PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO MUSICAL Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais EMUFMG “O ENSINO DA GUITARRA ELÉTRICA NO BRASIL: PANORAMA E PERSPECTIVAS EDUCACIONAIS ENTRE OSTRAS E GRÃOS DE AREIA” PROFESSORA: CECÍLIA CAVALIERI FRANÇA ALUNO: FLÁVIO MATEUS DA SILVA 1. O som do século XX A guitarra, um dos sons mais marcantes do século passado, é vista como um dos instrumentos musicais mais importantes na música feita a partir da década de 1930 e 1940. Sua evolução, ao longo das décadas, acompanha as revoluções tecnológicas juntamente com as buscas feitas pelos guitarristas por maiores possibilidades de expressão no instrumento – pode haver dezenas de quilos em equipamentos (caixas amplificadoras de som, moduladores de som) por trás de um famoso som de guitarra. Além dos equipamentos que servem para produzir eletricamente o som da guitarra, existem modelos (guitarras acústicas, semi-acústicas, maciças), materiais (madeira, plástico, alumínio) e combinações em sua parte elétrica que geram uma outra infinidade de possibilidades sonoras. Não obstante, a guitarra apontou e aponta rumos (rótulos) para a música popular, tanto em níveis composicionais quanto em performáticos. 1.1 O ensino da guitarra Paralelamente, com a popularização de seu som, a guitarra desenvolveu uma linguagem própria, apresentando uma leitura inovadora dos idiomatismos de seus “antepassados”, como o violão e a guitarra havaiana (Caesar, 1999). Por conseqüência, surgiu uma nova “escola” para este instrumento musical; uma escola criada a partir de um novo som e um “novo jeito de ver o violão”; uma escola fundamentada na experimentação e, inicialmente, no auto-ditatismo. 1.1.1 O professor de guitarra O ensino da guitarra propriamente dito é muito recente. Caesar (1999, pg. 18) aponta que, no Brasil, “somente a partir dos anos 80 [1980] é que surgiu uma geração ‘oficial’ de professores realmente pré-dispostos a ensinar guitarra de maneira convicta e assumida”. Entretanto, apesar de extensa literatura (principalmente estadunidense), não há como existir um método específico de ensino de guitarra consensualmente reconhecido. Isso se deve não só pela vastidão do repertório e gostos pessoais dos aspirantes a 1 guitarristas, mas também pela própria formação dos professores, heterogênea1, em sintonia com a própria postura pouco ortodoxa da música popular. O guitarrista professor é uma opção dada pela profissão como performer. Não é necessariamente uma vocação. Assim, o quadro aqui observado é o do professor de guitarra que conhece (toca) assuntos específicos (guitarra no blues, por exemplo) e desenvolve seus métodos pessoais de ensino, oriundos da sua própria experiência de aprendizado. Ao se deparar com uma carreira dentro da área de ensino, como qualquer músico, é importante que o guitarrista expanda o seu repertório e, assim, o conhecimento dos estilos de se tocar guitarra. Isso o torna mais proficiente tanto como performer quanto educador. 1.1.2 O aluno de guitarra Embora o perfil do professor de guitarra já estar apresentando significativas mudanças, tornando-o mais “coringa” (“toca de tudo”), o aluno de guitarra ainda procura por professores especialistas. O estudante de guitarra naturalmente deseja aprender a tocar as músicas que escuta. Se ele escuta rock, ele irá procurar um orientador que conheça rock bem como suas especificidades (pop rock, hard rock, heavy metal, punk rock, rock progressivo etc). Os “alicerces” idiomáticos, por exemplo, para se tocar a guitarra das músicas da banda inglesa The Beatles são diferentes dos necessários para a execução das músicas do guitarrista brasileiro Pepeu Gomes - a única “intersecção” possível entre estas duas músicas seria o blues, a própria origem do vocabulário do rock. Ao longo das décadas de 1980 e 1990, o rock se fundiu com outras expressões (a música tecno, a música barroca, 1 Em guitarra, o aprendizado diverge até mesmo na adoção de notações musicais específicas. A extinta tablatura (notação antiga de violão) foi reincorporada pela guitarra. Trata-se de uma notação musical rústica através da indicação numérica das “notas”. Estas, são escritas em um diagrama que ilustra as cordas do instrumento. A adoção desta notação distancia os guitarristas da auto-suficiência como músico, desconhecendo o consagrado repertório notado em partitura. 2 o próprio jazz tradicional, músicas de diversas culturas), encontrando formas cada vez mais específicas no idioma da guitarra. Desta maneira, hoje, se um aspirante a guitarrista pretende tocar determinado repertório, determinados professores ainda se enquadrarão melhor ao que ele deseja aprender. 1.1.3 O ambiente de ensino O ambiente de ensino tem influência determinante na postura pedagógica do professor de guitarra. Entre os níveis Utópicos e Deliberativos de ação educacional propostos por Walsh (FRANÇA, s.d.) existem questões de implicações variadas pois, até o presente momento, em se tratando de iniciação ao instrumento, o Brasil aponta três situações: A) Escola de música: corpo docente formado por instrumentistas de várias áreas. O ingresso do aluno se dá por duas formas: vontade pessoal; incentivo ou imposição dos pais. A guitarra é um instrumento caro e é inviável aprendê-la consistentemente sem têla. Por este motivo, a presença desta, como disciplina, dá-se majoritariamente em escolas particulares cujos freqüentadores são de poder aquisitivo médio-alto. Nestas escolas, os cronogramas são moldados em função de performances periódicas, a fim de que os pais acompanhem os resultados do “investimento”; guitarra e teoria musical são ensinadas separadamente, sendo que as mensalidades podem ser mais caras caso o aluno deseje aprender mais. Nesta instância, não é interessante aos diretores – empresários – oferecer resistência aos alunos que não queiram aprender música2, se os mesmos buscam-na apenas como atividade de lazer. Desta maneira, cabe também aos professores de instrumento o papel de musicalizar seus alunos. 2 O ensino ideal de música é abrangente, envolve sua teoria bem como atividades distantes à performance das músicas de gosto do aluno. 3 B) Escola de guitarra: muito procuradas, o corpo docente destas escolas é formado exclusivamente por guitarristas “famosos”, cujo enfoque pedagógico é direcionado por estilos musicais específicos de cada professor. O estudante, durante anos, pode se especializar em jazz ou somente em rock. Neste caso, a procura e a escolha da escola são do próprio aluno, que não vê a guitarra como mero hobby, mas sim, como um meio para a formação de bandas e uma carreira como músico. Seus interesses não se confundem com os dos pais e a grade curricular da escola pode ser imposta e cobrada (apesar de priorizar a performance). C) Ensino particular: a forma mais procurada por alunos mais envolvidos com o instrumento; apresenta-se como o ambiente ideal – o mais próximo do nível Utópico em uma escola – de ensino da guitarra (ótima relação custo-benefício para professor e aluno). O professor preparado, em sua casa ou estúdio, pode dispor de todos os recursos possíveis para criar a sua didática. Nesta situação, o computador fornece os mais variados softwares para criar seções interativas do aluno com uma banda – playbacks, gravar performances em aula e exibir os mais variados materiais de áudio (repertório) e vídeo (workshops, vídeo-aulas, shows). As possibilidades de ensino são inesgotáveis e muitos professores criam seus próprios materiais (apostilas, cd’s) de estudo para, apesar da grande liberdade, apresentar um curso que possua início, meio e fim. 1.2 Para um ensino melhor de guitarra 1.2.1 Esquemas de Piaget Dentre os três ambientes de ensino da guitarra citados (ver 1.2.3), é perceptível que, na escola de música, o desafio do professor de instrumento (guitarra, no caso) é maior – pressupondo que este esteja preocupado com o ensino qualitativo da música. Dentro de pouco tempo, é preciso se fazer muito, ou o suficiente para obter os resultados que o professor (não os pais, alunos ou diretores) deseja construir. Dentro desta questão, a Psicologia Cognitiva, sobretudo a adoção dos esquemas de Piaget (BEYER, FRANÇA; 4 1995, 1997) despontou na vida do autor deste trabalho como uma poderosa linha de pensamento dentro do ensino. • Uma das questões básicas na introdução à guitarra, a de ensinar as partes que a constituem/constroem, foi pensada, após tentativas com diagramas existentes, através da proposta de o próprio aluno desenhar o seu instrumento – como trabalho domiciliar. Com os desenhos, percebemos que os alunos despertaram sua curiosidade – até então pequena – a respeito dos nomes das peças que compõem a guitarra e criaram uma visão mais detalhada da geometria da mesma. Indo além, tal atividade estimula a inteligência pictórica (ANTUNES, 1998) do aluno, numa perspectiva positiva com relação a uma sensibilidade a mais holística possível com relação às artes. • A guitarra, assim como a grande parte dos instrumentos de cordas dedilhadas, possui “fôrmas” (shapes) de escalas, arpejos e acordes que são idênticos em qualquer tonalidade. Não é preciso pensar nem em “notas pretas” – piano, nem em chaves extras – sopros. Desta forma, um acorde maior com uma determinada disposição dos dedos, irá se repetir igualmente por todas as tonalidades ao longo da escala do instrumento. Escalas e arpejos possuem também estes mesmos esquemas. Além do existente sistema “C – A – G – E – D”, que trata da natureza da repetição destes “shapes”, em aula, é possível despertar a criação de analogias pelos próprios alunos. As abstrações, que facilitam a assimilação dentro de um esquema pré-existente (BEYER, 1995), resultou em acordes que se parecem com animais e até em arpejos que lembram blocos em jogos eletrônicos (tetris). 5 1.2.2 C.A.P.: Composição, Apreciação e Performance Hargreaves (s. d., pg. 27) aponta: “Quase que sozinhos, os Beatles introduziram a idéia do músico pop escrevendo seus próprios materiais, e do cantor-compositor . Esta inovação que vem exercendo grande influência sobre jovens músicos desde então, é ainda mais significativa, pois agora esperamos que as crianças dentro da educação musical que ocorre na escola, sejam capazes também de compor, além de tocar e ouvir música [grifo nosso]”. França (1997, pg. 41) afirma: “Uma forte corrente dentro da filosofia da educação musical proclama a legitimidade de se promover um ensino no qual todas as crianças experimentem música através das atividades de composição, performance e apreciação [grifo nosso] (...) a experiência em uma modalidade do fazer musical pode enriquecer, reforçar e iluminar a experiência em outra modalidade”. A guitarra trouxe e acompanha o universo “pop”. Não podendo ser diferente, os estudantes de guitarra estão inseridos neste movimento e, sob a luz de Hargreaves, França e outros autores, entendemos que o ensino deste instrumento deve ser realizado sob a abordagem integradora (FRANÇA, 1997) entre Composição, Apreciação e Performance – C.A.P.. • De ordem prática, conseguimos abordar uma forma eficaz de integrar estas três modalidades em uma prática de ensino de repertório: ao observar que progressões de acordes poderiam classificar várias canções em um mesmo grupo, com o estudo da harmonia de Garota de Ipanema, por exemplo, foi possível conhecer a essência das harmonias de músicas (standards de jazz) como Desafinado e Take the A train. A progressão dos acordes da música I got Rhythm, de Gershwin, já foi classificada como “Rhythm changes”, dado um número incontável (mais de 2000) de músicas construídas sob a progressão do original. No ensino de improvisação no jazz, em um nível mais avançado, além da expansão do repertório, o aprendizado de apenas uma única música (standard) 6 resolveria todas as “dificuldades” improvisatórias existentes em várias outras da mesma família, ou esquema. Isso acontece da mesma maneira com músicas mais “jovens”, dos artistas que estão na mídia, e, por conseqüência, os de preferência da nova geração que quer aprender guitarra. Com uma única progressão de acordes, as músicas da banda “X” podem se tornar um esquema útil para se aprender os sucessos também da banda “Y”. O efeito desta percepção despertou em determinados alunos uma visão mais criteriosa a respeito do mercado fonográfico, identificando “fórmulas”, clichês que rotulam o que é bom ou ruim. O Axé poderia se generalizar pelo uso de progressões do tipo “I-VIm-IIm-V”; o rock usaria exaustivamente, há décadas, o “IV-V-VIm”. A identificação destas fórmulas, através da apreciação musical, com efeito trouxe um refinamento ao senso composicional dos alunos. Avaliando-os sob o “Modelo Espiral de Swanwick e Tillman” (FRANÇA, s.d.), é possível esperar que o nível composicional Vernacular fora superado por alguns, já trabalhando assim entre o Especulativo e Idiomático • A adoção dos esquemas também se apresentou extremamente útil para a integração entre a apreciação e a performance. Isto ocorreu ao abordarmos a linguagem melódica de guitarristas consagrados cujas músicas os alunos desejavam aprender. Uma questão normalmente tratada é sobre as “influências”; sobre quais materiais musicais foram estudados por um determinado guitarrista reconhecido pela mídia – generalizações são sempre possíveis. Ao identificar estes pontos, foi possível delinear aulas não apenas voltadas para ensinar as músicas – processo lento, mas sim para disponibilizar as ferramentas melódicas – esquemas – para que o próprio aluno possa “tirar”3 essas músicas (uma analogia adotada foi a de que os exercícios são como “chuchus”, “jilós”, “beterrabas”, coisas detestadas por alguns mas que inevitavelmente nos fazem bem. O ato de 3 Termo popular dado ao processo de audição e estudo de um fonograma a fim de reproduzi-lo no instrumento; sem o auxílio de material musical impresso. 7 “tirar” a música seria a “montagem da salada”, muito mais saborosa se misturada com outros ingredientes – inflexões, criatividade, forma musical). • Ao conhecerem as estruturas internas dentro de um padrão melódico, as frases, os motivos e as texturas começaram a ser vistas de forma mais atenta pelos alunos durante a performance. Algumas composições destes alunos – solos – apresentaram maior consistência melódica, aproximando-os do nível idiomático dentro da performance. 2. Reflexões Finais Neste trabalho, pudemos perceber que a Psicologia Cognitiva na Educação Musical vai de encontro ao grande objetivo procurado no ensino e compreensão da música: integração das modalidades composição, apreciação e performance. Pôde-se observar que, com a adoção de esquemas particulares à compreensão de cada aluno, é possível não só fazê-los mais receptivos às novas informações, mas também torná-los mais preparados para aprender e criar através de suas próprias idéias e relações no “terceiro ambiente4”. Seja ouvindo como compositor ou compondo como performer, todas estas faculdades podem evoluir homogeneamente se avaliadas sistematicamente sob o “Modelo Espiral do Desenvolvimento Musical”. Hargreaves (s.d., pg. 35) reforça que “as atividades musicais do terceiro ambiente são auto-conduzidas, e geralmente incluem índices elevados de motivação e compromisso”. Neste contexto, o auto-ditadismo vira um subproduto do estímulo dado pelo educador, este fundamental para apresentar conteúdos de forma sistemática e enfim avaliar o desenvolvimento do aluno, propiciando o necessário feedback do aprendizado. Aliando a todos estes preceitos cognitivos, entendemos que a palavra principal, acima de tudo, é a afetividade. Sem relação de afetividade, não há educação, nem aprendizado (ALVES, 2003). O professor – por vocação, não por profissão – tem que compartilhar do 4 Segundo Hargreaves (s. d., pg. 35) seria o ambiente onde as atividades dos jovens não possuem interferência ou supervisão de adultos. Podem ser até mesmo dentro das escolas, mas caracteriza-se por garagens, pela rua ou locais de lazer. 8 aprendizado do aluno; a exemplo de grandes compositores professores, uma forma de apresentar o aluno à composição está no próprio professor compor música para o aluno. O aluno também quer ver o professor se apresentar, quer identificar uma “autoridade” para compartilhar seus anseios de felicidade (GIUSSANI, 2004); quer sentir que é orientado por um artista, por alguém que busca a arte, e que o estudo é apenas um meio. O aluno precisa ser orientado para enfim experimentar a música livremente, comprometendo-se essencialmente consigo mesmo. Como a ostra que produz a pérola por causa de um incômodo grão de areia, o aluno somente precisa ser “provocado” para se libertar e manifestar a sua arte, a sua humanidade em si. 3. Referências Bibliográficas: ALVES, Rubem. Conversas sobre Educação. Campinas: Verus Editora, 2003. ANTUNES, Celso. As inteligências múltiplas e seus estímulos. Campinas: Editora Papirus, 1998. BEYER, Esther. A construção de conceitos musicais no indivíduo: perspectivas para a educação musical. In: Em Pauta. V.9/10. Porto Alegre, 1995, pp. 22-31. CAESAR, Wesley. Guitar Book: o guia da guitarra. São Paulo: Ed. TKT, 1999. FRANÇA, Cecília Cavalieri. A integração de composição, performance e apreciação: uma perspectiva psicológica do desenvolvimento musical. In: 4MúsicaHoje4. 1997, pp.41-49. _______. Do discurso Utópico ao Deliberativo: fundamentos, currículos e formação docente para o ensino de música na escola regular. s.d., pp. 1-20. _______.Disciplina Psicologia da Educação Musical: Materiais diversos em xerox sobre Modelo Espiral de Desenvolvimento Musical de Swanwick e Tillman (1986). s.d.. _______. Disciplina Psicologia da Educação Musical: anotações e informações verbais em sala de aula. Belo Horizonte, 1° sem./2006. GIUSSANI, Luigi. Educar é um risco. São Paulo: Edusc, 2004. HARGREAVES, David. ‘Whithin you without you’: música, aprendizagem e identidade. Tradução por: Beatriz Ilari. Londres, s.d., pp. 27-35(?). 9