■ ANO 3 ■ Nº 4 TIRAGEM: ■ AGOSTO/2007 ■ 28 000 EXEMPLARES RATZINGER E A HISTÓRIA DE “NUESTRA AMÉRICA” D José Arbex Jr Editor-geral de Mundo Declarações do papa Bento XVI sobre o catolicismo e sua relação com a história da colonização da América Latina geram polêmica Vaticano/Reprodução uas afirmações recentes defendidas pela papa Bento XVI (Joseph Ratzinger) causaram grande polêmica mundial. Na declaração do Vaticano Dominus Iesus (Senhor Jesus), publicada em 10 de julho, Ratzinger afirma que o catolicismo é a única religião verdadeira, e que apenas na Igreja Católica “subsiste a Igreja de Cristo”. A segunda declaração, feita em 13 de maio, durante a sua visita ao Brasil, na abertura da 5ª Celam (Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano), diz que nunca houve a imposição do catolicismo aos povos originários das Américas (pré-colombianos), os quais, intuitivamente, buscavam a “fé verdadeira” contida nos ensinamentos de Cristo. Não se trata aqui, em absoluto, de discutir questões relativas à fé, mas sim de construir o quadro mais geral de referências em cujo contexto se dá a polêmica. A Dominus Iesus reitera as teses desenvolvidas em um documento da Congregação para a Doutrina da Fé, de 5 de setembro de 2000, escrito pelo próprio Ratzinger e, à época, aprovado pelo papa João Paulo II. Como dizem os seus críticos, incluindo os teólogos Hans Küng, Leonardo Boff e Jon Sobrinho, as teses refletem uma visão do mundo e do catolicismo fechada em si mesma, conservadora e tradicionalista. Nesse sentido, elas vão na contra-mão do espírito do Concílio Vaticano II, convocado pelo papa João XXIII e realizado entre 1962 e 1965. O Concílio (assembléia de religiosos) teve o significado de uma grande reforma da Igreja Católica, que abriu as portas para uma aproximação maior com o mundo e passou a tratar de problemas sociais até então ignorados. Isso permitiu, entre outras coisas, o surgimento da Teologia da Libertação (mais conhecida pelo seu lema: “opção preferencial pelos pobres”), repudiada por João Paulo II e por Bento XVI. Coerentemente, as afirmações de Bento XVI na Celam reiteram a mesma visão de uma Igreja Católica absolutamente auto-centrada e pouco disposta ao diálogo com outras vertentes religiosas. O seu discurso pode ser lido numa dupla chave: ao mesmo tempo em que afirma a supremacia do catolicismo sobre outras manifestações religiosas, também faz um ataque direto, ainda que não explicitado, à Teologia da Libertação: “A utopia de voltar a dar vida às religiões précolombinas, separando-as de Cristo e da Igreja Católica, não seria um progresso, mas um retrocesso. Na realidade, seria uma involução a um momento histórico anco- rado no passado. A sabedoria dos povos originários os levou, afortunadamente, a fazer uma síntese entre as suas culturas e a fé cristã que os missionários lhes ofereciam. Daí nasceu a rica e profunda religiosidade popular, na qual aparece a alma dos povos latino-americanos.” A Teologia da Libertação propõe, ao contrário, a interlocução entre o catolicismo e as religiões dos povos originários. Aposta no renascimento de seus valores religiosos, culturais e morais como uma forma de dignificar as nações que foram oprimidas durante séculos pelo co- lonizador europeu. Ao comentar o discurso de Ratzinger, a Confederação dos Povos de Nacionalidade Quetchua do Equador afirmou: “Seguramente, o papa ignora que os representantes da Igreja Católica, com honrosas exceções, foram cúmplices, encobridores e beneficiários de um dos genocídios mais horrorosos que a humanidade já presenciou (...). As igrejas cristãs, e particularmente a Igreja Católica, têm uma imensa dívida com Cristo, com os pobres do mundo e com os Povos e Nações Indígenas que resistiram a tal barbárie. Ainda que o Estado espanhol e o Vaticano não tenham como pagar pelas conseqüências do monstruoso genocídio, o chefe da Igreja Católica deveria, ao menos, reconhecer o erro cometido, como fez seu antecessor, João Paulo II, em relação ao Holocausto nazista.” Mas, se é impossível sustentar a versão de que o catolicismo não foi manchado pelo sangue dos povos originários, tampouco pode-se afirmar que a ação dos religiosos missionários tenha sempre sido idêntica à dos colonizadores espanhóis e portugueses. Houve, mesmo, situações de conflito uns e outros. No início do século XVI, o Vaticano advertia os colonizadores contra a prática de escravizar os povos originários. Uma bula papal de 1537 proclamava, explicitamente, a liberdade dos índios das Américas A estratégia católica era voltada para a criação de uma grande nação indígena cristã, claro que sob total controle da Companhia de Jesus, ampliando com isso o poder da Igreja Católica, abalado, na Europa, pela reforma luterana, junto às monarquias. Os jesuítas pretendiam, também, desenvolver uma política que transformasse o índio num ser dócil e produtivo, organizados em aldeamentos e “reduções”. Em conformidade com essa estratégia, o jesuíta José de Anchieta escreveu em 1595 sua Arte de Gramática da Língua mais Usada na Costa do Brasil, o tupi. Foi a primeira tentativa de construir uma sistematização literária de uma linguagem indígena. Assim, a diferença de atitude em relação aos indígenas, se produziu vários conflitos entre colonos e jesuítas, não significa que os religiosos estivessem dispostos a lutar contra a selvageria dos colonizadores. A divergência dava-se no plano das estratégias de poder. HISTÓRIA & CULTURA HISTÓRIA & CULTURA M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PALPITE FELIZ Há 70 anos, morria Noel Rosa, o poeta da Vila Isabel (RJ) responsável pelo amadurecimento do samba, lançado 20 anos antes, com a gravação do disco Pelo Telefone, de Donga e Peru-dos-pés-frios drade, que ali esteve, por volta de 1928, buscando inspiração para um dos capítulos de seu célebre Macunaíma”, como está ilustrado em Heitor dos Prazeres – Sua Arte e Seu Tempo, organizado pelo filho, Heitorzinho dos Prazeres e Alba Lirio. Quando Tia Ciata já beirava os 60, e mesmo assim continuava com o remelexo nas ancas, um time de sambistas novatos, dignos de vestir a camisa da seleção brasileira do samba, se formava: João da Baiana, Pixinguinha, Donga, Heitor dos Prazeres, Cartola, Caninha, entre outros. E muitos deste elenco brigaram pela autoria de Pelo Telefone, pois os sambas da casa tinham o dedo de todo mundo: marcava-se o ritmo e conforme a festa se animava, versos eram introduzidas no ritmo do bater das palmas. Nelson Sargento, compositor da Estação Primeira Mangueira à época que a escola tinha em suas fileiras compositores do calibre de Cartola e Carlos Cachaça, compara a estrutura do primeiro samba gravado com o que se faz hoje no samba de roda. “Você já foi a uma roda de samba? O cara vai e põe um refrão e todo mundo começa a cantar um verso”. Outra discussão em torno de Pelo Telefone é se de fato a música poderia ser considerada um samba. Nem os “O Cenas de um cortiço da Rua da Alfândega (Rio de Janeiro) no começo do século XX; corso durante o carnaval carioca Reprodução chefe da folia pelo telefone manda me avisar...” que há 90 anos o primeiro samba, justamente o dos versos acima, foi gravado. A imponência do fato começa pela força do nome do autor da melodia: Ernesto Joaquim. Para a história do samba, Donga, apelido que o consagrou como um dos grandes no samba. O parceiro, autor da letra, foi Mauro de Almeida – no reduto dos bambas, o apelido não era tão digno assim: Peru-dos-Pés-Frios. Pelo Telefone foi gravado em 1917 por Bahiano, um dos cantores da Casa Edison, a primeira gravadora brasileira. Apesar das diversas discussões em torno da música – seja em relação a autoria, ao ritmo (se era samba realmente) e ao status de primeiro samba gravado – o fato é que Donga a registrou em 1916, com direito a certificado emitido pela Biblioteca Nacional para comprovar. Mas em 2007 também se comemora outra data importante para o samba: há 70 anos “toda a cidade soluça/ comovida se debruça/sobre o caixão de Noel...”, como registrou o poeta Sebastião Fonseca. Aos 26 anos, período suficiente para compor mais de 250 músicas, Noel Rosa deixou de agitar as ruas de Vila Isabel e foi batucar pelas bandas lá de cima – ou, dependendo do ponto de vista, pelas bandas de baixo. A relação entre a gravação de Pelo Telefone e morte de Noel vai além da coincidência de terem ocorrido em anos de final 7. O samba de Donga ajudou a estabelecer um gênero que hoje é conhecido como o símbolo de identidade nacional. Já a obra de Noel consolidou a formatação do samba à maneira que ouvimos hoje, seja em relação ao ritmo, acompanhamento e tempo de música. autores se entedem: Donga, que compôs a melodia, a define como “samba amaxixado”. Para Mauro de Almeida, autor da letra, a música é um “tango-samba”. Os versos de Heitor dos Prazeres ilustram a mistura dos ritmos: “Baião, baião, baião/Filho do Maracatu,/Descendente do lundu,/Neto do cateretê”. Nelson Sargento sintetiza: “O samba é o final de todos os ritmos que existem nesse país”. Reprodução: Terreiro de Umbanda, 1959. Coleção da Família Heitor Augusto Donga e a casa da Tia Ciata Quem a freqüentou ou conhece as histórias dos sambistas que lá pousavam sua criatividade para rituais religiosos seguidos de muita música assegura que Pelo Telefone surgiu das animadas reuniões da casa da Tia Ciata. Nascida em Salvador em 1854, aos 22 anos a dona da casa, cujo nome de batismo é Hilária Batista de Almeida, deixou a Bahia e ancorou na “Pequena África”, termo cunhado por Heitor dos Prazeres para a região carioca onde vivia uma grande quantidade de negros ex-escravos ou nascidos livres. A casa de Tia Ciata, mãe-de-santo e cozinheira de mão cheia, reunia pessoas de diversas camadas sociais. Entre eles, um escritor que usou a matriarca como personagem em livro. “Um longo corredor levava a uma segunda sala reservada ao culto do candomblé, para a alegria e alívio do povo negro e dos muitos curiosos de outras raças e crenças, entre eles o escritor e folclorista Mário de An2007 AGOSTO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA HISTÓRIA N G E A M& UN CULTURA D O PA N GHISTÓRIA E A M U N D& O PA CULTURA N G E A 2-HC Reprodução Noel Rosa, o poeta da Vila Isabel A chegada do bebê Noel de Medeiros Rosa ao berço de Vila Isabel quase foi impedida em duas ocasiões. Na véspera do nascimento, aconteceu o segundo levante de marinheiros negros contra as humilhações de seus superiores hierárquicos, episódio conhecido como Revolta da Chibata. Depois de terem estremecido a então capital Rio de Janeiro em 22 de novembro de 1910, os marinheiros foram traídos pelo presidente Hermes da Fonse- ca, que prometera anistia aos revoltosos. Na segunda tentativa, o governo já estava de sobreaviso e reprimiu violentamente o movimento. A outra culpada que quase impediu o nascimento de Noel foi a bacia de dona Martha, sua mãe, estreita para o menino de quatro quilos que tentava escapar do ventre materno. Os médicos decidiram pelo emprego do fórceps. O bebê finalmente veio ao mundo, mas com uma seqüela que seria motivo de chacota por quase toda a vida: o maxilar deformado, que lhe rendeu o apelido de “queixinho” na escola. Em 1929, Noel dá os primeiros passos rumo ao reconhecimento musical ao ingressar no Bando de Tangarás, grupo liderado por Almirante e composto também por Braguinha, Henrique Brito e Alvinho. A primeira composição, a embolada Festa no Céu, foi escrita no ano seguinte. À época, o Brasil iniciou um intenso processo de transformações culturais e políticas. Em 22, aconteceu a Semana de Arte Moderna, que fortaleceu as discussões sobre a identidade brasileira. Oito anos depois, Getúlio liderou uma revolução que desbancou a política do café com leite – revezamento de paulistas e mineiros na presidência do País. Na mesma década, dois livros estremeceram a intelectualidade brasileira: Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, publicado em 1933, que repensou o estigma do mestiço no Brasil; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, publicado em 1936, que detectou a cordialidade como traço de nossa sociedade. No repente nordestino, arte popular que duas pessoas improvisam frases e rimas, o duelo é saudável. Mas não só no repente florescem duelos musicais. A história do samba presenciou diversas disputas entre compositores. Algumas saudáveis, outras que por pouco não foram para as vias de fato. Uma das polêmicas mais tradicionais é entre Noel Rosa e Wilson Batista que, inicialmente, envolveu mais que uma disputa pessoal: estava em jogo a concepção de malandro. Em 1933, o então desconhecido Wilson, com 20 anos e recém chegado do interior do Rio de Janeiro, compôs Lenço no Pescoço. Malandro para ele tinha de ter navalha, chapéu, lenço e arrastar o tamanco pra marcar presença. Não se sabe muito bem se Noel se incomodou apenas porque via a figura do malandro de outra maneira ou se havia outro motivo envolvido na disputa dos dois. O fato é que o poeta da Vila, que já tinha prestígio, respondeu com Rapaz folgado, na qual ele manda o adversário jogar fora a navalha, pegar papel e lápis, arranjar um amor e escrever uma canção. Wilson não se fez de rogado e arrematou a Mocinho da Vila, mandando Noel deixar em paz quem é malandro de fato. Desta composição em diante, há algumas polêmicas dentro da própria polêmica. Na primeira edição do CD com as músicas do duelo, de 1956, a resposta de Noel à letra de Wilson seria Palpite Infeliz. Nelson Sargento, parceiro de Cartola e Carlos Cachaça, diz que a música era uma devolução a outro compositor. “Olha com atenção a letra e veja onde ele responde ao Wilson. Não há resposta direta”. Na polêmica ainda constam a agressiva Frankestein e as irônicas Conversa Fiada e Terra de Cego, de Wilson. Do lado de Noel, João Ninguém e Feitiço da Vila. Outro duelo que entrou para a história do samba foi entre Sinhô e Heitor dos Prazeres. “Os compositores faziam samba e se reuniam pra mostrar as músicas. Antes dos carnavais, eles mostravam nas festas. A mais tradicional era a festa da Penha”, relembra Heitorzinho dos Prazeres, filho de um dos envolvidos na disputa. Justamente na festa da Penha que a rusga começou. Heitor compôs Gosto que me enrosco, mas a letra foi apresentada como autoria exclusiva de Sinhô. O autor de direito foi cobrar e como resposta ouviu uma das frases mais conhecidas da música popular: “samba é como passarinho: é de quem pegar primeiro”, disse Sinhô. Heitor dos Prazeres foi para cima e compôs Olha ele...Cuidado..., que teve como resposta a “Segura um Pouco”. Sem muitos prazeres na disputa, Heitor aproveitou o título de Rei do Samba que Sinhô havia ganhado em 1927 e compôs, com ironia, O Rei dos Meus Sambas. O rival tentou impedir a gravação, sem sucesso. A disputa terminou por aí, e por pouco a briga não foi além – Sinhô morreu em 1930, de tuberculose. Reprodução: Samba no Asfalto, 1959. Coleção da Família Reprodução De Frankestein à Rei dos Meus Sambas Esta mesma cordialidade Noel havia retratado em Cordiais Saudações, de 1931. “Em vão te procurei, notícias suas não encontrei/Eu hoje sinto saudades/Daqueles dez mil réis que te emprestei”. Com extrema polidez, o personagem vai cobrar o dinheiro que emprestara a um enrolão que de necessitado não tinha nada – afinal, Noel manda beijos para o cachorro, ao passarinho e à empregada do devedor. O primeiro sucesso veio por meio da composição Com que roupa, dos famosos versos “Com que roupa que eu vou/Ao samba que você me convidou”. A música se propagou pelas ruas da cidade rapidamente, pois a identificação foi imediata: Noel falava para um público sem recursos financeiros, mas que sempre dava um jeito de se virar nas situações adversas. Cantou a situação de muitos brasileiros. Em torno da maneira de enxergar o brasileiro e, em particular, o malandro, Noel Rosa e Wilson Batista protagonizaram uma das maiores disputas do samba (veja o Box). “Com que roupa que eu vou/Ao samba que você me convidou?” A interpretação que Noel deu a Com que roupa foi uma mudança radical na história da música popular. Até então, só se sobressaiam cantores com vozerão, o chamado “dó de peito” – como o de Bahiano, que interpretou o primeiro samba gravado, Pelo Telefone. Noel pegou o gingado do ritmo e transportou para a sua voz, quase que falando em alguns trechos da música. A mesma roupagem ele deu a Gago apaixonado, sátira a um jovem enamorado que ficou gago devido a falsidade da amada. O jeito de cantar, sem esticar notas e sílabas, abriu caminho para intérpretes consagrados, como Nora Ney, que praticamente falava, João Gilberto e Nara Leão. A passagem de Noel pelas bandas terráqueas é recheada de histórias pitorescas. Uma delas envolve a covardia do poeta, bom no samba e ruim de briga. O compositor teve a cabrocha que flertava roubada por um marinheiro musculoso. Em apuros, Noel bateu à porta de Heitor dos Prazeres, de conhecida habilidade na capoeira. Chegando ao bar onde o marinheiro estava, o amigo bom de pernada chegou colocando banca e sua fama passou de boca em boca em instantes. O marinheiro, amendrontado, foi-se embora e deixou a cabrocha. “Os dois ficaram tomando vermute com amendoim e acabaram mandando a mulher embora para beberem sossegados”, conta o filho Heitorzinho dos Prazeres. A noite terminou com Noel dando palpites na última estrofe de uma letra que Heitor estava arredondando. Resultado: Pierrô Apaixonado, estrondoso sucesso do carnaval de 1936, no qual Noel o compositor da Vila consta como parceiro. O fim da trajetória de Noel foi cravado em 1937, aos 26 anos. A saúde não resistiu aos incontáveis cigarros e garrafas de cerveja, consumidos mesmo quando o compositor já estava com a tuberculose em estágio avançado. “Adeus cantor da seresta/Que tinhas sempre a alma em festa/Ainda quando sofrias...”. Heitor Augusto cursa jornalismo na PUC-SP, integra a equipe do jornal laboratório Contraponto e trabalha como estagiário da ONG Transparência Brasil e no projeto Deu no Jornal (www.deunojornal.org.br) AGOSTO 2007 HC-3 HISTÓRIA PA N G E A M &UCULTURA N D O PA N G HISTÓRIA EAMUND & OCULTURA PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O GV LIQUIDOU FASE DE OURO DO SAMBA O Heitor Augusto H&C – A palavra “construção” no título do seu livro dá idéia de que a formatação do samba foi algo planejado, pensado racionalmente... Jorge Caldeira – Mas é isso mesmo. Não é simples pegar uma cultura de base oral e transformá-la. Numa roda de samba, quem toca e quem ouve não estão separados pelo consumo, não há mercado. Hoje, parece fácil entender que o compositor tem um tempo curto pra fazer uma música que caiba na cera de disco, é uma coisa completamente diferente da música que era feita pra durar a tarde inteira. A canção te conta uma história, e quem está contando esta história está longe de quem está ouvindo. Quem construiu dessa maneira foi um grupo de músicos do Rio de Janeiro originalmente ligado a terreiros. H&C – Nesse sentido, o Donga seria um pioneiro? JC – O samba que ouvimos hoje foi construído por Donga, Pixinguinha, Caninha, João da Baiana, Sinhô e Ismael Silva. A coisa foi acabada pelo Noel Rosa, que não era desse grupo de origem, mas que acabou de conceber e imaginar o que era a figura do compositor de massa. H&C – Como o samba se encaixou nas transformações que o Rio vinha passando desde o início do século XX? JC – O samba começou a ser ouvido por mais gente que o grupo de origem. Mas são duas coisas diferentes: a música da cidade, base de onde saiu o samba, e a de estúdio, do disco – que se tornaria tam- Divulgação Para pesquisador, a ditadura e não o mercado excluiu o pessoal mais pobre do mundo da MPB Reprodução: Baile de Máscaras, Eliseu Visconti samba no formato que conhecemos hoje não emergiu de repente. Faz parte de um processo no qual os pioneiros sabiam como se apropriar de uma nova tecnologia que estava surgindo: a gravação. O samba gravado criou uma figura inexistente até então nesse gênero musical: o mercado. A afirmação é de Jorge Caldeira, autor de A Construção do Samba – cuja versão original foi escrita em 1988 como uma dissertação de mestrado em sociologia –, lançado este ano pelo selo Mameluco. No mesmo livro, a versão integral da biografia Noel Rosa, de costas para o mar, lançada em 1982 pela Editora Brasiliense. Nesta entrevista exclusiva, Caldeira afirma também que o governo Vargas “ajudou a retirar o valor de criação técnica das figuras populares brasileiras”. Confira: Jorge Caldeira bém a do rádio. O compositor popular se tornou a figura que andava pelas cidades, ia e gravava a história. Contava isso com recado musical. H&C – Qual foi o papel de Getúlio Vargas no processo de construção do samba? Quais atitudes foram determinantes, positiva e negativamente? JC – Vamos separar: durante a República Velha [1889-1930], a regulação do mercado era muito pequena, a administração não achava que samba fosse assunto de governo. Com Getúlio é diferente: ele era um ditador com projeto de ditadura. A primeira iniciativa foi mudar radicalmente o caráter do rádio para concessão do governo. Quan- do ele se tornou de fato ditador, com o Estado Novo [1937-1945], instalou duas medidas. De cara, proibiu o tema da malandragem. O malandro era a figura essencial da narração da música porque ele conhecia o morro e o asfalto. A música deveria exaltar o trabalho. A segunda medida foi criar uma rádio estatal, a Rádio Nacional. Para dar audiência ele formatou a música brasileira no molde da americana, com grande orquestração. A junção de controle do rádio mais censura praticamente liquidou a época de ouro do samba. Foi a ditadura e não o mercado que excluiu o pessoal mais pobre do mundo da música popular. Não por acaso, quase todos os compositores dos anos 40 são, digamos assim, “gente de bem”, usando a expressão do tempo. H&C – Mesmo assim a rádio Nacional marcou uma geração... JC – Sim. O problema é que a rádio Nacional criou um salto: os de dentro e os de fora. Quem estava dentro era privilegiado. O grosso foi excluído. O Getúlio sabia fazer isso. O plano de criar a “música para a família” foi acidental. H&C – E esse processo modificou a figura do malandro? JC – Não só. Ajudou muito a retirar o valor de criação técnica das figuras popu- lares brasileiras. Aí sim o cara que domina a rádio é quem diz como é a música, não mais o compositor. Donga e os outros são subvalorizados ao extremo na historiografia da música, aparecem só como figuras populares do morro, mas eles eram gênios da parte difícil, a parte considerada “branca” do processo. Esse valor foi retirado com a ditadura do Vargas. H&C – Mas só o Vargas se apropriou da música popular, outros governos não o fizeram? JC – O estrago criativo do Getúlio durou até se formar uma geração inteira, o que viria acontecer apenas na bossa nova. Algumas músicas regionais brasileiras, como o baião e o frevo começaram a ganhar mais repercussão. Já o samba, por causa desse controle, ficou mais difícil evoluir musicalmente. Não estava mais nas mãos do compositor popular. H&C – No livro você diz que a obra de Noel Rosa problematizou a figura do malandro. De que maneira ele fez isso? JC – Na transformação da música de festa para a música que conta uma história, o malandro foi se consolidando como o narrador. Os que faziam isso de verdade sabiam que não era malandro empírico – mistura de criminoso, cafetão, boa-vida –, mas sim a figura que conta a história. Essa confusão entre malandro de verdade e o malandro que canta o samba está presente na polêmica do Noel Rosa e Wilson Batista. Noel estabeleceu a diferença e criou o malandro como figura lírica de narração. O Brasil é uma sociedade muito excludente e o compositor popular é uma das primeiras figuras que atravessa a sociedade inteira. A música fez isso antes da literatura. Não é fácil achar um personagem literário que trafegue entre as várias classes e ambientes sociais. Tem lá o Memórias de um Sargento de Milícias, que talvez tenha este tipo, o Major Vidigal. Mas é muito raro. H&C – Você acha que há espaço hoje para esse trânsito? JC – A sociedade brasileira ainda continua muito longe disso. A cultura ainda preza muito distinções sociais de origem e de cor, status, ainda há um desejo de nobreza. É excludente economicamente e pouco integrada simbolicamente. As figuras que trafegam na sociedade inteira são poucas no Brasil. 2007 AGOSTO M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA HISTÓRIA N G E A M& UN CULTURA D O PA N GHISTÓRIA E A M U N D& O PA CULTURA N G E A 4-HC