Agosto - Clube Mundo

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ANO 3
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Nº 4
TIRAGEM:
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AGOSTO/2007
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28 000 EXEMPLARES
RATZINGER E A HISTÓRIA DE
“NUESTRA AMÉRICA”
D
José Arbex Jr
Editor-geral de Mundo
Declarações do papa Bento
XVI sobre o catolicismo e
sua relação com a história
da colonização da América
Latina geram polêmica
Vaticano/Reprodução
uas afirmações recentes defendidas pela papa Bento
XVI (Joseph Ratzinger) causaram grande polêmica mundial. Na declaração do Vaticano Dominus Iesus (Senhor
Jesus), publicada em 10 de julho, Ratzinger afirma que
o catolicismo é a única religião verdadeira, e que apenas
na Igreja Católica “subsiste a Igreja de Cristo”. A segunda declaração, feita em 13 de maio, durante a sua
visita ao Brasil, na abertura da 5ª Celam (Conferência
Geral do Episcopado Latino-Americano), diz que nunca houve a imposição do catolicismo aos povos originários das Américas (pré-colombianos), os quais, intuitivamente, buscavam a “fé verdadeira” contida nos
ensinamentos de Cristo.
Não se trata aqui, em absoluto, de discutir questões
relativas à fé, mas sim de construir o quadro mais geral
de referências em cujo contexto se dá a polêmica.
A Dominus Iesus reitera as teses desenvolvidas em um
documento da Congregação para a Doutrina da Fé, de 5
de setembro de 2000, escrito pelo próprio Ratzinger e, à
época, aprovado pelo papa João Paulo II. Como dizem
os seus críticos, incluindo os teólogos Hans Küng, Leonardo Boff e Jon Sobrinho, as teses refletem uma visão
do mundo e do catolicismo fechada em si mesma, conservadora e tradicionalista.
Nesse sentido, elas vão na contra-mão do espírito do
Concílio Vaticano II, convocado pelo papa João XXIII e
realizado entre 1962 e 1965. O Concílio (assembléia de
religiosos) teve o significado de uma grande reforma da
Igreja Católica, que abriu as portas para uma aproximação maior com o mundo e passou a tratar de problemas
sociais até então ignorados. Isso permitiu, entre outras
coisas, o surgimento da Teologia da Libertação (mais conhecida pelo seu lema: “opção preferencial pelos pobres”),
repudiada por João Paulo II e por Bento XVI.
Coerentemente, as afirmações de Bento XVI na Celam
reiteram a mesma visão de uma Igreja Católica absolutamente auto-centrada e pouco disposta ao diálogo com
outras vertentes religiosas. O seu discurso pode ser lido
numa dupla chave: ao mesmo tempo em que afirma a
supremacia do catolicismo sobre outras manifestações
religiosas, também faz um ataque direto, ainda que não
explicitado, à Teologia da Libertação:
“A utopia de voltar a dar vida às religiões précolombinas, separando-as de Cristo e da Igreja Católica,
não seria um progresso, mas um retrocesso. Na realidade, seria uma involução a um momento histórico anco-
rado no passado. A sabedoria dos povos originários os
levou, afortunadamente, a fazer uma síntese entre as suas
culturas e a fé cristã que os missionários lhes ofereciam.
Daí nasceu a rica e profunda religiosidade popular, na
qual aparece a alma dos povos latino-americanos.”
A Teologia da Libertação propõe, ao contrário, a
interlocução entre o catolicismo e as religiões dos povos
originários. Aposta no renascimento de seus valores religiosos, culturais e morais como uma forma de dignificar
as nações que foram oprimidas durante séculos pelo co-
lonizador europeu. Ao comentar o discurso de Ratzinger,
a Confederação dos Povos de Nacionalidade Quetchua
do Equador afirmou:
“Seguramente, o papa ignora que os representantes
da Igreja Católica, com honrosas exceções, foram cúmplices, encobridores e beneficiários de um dos genocídios
mais horrorosos que a humanidade já presenciou (...). As
igrejas cristãs, e particularmente a Igreja Católica, têm
uma imensa dívida com Cristo, com os pobres do mundo e com os Povos e Nações Indígenas que resistiram a
tal barbárie. Ainda que o Estado espanhol e o Vaticano
não tenham como pagar pelas conseqüências do monstruoso genocídio, o chefe da Igreja Católica deveria, ao
menos, reconhecer o erro cometido, como fez seu
antecessor, João Paulo II, em relação ao Holocausto nazista.”
Mas, se é impossível sustentar a versão de que o catolicismo não foi manchado pelo sangue dos povos originários, tampouco pode-se afirmar que a ação dos religiosos missionários tenha sempre sido idêntica à dos colonizadores espanhóis e portugueses. Houve, mesmo, situações de conflito uns e outros.
No início do século XVI, o Vaticano advertia os colonizadores contra a prática de escravizar os povos originários. Uma bula papal de 1537 proclamava, explicitamente, a liberdade dos índios das Américas A estratégia católica era voltada para a criação de uma grande nação indígena cristã, claro que sob total controle da Companhia
de Jesus, ampliando com isso o poder da Igreja Católica,
abalado, na Europa, pela reforma luterana, junto às monarquias.
Os jesuítas pretendiam, também, desenvolver uma
política que transformasse o índio num ser dócil e produtivo, organizados em aldeamentos e “reduções”. Em
conformidade com essa estratégia, o jesuíta José de
Anchieta escreveu em 1595 sua Arte de Gramática da Língua mais Usada na Costa do Brasil, o tupi. Foi a primeira
tentativa de construir uma sistematização literária de uma
linguagem indígena.
Assim, a diferença de atitude em relação aos indígenas, se produziu vários conflitos entre colonos e jesuítas,
não significa que os religiosos estivessem dispostos a lutar contra a selvageria dos colonizadores. A divergência
dava-se no plano das estratégias de poder.
HISTÓRIA & CULTURA HISTÓRIA & CULTURA M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
PALPITE FELIZ
Há 70 anos, morria Noel Rosa, o poeta da
Vila Isabel (RJ) responsável pelo
amadurecimento do samba, lançado 20 anos
antes, com a gravação do disco Pelo Telefone,
de Donga e Peru-dos-pés-frios
drade, que ali esteve, por volta de 1928, buscando inspiração para um dos capítulos de seu célebre Macunaíma”,
como está ilustrado em Heitor dos Prazeres – Sua Arte e
Seu Tempo, organizado pelo filho, Heitorzinho dos Prazeres e Alba Lirio.
Quando Tia Ciata já beirava os 60, e mesmo assim continuava com o remelexo nas ancas, um time de sambistas
novatos, dignos de vestir a camisa da seleção brasileira do
samba, se formava: João da Baiana, Pixinguinha, Donga,
Heitor dos Prazeres, Cartola, Caninha, entre outros.
E muitos deste elenco brigaram pela autoria de Pelo
Telefone, pois os sambas da casa tinham o dedo de todo
mundo: marcava-se o ritmo e conforme a festa se animava, versos eram introduzidas no ritmo do bater das palmas. Nelson Sargento, compositor da Estação Primeira
Mangueira à época que a escola tinha em suas fileiras
compositores do calibre de Cartola e Carlos Cachaça,
compara a estrutura do primeiro samba gravado com o
que se faz hoje no samba de roda. “Você já foi a uma
roda de samba? O cara vai e põe um refrão e todo mundo
começa a cantar um verso”.
Outra discussão em torno de Pelo Telefone é se de fato
a música poderia ser considerada um samba. Nem os
“O
Cenas de um cortiço da Rua da Alfândega
(Rio de Janeiro) no começo do século XX; corso
durante o carnaval carioca
Reprodução
chefe da folia pelo telefone manda me avisar...” que
há 90 anos o primeiro samba, justamente o dos versos
acima, foi gravado. A imponência do fato começa pela
força do nome do autor da melodia: Ernesto Joaquim.
Para a história do samba, Donga, apelido que o consagrou como um dos grandes no samba. O parceiro, autor
da letra, foi Mauro de Almeida – no reduto dos bambas,
o apelido não era tão digno assim: Peru-dos-Pés-Frios.
Pelo Telefone foi gravado em 1917 por Bahiano, um
dos cantores da Casa Edison, a primeira gravadora brasileira. Apesar das diversas discussões em torno da música –
seja em relação a autoria, ao ritmo (se era samba realmente) e ao status de primeiro samba gravado – o fato é que
Donga a registrou em 1916, com direito a certificado
emitido pela Biblioteca Nacional para comprovar.
Mas em 2007 também se comemora outra data importante para o samba: há 70 anos “toda a cidade soluça/
comovida se debruça/sobre o caixão de Noel...”, como
registrou o poeta Sebastião Fonseca. Aos 26 anos, período suficiente para compor mais de 250 músicas, Noel
Rosa deixou de agitar as ruas de Vila Isabel e foi batucar
pelas bandas lá de cima – ou, dependendo do ponto de
vista, pelas bandas de baixo.
A relação entre a gravação de Pelo Telefone e morte de
Noel vai além da coincidência de terem ocorrido em anos
de final 7. O samba de Donga ajudou a estabelecer um
gênero que hoje é conhecido como o símbolo de identidade nacional. Já a obra de Noel consolidou a formatação do
samba à maneira que ouvimos hoje, seja em relação ao
ritmo, acompanhamento e tempo de música.
autores se entedem: Donga, que compôs a melodia, a
define como “samba amaxixado”. Para Mauro de Almeida,
autor da letra, a música é um “tango-samba”. Os versos
de Heitor dos Prazeres ilustram a mistura dos ritmos:
“Baião, baião, baião/Filho do Maracatu,/Descendente do
lundu,/Neto do cateretê”. Nelson Sargento sintetiza: “O
samba é o final de todos os ritmos que existem nesse país”.
Reprodução: Terreiro de Umbanda, 1959. Coleção da Família
Heitor Augusto
Donga e a casa da Tia Ciata
Quem a freqüentou ou conhece as histórias dos sambistas que lá pousavam sua criatividade para rituais religiosos seguidos de muita música assegura que Pelo Telefone surgiu das animadas reuniões da casa da Tia Ciata.
Nascida em Salvador em 1854, aos 22 anos a dona da
casa, cujo nome de batismo é Hilária Batista de Almeida,
deixou a Bahia e ancorou na “Pequena África”, termo
cunhado por Heitor dos Prazeres para a região carioca
onde vivia uma grande quantidade de negros ex-escravos
ou nascidos livres.
A casa de Tia Ciata, mãe-de-santo e cozinheira de mão
cheia, reunia pessoas de diversas camadas sociais. Entre
eles, um escritor que usou a matriarca como personagem
em livro. “Um longo corredor levava a uma segunda sala
reservada ao culto do candomblé, para a alegria e alívio
do povo negro e dos muitos curiosos de outras raças e
crenças, entre eles o escritor e folclorista Mário de An2007 AGOSTO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA
HISTÓRIA
N G E A M&
UN
CULTURA
D O PA N GHISTÓRIA
E A M U N D&
O PA
CULTURA
N G E A 2-HC
Reprodução
Noel Rosa, o poeta da Vila Isabel
A chegada do bebê Noel de Medeiros Rosa ao berço
de Vila Isabel quase foi impedida em duas ocasiões. Na
véspera do nascimento, aconteceu o segundo levante de
marinheiros negros contra as humilhações de seus superiores hierárquicos, episódio conhecido como Revolta da
Chibata. Depois de terem estremecido a então capital
Rio de Janeiro em 22 de novembro de 1910, os marinheiros foram traídos pelo presidente Hermes da Fonse-
ca, que prometera anistia aos revoltosos. Na segunda tentativa, o governo já estava de sobreaviso e reprimiu violentamente o movimento.
A outra culpada que quase impediu o nascimento de
Noel foi a bacia de dona Martha, sua mãe, estreita para o
menino de quatro quilos que tentava escapar do ventre
materno. Os médicos decidiram pelo emprego do fórceps. O bebê finalmente veio ao mundo, mas com uma
seqüela que seria motivo de chacota por quase toda a
vida: o maxilar deformado, que lhe rendeu o apelido de
“queixinho” na escola.
Em 1929, Noel dá os primeiros passos rumo ao reconhecimento musical ao ingressar no Bando de Tangarás,
grupo liderado por Almirante e composto também por
Braguinha, Henrique Brito e Alvinho. A primeira composição, a embolada Festa no Céu, foi escrita no ano seguinte. À
época, o Brasil iniciou um intenso processo de transformações culturais e políticas. Em 22, aconteceu a Semana de
Arte Moderna, que fortaleceu as discussões sobre a identidade brasileira. Oito anos depois, Getúlio liderou uma revolução que desbancou a política do café com leite –
revezamento de paulistas e mineiros na presidência do País.
Na mesma década, dois livros estremeceram a intelectualidade brasileira: Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, publicado em 1933, que repensou o estigma
do mestiço no Brasil; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque
de Holanda, publicado em 1936, que detectou a cordialidade como traço de nossa sociedade.
No repente nordestino, arte popular que duas pessoas improvisam frases e rimas, o duelo é saudável. Mas não só no
repente florescem duelos musicais. A história do samba presenciou diversas disputas entre compositores. Algumas saudáveis, outras que por pouco não foram para as vias de fato.
Uma das polêmicas mais tradicionais é entre Noel Rosa e Wilson Batista que, inicialmente, envolveu mais que uma
disputa pessoal: estava em jogo a concepção de malandro. Em 1933, o então desconhecido Wilson, com 20 anos e recém
chegado do interior do Rio de Janeiro, compôs Lenço no Pescoço. Malandro para ele tinha de ter navalha, chapéu, lenço e
arrastar o tamanco pra marcar presença.
Não se sabe muito bem se Noel se incomodou apenas porque via a figura do malandro de outra maneira ou se havia
outro motivo envolvido na disputa dos dois. O fato é que o poeta da Vila, que já tinha prestígio, respondeu com Rapaz
folgado, na qual ele manda o adversário jogar fora a navalha, pegar papel e lápis, arranjar um amor e escrever uma canção.
Wilson não se fez de rogado e arrematou a Mocinho da Vila, mandando Noel deixar em paz quem é malandro de fato.
Desta composição em diante, há algumas polêmicas dentro da própria polêmica. Na primeira edição do CD com as
músicas do duelo, de 1956, a resposta de Noel à letra de Wilson seria Palpite Infeliz. Nelson Sargento, parceiro de Cartola
e Carlos Cachaça, diz que a música era uma devolução a outro compositor. “Olha com atenção a letra e veja onde ele
responde ao Wilson. Não há resposta direta”. Na polêmica ainda constam a agressiva Frankestein e as irônicas Conversa
Fiada e Terra de Cego, de Wilson. Do lado de Noel, João Ninguém e Feitiço da Vila.
Outro duelo que entrou para a história do samba foi entre Sinhô e Heitor dos Prazeres. “Os compositores faziam
samba e se reuniam pra mostrar as músicas. Antes
dos carnavais, eles mostravam nas festas. A mais tradicional era a festa da Penha”, relembra Heitorzinho
dos Prazeres, filho de um dos envolvidos na disputa. Justamente na festa da Penha que a rusga começou. Heitor compôs Gosto que me enrosco, mas a
letra foi apresentada como autoria exclusiva de
Sinhô. O autor de direito foi cobrar e como resposta ouviu uma das frases mais conhecidas da música
popular: “samba é como passarinho: é de quem pegar primeiro”, disse Sinhô.
Heitor dos Prazeres foi para cima e compôs Olha
ele...Cuidado..., que teve como resposta a “Segura
um Pouco”. Sem muitos prazeres na disputa, Heitor aproveitou o título de Rei do Samba que Sinhô
havia ganhado em 1927 e compôs, com ironia, O
Rei dos Meus Sambas. O rival tentou impedir a gravação, sem sucesso. A disputa terminou por aí, e
por pouco a briga não foi além – Sinhô morreu em
1930, de tuberculose.
Reprodução: Samba no Asfalto, 1959. Coleção da Família
Reprodução
De Frankestein à Rei dos Meus Sambas
Esta mesma cordialidade Noel havia retratado em
Cordiais Saudações, de 1931. “Em vão te procurei, notícias suas não encontrei/Eu hoje sinto saudades/Daqueles
dez mil réis que te emprestei”. Com extrema polidez, o
personagem vai cobrar o dinheiro que emprestara a um
enrolão que de necessitado não tinha nada – afinal, Noel
manda beijos para o cachorro, ao passarinho e à empregada do devedor.
O primeiro sucesso veio por meio da composição Com
que roupa, dos famosos versos “Com que roupa que eu
vou/Ao samba que você me convidou”. A música se propagou pelas ruas da cidade rapidamente, pois a identificação foi imediata: Noel falava para um público sem recursos financeiros, mas que sempre dava um jeito de se
virar nas situações adversas. Cantou a situação de muitos
brasileiros. Em torno da maneira de enxergar o brasileiro
e, em particular, o malandro, Noel Rosa e Wilson Batista
protagonizaram uma das maiores disputas do samba
(veja o Box).
“Com que roupa que eu vou/Ao samba que
você me convidou?”
A interpretação que Noel deu a Com que roupa foi
uma mudança radical na história da música popular. Até
então, só se sobressaiam cantores com vozerão, o chamado “dó de peito” – como o de Bahiano, que interpretou o
primeiro samba gravado, Pelo Telefone. Noel pegou o gingado do ritmo e transportou para a sua voz, quase que
falando em alguns trechos da música. A mesma roupagem ele deu a Gago apaixonado, sátira a um jovem enamorado que ficou gago devido a falsidade da amada. O
jeito de cantar, sem esticar notas e sílabas, abriu caminho
para intérpretes consagrados, como Nora Ney, que praticamente falava, João Gilberto e Nara Leão.
A passagem de Noel pelas bandas terráqueas é recheada de histórias pitorescas. Uma delas envolve a covardia
do poeta, bom no samba e ruim de briga. O compositor
teve a cabrocha que flertava roubada por um marinheiro
musculoso. Em apuros, Noel bateu à porta de Heitor dos
Prazeres, de conhecida habilidade na capoeira. Chegando ao bar onde o marinheiro estava, o amigo bom de
pernada chegou colocando banca e sua fama passou de
boca em boca em instantes. O marinheiro, amendrontado, foi-se embora e deixou a cabrocha. “Os dois ficaram
tomando vermute com amendoim e acabaram mandando a mulher embora para beberem sossegados”, conta o
filho Heitorzinho dos Prazeres. A noite terminou com
Noel dando palpites na última estrofe de uma letra que
Heitor estava arredondando. Resultado: Pierrô Apaixonado, estrondoso sucesso do carnaval de 1936, no qual
Noel o compositor da Vila consta como parceiro.
O fim da trajetória de Noel foi cravado em 1937, aos
26 anos. A saúde não resistiu aos incontáveis cigarros e
garrafas de cerveja, consumidos mesmo quando o compositor já estava com a tuberculose em estágio avançado.
“Adeus cantor da seresta/Que tinhas sempre a alma em
festa/Ainda quando sofrias...”.
Heitor Augusto cursa jornalismo na PUC-SP,
integra a equipe do jornal laboratório
Contraponto e trabalha como estagiário da ONG
Transparência Brasil e no projeto Deu no Jornal
(www.deunojornal.org.br)
AGOSTO 2007
HC-3 HISTÓRIA
PA N G E A M
&UCULTURA
N D O PA N G
HISTÓRIA
EAMUND
& OCULTURA
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
GV LIQUIDOU FASE DE OURO DO SAMBA
O
Heitor Augusto
H&C – A palavra “construção” no título
do seu livro dá idéia de que a formatação
do samba foi algo planejado, pensado racionalmente...
Jorge Caldeira – Mas é isso mesmo. Não
é simples pegar uma cultura de base oral e
transformá-la. Numa roda de samba,
quem toca e quem ouve não estão separados pelo consumo, não há mercado. Hoje,
parece fácil entender que o compositor
tem um tempo curto pra fazer uma música que caiba na cera de disco, é uma coisa
completamente diferente da música que
era feita pra durar a tarde inteira. A canção te conta uma história, e quem está
contando esta história está longe de quem
está ouvindo. Quem construiu dessa maneira foi um grupo de músicos do Rio de
Janeiro originalmente ligado a terreiros.
H&C – Nesse sentido, o Donga seria um
pioneiro?
JC – O samba que ouvimos hoje foi
construído por Donga, Pixinguinha,
Caninha, João da Baiana, Sinhô e Ismael
Silva. A coisa foi acabada pelo Noel Rosa,
que não era desse grupo de origem, mas
que acabou de conceber e imaginar o que
era a figura do compositor de massa.
H&C – Como o samba se encaixou nas
transformações que o Rio vinha passando desde o início do século XX?
JC – O samba começou a ser ouvido por
mais gente que o grupo de origem. Mas
são duas coisas diferentes: a música da cidade, base de onde saiu o samba, e a de
estúdio, do disco – que se tornaria tam-
Divulgação
Para pesquisador, a ditadura e não o mercado excluiu o
pessoal mais pobre do mundo da MPB
Reprodução: Baile de Máscaras, Eliseu Visconti
samba no formato que conhecemos
hoje não emergiu de repente. Faz parte de
um processo no qual os pioneiros sabiam
como se apropriar de uma nova tecnologia que estava surgindo: a gravação. O
samba gravado criou uma figura inexistente até então nesse gênero musical: o
mercado.
A afirmação é de Jorge Caldeira, autor
de A Construção do Samba – cuja versão
original foi escrita em 1988 como uma
dissertação de mestrado em sociologia –,
lançado este ano pelo selo Mameluco. No
mesmo livro, a versão integral da biografia Noel Rosa, de costas para o mar, lançada
em 1982 pela Editora Brasiliense.
Nesta entrevista exclusiva, Caldeira
afirma também que o governo Vargas “ajudou a retirar o valor de criação técnica das
figuras populares brasileiras”. Confira:
Jorge Caldeira
bém a do rádio. O compositor popular se
tornou a figura que andava pelas cidades,
ia e gravava a história. Contava isso com
recado musical.
H&C – Qual foi o papel de Getúlio
Vargas no processo de construção do samba? Quais atitudes foram determinantes,
positiva e negativamente?
JC – Vamos separar: durante a República
Velha [1889-1930], a regulação do mercado era muito pequena, a administração não
achava que samba fosse assunto de governo. Com Getúlio é diferente: ele era um
ditador com projeto de ditadura. A primeira
iniciativa foi mudar radicalmente o caráter
do rádio para concessão do governo. Quan-
do ele se tornou de fato ditador, com o Estado Novo [1937-1945], instalou duas
medidas. De cara, proibiu o tema da malandragem. O malandro era a figura essencial da narração da música porque ele conhecia o morro e o asfalto. A música deveria exaltar o trabalho. A segunda medida
foi criar uma rádio estatal, a Rádio Nacional. Para dar audiência ele formatou a música brasileira no molde da americana, com
grande orquestração. A junção de controle
do rádio mais censura praticamente liquidou a época de ouro do samba.
Foi a ditadura e não o mercado que excluiu o pessoal mais pobre do mundo da
música popular. Não por acaso, quase todos os compositores dos anos 40 são, digamos assim, “gente de bem”, usando a
expressão do tempo.
H&C – Mesmo assim a rádio Nacional
marcou uma geração...
JC – Sim. O problema é que a rádio Nacional criou um salto: os de dentro e os
de fora. Quem estava dentro era privilegiado. O grosso foi excluído. O Getúlio
sabia fazer isso. O plano de criar a “música para a família” foi acidental.
H&C – E esse processo modificou a figura do malandro?
JC – Não só. Ajudou muito a retirar o
valor de criação técnica das figuras popu-
lares brasileiras. Aí sim o cara que domina
a rádio é quem diz como é a música, não
mais o compositor. Donga e os outros são
subvalorizados ao extremo na historiografia da música, aparecem só como figuras
populares do morro, mas eles eram gênios da parte difícil, a parte considerada
“branca” do processo. Esse valor foi retirado com a ditadura do Vargas.
H&C – Mas só o Vargas se apropriou da
música popular, outros governos não o
fizeram?
JC – O estrago criativo do Getúlio durou
até se formar uma geração inteira, o que
viria acontecer apenas na bossa nova. Algumas músicas regionais brasileiras, como
o baião e o frevo começaram a ganhar mais
repercussão. Já o samba, por causa desse
controle, ficou mais difícil evoluir musicalmente. Não estava mais nas mãos do
compositor popular.
H&C – No livro você diz que a obra de
Noel Rosa problematizou a figura do malandro. De que maneira ele fez isso?
JC – Na transformação da música de festa
para a música que conta uma história, o
malandro foi se consolidando como o
narrador. Os que faziam isso de verdade
sabiam que não era malandro empírico –
mistura de criminoso, cafetão, boa-vida –,
mas sim a figura que conta a história.
Essa confusão entre malandro de verdade e
o malandro que canta o samba está presente na polêmica do Noel Rosa e Wilson Batista. Noel estabeleceu a diferença e criou o
malandro como figura lírica de narração.
O Brasil é uma sociedade muito excludente
e o compositor popular é uma das primeiras
figuras que atravessa a sociedade inteira. A
música fez isso antes da literatura. Não é fácil achar um personagem literário que trafegue entre as várias classes e ambientes sociais. Tem lá o Memórias de um Sargento de
Milícias, que talvez tenha este tipo, o Major
Vidigal. Mas é muito raro.
H&C – Você acha que há espaço hoje
para esse trânsito?
JC – A sociedade brasileira ainda continua muito longe disso. A cultura ainda
preza muito distinções sociais de origem
e de cor, status, ainda há um desejo de
nobreza. É excludente economicamente e
pouco integrada simbolicamente. As figuras que trafegam na sociedade inteira são
poucas no Brasil.
2007 AGOSTO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA
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