramente que o objetivo planejado não se associa a preservação da vida dos estratos sociais mais vulneráveis, mas o estabelecimento de estratégias de segurança associadas aos Megaeventos que o Rio de Janeiro sediou e sediará nos próximos anos. Não se tratam de Favelas localizadas nas áreas mais violentas da Cidade ou com os maiores índices de homicídios, são comunidades territorialmente localizadas no chamado „Polígono de Segurança dos Jogos‟. Não devemos admitir que as principais diretrizes da Política de Segurança centre-se apenas em interesses passageiros. Se tal fato é admitido, devemos acreditar que não estamos diante de uma Política Pública, mas apenas de uma Estratégia de Segurança voltada para os Megaeventos. Para que a Política de Segurança estadual se efetive, as ações pensadas devem focar em políticas voltadas para a promoção e consolidação de uma cidade mais igualitária e democrática, o que não será obtido apenas com a ocupação territorial de Favelas estrategicamente localizadas. Não obstante, as forças policias da Cidade continuam a operar de forma extremamente violenta, cometendo transgressões legais cotidianamente, não respeitando os direitos dos moradores das áreas ocupadas. Apenas com mudanças concretas na forma de atuação das instituições governamentais que operam nesta área é que a realidade violenta vivenciada no Rio de Janeiro será superada. Infelizmente, parece que estamos distantes de medidas neste sentido. Com as UPPs as Favelas tornaram campos de concentração, senzalas vigiadas e monitoradas por uma estrutura policial, permanente, que historicamente desrespeita os direitos de seus moradores. São comuns os relatos de transgressões e violência policial, no entanto, em nome de uma „Política‟ centrada em um bem maior, a segurança da Cidade, tais questões são aceitas e normalizadas, assumindo 348 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO o papel de um estado de exceção permanente. Nos novos campos a morte não é mais a morte, mas alguma coisa infinitamente mais escandalosa, pois não se morre apenas, mas se produz cadáveres de forma cotidiana. Cadáveres sem morte, não homens, apenas seres viventes e indesejados, cujo falecimento é rebaixado ao grau de produção em série. 5 - Conclusão Mediante o entrelaçamento estratégico dos dois paradigmas, do estado de exceção e do inimigo interno, define-se uma ordem em que é impossível diferenciar a guerra e a paz. Nessa perspectiva, o Estado, o medo e a violência se transformam em um único sistema, onde uma das bases dessa tríade serve para justificar as atitudes do outro, tornando difícil distinguir cada um desses elementos. Desta forma, as UPPs são a militarização, representam a exceção tornada como regra, e consolidam uma lógica de controle social/espacial necessário para a implementação de um Estado Policial nas Favelas. Não estamos diante de uma politica de Segurança Pública, mas de um projeto de cidade, uma cidade excludente para os pobres, elitizada e mercantilizada. O „totalitarismo moderno‟ pode ser definido como a instauração através do estado de exceção, de uma guerra civil legal, que permite a eliminação física não apenas dos adversários políticos, mas de categorias inteiras de cidadãos que, por uma razão ou outra, pareçam não se integrar neste sistema político. 6 - Referências Bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. 142p. 2ª Edição. ______________ Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. 207p. DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo. 2006. 272p. GARLAND, David. The Culture of Control : Crime and Social Order in Contemporary Society. Chicago : The University of Chicago Press. 2001. 320p. 349 A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO HARVEY, David. A Condição Pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola. 2007. 349p. LEMGRUBER, Julita et al. Quem vigia os vigias? 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