Iris Maria de Oliveira ASSISTÊNCIA SOCIAL PÓS-LOAS EM NATAL a trajetória de uma política social entre o direito e a cultura do atraso PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP SÃO PAULO 2005 Iris Maria de Oliveira ASSISTÊNCIA SOCIAL PÓS-LOAS EM NATAL a trajetória de uma política social entre o direito e a cultura do atraso Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Serviço Social sob a orientação da Professora, Doutora Maria Carmelita Yazbek. PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC/SP SÃO PAULO 2005 ASSISTÊNCIA SOCIAL PÓS-LOAS EM NATAL a trajetória de uma política social entre o direito e a cultura do atraso Iris Maria de Oliveira Banca Examinadora: Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos. Iris Maria de Oliveira São Paulo, 10 de agosto de 2005 AGRADECIMENTOS O curso de doutorado na PUC-SP e a elaboração desta tese foram momentos de uma experiência acadêmica, profissional e de vida extremamente fecunda e bela. Por isso, apesar da solidão imposta pelo momento final da elaboração da tese, esta é produto de contribuições e interlocuções que qualificaram as reflexões aqui apresentadas e tornaram esta experiência prazerosa. Diante disso, não há como deixar de expressar a minha gratidão àquelas pessoas que de alguma forma, partilharam comigo este momento da vida. Em primeiro lugar, uma palavra de agradecimento a minha orientadora Carmelita Yazbek. Lembro-me que um dos fundadores da Escola de Serviço Social de Natal, Dom Nivaldo Monte, costuma dizer que a diferença entre o mestre e o professor é que o professor, apenas ensina; o mestre, antes de tudo ama. Quem passa pela vida sem contar com o apoio, a orientação e a sabedoria de alguém a quem possa chamar de mestre? Talvez ninguém, mesmo sem o perceber. Tive a alegria de poder contar com a sabedoria, a orientação respeitosa, crítica e incentivadora da Professora Carmelita Yazbek. Posso afirmar que contei com uma grande companheira, amiga e mestra desde o primeiro momento da minha chegada à PUC-SP. A ela, o meu reconhecimento e agradecimento. A Rosângela, grande companheira de toda experiência vivida no doutorado, incluindo o “sanduíche” ou estágio pesquisa em Portugal. A sua presença e parceria, com certeza, tornou a vida em “Sampa” e a experiência do “sanduíche” muito mais alegre, prazerosa e tranqüila. Juntas, dividimos muitos momentos de debates, alegrias, amizade, convivência fraterna e partilha de vida. Um tempo que ficará guardado com carinho. O meu obrigado por tudo. A Fernanda Rodrigues, mais que co-orientadora estrangeira, uma grande companheira na experiência do “sanduíche” em Portugal. Uma palavra de agradecimento pelo enorme apoio e calorosa acolhida desde a nossa chegada a cidade do Porto, na discussão do nosso objeto de pesquisa, na abertura de canais e caminhos para as atividades realizadas em Portugal e para o contato com outros profissionais de serviço social e pesquisadores brasileiros na Universidade do Porto, na disponibilidade do acompanhamento e nos belos momentos de convivência no Porto. A ela, o meu reconhecimento e obrigada por tudo. Aos companheiros da Associação de Cidadãos Brasileiros da Universidade do Porto – BRASUP, sobretudo Willer, Mary e Mauro, pela acolhida na chegada, pelo apoio fundamental em nossa inserção na Universidade do Porto. A Willer, não há como não deixar uma palavra especial de agradecimento também pelos agradáveis momentos de convivência e partilha da vida em Portugal. Às companheiras Silvina, Euniciana, Nice, Neiri com quem dividi salas de aula, participação no Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Seguridade e Assistência Social, cafés, a vida na PUC-SP e em “Sampa”. Um grande obrigado pelo apoio, pela amizade e pelo carinho. Uma palavra de agradecimento também a Maria Olinda e Dalva Gueiros, pelo apoio, pela amizade, pela vida partilhada em significativos momentos de convivência na PUC e em “Sampa”. A Carina Mojo, grande companheira, presença carinhosa e atenta em tantos momentos da vida em Sampa. Juntas, dividimos também a rica experiência de participação no Núcleo de Estudos e Aprofundamento Marxista e no Núcleo de Estudos e Pesquisa Trabalho e Profissão, ambos espaços maravilhosos de debate acadêmico e de convivência fraterna, sob a coordenação dos queridos professores José Paulo Neto e Dilséa Adeodata Bonetti. A Carina e a todos o meu obrigado pela oportunidade, pela convivência, pelo muito que aprendi com vocês. A Virgínia Siede e a Andréa Oliva uma palavra de agradecimento pela confiança e apoio na acolhida que permitiu resolver o desafio da moradia em São Paulo. A Pedrinho, amigo e companheiro, articulador nacional da Pastoral Operária, pela acolhida e apoio decisivo nos primeiros dias da minha chegada em “Sampa”. A Agripina, Ilsamar e Rose, grandes companheiras e assistentes sociais com funções de chefia na SEMTAS, a partir de 2004. Um enorme obrigado pelo apoio fundamental na coleta de dados e no acesso a alguns entrevistados. A Mary Helena, secretária do Conselho Municipal de Assistência Social, pela presteza e atenção com que sempre me atendeu na busca de dados e informações no CMAS. A todos os entrevistados, pela disponibilidade e atenção durante as entrevistas. A Josélia Carvalho, amiga e interlocutora no debate sobre os problemas de Natal e da Zona Norte, obrigada pelo importante apoio na reta final deste trabalho. À minha mãe, D. Antônia, pela compreensão nas ausências e nos meses de isolamento diante do computador. Ela, mais do que ninguém, partilhou comigo os momentos de estresse, próprios de um processo como este; e do seu jeito, deu a maior força. Sei que fez tudo o que foi possível para que os “problemas de casa” não “atrapalhassem” o tempo e o ambiente de que eu precisava para dar conta da tese. Ao Padre Murilo, amigo querido, com quem sempre posso contar; pelo carinho, pela força, pela amizade e pelas vezes que me fez lembrar que a vida não poderia se resumir ao doutorado. Aos companheiros(as) assessores e jovens da Pastoral de Juventude do Meio Popular - PJMP de Natal, regional e nacional, pela compreensão diante das ausências e das minhas respostas negativas frente aos vários pedidos de assessoria durante o tempo em que foi necessário dedicação exclusiva ao doutorado. A Raíza, sobrinha querida, cuja presença inocente e carinhosa e cobranças extratese tornaram esse tempo muito melhor. Ao professor Otom Anselmo, que como reitor da UFRN em 2001, por ocasião do início do meu afastamento das atividades acadêmicas, não mediu esforços no sentido de negociar junto à CAPES a suplementação de bolsas de que a UFRN necessitava e cuja conquista foi decisiva para efetivação deste doutorado. A Maria Pepita Vasconcelos, pelo apoio e atenção nos momentos decisivos do afastamento da UFRN e da efetivação da bolsa. A Severina Garcia e Denise Câmara, companheiras do Departamento de Serviço Social, pela interlocução fecunda e tantas partilhas da vida. Aos colegas do Departamento de Serviço Social pelo afastamento das atividades acadêmicas por 48 meses. A CAPES, pela bolsa concedida dentro do Programa Institucional de Capacitação Docente – PICDT e no estágio pesquisa realizado em Portugal. RESUMO O trabalho tem por objetivo analisar a política de assistência social em Natal, no período 1995-2004, procurando apreender, com base nos princípios e diretrizes da Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS, em que medida tem se efetivado a assistência social como direito e se as práticas conservadoras, que marcam a história desta política, vêm sendo rompidas. É freqüente, nos estudos sobre a assistência social, a referência a práticas políticas conservadoras. Contudo, a análise de tais práticas a partir da compreensão de que estas conformam e reproduzem uma certa cultura política, não tem sido comum. A pesquisa foi realizada buscando apreender o objeto de estudo em sua totalidade, em nível teórico e histórico. A coleta de dados ocorreu nos períodos de março a junho de 2003; e maio a dezembro de 2004. Privilegiou a busca de informações de natureza qualitativa por meio da pesquisa documental e da entrevista semiestruturada com 49 sujeitos diretamente envolvidos com a política municipal de assistência social em Natal: usuários, gestores, técnicos, coordenadores de programa e conselheiros da sociedade civil no Conselho Municipal de Assistência Social. A partir de um conjunto de questões que guiaram a análise, a pesquisa foi desenvolvida tendo como referência algumas hipóteses: a primeira afirma o cumprimento legal dos princípios e diretrizes da LOAS pelo poder público municipal; a segunda ressalta que a LOAS, enquanto instrumento legal norteador da política de assistência social possui princípios, diretrizes e objetivos que, se efetivados podem contribuir na construção de uma cultura de direitos; a terceira consiste na observação de que em Natal, a Política de Assistência Social é formulada legalmente como direito e incorpora os princípios e diretrizes da LOAS, mas, em sua operacionalização o direito é substituído pelas velhas práticas do favor, do paternalismo e do assistencialismo. Quando este se efetiva é um direito de segunda classe, pela forte seletividade, focalização e baixa qualidade dos serviços oferecidos. A partir da análise das categorias teóricas centrais do objeto de estudo – assistência social, cultura política e direitos – da trajetória da assistência social em Natal historicamente, da análise das forças políticas que ocuparam o governo municipal no período analisado, da apreensão das práticas e das concepções dos sujeitos envolvidos com a política, o estudo permite concluir que as marcas de uma cultura do atraso persistem e são instrumentos para a hegemonia das classes dominantes. Confirmando as hipóteses levantadas anteriormente, a implementação da assistência social em Natal revela que ela ainda é predominantemente uma política inscrita no campo das possibilidades. Palavras-chave: Assistência Social. Direitos Sociais. Assistência Social em Natal. Assistência Social e Cultura Política. Gestão Municipal. ABSTRACT That work aims to analyze the social assistance policy in Natal city during the period between 1995-2004, trying to apprehend, on the basis of the guide lines of the Law of the Social Assistance - LOAS, how the social assistance was applied as a citizen right, and if the conservative practices, so usual in the history of that policy, have been broken. It is frequent in the studies about the social assistance, the reference to the political conservative practices. However, the analysis of such practices from the comprehension that they conform and reproduce a certain political culture, has not been common. That research has been done trying to apprehend the object of study theoretically and historically in its totality. The collection of data occurred during the period between Mars until June 2003 and May until December 2004. The information of qualitative nature was privileged through the documentary research and the half-structuralized interview with 49 people who were directly involved with the city policy of the social assistance in Natal.: users, managers, experts, program coordinators and delegates of the civil society in the City council of Social Assistance. With a set of questions that guided the analysis, the research was developed having as reference some hypotheses: the first one affirms that there is the legal fulfillment of the guide lines of LOAS in the City government; the second one affirms that the LOAS, as legal instrument of the social assistance policy has guide lines and objectives that, if accomplished can contribute in the construction of a culture of social and citizen rights; the third one comes from the observation that in Natal, we can find a legal formulation of the Social Assistance Policy as a civil right, incorporates the guide lines of the LOAS, but, in its practice the rights are replaced by the old practices of the favor, paternalism and assistencialism. When that happens, it becomes a second class right, because of the strong selectivity and the low quality of the offered services. Going out from the analysis of the central theoretical categories of the study object, social assistance, political culture and civil rights, from the trajectory of the social assistance in Natal historically, from the analysis of political forces who occupied the city government in the analyzed period, the apprehension of the practices and concepts of the involved citizens with the policy, the study allows to conclude that the marks of a culture of delay persist and are the instruments for the hegemony of the ruling classes. Confirming the previously raised hypothesis, the implementation of the social assistance in Natal discloses that it is mainly a policy enrolled still in the field of the possibilities. Key-words: Social Assistance. Social Rights. Social Assistance in Natal. Social Assistance and Political Culture. City administration. SUMÁRIO Lista de Abreviaturas e Siglas INTRODUÇÃO 16 CAPÍTULO 1 25 POLÍTICA SOCIAL, ASSISTÊNCIA SOCIAL E CULTURA POLÍTICA 1.1 Políticas sociais e assistência social 25 1.2 As noções de cultura e hegemonia na apreensão da cultura do atraso 31 1.3 A cultura do atraso e a formação social brasileira 37 1.4 A cultura do atraso e a assistência social 46 CAPÍTULO 2 55 DIREITOS, CULTURA DE DIREITOS E ASSISTÊNCIA SOCIAL 2.1 O debate sobre a questão dos direitos na sociedade capitalista 55 2.2 Aspectos da efetivação de direitos na sociedade brasileira 63 2.3 Assistência social e cultura de direitos 79 CAPÍTULO 3 89 A FORMAÇÃO SOCIAL, POLÍTICA E ECONÔMICA DE NATAL E A ASSISTÊNCIA SOCIAL ANTERIOR À LOAS 3.1 Natal: aspectos da sua história e as primeiras ações de enfrentamento à pobreza na Cidade 89 3.2 Considerações sobre a formação sócio-econômica de Natal 99 3.3 O acesso aos serviços sociais e aos equipamentos urbanos em Natal 115 3.4 Políticas participacionistas, cultura do atraso e o enfrentamento à pobreza em Natal no período autoritário 121 3.5 As administrações municipais em Natal na transição democrática e a assistência social 140 3.6 Democratização, assistência social e forças políticas em Natal pós-1988 149 CAPÍTULO 4 169 DESCENTRALIZAÇÃO E GESTÃO MUNICIPAL DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM NATAL 4.1 O Município no processo de execução de políticas sociais públicas e a política de assistência social 169 4.2 Governo municipal e as ações de combate à pobreza no pós-LOAS 184 4.3 A gestão municipal da assistência social em Natal: uma visão geral das ações realizadas após a municipalização 202 CAPÍTULO 5 213 ASSISTÊNCIA SOCIAL EM NATAL: UMA POLÍTICA SOCIAL ENTRE O DIREITO E A “CULTURA DO ATRASO” 5.1 Concepção de assistência social entre os sujeitos envolvidos 214 5.2 Democratização da gestão, participação popular e controle social 222 5.3 A primazia da responsabilidade do Estado 234 5.4 As formas de acesso do usuário e a visão sobre os serviços 246 5.5 A questão da qualidade dos serviços prestados 257 5.6 O lugar da assistência social no enfrentamento das necessidades sociais para os usuários 263 5.7 Considerações sobre a gestão da assistência social em Natal 264 CONSIDERAÇÕES FINAIS 271 REFERÊNCIAS 282 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS APAE – Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais ABONG – Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais ADOTE – Associação de Orientação aos Deficientes ALCA – Área de Livre Comércio das Américas ANAMPOS - Articulação Nacional dos Movimentos Populares e Sindicais ARENA – Aliança Renovadora Nacional ARPI – Associação Norte Riograndense Pró Idosos ATIVA – Associação de Atividades de Valorização Social BIRD – Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento BNB – Banco do Nordeste Brasileiro BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social BNH – Banco Nacional de Habitação BPC – Benefício de Prestação Continuada CAERN - Companhia de Águas e Esgotos do RN CAP – Caixa de Aposentadoria e Pensão CATRE – Centro de Aplicações Táticas e Recomplementamento de Equipagem CDS – Conselho de Desenvolvimento Social CEAS – Conselho Estadual de Assistência Social CEBELA - Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos CGT - Central Geral dos Trabalhadores CMAS – Conselho Municipal de Assistência Social CMP – Central dos Movimentos Populares CNAS – Conselho Nacional de Assistência Social CNSS – Conselho Nacional de Serviço Social CODEFAT – Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador COHAB – Companhia de Habitação Popular – RN COMUT – Conselho Municipal do Trabalho CONAM – Coordenação Nacional das Associações de Moradores CRAS – Centros de Referência de Assistência Social CRIAI – Centro de Referência e Atenção ao Idoso CSU – Centro Social Urbano CURA – Projeto de Complementação Urbana e Recuperação Acelerada CUT – Central Única dos Trabalhadores DACA – Departamento de Atenção à Criança e ao Adolescente DAS – Departamento de Assistência Social DAT – Departamento de Ações para o Trabalho DEMEC – Delegacia do Ministério da Educação e Cultura DhESC – Direitos humanos, econômicos, sociais e culturais DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos DRT – Delegacia Regional do Trabalho EMPROTURN - Empresa de Promoção e Desenvolvimento do Turismo do Rio Grande do Norte S/A FAZ – Fundo de Desenvolvimento Social FECEB – Federação das Entidades Comunitárias e Beneficentes do RN FETAC – Fundação Estadual de Trabalho e Ação Comunitária FHC – Fernando Henrique Cardoso FINOR – Fundo de Investimento do Nordeste FMI – Fundo Monetário Internacional FUMAS – Fundo Municipal de Assistência Social FUMDEC – Fundo Municipal de Desenvolvimento Econômico FUNDAC – Fundação Estadual da Criança e do Adolescente GESST – Grupo de Estudos e Pesquisas em Seguridade Social e Trabalho, GODAS – Gerência Operacional da Descentralização da Assistência Social IAPM – Instituto de Aposentadoria e Pensão IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias IDEC – Instituto de Desenvolvimento Econômico do Rio Grande do Norte IDH-M – Índice de Desenvolvimento Humano Municipal IICA – Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INOCOOP - Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais INSS – Instituto Nacional de Seguro Social IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPLANAT - Instituto de Planejamento Urbano de Natal LBA – Legião Brasileira de Assistência LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social MAS – Ministério da Assistência Social MDB – Movimento Democrático Brasileiro MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome MEIOS – Movimento de Integração e Orientação Social NAS – Núcleo de Ação Social NOB – Norma Operacional Básica OAB – Ordem dos Advogados do Brasil ONG – Organização Não-Governamental PAC – Programa de Ação Continuada PAN – Partido dos Aposentados da Nação PC do B – Partido Comunista do Brasil PCB – Partido Comunista Brasileiro PDM – Plano de Desenvolvimento Municipal PDS – Partido Democrático Social PDT – Partido Democrático Trabalhista PEQ – Plano Estadual de Qualificação Profissional PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil PFL – Partido da Frente Liberal PGT – Partido Geral dos Trabalhadores PHS – Partido Humanista da Solidariedade PJMP – Pastoral da Juventude do Meio Popular PL – Partido Liberal PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PMN – Partido da Mobilização Nacional PNCCPM - Programa Nacional de Capitais e Cidades de Porte Médio PND – Plano Nacional de Desenvolvimento PNPE – Programa Nacional Primeiro Emprego PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PP – Partido Progressista PPB – Partido Progressista Brasileiro PPD – Pessoa Portadora de Deficiência. PPS – Partido Popular Socialista PRN – Partido da Reconstrução Nacional PROFAT - Programa Fundo de Amparo ao Trabalhador PROGER – Programa de Geração de Emprego e Renda PRONAV – Programa Nacional do Voluntariado PRP – Partido Republicano Progressista PRTB – Partido Renovador Trabalhista PSB – Partido Socialista Brasileiro PSC – Partido Social Cristão PSD – Partido Social Democrático PSDB – Partido da Social-Democracia Brasileira PSDC – Partido Social Democrata Cristão PSTU – Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado PT – Partido dos Trabalhadores PT do B - Partido Trabalhista do Brasil PTB – Partido Trabalhista Brasileiro PTN – Partido Trabalhista Nacional PV – Partido Verde RMN – Região Metropolitana de Natal RN – Rio Grande do Norte SAC – Serviços de Atenção Continuada SAS – Secretaria de Estado de Assistência Social SBGG – Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia SECRA – Secretaria das Regiões Administrativas SECTUR – Secretaria Especial de Comércio, Indústria e Turismo de Natal SEMPLA – Secretaria Municipal de Planejamento e Gestão Estratégica SEMPS – Secretaria Municipal de Promoção Social SEMTAS – Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social SEMURB – Secretaria Especial de Meio Ambiente e Urbanismo SENAT – Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte SER – Sistema de Emprego e Renda SERAS – Serviço de Reeducação e Assistência Social SESC – Serviço Social do Comércio SEST – Serviço Social do Transporte SETAS – Secretaria Estadual de Trabalho e Assistência Social SFH – Sistema Financeiro de Habitação SINE – Sistema Nacional de Emprego SMS – Secretaria Municipal de Saúde SOCERN - Sociedade dos Cegos do Rio Grande do Norte STBS – Secretaria de Trabalho e Bem Estar Social SUAS – Sistema Único de Assistência Social SUDENE – Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste SUS – Sistema Único de Saúde UDN – União Democrática Nacional UDR – União Democrática Ruralista UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte UNB – Universidade de Brasília UNICAMP – Universidade de Campinas 16 INTRODUÇÃO Este trabalho analisa o processo de implementação da assistência social no nível municipal tendo como referência a Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS (Lei n. 8742 de 7 de dezembro de 1993). Para tanto, toma como unidade de análise a execução desta política em Natal-RN a partir de 1995. O esforço é de apreender em que medida vem se efetivando a assistência social como direito, e se as práticas tradicionais, conservadoras, clientelistas e assistencialistas historicamente predominantes nesta área de política pública vêem sendo rompidas. Desde os anos 80 do século XX, a assistência social tem sido um campo de estudos ao qual vem se dedicando um número significativo de pesquisadores, sobretudo, na área do Serviço Social1. Os trabalhos produzidos nas duas últimas décadas abriram o debate em torno de questões como: o papel e o significado da assistência social na sociedade capitalista contemporânea e no contexto das políticas sociais públicas, sua configuração, natureza, significado e formas de gestão na realidade brasileira, o seu processo de institucionalização e gestão descentralizada e participativa, os impasses teóricos e políticos que esta política pública enfrenta etc. A significativa produção teórica em torno desta área de política pública indica a importância do tema. Contudo, ainda são poucos os estudos voltados a analisar a assistência social em sua relação como os traços de uma certa cultura política caracterizada segundo relações de favor, de tutela, paternalista e clientelista. Estas relações, no âmbito da assistência social, se expressam, entre 1 Destacam-se, além dos inúmeros trabalhos publicados na Revista Serviço Social e Sociedade sobre o tema, os trabalhos de SPOSATI et al (1986), YAZBEK (1993), SPOSATI (1988), BATTINI (1998), MENEZES (1993), PEREIRA (1996), SCHONS (1999), RAICHELIS (1998), SILVA E SILVA (2000), OLIVEIRA (2001), MESTRINER (2001), BOSCHETTI (2003a), SPOSATI (2004), COUTO (2004), entre outros. 17 outras formas, no uso de relações pessoais com governantes ou lideranças políticas, como o caminho para o acesso a bens, recursos e serviços assistenciais. Mas, a existência deste tipo de relação social e política, não é um privilégio da assistência social. É algo que conforma a nossa cultura política, fazse presente na política social como um todo e é inerente à história política, econômica e social brasileira. Em pesquisa destinada a analisar a cultura política dos trabalhadores rurais assentados, a partir das suas relações com representantes dos poderes constituídos, Araújo (2005) ressalta, com base num balanço da literatura dedicada à questão das relações clientelistas, patrimonialistas, do favor e da tutela no Brasil, que tais relações “são transversais à sociedade brasileira”.2 A sua persistência no presente contribui para que o acesso a serviços públicos não seja visto por uma parcela significativa da população brasileira como um direito, mas como um favor ou ajuda. Nesta mesma linha, discutindo a cidadania na sociedade brasileira Roberto Da Matta (2000, p. 83) destaca a importância que aqui assume a ligação com a pessoa ou instituição de prestígio. Sem isso o indivíduo ou o cidadão “é tratado como inferior”. A obediência às leis na sociedade brasileira configura “uma situação de pleno anonimato e grande inferioridade. Normalmente um sinal de ausência de relações.” Assim, o lugar central ocupado pelas relações de favor, amizade como forma de acesso a direitos contribui para dificultar o avanço de políticas universais. Conforme Da Matta (2000, p. 83), o predomínio dessas relações pode ser explicitado, entre outras situações, no acesso a serviços públicos. “Antes de ir a qualquer agência pública, a norma e a ‘sabedoria’ indicam sempre que se deve primeiro descobrir as nossas relações naquela área. Uma vez que isso é estabelecido, a atuação da agência muda radicalmente de figura.” O resultado disso, segundo o autor, 2 Araújo (2001) faz uma análise com base em autores que, mesmo sob perspectivas diversas, têm em comum o argumento de que as relações pessoais de favor e clientelistas “são transversais à sociedade brasileira”, havendo inclusive aqueles que consideram tais relações “mecanismos próprios do exercício da política." Alguns dos trabalhos examinados pela autora foram: Leal (1975), Queiroz (1976), Chauí (1986), Martins (1999), Palmeira (1996), Da Matta (2000) e Bezerra (1999). 18 [...] é que todas as instituições sociais brasileiras estão sujeitas a dois tipos de pressão. Uma delas é a pressão universalista, que vem das normas burocráticas e legais que definem a própria existência da agência como serviço público. A outra determinada pelas redes de relações pessoais a que todos estão submetidos e aos recursos sociais que essas redes mobilizam e distribuem. [...]. No fundo vivemos em uma sociedade onde existe uma espécie de combate entre o mundo público das leis universais e do mercado; e o universo privado da família, dos compadres, parentes e amigos (DA MATTA, 2000, p. 83; 85). Ao lado dessa cultura política do favor, da tutela e do clientelismo, integra a história da assistência social, a sua trajetória como não-política, espaço de práticas voluntaristas, espontaneístas, dependentes da solidariedade da sociedade civil ou simplesmente puro assistencialismo destinado aos destituídos. Enquanto ação do Estado, ela se configurou, até os anos 80 do século XX, como uma ação paliativa, pontual, fragmentada, secundária, marginal. Uma política marcada por ações pobres e precárias, destinadas aos mais pobres. Estas características acabam conferindo um modo de conceber a assistência social no Brasil como ajuda, assistencialismo ou benesse. A partir da Constituição Federal de 1988 e da LOAS, a assistência tornouse uma política de responsabilidade do Estado e direito do cidadão. Ao mesmo tempo, assim como em outras áreas de política pública, de acordo com as definições legais, a sua gestão passou a ser efetivada por um sistema descentralizado e participativo, cabendo aos municípios uma parcela significativa de responsabilidade na sua formulação e execução. Mas, as conquistas legais, por si só, não efetivam direitos, sobretudo no âmbito das políticas sociais de um modo geral e, na área da assistência social de modo particular, na qual, ao lado dos avanços constitucionais se mantém uma herança de negação de direitos. Conforme Yazbek (1998, p. 53), [...] o reconhecimento do direito não vem se constituindo como atributo efetivo das políticas sociais e da seguridade social no país. No vasto campo de atendimento às necessidades das classes subalternas administram-se favores. Décadas de populismo e clientelismo consolidaram uma ‘cultura’ tuteladora que não tem favorecido o protagonismo dos subalternizados ou sua emancipação. 19 Mesmo assim, as conquistas legais abrem a possibilidade para a assistência social deixar de ser um espaço no qual “administram-se favores”, conquistar o estatuto do direito e se constituir como lugar de práticas emancipadoras. A LOAS retira a assistência social do campo do assistencialismo para colocá-la no campo da seguridade social e “aponta a centralidade do Estado na universalização e garantia de direitos e de acesso a serviços sociais qualificados.” (YAZBEK, 1998, p. 56). Ao mesmo tempo propõe uma gestão orientada por princípios da descentralização e da participação popular. Decorridos mais de 11 anos da aprovação da LOAS, a assistência social ainda não se consolidou como uma política pública. Contribui para isso, tanto a resistência de governos e diferentes setores da sociedade às suas proposições, como o contexto em que tem se dado a sua implementação no Brasil, marcado pela efetivação das políticas de ajuste neoliberal. Frente à lógica neoliberal que tem presidido a política econômica e a política social no país, sobressaem as ações pulverizadas, descontínuas, assistemáticas e focalizadas nos mais pobres e miseráveis, ao lado da transferência de responsabilidade do Estado para a sociedade. Um exemplo dessa “desresponsabilização” do Estado para com a assistência social, na perspectiva do direito, foi a criação e funcionamento do Programa Comunidade Solidária nos dois governos do Fernando Henrique Cardoso (1995-1999/1999-2003). Este programa, além de ser uma ação paralela e de expressar a opção do governo com a não efetivação da assistência social como política de seguridade social, reforçou um dos traços mais conservadores e atrasados desta área, que é o primeiro-damismo. Ana Elizabete Mota (2004, p. 4) sintetiza o que tem sido a política de assistência social no Brasil, no contexto do ajuste neoliberal: A política de combate à pobreza aparece como política substitutiva do tratamento da questão social em termos distributivos. Novos mecanismos de consenso são estimulados, tais como, a descentralização, as parcerias e a participação indiferenciada das classes. Junta-se a focalização e a responsabilização individual. Emergem parâmetros morais subordinados aos limites dos gastos sociais públicos. A questão social é despolitizada; as tensões sociais provocadas pelo não atendimento das demandas sociais coletivas passam a ser minimizadas através do atendimento a alguns grupos sociais pauperizados. 20 O presente estudo tenta contribuir com o debate acerca da assistência social no Brasil, privilegiando a análise de aspectos relacionados à garantia de direitos e à questão da cultura política na conformação desta política pública no nível municipal. Neste sentido teve como objetivo analisar as mudanças ocorridas na política de assistência social em Natal a partir da implantação da LOAS (1995), no âmbito da concepção e conteúdo desta política, da democratização da gestão, da garantia de direitos e da primazia da responsabilidade do Estado na sua condução. Ao mesmo tempo buscou verificar, no desenvolvimento das ações de assistência social, a reprodução ou não das práticas baseadas na troca de favores, no clientelismo, enquanto elementos de uma cultura política negadora dos direitos sociais e da cidadania proposta pela LOAS. O período analisado foi 1995-2004, por abranger desde a origem até o momento atual do processo de implementação da assistência social em Natal com base na LOAS. A aproximação com o universo de estudo foi realizada inicialmente através de discussões informais com conselheiros e técnicos da Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social – SEMTAS e da pesquisa documental, a qual envolveu o estudo e análise da legislação federal, estadual e municipal relativa à política de assistência social; dos relatórios de todas as conferências municipais; de todas as atas das reuniões do Conselho Municipal de Assistência Social – CMAS realizadas de outubro de 1995 a maio 2004; e um conjunto de documentos relacionados à gestão da política tais como: os planos municipais, os relatórios de gestão, relatórios da execução orçamentária, de planejamento, de consultorias e relatórios anuais de atividades da SEMTAS e da Associação de Atividades de Valorização Social – ATIVA. Ao lado dessa aproximação com o universo pesquisado através da pesquisa documental, realizada de março a junho de 2003, foi realizado o trabalho de coleta de dados primários através de entrevistas com alguns dos sujeitos principais da política municipal de assistência social. Para tanto foi utilizado como instrumento de coleta de dados a entrevista semi-estruturada. Estas, foram realizadas no período de maio a dezembro de 2004, gravadas e transcritas, sendo que a maioria ocorreu entre os meses de maio a setembro do referido ano. Apenas duas entrevistas, as que foram realizadas com gestores, aconteceram em dezembro, quatro meses após a sua solicitação oficial. 21 Ao todo, foram realizadas 49 entrevistas, envolvendo usuários, gestores, técnicos diretamente responsáveis pela execução dos serviços, coordenadores de programas ou serviços, e conselheiros da sociedade civil no CMAS. Do total de entrevistados, os usuários representaram 61% (30 entrevistados). Os usuários, técnicos e coordenadores foram pessoas integrantes de três ações de assistência social no município: o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil - PETI, o Programa de Atenção ao Idoso na modalidade “Conviver” e o Plantão Social, que é uma ação sob a responsabilidade do Departamento de Assistência Social - DAS da SEMTAS. A definição por estas ações foi realizada a partir dos seguintes critérios: a. ações com continuidade e que tivessem pelo menos três anos de duração; b. ações que envolvessem recursos do governo federal (repasses do fundo nacional para o fundo municipal de assistência social) e do tesouro municipal; c. pelo menos uma das ações pesquisadas deveria ser executada pela ATIVA, uma ONG integrante da rede de assistência social do município, mas com um papel peculiar na trajetória da assistência social em Natal; d. ações que envolvessem uma população representativa dos usuários da assistência social. O processo investigativo teve como ponto de partida o conjunto de questões a seguir que se constituíram em um guia no esforço analítico empreendido: a. que mudanças podem ser observadas na política de assistência social em Natal a partir da implantação da LOAS (1995): na garantia de direitos e na concepção e conteúdo desta política? b. como se efetiva, no cotidiano desta política, as diretrizes estabelecidas pela LOAS para a sua organização e que contempla a descentralização político administrativa, a participação da população na sua formulação e no controle das ações e a primazia da responsabilidade do Estado na sua condução? 22 c. a implementação da LOAS consegue impedir a reprodução da cultura do favor, da benemerência, do clientelismo que marcou a trajetória da assistência social e contribuir na afirmação e consolidação de uma cultura de direitos? Frente a estas questões, a análise foi desenvolvida a partir de três hipóteses. A primeira de que as conquistas recentes no campo da relação Estado x Sociedade têm obrigado o poder público municipal a cumprir, em nível legal, os princípios e as diretrizes da LOAS, assim como as determinações quanto aos instrumentos legais e institucionais para uma gestão descentralizada e participativa da política de assistência social. A segunda, de que a LOAS, enquanto instrumento legal norteador da política de assistência social, possui princípios, diretrizes e objetivos que, se efetivados, podem contribuir na construção de uma cultura política de direitos e da cidadania; e, portanto, reduzir ou impedir a reprodução da cultura do favor, da caridade, da benemerência e das ações precárias e emergenciais, que sempre marcaram esta política. A terceira, de que a assistência social em Natal tem sido formulada legalmente como direito e incorporado nesta formulação os princípios e diretrizes da LOAS. Contudo, em sua operacionalização, o direito é substituído pelas práticas do favor, do paternalismo, do assistencialismo e da ajuda. E, quando se efetiva, é um direito de segunda classe, pela seletividade, focalização e baixa qualidade que caracteriza os serviços oferecidos, pelo baixo grau de responsabilidade do município com esta política, o qual se configura muito mais como um mero executor de programas federais. O resultado dessa trajetória constitui a presente tese e é apresentado em cinco capítulos. Os dois primeiros apreendem as categorias centrais do objeto de estudo: política social, assistência social, cultura política e direitos. No capítulo um é privilegiada a discussão da assistência social e da questão da cultura política. Compreendendo a assistência social como política social pública, direito do cidadão e dever do Estado, ela é situada historicamente no contexto da implementação das políticas sociais públicas no Brasil e dos traços conservadores e autoritários da formação social, política, econômica e cultural brasileira. A noção de cultura política é compreendida enquanto os traços 23 conservadores e autoritários da formação brasileira que historicamente se reproduziram nas práticas da assistência social. O capítulo dois faz a discussão da questão dos direitos, procurando apreender essa categoria historicamente, o seu debate atual, o significado da luta por direitos na sociedade capitalista hoje e a contribuição da política de assistência social na construção de uma cultura de direitos no país. O terceiro capítulo analisa assistência social anterior a LOAS em NatalRN. Para tanto, faz uma caracterização da cidade, sua história, sua formação sócio-econômica, as primeiras ações de enfrentamento à pobreza e como se apresenta a desigualdade social na realidade local. Procura-se neste capítulo resgatar, inicialmente, alguns traços da formação social, econômica e política de Natal que oferecem elementos para compreender o modo como o poder público tem enfrentado o problema da pobreza na cidade e como se conforma historicamente a assistência social. Em seguida faz-se uma análise da assistência social no contexto das administrações municipais, no período imediatamente anterior à implementação da LOAS (1975-1995), identificando aí as forças políticas que governaram Natal nesse período, os instrumentos utilizados por elas para a conquista e permanência no poder, como obtêm o consenso e apoio de setores das classes subalternas para os seus projetos e as políticas de enfrentamento à pobreza desenvolvidas. No período analisado neste capítulo teve início em Natal um determinado modo de fazer política e um padrão de relação entre governantes e classes subalternas, que permanece até o presente. O capítulo quatro apresenta o processo de institucionalização da assistência social em Natal com base na LOAS, procurando reconstituir a história recente desta política pública na cidade. O ponto de partida é uma discussão sobre a noção de descentralização e sua configuração no processo de implementação das políticas sociais públicas no Brasil. Em seguida analisa a assistência social no contexto das administrações municipais do período (19952004) e das ações prioritárias de combate à pobreza. Ao mesmo tempo, é feita uma caracterização da política de assistência social no município, buscando identificar aquilo que constitui garantia de direitos e a reprodução ou não dos traços de uma cultura política conservadora, atrasada. 24 Ainda buscando analisar como vem se efetivando em Natal a assistência social na perspectiva do direito, o capítulo cinco privilegia a análise de alguns aspectos considerados fundamentais nessa questão: a concepção e o conteúdo da política entre os sujeitos envolvidos; a garantia da participação popular e do controle social; a primazia da responsabilidade do Estado na condução da política; a percepção dos usuários sobre os serviços; a qualidade dos serviços; o lugar da assistência social no atendimento às necessidades sociais dos usuários e como vem se dando a organização e a gestão da política. Sem a pretensão de concluir ou fazer generalizações, as considerações finais retomam brevemente alguns elementos das reflexões desenvolvidas ao longo do trabalho. A expectativa é de que o estudo possa contribuir no debate da assistência social como política pública e direito social no Brasil, com o aprofundamento sobre o seu papel na construção de uma cultura de direitos e com o processo de formulação e implementação dessa política pública em Natal. 25 CAPÍTULO 1 POLÍTICA SOCIAL, ASSISTÊNCIA SOCIAL E CULTURA POLÍTICA 1.1 Políticas Sociais e Assistência Social Na história da humanidade, a assistência aparece inicialmente como prática de atenção aos pobres, aos doentes, aos miseráveis e aos necessitados, exercida, sobretudo, por grupos religiosos ou filantrópicos. Ela é, antes de tudo, um dever de ajuda aos incapazes e destituídos, o que supõe uma concepção de pobreza enquanto algo normal e natural ou uma fatalidade da vida humana. Isto contribuiu para que, historicamente e durante muito tempo, o direito à assistência social fosse substituído por diferentes formas de dominação, marginalização e subalternização da população mais pobre. Assim, na sociedade capitalista, até o século XIX, a atenção aos que não conseguiam resolver a sua sobrevivência no mercado era, em primeiro lugar, um problema a ser superado pela família ou pela sociedade, por meio da caridade e da solidariedade humana. No entanto, estas alternativas se mostraram incapazes de resolver os problemas originados pela acumulação de capital. Como afirma Ianni (1996, p. 99), “o pauperismo não se produz do nada, mas da pauperização.” O processo de acumulação capitalista produz o trabalhador disponível para o capital, uma população sempre maior do que as reais necessidades da acumulação. O resultado é a produção de uma classe trabalhadora diversificada na sua forma de inserção na produção, mas que tem em comum o fato de sua sobrevivência depender da venda da sua força de trabalho; o que, por sua vez, depende das demandas do capital. O resultado é a produção da pobreza, originada nos baixos salários dos que se encontram incluídos no mercado de 26 trabalho formal e as mais diferentes situações de inclusão precarizada ou subordinada para a grande parcela de excluídos que não consegue existir para o capital. Segundo Martins (1997, p. 32) a exclusão e a inclusão é parte estruturante da lógica da sociedade capitalista, a qual, “desenraíza, exclui, para incluir, incluir de outro modo, segundo suas próprias regras, segundo sua própria lógica”. Trata-se de uma inclusão marginal e precária do ponto de vista econômico e de uma exclusão moral, política e social permanente e de difícil superação, dando origem a duas sociedades: uma incluída, constituída por ricos e pobres, mas, onde todos têm o que vender e o que comprar, direitos reconhecidos, etc e, uma outra sociedade que se caracteriza como uma “subhumanidade: uma humanidade incorporada através do trabalho precário, do trambique, no pequeno comércio, no setor de serviços mal pagos ou, até mesmo, excusos etc.” (MARTINS, 1997, p. 34-35). As contradições da sociedade capitalista, explicitada na produção coletiva de riquezas e na sua apropriação privada estão na base da questão social3 e do surgimento das políticas sociais ou dos sistemas de proteção social no mundo inteiro. Os liberais argumentam que as políticas sociais se destinam a corrigir os efeitos malignos produzidos pelo crescimento capitalista. Tais políticas teriam finalidade redistributiva e o objetivo de reduzir as desigualdades geradas na esfera da produção. Observa-se, contudo, que enquanto estratégia governamental, elas são incapazes de promover uma real melhoria das condições de vida da classe trabalhadora. O Estado atende apenas àquelas reivindicações que são aceitáveis para o capital e para o grupo dominante. Ao mesmo tempo, o seu surgimento acaba revelando as limitações das teses liberais em defesa do livre jogo do mercado e de uma compreensão da pobreza como algo natural, evidência da inferioridade do pobre e sobre a qual o Estado não deve interferir. Nos países do capitalismo avançado, as primeiras medidas de política social trouxeram, no seu interior, este reconhecimento das limitações do mercado 3 A questão social é aqui entendida como “conjunto de expressões das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura” a partir das mobilizações operárias do século XIX (IAMAMOTO, 2001, p.16). As lutas desse período trouxeram para a cena política e econômica as reivindicações da classe operária, a denúncia da miséria e do pauperismo produzidos pelo capitalismo e exigiram a interferência do Estado no reconhecimento de direitos sociais e políticos desta classe. 27 quanto ao atendimento das necessidades de reprodução da força de trabalho. Assim, o “New Deal”, de Franklin Delano Roosevelt destinava-se a reorganizar a vida econômica por meio da intervenção do Estado na economia, do controle do mercado financeiro, do combate ao desemprego, do estímulo à elevação da produção e da renda, da redução da jornada de trabalho e da produção para o mercado interno, sem deixar de lado o mercado externo (VIEIRA, 1992, p.85-86). Ao analisar o Estado de Bem Estar na França, Inglaterra e Alemanha, T. H. Marshall conclui que, nascendo num contexto de austeridade (o pós-guerra), as restrições ao mercado livre, mesmo não sendo boas em si mesmas, ofereciam uma sociedade comprometida com a ‘participação justa’ e com a distribuição de renda real que se podia justificar racionalmente e não era resultado imprevisível das forças supostamente cegas de um mercado competitivo no qual cada um tinha o direito de tomar para si quanto pudesse. (MARSHALL, 1967, p. 200). Nesta mesma linha, Vianna (2000, p. 11) ressalta que o Welfare State é perpassado por uma simbologia: “a sociedade se solidariza com o indivíduo quando o mercado o coloca em dificuldades”. A miséria passou a não ser mais um problema individual, mas “uma responsabilidade social, pública”. A proteção social tornou-se direito de todos os cidadãos porque “a coletividade decidiu pela incompatibilidade entre destituição e desenvolvimento.” Contudo, não é somente a degradação das condições de vida do proletariado e as suas reivindicações que determinam o surgimento das políticas sociais. Historicamente, os direitos sociais e as medidas jurídicas que consagram as políticas sociais vinculam-se também as alternativas encontradas pelo capital frente à crise de acumulação enfrentada no final dos anos 20 do século passado. O que se configurou como “Welfare State” foi também uma forma de alargar as funções econômicas e sociais do Estado. Conforme Francisco de Oliveira (1998a, p.19), o “Welfare State” Constituiu-se no padrão de financiamento público da economia capitalista. Este pode ser sintetizado na sistematização de uma esfera pública onde a partir de regras universais e pactadas o fundo público em suas diversas formas, passou a ser o pressuposto do financiamento da acumulação de capital de um lado, e, de outro, do financiamento da reprodução da força de 28 trabalho, atingindo globalmente a população por meio de gastos sociais. A análise das políticas sociais, nesta perspectiva, revela que não se trata de atender apenas às reivindicações dos trabalhadores. Com o “Welfare State”, o Estado passa também a financiar a acumulação de capital através de inúmeros mecanismos: subsídios à produção, criação de setores estatais produtivos, financiamento dos excedentes agrícolas, da pesquisa e tecnologia, etc. Segundo Oliveira (1998a, p. 20), os gastos com o financiamento do capital são muito maiores do que com a reprodução da força de trabalho. Para o autor, o Estado de Bem Estar não deixou de ser um Estado classista, mas também não se configura como o Estado enquanto comitê executivo da burguesia pensado por Marx. Nesse sentido, Oliveira (1998a, p. 39) concebe o Estado de Bem Estar como um espaço de lutas de classes no qual ocorre a construção de uma esfera pública caracterizada pela “construção e o reconhecimento da alteridade do outro, do terreno indevassável de seus direitos, a partir dos quais se estruturam as relações sociais.” A esfera pública, portanto, constitui uma negação dos automatismos do mercado e da concentração e exclusão que ele produz. A partir dos anos 70 do século XX, a alternativa do Estado de Bem Estar entrou em crise e houve o retorno às teses liberais em defesa da liberdade do mercado e da redução do papel do Estado na economia e no social. Para Oliveira (1998a, p. 46-48), o discurso da crise do Estado de Bem Estar Social associa-se mais à produção de bens sociais públicos e menos à presença dos fundos públicos na estruturação da reprodução do capital. Neste sentido, [...] o que é tentado é a manutenção do fundo público como pressuposto apenas para o capital: não se trata, como o discurso da direita pretende difundir, de reduzir o Estado em todas as arenas, mas apenas naquelas onde a institucionalização da alteridade se opõe a uma progressão do tipo ‘mal infinito’ do capital. (OLIVEIRA, 1998a, p. 44, grifo do autor). No contexto das políticas sociais, a assistência social nos países do mundo desenvolvido tem integrado sistemas de proteção social que, apesar das diferenças em termos de modelos ou grau de proteção social e da sua 29 configuração quanto à população usuária, asseguram aos cidadãos destes países, formas de acesso, de financiamento etc, que têm em comum o fato de se constituírem enquanto direito e contribuírem para a redução da pobreza nestas realidades. Na realidade brasileira nunca se teve um Estado de Bem Estar. Até 1930, a pobreza foi considerada disfunção social ou problema de polícia. A assistência social só ganhou estatuto de política social no final da década de 1980. Antes disso, quando o Estado brasileiro resolveu enfrentar institucionalmente os problemas decorrentes da questão social, o fez com a criação das primeiras leis destinadas a regular o mercado de trabalho, como a legislação sobre acidentes de trabalho (1919), o Código de Menores (1926), as Caixas de Aposentadorias e Pensões dos Ferroviários, através da Lei Eloy Chaves de 1923. A assistência social só foi objeto de uma ação institucional em 1942, com a criação da Legião Brasileira de Assistência – LBA, cujo objetivo inicial foi prestar assistência às famílias dos soldados brasileiros que lutavam na Segunda Guerra Mundial. Esta origem configura o que Francisco de Oliveira (1998b, p. 14) denomina de “filantropia estatal”. Assim, até a Constituição de 1988, a assistência social enquanto área de ação governamental foi marcada por seu caráter de ajuda aos necessitados, para que subsistissem na miséria, complementaridade e excepcionalidade desenvolvidas através de programas pontuais, desarticulados ou, simplesmente, puro assistencialismo paternalista destinado aos destituídos. Além disso, outra característica que marca esta política são as práticas clientelistas, nas quais o acesso dos usuários aos bens, recursos e serviços assistenciais se realiza através de relações pessoais entre estes e representantes do poder público, a quem passam a dever favores freqüentemente pagos através da fidelidade e lealdade política, sobretudo em momentos eleitorais. No entanto, a existência deste tipo de relação social e política não é um privilégio da assistência social. É algo que conforma a cultura política brasileira, se faz presente na política social como um todo e é inerente à história política, econômica e social do país. Todavia, “o campo da assistência social, pelos particularismos em que se assenta, traz a personalização de práticas, seja de mandonismo de um chefe intermediário, seja de orientação clientelar da 30 autoridade maior que o dirige.” Com isso, “a possível política de proteção social vai se exprimir em manifestações de protecionismo.” (SPOSATI, 1989, p. 21). Este tipo de relação social no âmbito da assistência social conforma uma certa cultura política do atraso, para usar a expressão de José de Souza Martins (1999), no sentido de que traços conservadores da formação social brasileira e da política de assistência social se manifestam no presente, seja de forma sutil, escondido ou transparente, com uma roupagem contemporânea. Martins (1999, p. 14) chama atenção para a importância da leitura de fatos e acontecimentos “orientada pela necessidade de distinguir no contemporâneo a presença viva e ativa de estruturas fundamentais do passado.” Mas, ao tratar de cultura política no campo da assistência social, a opção aqui não é fazer a discussão desta questão, tendo como referência a abordagem da sociologia americana sobre o conceito de cultura política, ou a linha de estudos que, criticando o trabalho inaugural de Almond e Verba4, incorporam elementos de outras proposições, como a escolha racional, a ação comunicativa de Habermas, a fenomenologia, o behaviorismo, ou concepções neocontratualistas (Rawls), pós-estruturalistas5 e pós-materialistas. Ao falar de cultura política no campo da assistência social, considera-se, por um lado, os traços conservadores e autoritários da formação social, cultural e econômica brasileira que historicamente se reproduziram nas práticas da assistência social e, por outro lado a possibilidade de se forjar uma cultura de direitos no campo da assistência social a partir da conquista da LOAS e das lutas pela implementação da assistência social como política de seguridade social. No que se refere aos traços conservadores e autoritários da formação brasileira, considera-se que eles integram o conjunto da formação social mesmo. Além disso, concorda-se com Mota (1994, p. 287) quando este afirma que não existe uma cultura brasileira “no plano ontológico, mas sim na esfera das 4 Trata-se do trabalho de Grabriel Almond e Sidney Verba “The Civic Culture: polical, attitudes and democracy in five nations” publicado em 1963. Interessante exame da literatura relacionada ao conceito de cultura política é feito pelos seguintes autores: Rennó (1998), Baquero (1999, 2000, 2001); Schmidt (2001); Krischke (1997), Andrade (1995) Castro (2002). 5 Conforme Krischke (1997, p.111), na trilha dos estudos na linha pós-materialista tem surgido na América Latina uma nova linha de estudos culturais pós-estruturalistas. Esta enfatiza “o direito à diferença e a questão da desigualdade como base para uma expansão da esfera pública além das fronteiras do Estado”. O trabalho citado pelo autor dentro desta perspectiva teórica é ALVAREZ, Sônia E., DAGNINO, Evelina e ESCOBAR, Arturo (Org). Cultura e Política nos movimentos sociais latino-americanos: novas leituras. Minas Gerais: Editora da UFMG. 2000. 31 formações ideológicas de segmentos altamente elitizados da população, tendo atuado, ideologicamente como um fator dissolvente das contradições reais.” Para este autor “Cultura Brasileira”, “Consciência Nacional”, “Caráter Nacional” são muito mais noções ideológicas do que conceitos analíticos. Também para Ianni (1992, p. 145) [...] apenas na aparência a cultura vigente na sociedade brasileira é ‘uma’ cultura. O que parece ser uma ‘cultura brasileira’ é um complexo de modos de viver e trabalhar, sentir e agir, pensar e falar que não se organizam em algo único, homogêneo, integrado, transparente. Assim, observa-se que no âmbito da assistência social há um campo de disputa no qual, sob nova roupagem e com ares de modernidade são mantidas práticas conservadoras como o clientelismo, o assistencialismo, o paternalismo, assim como a caridade e a benemerência praticadas com dinheiro público por executivos municipais ou por fundações e associações diversas, que se dizem prestadoras de serviços assistenciais. Na maioria das vezes, estas entidades têm à frente prefeitos, vereadores, deputados ou pessoas do grupo familiar e/ou político. Por outro lado, e no mesmo campo de disputa, dá-se a construção da assistência social como política pública, direito do cidadão/ã e dever do Estado. No debate que hoje se faz em torno desta política no Brasil, sobretudo no Serviço Social, um dos aspectos fundamentais é a sua afirmação como política social pública orientada por padrões de universalidade e justiça, capazes de devolver a dignidade, a autonomia, a liberdade àqueles que se encontram em situações de exclusão, abrir possibilidades para que estas pessoas estejam em condições de existir enquanto cidadãs(os) e para a incorporação de uma cultura de direitos. 1.2 As noções de cultura e hegemonia na apreensão da “cultura do atraso” A cultura é algo criado no contexto das relações sociais de uma dada sociedade, revela “as diversidades e os antagonismos que se expressam nas práticas dos grupos sociais” (IANNI, 1992, p. 147). Mas ela, por si só, não é 32 suficiente para apreender as questões que envolvem a combinação entre o moderno e o tradicional, o avançado e o atrasado, o autoritário e o democráticopopular na vida brasileira e na política de assistência social especificamente; são mais que uma cultura e relacionam-se ao problema da constituição da hegemonia das classes dominantes e da contra-hegemonia dos dominados. Conforme Ianni (1992, p.155) “a cultura é uma dimensão fundamental da hegemonia que pode ser construída por uma classe, composição de forças sociais, bloco de poder, Estado. Toda configuração hegemônica é necessariamente cultural.” Conforme Williams (1979) e Chauí (1989; 1993b), na sua origem e até o século XVIII, o termo cultura significou “o crescimento e o cuidado das colheitas e animais e, por extensão das faculdades humanas” (WILLIAMS, 1979, p. 18). Para Chauí (1989, p. 50), neste significado inicial do termo reside a idéia de “uma ação que conduz à plena realização das potencialidades de alguma coisa ou de alguém; é fazer brotar, frutificar, florescer e cobrir de benefícios.” A partir do século XVIII, o termo se articula ao de civilização, que indica “estado realizado que se podia contrastar com a ‘barbárie’, mas também um estado realizado de desenvolvimento, que implicava processo histórico e progresso” (WILLIAMS, 1979, p. 19). Conforme Chauí (1989, p. 50), nessa articulação com civilização, cultura passou a significar “o padrão ou critério que mede o grau de civilização de uma sociedade.” A idéia de progresso é aí incorporada de modo que a cultura de uma sociedade passa a ser avaliada pelo progresso que traz a uma civilização. Contudo, essa relação com civilização, conforme Williams (1979, p. 20), não foi tranqüila. É uma relação que ora articula os dois conceitos de forma positiva, ora torna-se uma relação de oposição. O autor mostra que a partir de Rousseau e do movimento romântico houve um sentido alternativo de cultura como “processo de desenvolvimento ‘íntimo’, associando-a com religião, arte, família e vida pessoal, em oposição a civilização e sociedade.” Conforme Chauí (1989, p. 51), desde o século XIX, com o surgimento da antropologia, até as duas primeiras décadas do século XX vai predominar uma abordagem da cultura na qual esta possui uma relação profunda com a idéia de progresso e evolução. E nesta abordagem, o padrão utilizado pelos antropólogos para medir a cultura de uma dada sociedade, foi a Europa capitalista, considerado como “o fim necessário ao desenvolvimento de toda a cultura ou de toda 33 civilização.” Apenas na segunda metade do século XX, é que antropólogos europeus, “irão desmontar essa visão finalizada e evolutiva de cultura.” A partir da antropologia social e da antropologia política, cada cultura é tomada em sua individualidade própria. Com isso, conforme Chauí (1989, p. 51), a cultura “passa a ser entendida como produção e criação da linguagem, da religião, dos instrumentos de trabalho, formas de lazer, da música, da dança, dos sistemas de relações sociais [...] e as relações de poder.” No entanto, essa noção de cultura encontra problemas para se realizar em sociedades de classes, marcadas pelo isolamento, atomização, divisão de classes. Isto origina a divisão da própria cultura entre dominante e dominada, de elite e popular etc. Ainda conforme Chauí (1989, p. 51), a partir do conceito de ideologia, o lugar da cultura dominante é “aquele a partir do qual o exercício da dominação política e da exploração econômica se realiza” e a cultura popular “é aquilo que é possível ser elaborado pelas classes populares e, em particular, pela classe trabalhadora segundo o que se faz no pólo da dominação.” Mas, para a autora a noção de cultura popular não é tranqüila. O termo tem recebido três tratamentos: uma visão romântica de cultura popular, que afirma ser o povo bom e verdadeiro; uma visão iluminista que considera como cultura popular o lugar do resíduo, da tradição, do folclore, da ignorância que precisa ser corrigida pela educação; uma visão populista que articula elementos das duas primeiras e considera que a cultura do povo, por ser feita por ele é boa e verdadeira, mas tal cultura é atrasada e “precisa de um processo pedagógico para se atualizar.” Para Chauí, o conceito que permite apreender a cultura e resolver o problema da ambigüidade que reside na noção de cultura popular é o de hegemonia, porque inclui e ultrapassa os conceitos de cultura e de ideologia. Inclui o conceito de cultura à medida que esta é tomada como “processo social global que constitui a ‘visão de mundo’ de uma sociedade e de uma época”, mas, o ultrapassa, porque “indaga sobre as relações de poder e alcança a origem do fenômeno da obediência e da subordinação.” Inclui o conceito de ideologia ao tomá-lo como “sistema de representações, normas e valores da classe dominante que ocultam sua particularidade numa universalidade abstrata.” Mas, o ultrapassa, porque “envolve todo o processo social vivo, percebendo-o como práxis, isto é, as representações, as normas e os valores são práticas sociais e se 34 organizam como e através de práticas sociais dominantes e determinadas.” (CHAUÍ, 1993a, p. 21). Também para Williams (1979, p. 113), hegemonia é um conceito importante na compreensão do trabalho e da atividade culturais. O autor observa duas vantagens no conceito de hegemonia, para a compreensão da cultura. A primeira vantagem é que “suas formas de domínio e subordinação correspondem muito mais de perto aos processos normais de organização social e controle nas sociedades desenvolvidas.” A segunda vantagem é que “há toda uma maneira de ser a atividade cultural, tanto como tradição quanto como prática.” As tradições e as práticas culturais são mais que expressões superestruturais da estrutura social e econômica. Elas “estão entre os processos básicos da própria formação e, mais, relacionados com uma área muito mais ampla da realidade do que as abstrações da experiência social e econômica” (WILLIAMS, 1979, p. 116). Com base em Gramsci, Chauí ressalta que a hegemonia é “um complexo de experiências, relações e atividades cujos limites estão fixados e interiorizados, mas que por ser mais que ideologia, tem a capacidade de controlar e produzir mudanças sociais.” A hegemonia, se compreendida como cultura numa sociedade de classes, [...] não é apenas um conjunto de representações, nem doutrinação e manipulação. É um corpo de práticas e de expectativas sobre o todo social existente e sobre o todo da existência: constitui e é constituída pela sociedade sob a forma da subordinação interiorizada e imperceptível (CHAUÍ, 1993a, p.22). O conceito de hegemonia aparece em Gramsci ao longo de toda a sua obra6. Luciano Gruppi (1978) afirma que ele é o fio condutor das análises gramscianas. Na obra “A questão meridional” aparece uma das suas primeiras formulações desse conceito, quando ele afirma: “o proletariado pode se tornar classe dirigente e dominante na medida em que consegue criar um sistema de alianças que lhe permita mobilizar contra o capitalismo e o Estado burguês a maioria da população trabalhadora” (GRAMSCI, 1987, p. 139). 6 Importante lembrar que, conforme Gruppi (1978), Portelli (1977), Coutinho (1992), Gramsci recupera de Lenin o conceito de hegemonia. “A hegemonia é o ponto de confluência entre Gramsci e Lênin” (GRUPPI, 1978, p. 1). 35 Nos Cadernos do Cárcere (GRAMSCI, 2001, v.1, p. 84), um dos momentos em que Gramsci refere-se a questão da hegemonia é ao tratar do “estudo da filosofia e da história da cultura.” Após afirmar que todos os homens são filósofos, ele observa que em todo homem existe uma consciência imposta pelo ambiente em que ele vive.” A consciência neste caso é resultado de um processo social. Diante de uma concepção de mundo imposta pelo ambiente exterior coloca-se o desafio de “elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica [...], escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo.” Observa-se, com base nas anotações de Gramsci (2001, v.1, p. 97-103), que ele relaciona hegemonia à concepção de mundo; sobretudo, porque, para ele, filosofia e política não se separam: “a escolha e a crítica de uma concepção de mundo são, também elas, fatos políticos.” Concebendo o marxismo como filosofia da práxis e como uma concepção que orienta a práxis no sentido da transformação revolucionária, argumenta que a filosofia da práxis “não busca manter os ‘simples’ na sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca, ao contrário, conduzi-los a uma concepção de vida superior.” Essa concepção de vida superior, que supõe a compreensão crítica de si mesmo e do mundo “é obtida através de uma luta de ‘hegemonias’ políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da ética, depois no da política, atingindo, finalmente, uma elaboração superior da própria concepção do real.” (GRAMSCI, 2001, v.1, p. 103). Em seguida argumenta: É por isso que se deve chamar atenção para o fato de que o desenvolvimento político do conceito de hegemonia representa, para além do progresso político-prático um grande progresso filosófico. Já que implica e supõe necessariamente uma unidade intelectual e uma ética adequada a uma concepção do real que superou o senso comum e tornou-se crítica, mesmo que dentro de limites ainda restritos (GRAMSCI, 2001, v.1, p. 104). Ao tratar do Risorgimento Italiano, Gramsci apresenta uma das definições mais precisas do que seja hegemonia. O Risorgimento é considerado por ele um exemplo de revolução passiva, a qual caracteriza-se pela exclusão dos sujeitos históricos do processo revolucionário. No caso da Itália esta modalidade de 36 revolução resultou numa ditadura sem hegemonia.7 Sobre a questão da hegemonia, afirma o autor: [...] a supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como ‘domínio’ e como e como ‘direção intelectual e moral’. Um grupo social domina os grupos adversários que visa a ‘liquidar’ ou a submeter inclusive com a força armada, e dirige os grupos afins e aliados. Um grupo social pode e, aliás, deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental (esta é uma das condições principais para a própria conquista do poder), depois, quando exerce o poder e mesmo se o mantém fortemente nas mãos torna-se dominante mas deve continuar a ser também ‘dirigente’ (GRAMSCI, 2001, v. 5, p. 62-63). Com base nestas argumentações de Gramsci, Gruppi (1978, p. 72-73) mostra que o marxismo é para ele a única concepção de mundo que sabe orientar o proletariado no sentido de assumir uma função dirigente, “[...] e, portanto, de construir não só novas relações políticas e estatais mas também uma nova cultura; no sentido de uma reforma intelectual e moral.” Traduzir-se numa reforma intelectual e moral é para Gruppi o significado mais profundo da noção gramsciana de hegemonia, a qual, não é apenas política, mas é também “um fato cultural, moral, de concepção de mundo.” Comentando as análises de Gramsci acerca da “Questão Meridional” o mesmo autor ressalta-a como “capacidade de entender os problemas reais historicamente especificados e de não ser mero expectador das leis gerais do capitalismo.” Em seguida define hegemonia da seguinte forma: [...] determinar os traços específicos de uma condição histórica, de um processo, tornar-se protagonista de reivindicações que são de outros estratos sociais, da solução das mesmas, de modo a unir em torno de si esses estratos, realizando com eles uma aliança na luta contra o capitalismo e, desse modo, isolando o próprio capitalismo (GRUPPI, 1978, p. 58-59). Observa-se que a preocupação central de Gramsci e da maioria dos seus comentadores reside não só em entender os problemas reais de determinado país em um determinado contexto histórico; mas, sobretudo, construir a hegemonia operária com a qual ele buscou contribuir na sua militância socialista. 7 Não se pretende aqui aprofundar a noção de “revolução passiva” em Gramsci. Uma análise desta noção na realidade brasileira é feita em Coutinho (1992) e Vianna (2004). 37 Direção e domínio, conquista da maioria da população trabalhadora a partir da persuasão e do consenso são elementos constitutivos da hegemonia e desafios postos para a classe que deseja superar a subordinação imposta pela ordem capitalista e pelas classes dominantes. A noção de hegemonia, contudo, permite analisar não só a hegemonia das classes subalternas8, mas também a hegemonia das classes dominantes e os instrumentos utilizados por estas no sentido de reproduzir a subalternidade e a dominação da classe trabalhadora hoje. Aceitando a afirmação de Williams de que hegemonia “[..] é no sentido mais forte uma cultura, mas uma cultura que tem também de ser considerada como o domínio e subordinação vividos de determinadas classes” (WILLIAMS, 1979, p. 113), considera-se que os elementos conservadores da formação social do Brasil que constituem o que pode ser chamado de “cultura do atraso”, têm servido como instrumentos utilizados pelas classes dominantes para reprodução das formas de dominação e de controle das classes subalternas e para a manutenção da sua hegemonia. Por isso, observa-se que diante do problema da negação de direitos, e da luta por direitos é preciso considerar a questão da hegemonia burguesa, dos instrumentos que utiliza para se reproduzir historicamente e como vem se construindo a contra-hegemonia. 1.3 A “cultura do atraso” e a formação social brasileira A formação social brasileira é perpassada por relações que privilegiam o favor, o clientelismo, o paternalismo e a privatização do público. Para Francisco de Oliveira (1999, p. 58-59), a nossa formação, se reconstituída pela interpretação de seus intelectuais como Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Machado de Assis, Celso Furtado e Florestan Fernandes, 8 A noção de “classes subalternas” é aqui tomada tal como formulada por Carmelita Yazbek (1993, p. 67-70). Com base em Gramsci, a autora constrói um conceito com o qual procura dar conta tanto dos incluídos, como dos excluídos do mercado formal de trabalho, o que permite contemplar as diferenciações internas das classes subalternizadas. Uma análise que privilegia “a condição de dominação, de exploração e de exclusão do usufruto da riqueza socialmente produzida (contidas na noção de subalternidade).” 38 é um processo complexo de violência, proibição da fala, mais modernamente, privatização do público, interpretado por alguns com a categoria do patrimonialismo, revolução pelo alto e incompatibilidade radical entre dominação burguesa e democracia; em resumo de anulação da política, do dissenso, do desentendimento, na interpretação de Rancière (OLIVEIRA, 1999, p. 59). Em um outro momento, tratando da assistência social Oliveira (1998b) vê como um grande desafio a superação dos traços da “cultura do atraso”, que, historicamente, predominaram nesta área. A constituição da assistência social como política pública percorre um longo caminho no país ‘cordial’ de Sérgio Buarque de Holanda, em que a sociabilidade do favor era – e ainda é – a moeda de troca das relações sociais, principalmente entre dominantes e dominados. A área da assistência social presta-se, como poucas, a essa cordialidade. Desfazer isto que é quase uma ‘segunda natureza’ das relações de dominação no Brasil, para transformá-la numa esfera pública não burguesa que ao mesmo tempo se estrutura nos direitos e reforça-se com sua prática não é uma tarefa para poucas décadas (OLIVEIRA, 1998b, p. 12-13). Outra abordagem dessa questão é feita por Marilena Chauí (1999, p. 4244), a partir da análise das relações sociais e políticas que constituem a formação social brasileira. A autora caracteriza a sociedade brasileira como autoritária e violenta, identificando quatro características que justificam essa caracterização: relações sociais hierárquicas; relações sociais e políticas fundadas em contatos pessoais; profundas desigualdades sociais e econômicas, que reproduzem carências e privilégios; uma sociedade em que a lei não é percebida como expressão de uma vontade social. Ao predominar relações sociais hierárquicas “os sujeitos sociais se distribuem como superiores mandantes competentes e inferiores obedientes e incompetentes” (CHAUÍ, 1999, p. 42). Neste tipo de relação não opera, segundo a autora, nem o princípio da igualdade formal-jurídica e nem o da igualdade social real, Conservando a marca da sociedade colonial escravista, ou aquilo que alguns estudiosos designam como cultura senhorial, a sociedade brasileira é marcada pela estrutura hierárquica do espaço social que determina a forma de uma sociedade fortemente verticalizada em todos os seus aspectos: nela as 39 relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece [...]. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. As relações entre os que se julgam iguais são de ‘parentesco’, isto é, de cumplicidade ou de compadrio; e entre os que são vistos como desiguais o relacionamento assume a forma do favor, da clientela, da tutela ou da cooptação (CHAUÍ, 2001a, p. 89). O paradigma da relação sócio-política, nesta perspectiva, é o favor, a clientela e a tutela. O que também já foi apontado por Sérgio Buarque de Holanda (1995), em seu clássico Raízes do Brasil, no qual mostra que é muito presente na formação brasileira o acesso a bens e serviços a partir de vínculos de amizade, de camaradagem e de favor; e nunca por uma relação de direito, de autonomia no aspecto institucional. Segundo este autor, até mesmo as relações no campo da produção, do comércio eram marcadas por esse caráter pessoal: “assim, raramente se tem podido chegar à esfera dos negócios a uma racionalização; o freguês ou cliente há de assumir de preferência a posição de amigo.” Para o autor, a dificuldade de aplicação de normas de justiça e de prescrições legais que se encontram nos países hispânicos e inclusive no Brasil, pode ser explicada por um comportamento social no qual “o sistema de relações se edifica essencialmente sobre laços diretos de pessoa a pessoa” (HOLANDA, 1995, p.134). Tal relação é a que predomina, na gestão pública, nela, segundo Holanda (1995, p. 146), a escolha dos que “irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos e muito menos de acordo com as suas capacidades próprias.” No Brasil, o funcionário burocrático só excepcionalmente serve a interesses objetivos ou a “ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático.” Outra característica apontada por Chauí é a que polariza a sociedade brasileira entre carência e privilégio, e tem origem, segundo a autora, não só na concentração de renda mas também na forma contemporânea do capitalismo e da política liberal. Ela opera “com o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado, com o desemprego estrutural e a exclusão sóciopolítica.” A desigualdade na distribuição de renda “não é percebida como forma 40 dissimulada de apartheid social ou como socialmente inaceitável, mas é considerada natural e normal” (CHAUÍ, 2001a, p. 93, grifos da autora). Neste contexto, os direitos não se instituem e não há condições para a efetivação da cidadania e da democracia. Com isso, a lei “opera como repressão do lado dos carentes e como conservação de privilégios, do lado dos dominantes” (CHAUÍ, 1999, p. 43). Por esse motivo, afirma a autora, “as leis são necessariamente abstratas e aparecem como inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para ser transgredida e não para ser cumpridas nem, muito menos, transformadas” (CHAUÍ, 2001a, p. 90). Outra característica é a indistinção entre o público e o privado, que tem sua origem na própria colonização, quando a Coroa doava, arrendava ou vendia terras, deixando-as nas mãos de particulares “que dividiam a autoridade administrativa com o estamento burocrático.” Marilena mostra que essa partilha de poder torna-se, no Brasil a forma mesma da realização da política e de organização do aparelho do Estado em que os governantes e parlamentares ‘reinam’ [...], mantendo com os cidadãos relações pessoais de favor, clientela e tutela, e praticam a corrupção sobre os fundos públicos. Do ponto de vista dos direitos, há um encolhimento do espaço público; do ponto de vista dos interesses econômicos, um alargamento do espaço privado (CHAUÍ, 2001a, p. 90). Em um estudo destinado a fazer um balanço da formação do Estado, da sociedade e do direito no Brasil, no final do século XX, Dalmo de Abreu Dallari (2000, p. 449) também ressalta que um dos mais graves vícios herdados do período colonial “é a concepção de que os interesses privados são sempre absolutamente predominantes”, justificando-se até o uso de “recursos públicos para satisfação do interesse exclusivo de uma pessoa ou grupo da elite” (DALLARI, 2000, p. 449). Outra característica do autoritarismo da sociedade brasileira, relaciona-se àquilo que Carlos Nelson Coutinho (1988, p. 42-43) observa como “via prussiana”. Segundo este autor todos os processos de transformação ocorridos na história do Brasil não resultaram de movimentos de baixo para cima, envolvendo o conjunto da população “mas, se processaram sempre através de uma conciliação entre os representantes dos grupos opositores economicamente dominantes, configuração 41 que se expressa sob a figura política de reformas ‘pelo alto’." Uma conciliação pelo alto que não esconde jamais, segundo o autor, “a intenção explícita de manter marginalizada ou reprimidas [...] as classes e camadas sociais ‘de baixo’.” Nesta mesma linha é que Chauí (2001a, p. 91-92) identifica que somos uma formação social que tem desenvolvido ações e imagens “com força suficiente para bloquear o trabalho do conflito e contradições sociais, econômicas e políticas.” Um exemplo disso são as ideologias do “caráter nacional” e “identidade nacional” e o papel que tiveram no sentido de negar conflitos, diferenças e construir a imagem de uma sociedade “indivisa, pacífica, ordeira.” Diante disso todo conflito é visto como “perigo, crise, desordem e a eles se oferece como resposta única à repressão policial e militar, para as camadas populares e o desprezo condescendente para os opositores em geral”. Conforme a autora, no Brasil a sociedade auto-organizada sempre aparece como perigosa para o Estado e para o funcionamento racional do mercado. Chauí (2001a, p. 92) ressalta ainda o fascínio que exerce em nossa sociedade os signos de prestígio e de poder como se pode observar no uso de títulos honoríficos “sem qualquer relação com a possível pertinência de sua atribuição.” A autora cita como exemplos: o uso do título de “doutor”, a manutenção de criadagem doméstica (sua quantidade indica prestígio, status), a valorização dos diplomas e o desprezo pelo trabalho manual revelado no “descaso pelo salário mínimo, nas trapaças no cumprimento de insignificantes direitos trabalhistas existentes e na culpabilização dos desempregados pelo desemprego.” E mais: A existência dos sem terra, dos sem teto, dos milhões de desempregados é atribuída à ignorância, à preguiça e à incompetência dos miseráveis. A existência de crianças sem infância é vista como tendência natural dos pobres à vadiagem, à mendicância e à criminalidade. Os acidentes de trabalho são imputados à incompetência e à ignorância dos trabalhadores. As mulheres que trabalham fora se não forem professoras, enfermeiras ou assistentes sociais, são consideradas prostitutas em potencial e as prostitutas, degeneradas, perversas e criminosas, embora, infelizmente, indispensáveis para conservar a santidade da família (CHAUÍ, 2001a, p. 92). 42 Também para Dallari (2000, p. 475) há na sociedade brasileira um autoritarismo em todas as relações sociais, observado, por exemplo, na arrogância das elites brasileiras para com as camadas mais pobres, além da indiferença com que sempre trataram as suas necessidades humanas e sociais. Para as elites, a pobreza e as dificuldades dos outros sempre foram “sinais de indolência ou incompetência.” Nesta perspectiva, os direitos são estabelecidos “partindo do pressuposto de que a proteção do patrimônio e a liberdade econômica são os valores fundamentais da pessoa.” Ao mesmo tempo “dá-se caráter assistencial à criação e ao uso de serviços públicos e à ocupação de cargos no setor público.” Estas práticas, reproduzidas até hoje contribuem para que em muitas regiões do país uma parcela considerável da população interprete o acesso a serviços públicos, como o acesso à escola ou a serviços de saúde, como favor pessoal e ato de caridade de chefes políticos locais (DALLARI, 2000, p. 450). E não só isso. Muitas vezes, o acesso a bens e serviços públicos é feito através da troca destes serviços por votos. A este respeito destaca-se uma reportagem da Folha de São Paulo de 10 de julho de 2000 acerca da troca de votos por doações em São Paulo. Segundo o jornal, para cativar eleitores, vale doar de boi a cadeira de rodas, de óculos a material de construção, de enxoval a remédio, passando pela tradicional cesta básica. A rede assistencialista não pára por aí: oferece advogado, emprego, patrocina campeonatos, banca transporte gratuito, cede ambulâncias (IZIDORO; GOIS, 2000, p. 1). Em Natal, Rio Grande do Norte, este fenômeno também é bastante presente, e não é algo que ocorra apenas em períodos eleitorais. Um número significativo de vereadores, normalmente pertencentes ao bloco de sustentação do Executivo Municipal, criam fundações por meio das quais atuam em uma ou mais região administrativa da Cidade. Tais fundações, sustentadas com recursos públicos, efetuam todo tipo de ação assistencialista: consultas médicas, odontológicas, concessão de cadeiras de rodas, óculos, ambulâncias, transporte especial para eventos comunitários, treinamentos e cursos profissionalizantes; ajuda para funerais, medicamentos etc. 43 Ao mesmo tempo, no campo das classes subalternas, há um número considerável de associações de bairros e conselhos comunitários, orientados por uma concepção de movimento popular, baseada na lógica da colaboração com o Estado e com grupos dominantes locais, os quais reproduzem práticas tradicionais e não-democráticas, no interior do movimento; e numa relação com o Estado, baseada no favor, no clientelismo. Este tipo de prática, é bastante fortalecida, à medida que ocupam o poder, governantes descomprometidos com a democratização da gestão das políticas sociais públicas e que mantêm com estas organizações, relações clientelistas e paternalistas. Assim, observa-se que aquilo que se configura como práticas conservadoras ou “cultura do atraso” no campo da assistência social, não é algo do passado e nem exclusivo da assistência social. Com raízes na formação social brasileira, são práticas que dominam a vida política do país ainda hoje. Contudo é importante considerar que na atualidade elas têm um “revestimento moderno que lhe dá uma fachada burocrático-racional-legal” nos termos de José de Souza Martins (1999, p. 20). Conforme o autor, a reprodução de vínculos clientelísticos entre políticos e eleitores nos dias atuais, não acontece pelas velhas práticas patrimonialistas. Como o patrimônio pessoal já não consegue fazer face ao tamanho da clientela e o uso declarado do patrimônio público tornou-se mais difícil, o uso dos recursos públicos se faz hoje pela via das entidades assistenciais e fundações filantrópicas, muitas delas criadas pelos próprios políticos. Além disso, a manipulação de verbas nos orçamentos locais, estaduais e federal é outro caminho que tem sido utilizado para a “privatização do público” e para a reprodução da cultura do favor (MARTINS, 1999, p. 42-43). A esse respeito vale destacar a reprodução destas práticas na relação sócio-política entre parlamentares federais, prefeitos e governadores, conforme revela uma pesquisa desenvolvida por Marcos Otávio Bezerra (1999, p. 23). O autor investigou como atuam os parlamentares federais com vistas à liberação de recursos em favor de estados e municípios a que se vinculam politicamente. Em primeiro lugar ele mostra que o próprio processo de coleta de dados no Congresso Nacional só foi possível pela mobilização das redes pessoais dos funcionários: “o que pesava para que eu fosse atendido era sobretudo o pedido 44 direto das pessoas ou o fato de me apresentar em nome das indicações pessoais que me haviam sido feitas.” Em torno da atuação dos parlamentares federais, objeto da referida pesquisa, o relato de um dos seus entrevistados é exemplar de como se processa a troca de favores e serviços entre estes e os prefeitos: Quando você volta seu pensamento para a base eleitoral, para o município propriamente dito, o prefeito é o cabo eleitoral mais importante. Ele traz recursos pra obra, faz a obra com recursos públicos e depois ele inaugura em nome do candidato (ao parlamento). [...] Essa é uma forma, faz e essa obra é inaugurada em nome do parlamentar e diz: ‘Pra eu continuar inaugurando mais eu preciso eleger fulano, eleger sicrano’. Outra forma são os empregos. Mas você pode dizer que a legislação não permite empregar, mas se emprega em cargos melhores da administração porque são cargos de confiança. Então o deputado chega e pede ao prefeito e o prefeito emprega fulano, sicrano, quer amarrar a família, aí é contratado alguém daquela família e assim por diante. Até mesmo não empregando, segurando quem está no emprego. Esses são os fatos mais comuns, tem outros, como uma comunidade quer um benefício, quer uma estrada, produtor quer algum morador, algum sitiante, ou produtor quer uma represa, vai falar em nome do deputado e assim por diante (BEZERRA, 1999, p. 135). Nessa mesma linha, em um trabalho destinado a analisar a prática parlamentar na Câmara dos Deputados, após as inovações institucionais introduzidas pela Constituição de 1988, Novaes (1994, p. 103) destaca o depoimento do deputado Israel Pinheiro Filho do PMDB de Minas Gerais em que este afirma que o deputado é, em geral, um procurador de partes. “Governista por vocação e por necessidade, ele trata de arrumar durante os quatro anos de mandato verbas para os seus municípios preocupado, com a sua reeleição.” Um outro depoimento citado por Novaes, o do deputado Paulo Bernardo do PT-PR, é exemplar do enraizamento desse tipo de relação entre representantes do legislativo federal e executivos municipais na cultura política brasileira: a pressão em cima dos parlamentares para conseguir recursos no orçamento existe, nós temos a prefeitura lá em Londrina que é uma prefeitura do PT. Nosso prefeito fez reuniões com vários deputados, fez reunião comigo, para pedir empenho e conseguir recursos da União para o município. Isso existe. Parlamentar que não consegue se articular aqui para conseguir alguma coisa, ele praticamente não existe, porque do ponto de vista lá das 45 paróquias, vamos chamar assim, ele não está fazendo nada (NOVAES, 1994, p. 103). No âmbito da assistência social a pesquisa coordenada por Boschetti (2003a, p. 114) junto aos conselhos estaduais e municipais de assistência social por ocasião do processo preparatório da IV Conferência Nacional de Assistência Social, revelou que as emendas parlamentares normalmente são dissociadas dos planos municipais ou estaduais de assistência social, não passam por discussão nos conselhos, nem na formulação, nem no recebimento e aplicação dos recursos, “privilegiam programas pontuais, descontínuos, à medida que parlamentares não se baseiam nos princípios da política de assistência social.” Além disso, com freqüência as esferas municipais desconhecem a “existência de emendas federais destinadas a entidades situadas em seu município.” Contudo, a referida pesquisa mostrou que há iniciativas que apontam para uma outra direção: a de assegurar a política de assistência social como direito, dependendo da atuação dos conselhos. Se na elaboração da emenda é dado parecer do conselho, se este atua junto ao Legislativo para disponibilizar recursos das emendas para o Fundo, se consegue sensibilizar o legislativo para a elaboração de emendas conforme as definições do Plano de Assistência Social, há grandes possibilidades destes recursos de emendas parlamentares, ao invés de reforçarem o clientelismo, ampliarem o montante de recursos para a área e a abrangência das ações; e, conseqüentemente, há o fortalecimento da dimensão pública e do direito, contra o favor, a tutela e o uso de recursos públicos para atender aos interesses privados, como é o caso da utilização de recursos destas emendas para beneficiar entidades assistenciais dos próprios parlamentares (BOSCHETTI, 2003a, p. 114). Ao tratar da construção da democracia política na América Latina O’Donnel (1993, p.130) observa que regiões como o Nordeste brasileiro e toda a Amazônia, as terras altas do Peru e o Centro e Nordeste da Argentina “são exemplos da evaporação da dimensão pública do Estado.” Neste sentido, ele faz uma caracterização na qual imagina um mapa de cada um desses países com as seguintes características: [...] as áreas cobertas pela cor azul designariam aquelas onde há um alto grau de presença do estado (em termos de um conjunto 46 de burocracias razoavelmente eficazes e da efetividade da legalidade devidamente sancionada) seja funcionalmente, seja territorialmente; a cor verde indica um alto grau de penetração territorial e uma presença significativamente mais baixa em termos funcionais/de classe; e a cor marrom um nível muito baixo ou nulo nessas duas dimensões (O’DONNEL, 1993, p.13) Frente a um mapa assim, afirma que “o Brasil e o Peru seriam dominados pelo marrom, e na Argentina a extensão do marrom seria menor.” São países onde há eleições, governadores, legisladores, mas que no entanto, tanto os partidos como os governos locais “funcionam com base em fenômenos como o personalismo, o nepotismo, o prebendalismo e o clientelismo.” Sobre os partidos que funcionam nessas regiões marrons afirma: “não são mais do que máquinas personalistas avidamente dependentes das prebendas que podem extrair das agências estatais” (O’DONNEL, 1993, p.130). 1.4 A “cultura do atraso” e a assistência social No campo da assistência social, as práticas que conformam a “cultura do atraso” são diversificadas e nem sempre facilmente identificadas; sobretudo porque uma das suas características é o caráter privado, doméstico e não publicizado. Mesmo assim, a trajetória da assistência, segundo o que é possível identificar na literatura em torno desta política social, apresenta pelo menos quatro caminhos pelos quais estas práticas se realizam: o clientelismo, o primeirodamismo, a filantropia e o seu caráter de ajuda e caridade, benemerência. Estas não ocorrem separadamente, a existência de uma não exclui a outra; muito pelo contrário, com freqüência, é possível que se realizem, concomitantemente, numa mesma realidade, alimentando-se mutuamente. Muitas vezes, uma depende da outra. A filantropia, por exemplo, é espaço para o clientelismo, para a benemerência e para o caráter de ajuda que, por sua vez, alimenta e conforma a assistência praticada pelo “primeiro-damismo”. O clientelismo, segundo Avelino Filho (1994, p. 225), foi inicialmente utilizado pelos antropólogos para demarcar “as relações de poder pessoal existentes em pequenas comunidades.” O uso do termo pelos cientistas políticos 47 relaciona-se a estudos das ‘sociedades em desenvolvimento’, a fim de explicar “os desajustes entre desenvolvimento econômico-social e a falta de estabilidade das instituições públicas.” Em sociedades tradicionais, tal como existiu em Roma, conforme Mastropaolo (1995, p. 177), o clientelismo, consistia numa “relação entre sujeitos de status diversos” e ocorria na “órbita da comunidade familiar”. Esta relação de dependência aí era tanto econômica como política e era sancionada pelo foro religioso “entre um indivíduo de posição mais elevada (patronus) [...] e um ou mais clientes, geralmente escravos libertos ou estrangeiros imigrados.” A retribuição dos clientes ocorria por meio da submissão e da deferência, assim como obedecendo e auxiliando o patronus de variadas maneiras. No Brasil, sobretudo no Nordeste, o clientelismo como forma de fazer política, tem sua origem com o coronelismo e o caráter autoritário e paternalista do Estado. Segundo Bursztyn (1985, p. 17), o Estado brasileiro sempre se manifesta pelo seu caráter autoritário e “busca sua legitimação por meio do paternalismo.” As relações de paternalismo que o governo central estabelece com os líderes locais e as relações de obediência e fidelidade destes em relação ao poder central, são, para este autor, os ingredientes básicos do clientelismo no Brasil, inclusive após o desaparecimento da figura do coronel. A este respeito Mastropaolo (1995, p. 177-178), mostra que as relações de vínculo pessoal e clientela existente numa sociedade tradicional conseguem sobreviver em sociedades modernas, tanto em administrações centralizadas quanto em sociedades com perfeito funcionamento de instituições como partidos, parlamento, eleições etc. Segundo o autor, no sistema político moderno, o clientelismo tende a “coligar-se e integrar-se numa posição subordinada ao sistema político.” Neste sentido, “tende a afirmar-se um outro estilo de clientelismo que compromete, colocando-os acima dos cidadãos, [...] os políticos de profissão, os quais oferecem em troca de legitimação e apoio toda a sorte de ajuda pública que têm a seu alcance.” No âmbito da produção teórica sobre a política de assistência social, um dos trabalhos que apreende a reprodução destas relações é o de Cleonice Correia Araújo (2001). Tomando como referência o Programa de Ação Continuada (PAC) desenvolvido em São Luís, no Maranhão, a autora destaca as relações que permeiam o processo de construção da assistência social como 48 política pública, procurando demonstrar como as relações clientelistas presentes na formação social brasileira “se consolidam nos diferentes espaços sociais e políticos, afirmando-se como mediações que se instauram, num primeiro momento no denominado campo da esfera privada, disseminando-se posteriormente, para a esfera pública.” A autora analisa então a dinâmica de implementação deste programa, cuja execução é feita por entidades privadas-filantrópicas, mediante a celebração de convênio entre estas e a Fundação Municipal da Criança e da Assistência Social. O PAC, antes gerenciado pela LBA passou a ser assumido pela referida fundação com o processo de descentralização/municipalização da assistência social e após a extinção da LBA. O trabalho investiga a relação estabelecida entre tais entidades e o órgão gestor da assistência social no Maranhão, assim como a influência de lideranças políticas no acesso de tais entidades a recursos da assistência social. Araújo (2001, p. 87) constata entre os dirigentes das entidades que executam o PAC o privilegiamento e a valorização das relações pessoais no acesso aos convênios, relações estas que assumem aspectos de normalidade. “A construção e a afirmação de relações de amizade com políticos, funcionários são fundamentais para que a entidade cumpra o seu papel de beneficiar a comunidade.” Em um dos depoimentos de dirigentes das entidades pesquisadas, citados pela autora, há um relato exemplar destas relações. As descrever certa dificuldade enfrentada na prestação de contas de um projeto o dirigente afirma que só conseguiu resolver o problema mediante a colaboração de “um grande amigo lá da prefeitura.” Em troca, o amigo só pediu “apoio para eleição do Prefeito. Eu disse que tudo bem. Chamei o pessoal da Associação, os pais das crianças, os idosos. Aí eu expliquei pra eles o que aconteceu. Pois olhe, eu consegui mais de 200 títulos (de eleitor).” O trabalho afirma a existência de processos de rupturas e continuidades nas relações de favor, caridade, compadrio e assistencialismo no âmbito da assistência social. Tanto no aspecto burocrático-legal, quanto político- institucional, a “cultura do atraso” resiste ou convive com medidas destinadas a conferir direitos e o caráter público das ações de assistência social. A autora ressalta também que, para os usuários, o acesso a bens e serviços não se apresenta como um direito, mas resultado da bondade de alguém, seja um 49 político, um dirigente de entidade, um funcionário da prefeitura ou um assistente social (ARAÚJO, 2001, p. 129-130). Referindo-se a ocorrência de práticas assistencialistas e clientelistas no campo das políticas sociais e de modo particular da assistência social, Yazbek (1993, p. 41) chama a atenção para a ausência do reconhecimento de direitos, que acontece nas relações baseadas nestas práticas. Para a autora, Trata-se de um padrão arcaico de relações que fragmenta e desorganiza os subalternos ao apresentar como favor ou como vantagem aquilo que é direito. Além disso, as práticas clientelistas personalizam as relações com os dominados, o que acarreta sua adesão e cumplicidade, mesmo quando sua necessidade não é atendida. As entidades pesquisadas por Cleonice Correia de Araújo (2001) estão entre aquelas que constituem o campo da filantropia e esta é uma marca da assistência social. Mesmo inscrevendo-se como política pública na Constituição de 1988, até o presente ela incorpora, em todo o Brasil, uma rede de entidades privadas-filantrópicas prestadoras de serviços de assistência social voltados, sobretudo, para a parcela dos usuários constituída por crianças, idosos e pessoas com deficiência. A filantropia tem suas raízes na Igreja Católica, que a difundiu e conferiu caráter de caridade e benemerência. Originalmente, a palavra significa “amor ao outro, a humanidade” (SPOSATI, 1994, p. 75). Diz respeito às práticas de ajuda aos pobres desenvolvidas por organizações da sociedade civil. Com freqüência tem sido associada à assistência social e sua origem no Brasil remete ao período colonial quando são criadas as primeiras casas de misericórdia enquanto ação social de ordens religiosas.9 Contudo, apesar de ser uma presença antiga, foi somente a partir de 1943, quando o Conselho Nacional de Serviço Social – CNSS10 assumiu a função de atribuir mérito na concessão de certificados de filantropia, que esta se 9 Vale destacar dois importantes estudos que analisam a questão da filantropia no Brasil: a pesquisa do Núcleo da Seguridade e Assistência Social (SPOSATI, 1994) e o trabalho de MESTRINER (2001), que analisa a filantropia no país na sua relação com a assistência social, desde a origem até sua a configuração recente. Lançou-se mão destes dois trabalhos para as considerações que são feitas aqui sobre o assunto. 10 O CNSS foi criado em 1938 e significou a primeira regulamentação da assistência social no Brasil (MESTRINER, 2001, p. 56-57). 50 institucionalizou no Brasil. Tal certificado é até hoje requisito para que entidades sem fins lucrativos tenham acesso a recursos públicos e a isenções fiscais. A esse respeito, afirma Mestriner (2001, p. 102): “o Estado não só incentiva a benemerência e a solidariedade, mas passa a ser responsável por ela, regulandoa, por meio do CNSS.” Neste processo, o que tem marcado a relação entre Estado e organizações filantrópicas no Brasil é o princípio da subsidiariedade, com o qual a responsabilidade pública diante da questão social é transferida para o indivíduo, para a família e para a sociedade. Por meio deste princípio, a ação do Estado no campo da proteção social, foi sempre suplementar às iniciativas privadas, “instalando uma política de reconhecimento e reforço às instituições sociais já existentes referendando uma atenção só emergencial e transitória” (MESTRINER, 2001, p. 287). Mas, o predomínio do princípio da subsidiariedade não é uma especificidade brasileira. Pesquisas recentes realizadas em Portugal constatam o que os autores portugueses denominam de “sociedade providência” como uma das estratégias de sobrevivência utilizadas pelos que se encontram em situação de exclusão social. Esta se efetiva através da constituição de uma significativa rede de solidariedade e entreajuda a partir dos laços de parentesco e que se manifesta no cuidado para com os idosos, as crianças, os deficientes; na partilha de bens como terra, a habitação, roupas e comida (HESPANHA et al., 2000, p. 92-95). Há, naquele país, um conjunto diversificado de instituições da sociedade civil, que realizam proteção social e que revelam a crescente redução do comprometimento do Estado com a questão. Em geral, são entidades ligadas às Igrejas entre as quais as seculares misericórdias ligadas à Igreja católica, organizações de caráter humanitário e caritativo, fundações tradicionais ou modernas orientadas para captação de fundos comunitários (normalmente originados na União Européia), variadas formas associativas como cooperativas, associações de voluntários, fundações ou organizações empresariais, além de formas não institucionalizadas de ações assistenciais realizadas com recursos materiais e humanos ligados à caridade cristã, ao trabalho voluntário e às doações particulares (HESPANHA, 2000). 51 Na realidade brasileira, constata-se, a partir dos anos de 1980 um crescimento do chamado “terceiro setor”, ou das organizações sem fins lucrativos; entre as quais se inclui o leque das chamadas entidades assistenciais, para as quais os governos (municipal, estadual e federal) têm transferido a responsabilidade da atenção à população mais empobrecida. Esse, contudo, é um campo muito heterogêneo no qual, como lembra Raichelis (1998, p. 236), não é possível fazer generalizações simplificadoras. Tais organizações se diferenciam não só pelo acesso a fundos públicos, mas, sobretudo, pela forma como se constituem, por suas práticas, concepções de sociedade e de Estado que incorporam etc. Neste campo complexo, e que não será aprofundado no âmbito deste trabalho,11 é preciso distinguir, por exemplo, aquelas organizações assistenciais, confessionais ou laicas, antigas ou novas e que, dependem de recursos públicos para realizar os serviços que justificam a sua existência e que de um modo geral, substituem o Estado e assumem a determinação neoliberal de que o cuidado para com os indivíduos que não conseguem se realizar no mercado é responsabilidade da sociedade. Estas organizações necessitam serem distinguidas daquelas que possuem um caráter mais movimentalista, o qual caracteriza as organizações que surgem desde os anos de 1970, em estreita relação com os movimentos populares, normalmente apoiadas por organismos de cooperação internacional e filiadas à Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais – ABONG e cuja existência e práticas são pautadas na luta por direitos. Estudo publicado recentemente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (INSTITUTO..., 2004), construiu o perfil das fundações privadas e associações sem fins lucrativos no Brasil. Segundo este estudo, há 275.895 dessas organizações atuando nas áreas de habitação, saúde, cultura e recreação; educação e pesquisa; assistência social, religião, associações patronais e profissionais; meio ambiente e proteção animal; desenvolvimento e defesa de direitos; e outras, não especificadas. Até 1970 existiam, no país, 10.998 organizações dessa natureza; já em 1990, elas eram 105.826. Mas, o período no qual o estudo registra maior crescimento é 1991-2000, quando são criadas 139.187. Neste universo observa11 Para um aprofundamento da questão, ver o trabalho: MONTAÑO, Carlos (2002). Terceiro Setor e Questão Social. Crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002. 52 se o crescimento significativo das entidades voltadas para atividades de defesa de direitos e associações patronais e profissionais. Elas representavam 68 mil ou 40% do total de organizações em 2002. As organizações que atuam, prioritariamente, na área de assistência social representam 12% do total das fundações e associações sem fins lucrativos. O estudo inclui aí as entidades voltadas para o atendimento de grupos específicos da população (crianças, adolescentes infratores, idosos, pessoas com deficiência, dentre outros). Mas, ressalta: “Nesta área verifica-se uma ambigüidade de fronteiras com o campo das religiões, onde a função confessional aparece muitas vezes imbricada com a ação social secular e pública” (INSTITUTO..., 2004, p. 32). Contudo, este não é o único problema. Em tal universo, é preciso considerar também que muitas organizações classificadas em áreas como educação e saúde podem prestar serviços de assistência social, como é o caso da rede de creches, que em muitos municípios não foram transferidas para a educação e ainda integram a rede de prestadores de serviços de assistência social, assim como um conjunto de instituições que prestam serviços de saúde as pessoas com deficiência. Neste caso, o número de organizações de assistência social poderá ser superior ao que o estudo classificou como tal. Além disso, é preciso ressaltar que, no âmbito da assistência social, permanece até hoje, na relação entre Estado e organizações de assistência social, a ausência de definição de regras claras, pautadas no estatuto do direito e que sejam capazes de garantir serviços de qualidade aos usuários. A existência da filantropia tem conferido ao Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS uma dimensão executiva, que não se encontra em nenhum outro conselho ligado as políticas públicas. O CNAS herdou a função antes exercida pelo CNSS de conferir “registro e certificado de filantropia às entidades que buscam subvenções, isenções de taxas e impostos” os quais são facultados por uma legislação das décadas de 1930-1940 (RAICHELIS, 1998, p. 241). Analisando a relação entre assistência social e filantropia Sposati (2001a, p. 75-76) pontua as principais questões que demarcam o que chama de paradigma conservador e paradigma progressista na assistência social. No paradigma conservador “o direito é travestido de concessão, permanecendo tão só no plano da retórica.” Considera que o atendimento às necessidades sociais é responsabilidade do indivíduo “admitindo, quando muito, propostas focalistas 53 sempre fundadas na subsidiariedade.” Na perspectiva da filantropia a assistência social é campo da “moral privada e não da ética pública.” Conforme a autora, O modelo conservador trata o Estado como uma grande família, na qual as esposas de governantes, as primeiras damas, é que cuidam dos ‘coitados’. É o paradigma do não-direito, da reiteração da subalternidade, assentado no modelo do Estado patrimonial. [...] Neste modelo, a assistência social é entendida como espaço de reconhecimento dos necessitados sociais. Suas ações devem configurar o reconhecimento dos ‘homens bons’ nos moldes dos tempos coloniais. Estes se ‘dignificam’ pelas ações sem fins lucrativos que exercem. [...] Assim, alguns políticos, partidários dessa concepção conservadora, doam esmolas, subvenções, contribuições ou entendem o poder como uma distribuição filantrópica de bens. Desloca-se, no caso, o poder de Estado para o das instituições de benemerência e filantropia que nem sempre mantêm uma clara relação de parceria fundada na política pública asseguradora de direitos. Essas ações negam direitos ao invés de afirmá-los (SPOSATI, 2001a, p. 76). Outra questão ressaltada pela autora é a necessidade de distinguir, no campo da filantropia, “a prática de subsidiariedade e a de parceria no âmbito da assistência sócial.” Enquanto a subsidiariedade nega a responsabilidade do Estado, a parceria “deve estar assentada na política pública e no compromisso de Estado” (SPOSATI, 2001a, p. 77, grifos da autora). A subsidiariedade reforça e atualiza o que Yazbek (1996) tem considerado “refilantropização da questão social”. Para Sposati (2001a, p. 76), na perspectiva do paradigma progressista a questão social é assunto de justiça social e pública. Nele, a assistência social se funda na “redistributividade, no direito e na cidadania.” Trata-se de uma concepção de assistência social que supõe atendimento a necessidades sociais fora do mercado. Assim, tanto no campo da assistência social, como na sociedade como um todo, as marcas de uma “cultura do atraso” persistem e são instrumentos para a hegemonia das classes dominantes e a sua sempre renovada permanência nos espaços de poder do Estado em todos os níveis. Essas práticas, à medida que são mantidas e reproduzidas, contribuem para retardar a realização de direitos e a construção de uma cultura política baseada no direito, na ética, na cidadania, nas relações democráticas horizontais e na participação popular. Contudo, esse também é um campo de disputa e a vitória das forças do atraso não está dada. 54 Há, ao mesmo tempo, a conquista legal de direitos e a luta por efetivá-los, tanto em nível da sociedade, quanto no interior do próprio Estado. 55 CAPÍTULO 2 DIREITOS, CULTURA DE DIREITOS E ASSISTÊNCIA SOCIAL 2.1 O debate sobre a questão dos direitos na sociedade capitalista Pensar sobre direitos na contemporaneidade remete à discussão dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais, ambientais, civis e políticos, além dos “novos direitos”, como os relativos às questões ambientais, de gênero, de raça, de etnia e de geração (criança e adolescente, terceira idade, juventude). Neste trabalho, ao tratar de “direitos”, não se pretende dar conta do amplo leque de questões que o tema envolve. A preocupação é situar aspectos do debate sobre o tema, que possam orientar e fundamentar as reflexões acerca da assistência social enquanto política pública e direito social; assim como a discussão sobre as possibilidades de uma cultura de direitos no âmbito desta política. Neste sentido, pareceu pertinente trazer presente o debate e as lutas atuais em torno dos direitos sociais no contexto das discussões sobre direitos humanos, econômicos, sociais e culturais (DhESC).12 O tema “direitos” remete à questão da cidadania. A discussão da cidadania, na sociedade capitalista, diz respeito às formas de compreender a questão da igualdade e da desigualdade nesta sociedade, e a luta de grupos e classes por participação no poder político e na riqueza social. Numa perspectiva liberal, a cidadania relaciona-se às lutas da nascente burguesia, para impor limites ao poder estatal. Neste caso, a luta foi basicamente por direitos civis, os 12 Um dos trabalhos recentes que procura difundir este debate e oferecer uma contribuição conceitual sobre o tema dos direitos é o de ORTIZ, Maria Helena Rodrigues (Org.). Justiça social: uma questão de direito. Rio de Janeiro: FASE/DP&A. 2004. 56 quais, até o presente, se referem à liberdade individual e destinam-se a regular a vida privada. Liberdade, é quase sempre para os liberais, o direito a liberdade de propriedade, o que aponta para a desigualdade. Conforme Nogueira (2001, p. 89), “a postulação liberal dos direitos civis sempre admitiu tranqüilamente a desigualdade social, a dominação de classe, a escravidão e a colonização, a exploração do trabalho e a submissão de grupos específicos da sociedade.” Numa perspectiva keynesiana e social democrata, Marshall (1967), a partir da realidade concreta de seu país, a Inglaterra, analisou a evolução dos direitos ao longo da história da humanidade e formulou uma compreensão de cidadania constituída por três elementos ou três dimensões de direitos: civis, políticos e sociais. Conforme o autor, os direitos civis surgiram no século XVIII e dizem respeito à liberdade individual e a igualdade perante a lei. Para Marshall (1967, p. 67), “no setor econômico, o direito civil básico é o direito de trabalhar, isto é de seguir uma ocupação de seu gosto, no lugar de escolha.” São ainda exemplos de direitos civis, os destinados a garantir livre movimentação, a liberdade de pensamento, a “celebração de contratos e a aquisição e manutenção da propriedade, bem como o direito de acesso a instrumentos necessários à defesa de todos os direitos anteriores” (SAES, 2003, p. 11). Os direitos políticos referem-se à participação no exercício do poder político; seja votando, seja tornando-se elegível. São direitos que dizem respeito à capacidade de homens e mulheres deliberarem sobre a sua vida, sobre a vida em sociedade. Diz respeito à participação em mecanismos como sindicatos, partidos, movimentos sociais, conselhos de representação paritária ou à participação indireta por meio da atuação em processos eleitorais para escolher governantes e parlamentares. Conforme Marshall, os direitos políticos datam do século XIX e estiveram, durante muito tempo, associados aos direitos civis ou à situação econômica dos “indivíduos”. Foi “próprio da sociedade capitalista do século XIX tratar os direitos políticos como produto secundário dos direitos civis” (MARSHALL, 1967, p. 70). Os direitos sociais surgiram basicamente no século XX e referem-se ao atendimento das necessidades humanas básicas, como alimentação, habitação, saúde, educação “direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança, ao direito de participar por completo da herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade” (MARSHALL, 57 1967, p. 63-64). O autor destaca o sistema educacional e os serviços sociais como instituições mais diretamente relacionadas aos direitos sociais. Sem dúvida a concepção marshalliana rompe com a concepção liberal de cidadania ao reconhecer, por um lado, a obrigatoriedade do Estado em fornecer um mínimo de provisão social básica; e, por outro, a posição do mercado que por si só é incapaz de assegurar a todos o mínimo necessário à sobrevivência. O autor considera a desigualdade social necessária e condena a desigualdade excessiva (MARSHALL, 1967, p. 77-78). Para Décio Saes (2003, p. 11), a classificação de Marshall em direitos civis, políticos e sociais “equivale na prática a um quadro de indicadores concretos de cidadania.” Trata-se de uma classificação que se estabelece “segundo o critério, mais implícito que explícito, das esferas da vida social onde o Estado reconhece prerrogativas a todos os indivíduos: a esfera da produção e do trabalho, a esfera da atividade política e a esfera do consumo.” Contudo, apesar da importância dessa contribuição de Marshall, inúmeros autores13 apontam limites nesta abordagem da questão da cidadania. Conforme Vasconcelos (1988, p. 25), Marshall “não esclarece a natureza, os limites, o grau e as características qualitativas e quantitativas dos direitos e dos serviços sociais”, além disso, faz uma abordagem que “pressupõe uma correlação direta entre evolução do capitalismo e bem estar, trazendo implícita a idéia de uma linearidade na extensão dos direitos inerentes à cidadania” (VASCONCELOS, 1989, p. 89). Nesta linha, Saes (2003, p. 13-14) também afirma que o texto de Marshall desenha “um processo de conquista de direitos em escada; o que sugere a idéia de uma evolução natural da cidadania.” Ao mesmo tempo mostra que ao afirmar que os direitos civis haviam sido funcionais ao desenvolvimento do capitalismo e que os direitos políticos e sociais contribuíam para a diminuição da desigualdade de classe, Marshall acaba por apresentar “uma concepção subjetivista de classe social: esta se definiria pelo sentimento de diferenciação e de distanciamento que cada grupo social experimenta em relação aos demais.” Mas não são apenas estes os aspectos da crítica à concepção de cidadania em Marshall que Saes aponta. Para este autor, os movimentos da 13 Ver por exemplo: Saes (2003), Barbalet (1989) e Bendix (1996), Vasconcelos (1988). 58 sociedade e as lutas sociais não são determinantes no processo de criação de direitos nas formulações de Marshall. Ele cita, por exemplo, o fato deste não fazer qualquer menção ao papel desempenhado na Inglaterra “pelo ciclo da revolução antifeudal – a Revolução Puritana de 1640, a Revolução Gloriosa de 1688 – na instalação das liberdades civis nesse país.” Com isso a instauração da cidadania civil é vista como “um processo de evolução institucional” (SAES, 2003, p. 16). Na sociedade capitalista, a postura das classes trabalhadoras diante da cidadania “tende a ser uma postura dinâmica e progressiva” (SAES, 2003, p. 16, grifos do autor), o que se explica pela própria natureza da estrutura econômica capitalista cuja produção “tem um caráter infinito, gerando incessantemente novos produtos e novas necessidades.” Diante disso, a classe trabalhadora para se manter inserida no mercado e se reproduzir necessita conquistar “novos direitos universais como instrumento para satisfação de interesses materiais em processo de permanente redefinição.” Para Saes, Marshall “não formula com clareza o papel das classes trabalhadoras no processo de formação e evolução da cidadania.” E acrescenta: “só a postura das classes trabalhadoras diante da cidadania tende, de modo geral, a ser dinâmica e progressiva, enquanto a postura das classes dominantes [...] tende no mínimo a ser estagnacionista, podendo no máximo ser regressiva” (SAES, 2003, p. 16 -17). Na realidade, a concepção de cidadania em Marshall é uma concepção na qual a condição de cidadão é compatível com a desigualdade real inerente à sociedade capitalista. É nesta perspectiva que Marx, analisando o problema da emancipação humana no contexto da ordem burguesa do seu tempo, criticou as noções de igualdade e de liberdade, presentes nos direitos humanos e civis. Para ele, os direitos humanos são direitos do homem, enquanto membro da sociedade burguesa, à medida que são garantidos direitos como igualdade, liberdade, segurança, propriedade, os quais, na essência, destinam-se a fortalecer a ordem burguesa e portanto, não possibilitam a emancipação humana, não permitem ao homem descobrir-se como força social (MARX, 1993, p. 56-63). Para Marx, o direito a liberdade não se funda nas relações entre os homens, “mas antes na separação do homem a respeito do homem. É o direito de tal separação, o direito do indivíduo circunscrito, fechado em sim mesmo” e sua aplicação prática é o direito de propriedade privada, enquanto “o direito de fruir da própria fortuna e dela dispor como se quiser, sem atenção pelos outros homens, 59 independentemente da sociedade.” Considera que o direito à igualdade não possui significado político, mas diz respeito apenas ao fato de que “todo homem é igualmente considerado como mónada auto-suficiente.” A segurança, por sua vez, refere-se ao conceito de polícia, para garantir o egoísmo da sociedade civil. Diante disso Marx conclui que “nenhum dos supostos direitos do homem vai além do homem egoísta, do homem enquanto membro da sociedade civil” (MARX, 1993, p. 56-57). A análise marxiana permite apreender os limites da noção de cidadania nas formulações liberal e social-democrata, o seu caráter formal e abstrato, a sua incapacidade de romper com a desigualdade econômica e as relações de exploração, próprias da sociedade capitalista. Contudo, os direitos, “por si mesmo não destroem o capitalismo, mas nem por isso são desejados pelas classes dominantes” (SAES, 2003, p. 22). Além disso, no contexto dos países do capitalismo periférico, entre os quais o Brasil, o debate e as lutas em torno da cidadania assumem importância particular, dada a ausência da efetivação de direitos, tal como estes se consolidaram nos países do capitalismo central. Conforme Nogueira (2004b, p. 11), a luta por direitos, “quando devidamente politizada, nos coloca [...] no terreno dos conflitos, das lutas sociais, e acaba por nos animar a brigar por uma ordem social justa, sem miséria, sem exclusões, sem desigualdades.” Ao longo da história da humanidade e no contexto da ordem burguesa, os direitos de cidadania se tornaram fundamentais para que as classes subalternas e o conjunto de forças interessadas na construção de uma sociedade mais igualitária conseguissem avançar na construção de projetos políticos que apontassem nesta perspectiva. Com isso, torna-se importante, sobretudo, para os excluídos do mercado e da participação política, a luta para garantir melhores condições de vida e por oportunidade de participar das decisões que dizem respeito à vida de toda a sociedade. Conforme Décio Saes (2003, p. 22-27), há, no conjunto dos direitos, aqueles que são essenciais à reprodução do capitalismo e aqueles que não o são, ou que configuram o que ele chama de “direitos contingentes”. Os direitos civis, por exemplo, são essenciais ao capitalismo e o seu surgimento se relaciona também às revoluções jurídicas produzidas pelas revoluções políticas modernas, que derrubaram o Estado feudal absolutista, as quais “determinaram a 60 instauração nessas sociedades da forma sujeito de direito isto é, a atribuição por parte do Estado a todos os homens [...] da condição de seres individuais capazes de praticar atos de vontade.” O autor ressalta que, ao generalizar a forma “sujeito de direito” o Estado “criava as condições não só materiais, como também ideológicas indispensáveis à implantação de uma estrutura econômica capitalista.” Com isto, foram criadas as condições institucionais para a “formação do mercado de trabalho, o assalariamento em massa dos trabalhadores despossuídos e, conseqüentemente, a instauração de relações sócio-econômicas especificamente capitalistas” (SAES, 2003, p. 23, grifos do autor). Nesta perspectiva, Saes (2003, p. 23-25) aponta que a dimensão civil da cidadania consiste na “corporificação da forma sujeito de direitos” que, ao se efetivar do ponto de vista da legislação e do exercício concreto de direitos, como a liberdade de ir e vir, de adquirir e dispor de propriedades, celebrar contratos etc, tornam-se indispensáveis à reprodução do capitalismo, pois são direitos que, conforme ressalta Marx, apenas asseguram uma igualdade formal. A relação entre o capitalista e o trabalhador destituído de tudo, efetivamente nunca é uma relação entre iguais. A liberdade de movimento que os direitos civis proporcionaram possibilitou a classe trabalhadora buscar novos direitos para o atendimento das suas necessidades de reprodução da força de trabalho, resultando em novos direitos, que são os direitos políticos. Mas, conforme Saes (2003, p. 26), esta conquista criou “mais uma ilusão prática: a idéia de que todos os homens, independentemente de sua condição sócio-econômica estão participando do exercício do poder político.” Além disso, a instauração do sufrágio universal e do regime democrático não implicou o estabelecimento de um efetivo controle dos governantes pela maioria social. Nesta mesma linha, destaca-se as reflexões de Nogueira (2004b, p. 9) quando fala da existência de uma “crise da idéia de cidadão” hoje, e da “crise da idéia de República” e ressalta que: o cidadão republicano está hoje gravemente reduzido ou à condição de consumidor ou à condição de eleitor, de alguém que é chamado a referendar decisões que são tomadas em âmbitos aos quais ele não tem acesso. Os cidadãos reclamam, protestam, fazem plebiscitos, votam regularmente de dois em dois anos ou de 61 quatro em quatro, mas não conseguem entrar no ventre em que são geradas as decisões. Para Saes (2003, p. 33-35) o resultado prático dos limites da democracia capitalista é a “apatia política” ou o “conformismo político”, o que se manifesta nas abstenções, no desinteresse pela macropolítica e pela vida político-partidária. Por outro lado, “a distribuição desigual dos recursos políticos entre as classes sociais” é um dos principais obstáculos aos processos participativos. Os trabalhadores de uma empresa poderão, por exemplo, opinar sobre a substituição de um contramestre, mas jamais opinarão sobre o destino final do produto ou sobre discussões estratégicas como a questão “se terceiriza ou não serviços ou produção”. No caso da participação na gestão de políticas públicas via conselhos institucionais, algo que tem se intensificado com os processos de descentralização é o envolvimento da população na gestão, que “ocorre dentro dos limites fixados pela linha geral de ação administrativa do governo local” (SAES, 2003, p. 35). Saes (2003, p. 36) ressalta que a única possibilidade de existir uma participação de massa em todas as dimensões da vida política na sociedade capitalista seria numa situação de pleno emprego absoluto e durável. Contudo, esta é uma situação que jamais existiu e uma hipótese com poucas chances de se realizar nesta sociedade. Na realidade, o pleno emprego representa muito mais um perigo econômico e político que, segundo o autor, as classes dominantes procuram evitar por meio de políticas recessivas de inovação tecnológica e de reengenharia organizacional. Nesta perspectiva, uma cidadania plena exigiria igualdade econômica plena, o que está além do horizonte da sociedade capitalista. Todavia, como lembra José Paulo Neto (2004), em conferência no XI Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, dadas as condições do capitalismo contemporâneo, a luta por direitos, velhos e novos, é hoje uma luta anticapitalista. Até mesmo a seguridade social se tornou insuportável para o capitalismo. A relação entre a ordem do capital e as demandas democráticas que antes eram de contradição, hoje são de antagonismo mesmo. Neste contexto, compreende-se que a luta por direitos é essencial na transformação desta sociedade. Conforme Nogueira (2004b, p. 14) “a dinâmica dos direitos tende a ser sempre subversiva, a se indispor contra a ordem, pois 62 aponta para novos padrões de convivência e de estruturação social.” E, para o autor, é por causa desta dimensão subversiva que os direitos costumam ser “banalizados, perseguidos e desvalorizados por todos aqueles que pilotam a reprodução ampliada da ordem.” Nesta perspectiva, é que ganha importância a idéia de indivisibilidade dos Direitos Humanos presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 1948. A referida declaração trata de direitos humanos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais sem fazer distinção entre eles em termos de geração de direitos. Esta compreensão de direitos humanos vem sendo cada vez mais retomada e, um exemplo disso, conforme Ortiz (2004, p.143), é a Declaração de Viena, de 1993.14 A Conferência de Viena (1993) em sua Declaração reconheceu a interdependência entre os direitos humanos, afirmando que “todos os direitos humanos têm caráter universal, são interdependentes e indivisíveis, o que significa que o não respeito a um direito, compromete os esforços relativos aos outros.” Além disso, também considerou a pobreza e a exclusão social como violações da dignidade humana, conforme é explicitado na afirmação a seguir: A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos afirma que a pobreza extrema e a exclusão social constituem uma violação da dignidade humana e que devem ser tomadas medidas urgentes para se ter um conhecimento maior do problema da pobreza extrema e suas causas, particularmente aquelas relacionadas ao problema do desenvolvimento, visando a promover os direitos humanos das camadas mais pobres, pôr fim à pobreza extrema e à exclusão social e promover uma melhor distribuição dos frutos do progresso social. É essencial que os Estados estimulem a participação das camadas mais pobres nas decisões adotadas em relação às suas comunidades, à promoção dos direitos humanos e aos esforços para combater a pobreza extrema (CONFERÊNCIA..., 1993) Nesta perspectiva, a pobreza é a resultante da não-satisfação de direitos fundamentais, como a alimentação, a saúde e a educação, sendo também “a principal causa da negação dos direitos humanos porque ela transgride os direitos fundamentais” (ORTIZ, 2004, p. 144). 14 Trata-se da II Conferência Mundial sobre Direitos do Homem realizada em Viena de 14 a 25 de junho de 1993. Ver a esse respeito http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/viena/. 63 Tal compreensão, conforme Lima Júnior. (2004, p. 181), constitui uma crítica à visão dos direitos classificados em geração de acordo com o seu surgimento, que é, em linhas gerais, a classificação da qual fala Bobbio em seu livro “A era dos Direitos”. Por esta classificação, os direitos civis e políticos seriam de primeira geração, os direitos econômicos, sociais e culturais seriam de segunda geração e os direitos de terceira geração seriam aqueles ligados ao meio ambiente, à paz e outros direitos que trazem a idéia de vínculo de solidariedade entre os homens (BINENBOJM, 2004, p. 13). Ao fazer a crítica a esta classificação Lima Júnior (2004, p. 183) destaca a dificuldade de considerar certos direitos como de primeira ou de segunda geração, como, por exemplo, o direito de greve ou a liberdade sindical. Estes podem ser identificados como direitos civis e políticos porque são oriundos e correlatos da liberdade de expressão, mas podem também ser considerados direitos econômicos, sociais e culturais, uma vez que se relacionam aos direitos trabalhistas. Além disso, é preciso considerar, conforme Nogueira (2004a, p. 62), que “não há direitos em abstrato”. O usufruto de direitos “depende tanto da inserção dos grupos e indivíduos em ‘circunscrições estatais’ concretas, territoriais, quanto de providências e decisões políticas adotadas por governos concretos.” Nesta perspectiva, é que se coloca a importância da concepção que considera todos os direitos como fundamentais e inalienáveis. Assim como a sociedade hoje recusa a tortura e a morte é necessário recusar também a fome e a falta de moradia, de saúde, de educação e de emprego, o que exige legislação, ordenamento institucional e políticas públicas efetivas. 2.2 Aspectos da efetivação de direitos na sociedade brasileira No Brasil, a garantia de direitos, inexistiu até os anos 30 do século XX15. No período colonial, por exemplo, conforme Carvalho (2001, p. 24), não havia cidadãos, pois “os direitos civis beneficiavam a poucos, os direitos políticos a pouquíssimos, dos direitos sociais ainda não se falava, pois a assistência social 15 Um balanço crítico do processo de constituição de direitos no Brasil no século XX é feito por Couto (2004). 64 estava a cargo da Igreja e de particulares.” Por isso é que a discussão sobre direitos precisa considerar as características da formação social brasileira. Conforme Ammann (2003), a cidadania não pode ser pensada “de forma descolada do contexto histórico e dos condicionamentos de cada formação social.” Toda discussão acerca da cidadania deve ser “situada e datada, respondendo às condições históricas concretas” (AMMANN, 2003, p. 122, grifos da autora). Neste sentido, observa-se que sendo uma formação social marcada por “revoluções pelo alto” ou “revolução passiva”16, na qual uma nova ordem ocorre sem que a antiga seja alterada substancialmente e pelas sucessivas tentativas de exclusão da maioria das decisões fundamentais da vida do país, a conquista de direitos tem sido sempre um processo lento, difícil de se efetivar no cotidiano da vida das pessoas. Conforme Nogueira (1998, p. 270), a revolução passiva “expressa ‘a ausência de iniciativas populares unitárias’ e organiza-se principalmente através da reação dos dominantes ao ‘subversivismo esporádico elementar e inorgânico das massas populares.” Sobre a revolução passiva no Brasil Nogueira (1998, p. 275) ressalta que esta, [...] não implicou, como se deduziria de uma aplicação mecânica do conceito, um monolitismo asfixiante ou o total fechamento político. Ao contrário: ela sempre conviveu com a vigência de ideais e práticas liberais, com períodos de vida democrática e participação política não muito restrita (como entre 1945 e 1964) e, sobretudo, com a realização de eleições e o funcionamento de certos mecanismos de representação mesmo em momentos claramente ditatoriais (como entre 1968 e 1974). Esta realidade contribui para que os direitos conquistados sejam quase sempre limitados, seletivos, incapazes de configurar, conforme Vera Telles, (1999, p. 178), “uma linguagem pública que baliza os critérios pelos quais os dramas da existência são problematizados em suas exigências de equidade e justiça.” Um olhar na história da efetivação de direitos no Brasil revela que em todas as dimensões destes existe uma significativa maioria da população excluída 16 Acerca da revolução passiva enquanto marca da formação social brasileira, Vianna (2004, p. 43) nos mostra que no Brasil tem se classificado como revolução movimentos políticos que na realidade só existiram “na firme intenção de evitá-la.” Fatos como a Revolução da Independência, Revolução de 1930, Revolução de 1964 configuram “uma dialética brasileira em que a tese parece estar sempre se autonomeando como representação da antítese.” Outros trabalhos que discutem a questão da revolução passiva na realidade brasileira são: Nogueira (1998) e Coutinho (1988). 65 ou que tem seus direitos violados. No âmbito dos direitos civis, por exemplo, convive-se em pleno século XXI com situações de graves violações desses direitos, como o trabalho escravo, o qual ao mesmo tempo em que constitui uma violação de direitos trabalhistas é também uma negação de um direito civil mais elementar que é a liberdade de ir e vir. Assim, a história dos direitos no Brasil é feita de pequenas conquistas e de uma persistente prática de sua negação. No âmbito dos direitos políticos, conforme nos mostra Carvalho (2001, p. 30-31), o direito de voto, por exemplo, teve início com a Constituição de 1824, a qual, segundo o autor, é bastante avançada em relação à legislação eleitoral de outros países, ao permitir o voto do analfabeto. Apesar de haver o critério de renda, este, na realidade, não excluía do direito de voto a maioria da população trabalhadora, já que os que trabalhavam recebiam salários superiores ao limite de renda estabelecido (100 mil réis). Com isto, em 1872, 13% da população brasileira votava. Um índice alto, segundo Carvalho, se comparado à participação eleitoral em países europeus, como a Inglaterra (em que a participação era de 7%), a Itália (de 2%) e Portugal (de 9%). Se, do ponto de vista formal, havia avanços nos direitos políticos, nas condições objetivas para sua realização predominou o retrocesso. O direito de voto não significava, portanto, participação efetiva na escolha dos dirigentes da nação. Como 85% da população do país era analfabeta, isso implicava, conforme Carvalho, a existência de um eleitorado incapaz “de ler um jornal, um decreto do governo, um alvará da justiça”, assim como não tinha “noção do que fosse um governo representativo, do que significava o ato de escolher alguém como seu representante político.” (CARVALHO, 2001, p. 32). Além disso, os processos eleitorais eram marcados por toda forma de “malandragem eleitoral” com a falsificação de atas e de resultados eleitorais. Nesse contexto, o exercício do voto não se constituía participação na vida política do país. Ao contrário, “era um ato de obediência forçada, ou, na melhor hipótese, um ato de lealdade e de gratidão. À medida que o votante se dava conta da importância do voto para os chefes políticos, ele começava a barganhar mais, a vendê-lo mais caro” (CARVALHO, 2001, p. 32; 35). Ao lado disso, até 1930 predominou, no país, o tratamento da questão social como caso de polícia. Neste campo, ao invés de direitos civis, políticos e sociais se efetivou muito mais o favor, a tutela e a repressão intensa às iniciativas 66 de organização e manifestação da classe trabalhadora. Conforme Santos (1987, p. 65), “entre 1893 e 1927, é possível relacionar pelo menos cinco leis repressivas da atividade político-sindical do operariado urbano, todas visando, sobretudo, à expulsão de trabalhadores estrangeiros por motivos de militância sindical.” Assim, os direitos sociais vão surgir muito lentamente e assim como os demais direitos, sua existência será muito mais uma formalidade. A primeira conquista nesse campo foi o Código de Menores de 1927. Daí até 1930 nenhum outro direito foi assegurado, apesar das lutas operárias pela regulação da jornada de trabalho, das condições de higiene, do repouso semanal, das férias, do trabalho de menores e de mulheres e por indenizações frente aos acidentes de trabalho (CARVALHO, 2001, p. 63). Após 1930, predominou o que Wanderley G. Santos (1987) denominou de “cidadania regulada”, com a garantia de direitos sociais, apenas aos que se encontravam incluídos no mercado de trabalho. Uma cidadania que não incomodava às classes dominantes, visto que assegurava tão somente os direitos do cidadão como eleitor e como trabalhador, incluído no mercado formal de trabalho17. Neste contexto, a Carteira Profissional era, conforme Santos (1987, p. 69) “uma certidão de nascimento cívico.” Contudo, o período 1930-1945 pode ser considerado um tempo de avanços no campo dos direitos sociais, com a implantação de grande parte da legislação trabalhista e sindical. Destaca-se neste período, a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (1943), a criação do Salário Mínimo (pela Constituição de 1934, tendo sua implantação em 1940) e a criação dos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPM’s). Estes, substituem as Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAP’s), criadas no período anterior (a partir de 1923 com a Lei Eloy Chaves) e que atendiam às categorias mais organizadas, como os ferroviários e os marítimos. A respeito do significado das conquistas deste período, Vera Telles afirma: Na história aberta em 1930, o Estado irá atribuir estatuto civil a uma gente que só encontrava lugar nas relações de favor e estava 17 Hoje, conforme Cocco (2001, p. 88), do ponto de vista do capital e do crescimento econômico, diante das transformações no mundo do trabalho, “a cidadania não é mais o fruto da inserção produtiva, mas a condição desta, todas as problemáticas das correlações integração-exclusão, desenvolvimento-desigualdade se transformam. Ou seja, a desigualdade torna-se a causa e não mais a conseqüência do crescimento lento.” 67 sujeita à arbitrariedade sem limites do mando patronal. Esse estatuto civil será definido pelo trabalho, como dever cívico e obrigação moral perante a Nação. Com isso, é certo, o Estado getulista conferiu ao trabalho uma dignidade que era recusada por uma sociedade recém-saída da escravidão. E, através da legislação trabalhista, quebrou a exclusividade do mando patronal, colocando o espaço fabril no âmbito da intervenção estatal (TELLES, 2001. p. 47) O período seguinte, (1945-1964), foi marcado por avanços nos direitos políticos, por meio do crescimento, tanto da participação eleitoral quanto das iniciativas de organização popular em partidos, em sindicatos e em ligas camponesas. Mas, é também um período que se caracteriza por avanços lentos no campo dos direitos sociais (CARVALHO, 2001, p. 146; 190). O período ditatorial, por sua vez, que se inicia em 1964 e vai até 1985, é marcado pela forte repressão aos direitos civis e políticos, com um certo investimento nos direitos sociais. No entanto, este fato, não é exclusividade deste período específico, conforme Santos (1987, p. 89), uma característica da política social brasileira é “de que os períodos em que se podem observar efetivos progressos na legislação social coincidem com a existência de governos autoritários.” O autor destaca, neste sentido, a era Vargas e o pós-1966. Um exemplo disso foi a criação do Instituto Nacional de Previdência Social – INPS e do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural - FUNRURAL nos anos de ditadura. Este último contribuiu para o acesso dos trabalhadores rurais a direitos dos quais até então estavam excluídos, como: aposentadoria por velhice; aposentadoria por invalidez; pensão; auxílio-funeral; serviço de saúde e serviço social. Além destes, nos anos 70, outras categorias foram incluídas na previdência: os trabalhadores autônomos e os domésticos. Contudo, o que marcou o período, em termos de política social, foi a fragmentação das ações e a centralização das decisões no nível federal, com a completa ausência dos usuários no seu processo decisório. Foram ações na sua maioria destinadas a compensar carências e a oferecer legitimidade a grupos no poder. Na realidade, conforme Vera Telles (2001, p. 22), trata-se de um modelo de cidadania “dissociado dos direitos políticos e também das regras de equivalência jurídica” e que tira “a população trabalhadora do arbítrio – até então sem limite – do poder patronal, para jogá-la por inteiro sob a tutela estatal.” 68 A partir do final dos anos 1970, as lutas dos movimentos sociais populares fizeram emergir no país o desejo de uma cultura democrática em torno do uso dos recursos públicos, da participação da população no processo decisório das políticas sociais públicas, assim como da atividade política baseada na ética. Tais lutas asseguraram importantes conquistas no campo da cidadania, da participação popular, da democratização do Estado e da sociedade. Mas, as conquistas obtidas, na maioria das vezes reduzidas ao nível da legalidade, encontram limites no agravamento das condições de vida da maioria da população, na precarização do trabalho e todas as conseqüências daí decorrentes. Analisando a noção de cidadania que surge no Brasil, relacionada às experiências dos movimentos sociais, no final dos anos 1980, Dagnino (1994, p. 107-115) distingue-a da visão liberal, ressaltando alguns elementos que configuram o seu caráter inovador e estratégico. Em primeiro lugar, mostra a noção de direitos que ela supõe, cujo ponto de partida é a concepção de “um direito a ter direitos” e não diz respeito apenas às conquistas legais, mas inclui a “invenção criativa de novos direitos.” É também uma noção de cidadania, que surge ‘de baixo para cima’, como estratégia dos não cidadãos. Isto possibilita a difusão de uma “cultura de direitos”, em que a cidadania se constitui como “uma proposta de sociabilidade.” A Constituição Federal de 1988, em certa medida, é resultante desse processo e, conforme Barcellos (2004, p. 151), “fez uma clara opção pela dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado brasileiro e de sua atuação.” Ela representa um marco na luta por direitos no Brasil. Contudo, as práticas de negação de direitos para a maioria do povo brasileiro não se encerrou com a promulgação do texto constitucional. Muitas marcas da forma como se constituiu os direitos no Brasil ainda se fazem presentes, como o favor e a visão do acesso a bens e serviços como doação, benesse do Estado ou dos governantes. Entretanto, é preciso lembrar que as conquistas na Constituição de 1988, no âmbito dos direitos, dos quais é exemplar o artigo 6º do título “dos direitos e 69 garantias fundamentais”,18 resultaram da mobilização da sociedade civil organizada; sobretudo através das Plenárias Pró-Participação Popular na Constituinte. Tais Plenárias, conseguiram encaminhar inúmeras emendas de iniciativa popular, sustentadas por 13 milhões de assinaturas. Com isso, apesar do caráter conservador do Congresso Constituinte, foi possível obter avanços significativos no âmbito dos direitos. A Constituição de 1988 é, pois, resultado do jogo de forças presentes no processo constituinte. Ela avança em relação às constituições anteriores, mas, ao mesmo tempo, está aquém das aspirações populares, em muitos aspectos. Analisando o texto constitucional, sobretudo, do ponto de vista da cidadania, Márcia Leite (1993, p.10) afirma que este revela “um modelo de cidadania que incorpora tanto a visão liberal quanto direitos e prerrogativas de outras matrizes políticas.” Os direitos civis por exemplo, aparecem, conforme a autora, formulados a partir da matriz liberal, consistindo na “igualdade legal, no direito à propriedade, nas diversas liberdades individuais cuja limitação exclusiva encontra-se na lei e na segurança.” Contudo, ainda conforme Leite (1993, p. 10), a Constituição de 1988, também incorporou novas garantias que apontam para a possibilidade de defesa dos direitos civis: o direito à informação, o habeas-data, o mandato de injunção, a gratuidade das ações de habeas-data, habeas-corpus, direito de petição e o mandato de segurança.19 Em nível dos direitos políticos, a atual Constituição opera com uma concepção de “cidadania liberal-democrática, que enfatiza o exercício da soberania popular através do sufrágio universal e da democracia representativa”, inclusive ampliando os direitos de cidadania, à medida que garante direito de voto aos analfabetos e maiores de 16 anos. 18 O Artigo 6º da Constituição Federal de 1988 afirma: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” 19 Estes direitos, aparecem no Capítulo I do Título II da Constituição de 1988. O direito à informação (XXXIII), assegura que todo cidadão tem direito de receber informações de órgãos públicos, sejam elas de interesse particular ou coletivo. O mandato de injunção (LXXI), por sua vez, é um instrumento que assegura a aplicação dos direitos e liberdades que não se encontram regulamentados. O habeas-corpus (LXVIII) e habeas-data (LXXII) são instrumentos que asseguram, no caso do primeiro, a defesa do cidadão diante de situações que constituem ameaça de violência, coação e abuso de poder, e no caso do segundo, permite a todo cidadão conhecer as informações existentes em entidades públicas sobre sua pessoa, inclusive para a retificação dos dados. O direito de petição (LXXII), possibilita a todo e qualquer cidadão propor ação popular para anular atos lesivos aos interesses públicos. O mandato de segurança (LXX), constitui um instrumento de defesa coletiva de direitos e pode ser requerido por partidos, sindicatos, entidades de classe e associações (BRASIL, 1988). 70 Para Márcia Leite (1993, p. 13), “os institutos da democracia liberal representativa e a validação eleitoral de projetos políticos são instrumentos fundamentais para o desenvolvimento da democracia.” Entretanto, ela ressalta que, na realidade brasileira, esses institutos “associam-se a uma cultura e institucionalidade políticas que minam suas possibilidades.” Ressalta, neste sentido, entre outras coisas, a nossa “forte tradição clientelista e fisiológica enraizada nas concepções e práticas dos atores políticos e sociais”20 o que combina-se a uma “frágil cultura cidadã” na qual “parcela considerável da população brasileira ainda se identifica como clientela daqueles que detêm o poder.” Contudo, a Constituição de 1988, incorporou a riqueza da experiência realizada pela sociedade civil no seu processo de elaboração do texto constitucional, por meio das Plenárias Pró-Participação Popular na Constituinte, que mobilizaram movimentos sociais, partidos políticos e diferentes organizações da sociedade civil, sobretudo, os setores populares, com o objetivo de pressionar os constituintes e formular emendas constitucionais. Neste sentido, conforme Leite (1993, p.13), [...] transcendendo a matriz liberal-democrática o novo texto constitucional afirma a possibilidade do exercício direto do poder pelo povo (Art. 10, parágrafo único). Paralelamente ao instituto tradicional das democracias representativas (o sufrágio universal com voto direto e secreto) define o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular legislativa como instrumentos da soberania popular (Art. 14) em todos os níveis de governo. Esta inovação, radicalmente oposta à experiência política brasileira, amplia o conteúdo dos direitos de cidadania no que se refere à liberdade positiva dos cidadãos através de sua participação direta na produção do poder político. Sobre esta questão, Benevides (1991, p. 13) considera ser provável que boa parte dos constituintes que aprovaram esses institutos de democracia semidireta, o tenham feito acreditando que, dificilmente seriam implementados, 20 Márcia leite ressalta que além desta forte tradição clientelista, há outros elementos da nossa cultura política que na sua análise, minam a possibilidade da efetiva realização dos institutos da democracia liberal-representativa, como a existência de “sobre-representação política dos estados com menor população e maior predomínio de oligarquias locais, partidos sem nitidez políticoideológica e desvinculados das aspirações da sociedade civil, ausência de controle público sobre um poder político fortemente centralizado em todos os níveis” tudo isso, acaba por restringir a participação popular no processo decisório (LEITE, 1993: 13). 71 como ocorre com a antiga fórmula ‘todo poder emana do povo e em seu nome é exercido’ que sempre foi letra morta, nunca se efetivou na vida do povo brasileiro. Decorridos 17 anos da aprovação do texto constitucional, como se configuram os direitos hoje no Brasil? A partir da segunda metade dos anos 1980, a realidade brasileira tem sido marcada por um duplo movimento: por um lado, uma sociedade civil heterogênea, complexa, mas com significativas mobilizações e organizações de setores progressistas, cujas lutas conseguiram contribuir para a inclusão, no texto constitucional, de direitos que jamais haviam sido conquistados, como o direito à educação e à seguridade social pública, universal, direitos de todos e dever do Estado, integrada pela saúde, assistência e previdência. Por outro lado, há o aprofundamento da crise econômica, cuja face mais visível, até 1994, era a inflação crescente, e pelo avanço, em nível internacional, da crítica neoliberal ao Estado de Bem Estar e em defesa do Estado mínimo. Com isso, na contramão das conquistas da Constituição brasileira de 1988 tem-se, em nível internacional e local, a aplicação do receituário neoliberal como alternativa frente à crise econômica, o qual vem, até hoje, investindo na promoção do desmonte dos sistemas de proteção social nos países do capitalismo central. Nos países de capitalismo periférico, esta realidade também se faz presente, sobretudo por meio da imposição do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) no sentido da implementação das orientações do chamado “Consenso de Washington.”21 Segundo Fiori (1997, p. 12), tais orientações ou recomendações contemplavam uma estratégia seqüencial em três fases: [...] a primeira consagrada à estabilização macroeconômica, tendo como prioridade absoluta um superávit fiscal primário envolvendo invariavelmente a revisão das relações fiscais intergovernamentais e a reestruturação dos sistemas de previdência pública; a segunda dedicada ao que o Banco Mundial vem chamando de ‘reformas estruturais’; liberação financeira e 21 A esse respeito ver Fiori (1997). Trata-se de documento escrito por John Williamson propondo um plano único de ajuste para as economias periféricas e que a partir de 1993 foi adotado pelo Fundo Monetário Internacional - FMI e pelo Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento – BIRD, e aplicado em vários países do mundo (mais de sessenta, segundo Fiori), como o programa de estabilização capaz de viabilizar as reformas preconizadas pelo Banco Mundial. Fiori mostra que a coerência entre as proposições de John Williamson e o Plano Real no Brasil não é mera coincidência. 72 comercial, desregulamentação dos mercados, e privatização das empresas estatais; e a terceira etapa definida como a da retomada dos investimentos e do crescimento econômico (FIORI,1997, p. 12). Trata-se de um programa de ajuste, que tem contribuído para o aprofundamento da miséria e da exclusão e secundarizado qualquer ação pública destinada ao enfrentamento da questão social. Na realidade brasileira, os efeitos das políticas neoliberais tendem a ser mais perversos do que nos países centrais, não só pela ausência de um Estado de Bem Estar Social, ou de um sistema de proteção social consolidado. Aliado a isto, tem-se os efeitos de uma cultura política, fundada no privilégio dos que sempre mandaram, na qual predomina as relações de mando, o autoritarismo e a prepotência. Uma realidade que aprofunda o que Vera Telles (2001) chama de “incivilidade” presente na vida social brasileira. Uma incivilidade que se ancora, segundo a autora, em um imaginário que [...] fixa a pobreza como marca da inferioridade, modo de ser que descredencia indivíduos para o exercício de seus direitos, já que percebidos numa diferença incomensurável, aquém das regras de equivalência que a formalidade da lei supõe e o exercício de direitos deveria concretizar (TELLES, 2001, p. 21). Neste contexto, o tardio processo de conquista de direitos no Brasil caminha na contramão da tendência internacional da perda de direitos como produto das políticas de ajuste neoliberal. Conforme mostra Tavares (2001, p. 172) tais propostas de ajuste econômico e estrutural, sobretudo na América Latina, têm em comum o fato de estarem “calcadas na âncora cambial” (o que envolve: sobrevalorização cambial; juros internos altos; medidas de liberalização financeira; entrada de capitais especulativos de curto prazo; riscos e estabilização evidente na balança de pagamentos do país). Assim, “a emissão de títulos da dívida pública trouxe, aliada à política de juros alto, um aumento incontrolável da dívida interna.” O Brasil, conforme a autora, passou a adotar o programa de ajuste neoliberal tardiamente. Por isso “entrou na fase das chamadas ‘medidas corretivas do ajuste preconizado pelo Consenso de Washington, combinando medidas ortodoxas no campo econômico com propostas ditas de reforma do 73 Estado.” Ao lado disso, foram implementados os programas de ‘alívio’ para a pobreza com vistas a enquadrar-se “no chamado Ajuste com Rosto Humano proposto por alguns organismos internacionais como PNUD.” Mas, o ajuste brasileiro tornou-se recessivo, gerando “queda nos salários, redução do emprego, informalidade nos negócios, evasão de impostos e diminuição da base de arrecadação tributária” (SOARES, 2001b, p. 172). O resultado para a política social e para os direitos sociais de um modo geral , conforme Soares (2001b, p. 181), foi um retrocesso, com raras exceções, para políticas “focalistas, emergencial e parcial onde a população pobre tem que dar conta dos seus próprios problemas.” Esta lógica normalmente vem embutida num discurso que enfatiza a ‘participação comunitária’, a ‘auto-gestão’ e a ‘solidariedade’. A última palavra em matéria de política social atualmente tem sido a ‘autosustentabilidade’. “Os pobres devem tornar-se ‘micro-empreendedores’ criando seus próprios ‘pequenos negócios’. É a nova cara da mercantilização do social: tudo não só pode como deve ser resolvido no mercado, inclusive a sobrevivência” (SOARES, 2004c, p. 2). Diante disso, o período pós-Constituição de 1988, que poderia ser “a era dos direitos” no Brasil, com a conquista de “sistemas verdadeiramente públicos e universais que garantissem os direitos essenciais de cidadania” transformou-se no acesso a “precários e mal financiados serviços públicos.” Para isso contribuiu o fato de que muitas categorias de trabalhadores inseridos no mercado, mais organizadas e de maior poder aquisitivo, não terem assumido a luta por políticas públicas universais. Até mesmo as centrais sindicais nem sempre privilegiaram a luta por políticas universais. A análise da trajetória da Central Única dos Trabalhadores - CUT, por exemplo, poderá revelar que a defesa de políticas públicas universais não foram prioridade na agenda de lutas da central. A esse respeito Ana Elizabete Mota (2004, p. 6) afirma: [...] a partir do final dos anos 1970 e em função da conjuntura política de então, os trabalhadores do núcleo dinâmico da economia dirigiram para as pautas dos acordos coletivos de trabalho as suas reivindicações relativas à saúde, previdência e assistência social como parte dos seus contratos de trabalho, com a mesma importância e intensidade com que lutavam por melhores salários, direito de greve, condições de trabalho, etc. Os desdobramentos desta estratégia implicaram numa contradição: ao mesmo tempo em que os trabalhadores do núcleo 74 dinâmico da economia conseguiam que as empresas atendessem suas necessidades como parte dos seus contratos de trabalho, também estava em gestação um processo de enfraquecimento da luta coletiva dos trabalhadores por políticas públicas de proteção social. Diante disso, é possível afirmar que, no Brasil, a luta por políticas públicas universais e por direitos sociais de uma forma geral, esteve muito mais presente no leque de preocupações dos movimentos sociais populares22 do que do movimento sindical, sempre muito mais corporativista. Corporativismo este, aliás, que conforme José Paulo Neto (2004), constitui um limite na luta por direitos, foi e continua sendo até hoje o “caminho da liquidação da luta por direitos no Brasil.” Se, por um lado, ele garante ganhos para algumas categorias, “liquida a luta por direitos universalizados.” Em torno dessa questão é que Ana Elizabete Mota (2004, p. 6) encontra explicação para o comprometimento de integrantes do governo atual23 com as reformas neoliberais da seguridade social: Hoje, podemos constatar como aquela história iniciada nos “gloriosos” anos 1980, no apogeu do processo de organização do novo sindicalismo se tornou uma das principais mediações políticas que permitiram, ao lado da precarização do trabalho, do desemprego, do enfraquecimento do movimento sindical e da ofensiva neoliberal, transformar o núcleo de resistência vinculado ao trabalho no núcleo de apoio às reformas da seguridade social no atual governo.24 Contudo, é preciso considerar algumas conquistas que Soares (2004c, p. 3/7) considera como importantes patrimônios no âmbito das políticas sociais, os quais continuam a exigir preservação e proteção frente às tentativas do desmonte neoliberal. Estes patrimônios são, segundo a autora, o Sistema Único de Saúde – 22 A esse respeito é possível destacar movimentos que desde os anos 1970 lutam por políticas universais: o movimento estudantil (educação), o movimento de mulheres, os movimentos por saúde, por transporte, por creche (sobretudo em São Paulo e Belo Horizonte nos anos 70). Mais recentemente, o Movimento dos Sem Terra, os movimentos por moradia etc. Um trabalho que oferece um mapeamento dos movimentos sociais no Brasil até os anos 90 do século XX é o de GOHN, Maria da. História dos Movimentos e Lutas Sociais: a construção da cidadania dos brasileiros. São Paulo: Edições Loyola, 1995. 23 A referência é, sobretudo, aos integrantes do Partido dos Trabalhadores e da Central Única dos Trabalhadores, que construíram o chamado “novo sindicalismo” e a história da classe trabalhadora no país nos anos 1970-1980, que possuem vínculos com grandes categorias, como metalúrgicos, bancários, previdenciários, e que se encontram hoje ocupando funções no primeiro escalão do governo federal e têm assumido posições de claro comprometimento com as reformas neoliberais no âmbito da seguridade social. 24 Em torno dessa questão apresentada por Ana Elizabete ver Oliveira (2003). 75 SUS que é o “único sistema unificado de acesso universal na América Latina” e tem sido “a única e a mais relevante alternativa de assistência à saúde para parcelas majoritárias da população brasileira”; a Previdência Rural, “também única na América Latina” e que se constitui em uma renda decorrente de um direito social de todos os que trabalham no campo. Como tal, é uma conquista que confere dignidade a estes. Outros patrimônios citados por Soares são a Educação Básica, a Merenda Escolar e os programas de transferência de renda, apesar das suas enormes limitações e reduzido alcance frente a população indigente do país de aproximadamente 44 milhões de pessoas (SOARES, 2004c, p. 2). Os programas de transferência de renda que têm sido implementados no Brasil, conforme Sposati (2004a, p. 29), “não ingressam no campo dos direitos sociais.” Para a autora, contribui para isso a alta seletividade adotada, a substituição das relações sócio-educativas e humanas com o usuário por “processos informatizados e inflexíveis, sob a justificativa de impedir tradicionais mecanismos de favor da cultura política coronelista e patrimonialista.” Nesta lógica, parte-se do princípio de que ‘com dinheiro no bolso’ o indivíduo “escolherá sua oportunidade no mercado.” Contudo, conforme enfatiza Sposati, para os mais pobres dentre os pobres, que são os usuários dos programas de transferência de renda, a atenção às suas necessidades exige muito mais: “acessos sociais, acessos urbanos, ofertas intersetoriais, oferta de emprego, saúde, apoios familiares, transporte, endereço para receber carta, entre outras tantas necessidades.” Mesmo possuindo muitas limitações, tais programas têm sido, recentemente, alvo de constantes críticas por parte da elite brasileira que exige “maior controle dos pobres”. Um exame das manifestações explicitadas pela imprensa em torno do assunto feito por Soares (2004d) revelou que os questionamentos vão desde a acusação de que o governo federal superestimou o número de pobres no país ao definir a população a ser beneficiada pelo Programa Bolsa Família, até a afirmação do ‘excessivo’ valor das bolsas pagas, o qual varia entre R$ 50,00 e R$ 90,00. Conforme matéria do jornal Folha de São Paulo de 31 de março de 2005, 76 [...] o país não sabe quantos brasileiros são pobres. Considerando os 170 milhões contados pelo Censo 2000, podem ser 8 milhões de pobres, se o critério for sobreviver com pelo menos US$ 1 (cerca de R$ 3,00) por dia; ou 52,3 milhões, se com uma renda mínima mensal de meio salário mínimo por pessoa (R$ 130,00 em valores atuais). Se for para o Bolsa-Família, principal programa de transferência de renda do país, o corte é R$ 100/mês por pessoa. Nesse caso, seriam 42 milhões de pobres (METAS..., 2005, p. 3). Conforme estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2005, p. 50-53), com uma população de mais de 170 milhões de habitantes, o Brasil possui 53,9 milhões de pessoas pobres (31,7%), vivendo com uma renda familiar per capita de até meio salário mínimo. Além destes, 21,9 milhões de pessoas são indigentes (12,9%) ou muito pobres, sobrevivendo com renda per capita de até um quarto do salário mínimo. A outra face desta realidade é a de que o 1% mais rico dos brasileiros ou 1,7 milhão de pessoas se apropriam de 13% da renda nacional. Enquanto isso, os 50% mais pobres ou 86,9 milhões de pessoas ficam com 13,3% da renda. A respeito das disparidades observadas nas análises estatísticas sobre pobreza e indigência no Brasil Vera Telles (1998, p. 9/14), afirma a existência de uma “batalha estatística”, que decorre da inexistência de uma definição quanto a patamares de qualidade de vida a serem garantidos a todos. Tudo se reduz “a uma combinação de critérios supostamente científicos para definir a pobreza.” Com tal diversidade de indicadores uma das conseqüências é a dificuldade em conhecer qual é o real tamanho da pobreza no Brasil. Aliado a isto os critérios de acesso aos programas, cada vez mais focalistas exclui de bens e serviços muitos dos que necessitam. Juntos, indicadores e critérios de acesso conseguem “a proeza de fazer os pobres desaparecerem do cenário oficial” afirma (TELLES, 1998, p. 8). Conseguem assim, transformar a questão social em “problema a ser administrado tecnicamente ou problema humanitário que interpela a consciência moral de cada um” (TELLES, 1998, p. 19). Estes argumentos revelam a natureza conservadora das críticas da elite e da imprensa burguesa ao Programa Bolsa Família. Na essência sob o discurso contra a corrupção e o desvio de verbas públicas, elas trazem a defesa do Estado mínimo e a visão neoliberal de que cada 77 um deve resolver as suas necessidades no mercado e de que o aumento do gasto social implica desperdício de recursos públicos. Outro aspecto da questão dos direitos no Brasil é de que, se em algumas áreas, foi possível conquistar uma legislação avançada, ela não se efetivou no cotidiano dos seus destinatários. Algumas áreas são exemplares neste aspecto, como as políticas de Seguridade Social e da Criança e do Adolescente. Com relação a esta última, decorridos 15 anos da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ele ainda não conseguiu se traduzir na efetivação dos direitos para esta parcela da população brasileira, sobretudo os mais pobres. Ao contrário, ainda persistem no país as práticas de menorização da infância pobre, inúmeras formas de abuso e maltrato de crianças e de adolescentes, em decorrência da falta de políticas públicas que assegurem direitos a estes brasileiros/as. Se, por um lado, a educação básica universal foi conquistada, em todos os níveis de governo, é precária a atenção para com a faixa etária de 0 a 06 anos, que exige atendimento em creches e educação infantil de qualidade. Assim, a violação de direitos ainda é muito presente no país e as políticas públicas destinadas a assegurá-los não se efetivam. No “Informe 2004”, documento publicado recentemente pelas Relatorias Nacionais em Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais (RELATORIAS..., 2005, p. 98)25, constata-se que tais políticas: “atendem apenas à obrigação de prover serviços e, ainda não incorporam a dimensão de direitos humanos” e, como tal, marcadas por práticas discriminatórias e clientelistas; “não possuem instrumentos de monitoramento; não dispõem de um mecanismo claro e acessível de prestação de contas; não contemplam a participação social e não vislumbram a indivisibilidade dos direitos.” 25 O “INFORME 2004” é uma publicação anual da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (Dhesc Brasil). Uma Rede nacional de articulação de organizações da sociedade civil que trabalham com a temática dos direitos humanos. Foi fundada em novembro de 2000 e propõe-se a estabelecer um amplo debate sobre a indivisibilidade e universalidade entre os direitos. Uma das suas ações é o monitoramento da implementação dos direitos humanos no país por meio do “acompanhamento do processo de revisão e aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais.” Para tanto, “criou a figura dos relatores nacionais com a finalidade de desenvolverem processos de consulta ao nível nacional sobre a situação dos direitos humanos, econômicos, sociais e culturais no Brasil.” O “INFORME” é resultado da ação desta rede e inspira-se na experiência de Relatores Especiais das Nações Unidas. Atualmente, existem seis relatores nacionais que têm a tarefa de investigar a violação aos seguintes direitos: à alimentação, água e terra rural; ao meio ambiente; à saúde; à moradia adequada e à terra urbana; à educação; e ao trabalho. Para mais informações acessar a página da Plataforma DhESC Brasil: www.dhescbrasil.org.br. 78 Entre as dificuldades para efetivar direitos no Brasil, os relatores destacam o fato de que as normas que instituem as políticas públicas destinadas a garantir os direitos monitorados (à alimentação, água e terra rural; ao meio ambiente; à saúde; à moradia adequada e à terra urbana; à educação; e ao trabalho) não explicitam direitos e responsabilidades e não “estabeleceram mecanismos claros de recurso administrativo visando a garantia da realização dos direitos, ou a investigação e reparação de possíveis violações dos mesmos” (RELATORIAS..., 2005, p. 98). Ao lado disso, uma outra dificuldade reside no “desconhecimento das normas de direitos humanos pelos cidadãos, gestores, e servidores” (RELATORIAS..., 2005, p. 99). A esse respeito, José Murilo de Carvalho (2001, p. 99) ressalta que uma pesquisa realizada na região metropolitana do Rio de Janeiro, em 1997, mostrou que “57% dos entrevistados não sabiam mencionar um só direito e só 12% mencionaram algum direito civil.” No âmbito da presente pesquisa esta também foi uma questão observada. De um modo geral, os direitos e o direito à assistência social, de modo particular, é pouco conhecido entre os gestores, técnicos, usuários e conselheiros pesquisados. Ainda é muito presente, por exemplo, a noção de assistência enquanto ajuda, benevolência, solidariedade da sociedade ou do Estado para com os necessitados, pronto socorro social, como será demonstrado nos capítulos que analisam os dados primários do presente estudo. Nesse contexto, no “Informe 2004”, os relatores concluem que “inexiste no Brasil, uma cultura de direitos: as pessoas desconhecem seus direitos e responsabilidades, as autoridades não se comprometem e, muitas vezes, são obstáculos à realização dos direitos humanos” (RELATORIAS..., 2005, p. 101). Mas, ao mesmo tempo ressaltam como avanços as mobilizações na sociedade civil protagonizada por Organizações Não-Governamentais - ONGs e movimentos sociais, as quais tanto têm contribuído para efetivar direitos, quanto conseguido trazer para suas lutas, novos atores, um deles é o Ministério Público, que em muitos casos, por meio dos instrumentos como inquérito civil ou ação civil pública, tem feito valer direitos em alguns estados e municípios do país. 79 2.3 Assistência social e cultura de direitos Assim, num contexto marcado pelo crescimento da miséria, das desigualdades sociais e de constantes violações de direitos, é que se coloca a importância da assistência social como política pública no Brasil. Num país que não chegou a construir um sistema de proteção social, em que a cidadania sempre foi um privilégio para os incluídos no mercado, a defesa da política de assistência social, na perspectiva dos direitos, da justiça social, da redistribuitividade e da cidadania, assume uma dimensão estratégica no sentido de ampliar a capacidade das classes subalternas de alterar o já dado, e construir novas possibilidades para a conquista de políticas sociais universalizantes, do seu reconhecimento enquanto sujeitos de direitos e da construção da sua hegemonia. O exposto até aqui, parece indicar que chegou-se ao século XXI tendo, por um lado, importantes conquistas no campo da cidadania, da participação popular, da democratização do Estado e da sociedade, como resultado das lutas sociais dos anos 1970-1980. Por outro lado, o avanço de tais conquistas, na maioria das vezes, reduzidas ao nível da legalidade, encontra limites no agravamento das condições de vida da maioria da população, na precarização do trabalho em curso atualmente, e todas as conseqüências daí decorrentes, como a violência. Uma sociedade, conforme Vera Telles (1994, p. 44), [...] em que a descoberta dos direitos convive com uma incivilidade cotidiana feita de violência, discriminações e preconceitos. O eventual atendimento a reivindicações está longe de consolidar direitos como referência normativa nas relações sociais, de tal forma que conquistas alcançadas podem ser desfeitas ou anuladas sem que isso suscite o protesto e indignação de uma opinião pública crítica. A partir da Constituição de 1988 e da LOAS, a assistência tornou-se uma política de responsabilidade do Estado, direito do cidadão e, portanto, uma política estratégica no combate à pobreza, e para a constituição da cidadania das classes subalternas. Ao mesmo tempo, assim como em outras áreas de política pública, de acordo com as definições legais, a gestão desta política passou a ser 80 efetivada por um sistema descentralizado e participativo, cabendo aos municípios uma parcela significativa de responsabilidade na sua formulação e execução. Assim configurada, abriu-se para a assistência social, juntamente com a saúde e a previdência social, a possibilidade de se constituir como política pública de seguridade social, direito do cidadão e dever do Estado. Independente dos problemas de ordem política, gerencial e estrutural que esta política enfrenta, a partir de 1988 e, principalmente a partir da LOAS, tem-se um aparato legal, normativo, que pode assegurar a criação de um novo padrão de gestão nesta área e novas práticas sociais e políticas. Mas, as possibilidades têm sido acompanhadas de muitas incertezas e dificuldades para efetivação desta política pública. Aldaíza Sposati (2001a, p. 5758) tem chamado a atenção para a “regressividade na assistência social, apesar dos aparentes avanços no perfil institucional de sua gestão.” A regressividade, segundo a autora, apresenta-se no seu não reconhecimento como política de seguridade social, na ausência de definição das “seguranças que a assistência social deve prover à população”, no predomínio de “relações conservadoras entre assistência social e organizações sociais sob a égide da filantropia” e “no desconhecido impacto dos gastos públicos no âmbito da assistência social entre as três esferas governamentais [...], o que impede o controle social nessa área de ação.” 26 Apesar das limitações, da “imensa fratura entre o anúncio do direito e sua efetiva possibilidade” como afirma Yazbek (2004a, p. 26), as conquistas do ponto de vista legal e institucional podem contribuir para a afirmação da Assistência Social como política social orientada por padrões de universalidade e justiça. Uma política capaz de devolver a dignidade, a autonomia, a liberdade a pessoas que se encontram em situações de exclusão, abrir possibilidades para que estas pessoas existam enquanto cidadãos(ãs) e para a incorporação de uma cultura de direitos pela sociedade civil. Por este caminho, o horizonte que a política de assistência social permite chegar, talvez, seja o da cidadania. 26 Importante lembrar que a Política Nacional de Assistência Social aprovada em setembro de 2004 pode contribuir para a superação de algumas dessas “regressividades” ao definir que a proteção social proposta no âmbito da referida política deve garantir as seguranças de sobrevivência (rendimento e autonomia); de acolhida e de convívio ou vivência familiar (BRASIL, 2004, p. 25). 81 Mesmo que este seja um horizonte limitado e incapaz de pôr fim aos mecanismos geradores da desigualdade na sociedade capitalista é preciso considerar o seu significado dentro de cada contexto histórico. E, na realidade brasileira, a conquista da cidadania pelas classes subalternas não pode ser o horizonte de um projeto de transformação desta sociedade, mas, não é pouco, dada a forma como historicamente se constituiu a cidadania neste país. Ao falar de cidadania a referência aqui não é apenas aos clássicos direitos civis, políticos e sociais. A cidadania é aqui considerada em sentido amplo. Envolve além destes direitos, novos direitos, “o direito a ter direitos” e o protagonismo das classes populares pela sua efetivação e pela conquista de direitos antigos e novos. Conforme Nogueira, Nas últimas décadas a cidadania dilatou-se de forma inédita e inusitada. O campo dos direitos está hoje definido pela reiteração de antigas conquistas (direitos civis e políticos), pela oscilação dos direitos sociais e pela afirmação incessante de ‘novos direitos’, que recobrem territórios tão vastos quanto o meio ambiente, a sexualidade, a bioética [...]. Paralelamente à reiteração jurídico formal dos direitos, continuam a se multiplicar as situações de desrespeito, preconceito, exclusão e indiferença, assim como continuam a se prolongar as situações de marginalidade, desproteção e arbítrio (NOGUEIRA, 2004b, p. 3, grifo do autor). Assim, na direção de uma cidadania que busca continuamente a afirmação de antigos e novos direitos, no Art. 1º da LOAS a assistência é definida da seguinte forma: A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade para garantir o atendimento às necessidades básicas (BRASIL, 2004a, p. 7). A afirmação da assistência como política que provê “mínimos sociais” explicitada no texto da LOAS, nada tem a ver com a noção de mínimo defendida no programa de ajuste neoliberal, que supõe o não comprometimento do Estado com a redução das desigualdades sociais. Contra a opção neoliberal por mercantilizar serviços sociais, que são direitos constitucionais, Vieira (1998, p. 19) argumenta que “países desenvolvidos asseguram mínimos sociais porque sabem que esta é uma forma de conter o processo de aprofundamento da miséria. A 82 miséria não gera consciência e solidariedade, mas gera mais miséria.” Ao mesmo tempo em que ela limita e às vezes destrói a capacidade dos dominados de se organizarem com vistas a transformações na realidade vivida. A miséria, ainda conforme Vieira “não cria consciência da miséria, e sim miséria da consciência.” Conforme Aldaíza Sposati, [...] a noção de mínimos sociais não é antagônica ao suposto neoliberal da seletividade e focalismo. Mas é sem dúvida alguma ao princípio liberal que entende o enfrentamento dos riscos (sociais e econômicos) como de responsabilidade individual e não social [...]. Propor mínimos sociais é estabelecer o patamar de cobertura de riscos e de garantias que uma sociedade quer garantir a todos os seus cidadãos. Trata-se de definir o padrão societário de civilidade. Neste sentido ele é universal e incompatível com a seletividade ou focalismo (SPOSATI, 1997, p. 10, grifos da autora). Para a autora (1997, p.13-15), “estabelecer mínimos sociais é mais que um ato jurídico ou um ato formal, pois exige a constituição de um outro estatuto de responsabilidade pública e social.” A assistência social e a proposição de mínimos sociais não se colocam numa concepção “minimalista” fundada no limiar da sobrevivência, mas numa concepção de mínimos sociais que a considera “ampla e cidadã” e que se fundamenta num “padrão básico de inclusão”. Esta perspectiva supõe as seguintes garantias: sobrevivência biológica, condições de poder trabalhar, qualidade de vida, desenvolvimento humano e atendimento às necessidades humanas. Além do exposto, alguns elementos parecem centrais no texto da LOAS enquanto definições que apontam para a afirmação da assistência social como política social pública e de seguridade social, os quais podem também contribuir para a formação de uma cultura de direitos no âmbito desta política, à medida que a coloca no patamar de política social, sob a responsabilidade do Estado (e não caridade entregue a sociedade) e inclui a noção de acesso universal aos seus projetos, programas e serviços. A LOAS pode contribuir para a formação de uma cultura que supõe compromisso público, não com patamares aceitáveis de pobreza, mas com a erradicação desta; não com serviços pobres e de baixa qualidade para os mais empobrecidos, mas com serviços de qualidade e atendimento com dignidade para 83 todos os seus usuários. Uma cultura que, ao colocá-la no patamar de política social pública com instrumentos de controle social, cria as condições para pôr fim à sua utilização eleitoreira, paternalista e clientelista. Assim, merecem destaque na LOAS (BRASIL, 2004a): a. ter a organização da assistência social estruturada a partir dos princípios da descentralização político-administrativa, da participação da população na formulação da política e no controle das ações e da primazia da responsabilidade do Estado na condução da política em cada esfera de governo (Art. 5º). Neste último princípio, explicita-se a obrigação dos governos (federal, estadual e municipal) com a sua concretização, apesar da significativa presença das chamadas “entidades de assistência social” na execução das ações; b. conceber a assistência como direito não contributivo (Art. 1º). Ninguém necessita comprovar contribuição para ter acesso a esta política pública. Ao mesmo tempo, que afirma a supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica, a universalização dos direitos27 e o respeito à dignidade do cidadão (Art. 4º, inciso I); c. afirmar a oferta de um conjunto de ações na forma de benefícios,28 serviços programas e projetos de assistência social os quais, sobretudo os três últimos, ao serem implementados de forma descentralizada e a partir da realidades de cada município “pode romper com a lógica contratual, restritiva que preside as prestações monetárias de substituição de renda e reforçar o dever do Estado para com os cidadãos” (BOSCHETTI, 2003b, p. 81); 27 Conforme Boschetti (2003b, p. 83), o princípio da universalidade “indica que a assistência social deve ser entendida e implementada tendo como horizonte a redução das desigualdades sociais. Isto não significa que os direitos assistenciais devam ser garantidos a todos os cidadãos, pobres e ricos indiscriminadamente, mas que é preciso agir no sentido de buscar a inclusão dos cidadãos no universo de bens, serviços e direitos que são patrimônio de todos, viabilizando-se mediante a vinculação orgânica da assistência social com as demais políticas econômicas e sociais.” 28 Conforme Sposati (2004, p.127), “O Benefício de Prestação Continuada - BPC é o primeiro mínimo social não contributivo garantido constitucionalmente a todos os brasileiros, independente da sua condição de trabalho atual ou anterior, mas dependente da condição atual de renda.” Mas, o BPC exige a comprovação da situação de necessidade. 84 d. apresentar uma concepção inovadora de assistência social ao afirmá-la como direito do cidadão e dever do Estado, política de Seguridade Social; e. definir um novo descentralizado e modelo de participativo gestão através constituído de pelas um sistema entidades e organizações de assistência social (Art. 6º). Sem dúvida, as definições da Constituição de 1988 no campo dos direitos sociais e a LOAS contribuem para equiparar tardiamente “o Brasil aos sistemas securitários das sociedades desenvolvidas” (MOTA, 1995, p. 142). Contudo, o contexto em que ocorre a aprovação e implantação da LOAS é marcado pelas reformas neoliberais no Brasil. Diante disso, a seguridade social conquistada em 1988 parece que já nasce condenada ao fracasso, pela total ausência de condições objetivas para a sua efetivação. O fracasso, ou não, no entanto, não está dado a priori. Conforme Mota (1995, p. 143), o exercício dos direitos sociais “é sempre condicionado por processos sociais reais e que não estão subordinados aos estatutos legais, mas às relações de força entre as classes.” Assim, é preciso considerar que as conquistas legais significam apenas um passo em direção à sua efetivação. Isto exige dos que não acreditam no fim da história, na capacidade de desvendar o momento presente e “ousar remar contra a corrente”, sem perder de vista a natureza estrutural das situações de pobreza e de indigência da maioria da população brasileira, diante da qual as políticas sócio-assistenciais são incapazes de promover o bem estar social. Mas, a assistência social, como política fundamentada em um padrão básico de inclusão, não é a realmente existente no Brasil de hoje. Transcorridos quase 11 anos de aprovação da LOAS ela ainda não se constituiu como política de seguridade social. Sua execução tem sido marcada por ações “sobrepostas, pulverizadas, descontínuas, assistemáticas e sem impacto ou efetividade” (GOMES; YAZBEK; 2001, p. 3-5), focalizadas na população mais vulnerável e marcada pelo paralelismo com outras ações do governo federal, como o programa Comunidade Solidária e o Fundo de Combate à Pobreza no governo Fernando Henrique Cardoso – FHC ou, o Programa Fome Zero no governo atual. No governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1999/1999-2003) a política de assistência social foi substituída por um conjunto de ações, que no 85 discurso oficial, apareciam como “inovação social” no trato da política social; mas, na prática caracterizaram-se pelo reduzido grau de responsabilidade do Estado no enfrentamento à pobreza. A inovação é apontada a partir da adoção dos princípios da focalização, da descentralização e das parcerias. Conforme Sônia Fleury (2004, p. 138), além da criação de uma estrutura paralela pública, o Programa Comunidade Solidária, que se revelou num claro descompromisso com a assistência social como política pública, a cobertura dos programas de assistência social implementados pela Secretaria Nacional de Assistência Social foi muito baixa. Esta variou, conforme a autora entre “3,11% dos municípios atendidos como o Programa de Atenção à Criança de 0 a 6 anos a 47,09% de municípios atendidos pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil.” Uma cobertura maior ocorreu apenas para o Benefício de Prestação Continuada (80,35% dos municípios) e 79,95% de municípios atendidos pelo programa Gestão Municipal. Na realidade, o que foi chamado de inovação traduziu-se numa inovação extremamente conservadora, que não só repôs as velhas características das políticas sociais no Brasil (fragmentação, desarticulação, descontinuidade, clientelismo, etc), como as aprofundou, acrescentando novos elementos, como a focalização, que mascara a pobreza realmente existente, efetiva o corte de recursos e que privilegia programas assistencialistas, emergenciais e descontínuos. Analisando a política social brasileira nos anos de 1990 Yazbek (1996, p. 38) identifica uma “refilantropização da questão social” na qual, uma das características é a dependência do investimento público na área social do desempenho geral da economia “o que abre caminho para políticas assistencialistas e de precário padrão, cujo resultado maior é a expansão de uma população sobrante de ‘necessitados’ e ‘desamparados’.” No final do governo FHC, é bom não esquecer isso, o Comunidade Solidária foi transformado em uma ONG, a “Comunitas”,29 criada em 2002 com a mesma missão do programa e presidida pela primeira-dama Ruth Cardoso. Mas, não é somente a lógica neoliberal que impõe limites à realização da assistência social como política social. Conforme Aldaíza Sposati (2001b, p. 87) 29 Mais informações podem ser obtidas em http://www.comunitas.org.br/. 86 “o predomínio da cultura patrimonial populista e do favor têm sido forças predominantes no senso comum sobre a assistência social. Até mesmo nas esquerdas há resistência em reconhecer a luta pelo direito à assistência social [...]”. Além disso, ainda conforme a autora, a assistência social enfrenta “tripla resistência” ao propor o rompimento com aspectos da cultura política do atraso nesta área: a primeira resistência quando “insinua romper com o paternalismo [...]”; a segunda, ao exigir “a interlocução entre três políticas sociais de história e institucionalização fortemente arraigadas e visões setoriais de baixa integração sob a concepção da seguridade”; a terceira resistência decorre do fato dela por para a sociedade “a questão política e ética de estabelecer padrões básicos de dignidade para todos os brasileiros” (SPOSATI, 1995a, p. 73). Diante disso, nesses 11 anos da aprovação da LOAS como tem se configurado a Assistência Social no país? Por ocasião do processo preparatório e da realização da IV Conferência Nacional de Assistência Social, realizada em 2003, houve um amplo esforço, sobretudo por parte do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS no sentido de avaliar a assistência social. Um dos principais instrumentos pra isso foi a pesquisa coordenada pela professora Ivanete Boschetti (Universidade de Brasília - UNB) denominada “LOAS + 10”. O estudo objetivou avaliar o sistema descentralizado e participativo previsto na LOAS (Art. 6º), analisando a atuação dos órgãos de controle social (os Conselhos em todos os níveis de governo). A leitura do relatório revela uma realidade de avanços, sobretudo no campo do cumprimento das exigências legais e institucionais e da criação de instrumentos de gestão na perspectiva proposta pela LOAS. Nas conclusões do relatório final da pesquisa, afirma-se: [...] muito já foi feito nestes 10 anos de LOAS no sentido do cumprimento de várias diretrizes e orientações legais, de modo que a base do Sistema Descentralizado e Participativo está assentada. A sua consolidação, contudo, depende da formação permanente dos sujeitos envolvidos na sua materialização, na sedimentação e divulgação da assistência social como política concretizadora de direitos, na garantia permanente e contínua de recursos financeiros, na qualificação e precisão do que são ações de assistência social, na melhor delimitação dos papéis das três esferas de governo, na clarificação do tipo de limite da colaboração que deve se estabelecer entre governo e entidades assistenciais, no maior envolvimento dos Conselhos no planejamento democrático e participativo e, finalmente, no respeito e reconhecimento dos Conselhos como instâncias 87 deliberativas e espaços de exercício de controle popular (BOSCHETTI, 2003a, p. 221). Também avaliando os 10 anos de LOAS, Yazbek (2004a) destaca alguns aspectos que contribuem para reiterar nesta área o seu caráter de não-política e “a dificuldade de inscrevê-la como responsabilidade pública e dever do Estado.” Assim, observa que “persiste como um dos maiores desafios em relação a esta política sua própria concepção como campo específico de Política Social pública, como área de cobertura de necessidades sociais.” E a ausência de parâmetros públicos no reconhecimento dos direitos, implica, conforme a autora na permanência, nesta política, de “concepções e práticas assistencialistas, clientelistas, ‘primeiro-damistas’ patrimonialistas. O dever moral e a filantropia, em si mesmos, não realizam direitos.” A autora ressalta ainda a presença de uma “cultura moralista e autoritária que culpa o pobre por sua pobreza” (YAZBEK, 2004a, p. 19, grifo da autora) Yazbek também ressalta a “enorme dificuldade das ações assistenciais de contribuir efetivamente para a inclusão social [...] numa perspectiva que supere a ótica tradicional que se tem dos demandatários da assistência social” seja pela fragmentação e seletividade dos usuários, o que implica ações focalizadas nos mais miseráveis, seja pela “ausência de ações integradas e intersetoriais” e pela “ausência de definições quanto a padrões de qualidade dos serviços prestados e das garantias desta política” (YAZBEK, 2004a, p. 19). Por fim, não se pode desconhecer o esforço que vem sendo feito atualmente em alguns municípios e pelo órgão gestor federal, no sentido da superação destes e de tantos outros limites enfrentados na efetivação da assistência social como política pública. Um destes esforços relaciona-se à centralidade que vem ocupando nas ações do órgão gestor federal, no governo atual, sobretudo a partir de 2004, o debate e a construção de uma antiga reivindicação das Conferências Nacionais e que foi reafirmada na IV Conferência Nacional de Assistência Social em 2003: a construção e implementação do Sistema Único de Assistência Social - SUAS. Este, tendo como instrumentos a LOAS; a Política Nacional de Assistência Social; o Plano Nacional de Assistência Social e a uma nova Norma Operacional Básica de Assistência Social, pretende significar a regulação, em 88 todo o território nacional, da hierarquia, dos vínculos e das responsabilidades do sistema de serviços, benefícios e ações de assistência social, sejam aqueles executados pelas entidades de assistência social, sejam os que têm sua execução pelo Estado. Na perspectiva do SUAS todas as ações devem ser desenvolvidas sob critério universal e em rede hierarquizada. Assim, a nova Política Nacional de Assistência Social (BRASIL, 2004b) em vigor desde setembro de 2004, define que a proteção social30 deve ser realizada a partir de ações de caráter básico e especial, assim como assume compromissos com a garantia de seguranças sociais próprias da política: de sobrevivência (de autonomia e de rendimento), de acolhida, de convívio ou vivência familiar. Estas definições e o compromisso com a construção do SUAS são inovações que podem contribuir na afirmação da assistência social como política pública. Os resultados e impactos destas conquistas recentes, no entanto, ainda estão por acontecer e não serão objeto de análise neste trabalho. 30 Com base em Di Giovanni (1998, p. 10) a “proteção social” na Política Nacional de Assistência Social (BRASIL, 2004) é entendida como as formas “institucionalizadas que as sociedades constituem para proteger parte ou o conjunto de seus membros. Tais sistemas decorrem de certas vicissitudes da vida natural ou social, tais como a velhice, a doença, o infortúnio, as privações. Incluo neste conceito, também, tanto as formas seletivas de distribuição e redistribuição de bens materiais (como a comida e o dinheiro), quanto os bens culturais (como os saberes), que permitirão a sobrevivência e a integração, sob várias formas na vida social. Incluo, ainda, os princípios reguladores e as normas que, com intuito de proteção, fazem parte da vida das coletividades.” 89 CAPÍTULO 3 A FORMAÇÃO SOCIAL, POLÍTICA, ECONÔMICA DE NATAL E A ASSISTÊNCIA SOCIAL ANTERIOR A LOAS Como tem se configurado a assistência social em Natal historicamente? A tarefa de apreender esta política pública, nesta Cidade, na contemporaneidade, exige uma aproximação com a sua trajetória. Sem a pretensão de recuperar toda a formação política, social e econômica de Natal, apresenta-se a seguir, alguns traços da sua formação social e econômica e do modo como o poder público tem enfrentado o problema da pobreza, os quais oferecem elementos para compreender como tem se conformado a assistência social. A seguir, procura-se identificar as forças políticas que governaram Natal no período imediatamente anterior à implantação da LOAS (1975-1995), os instrumentos utilizados por elas para a conquista e a permanência no poder, as políticas de enfrentamento à pobreza desenvolvidas pela gestão municipal nesse período, e como essas forças políticas obtêm o consenso e o apoio de setores das classes subalternas para os seus projetos. 3.1 Natal: aspectos da sua história e as primeiras ações de enfrentamento à pobreza na Cidade Natal foi fundada aos 25 de dezembro de 1599, como resultado de um acordo político entre os índios potiguares e os portugueses. Conforme Vidal (1998, p. 14), o interesse dos portugueses por Natal limitava-se à sua localização geográfica como ponto de apoio para a conquista do litoral setentrional. Logo após a fundação, foi iniciada a construção da Fortaleza dos Reis Magos, para 90 garantir a defesa militar do território. Segundo Lima (2002, p. 33), “ao contrário de outras cidades, Natal não se originou de uma vila e não havia uma atividade econômica, que aglutinasse seus moradores.” Por isso, os primeiros anos foram marcados por “muitas dificuldades para garantir o povoamento”, que vai acontecer muito lentamente. Segundo o autor, Quinze dias depois de fundada, Natal ainda estava deserta, não obstante ostentasse todas as prerrogativas de uma cidade: juiz, conselho etc. Alguns anos depois, em 1608, existia um pequeno casario, mas a cidade continuava deserta. Mais tarde, em 1614, a povoação estava composta por 12 casas e mais uma capela construída em taipa, coberta de palhas e sem portas. Quase 20 anos depois, (1631), a situação de abandono não mudara muito, embora o número de casas tenha mudado para 60 (LIMA, 2002 p. 33). A cidade viveu sob ocupação holandesa durante 21 anos no século XVII (1633-1654). Para os holandeses também interessava a posse do território em função da sua localização geográfica estratégica. Neste período, conforme Vidal (1998, 13-14), com base nos estudos de Câmara Cascudo, o nome da cidade foi mudado para Nova Amsterdã e o Forte dos Reis Magos para Castelo de Ceulen. Em 1654, após a derrota dos holandeses, o nome da Cidade voltou a ser Natal. Conforme Andrade (1987, p. 14), dada a inexistência de qualquer atividade econômica formal, “vivia-se da pesca, da pequena agricultura e da criação de gado.” Assim, até o início do século XX, Natal era uma cidade muito pequena, com 16 mil habitantes (como pode ser observado no Quadro 1 a seguir). A presença no RN (assim como em toda região nordeste e no Brasil) de uma estrutura fundiária onde predomina (até hoje) o latifúndio “obrigando a submissão e a subserviência dos camponeses aos coronéis oligarcas donos da terra” (LIMA, 2001, p. 151), aliada aos períodos de longa estiagem, que expulsa os trabalhadores rurais do campo, forneceram a população que viria, ao longo da história, constituir a pobreza e a miséria de Natal. Sabe-se que, “em 1904, forçados pela seca que assolava toda a região Nordeste, chegaram à Natal mais de quinze mil retirantes vindos do sertão, depois de perderem seus animais domésticos e roçados e ficarem sem comida e sem água” (LIMA, 2001, p. 153, grifo do autor). 91 Muitos dos que chegaram à Cidade empurrados pela seca, não retornaram às suas cidades de origem. Contudo, Pedro Lima ressalta a repressão que esta população sofreu e as medidas que a obrigaram a migrar para outros centros urbanos. Com base em estudos de Itamar de Souza, Pedro Lima (2001, p. 153) ressalta que ao chegar na Cidade, muitos dos retirantes não conseguiam emprego. Em face da fome e do desespero “atacaram e saquearam casas comerciais para obter comida”, uma lancha no cais, que descarregava farinha e a casa do governador. Relata o autor que “todos esses ataques foram reprimidos e rechaçados pela polícia.” Mas a solução final veio com a “emigração forçada da população expulsa do sertão pela seca para a Amazônia e para São Paulo.” Era oferecido transporte gratuito pelo Ministério da Aviação, para o transporte de “flagelados”, tanto para os seringais do norte, quanto para os cafezais no sul. Os que não queriam ir embora “a polícia embarcava à força”. Conforme o autor, “cerca de 18 mil pessoas foram embarcadas no Porto de Natal nessa estranha modalidade de migração” (LIMA, 2001, p. 153, grifo do autor). A construção do Porto e do campo de pouso de Parnamirim (atual aeroporto Augusto Severo), foram determinantes na ocupação urbana e no crescimento da Cidade. A construção do Porto, ao final do século XIX, no bairro da Ribeira, torna-o mais dinâmico. Até então Natal possuía apenas dois bairros: a Ribeira e a Cidade Alta, sendo este último o primeiro bairro e local onde, em 1599, havia sido fincada a cruz para a demarcação do povoado. Sendo o bairro Cidade Alta o ponto mais elevado, nele foram construídas três Igrejas: a Matriz, a Igreja do Rosário, dos escravos e a de Santo Antônio. A Ribeira fica localizado numa área mais próxima ao estuário do Rio Potengi. O Porto favoreceu a formação do atual bairro das Rocas, numa área constituída por areias e dunas, também próximo ao estuário do Rio Potengi. Este bairro passou a ser ocupado por uma população formada de pescadores pobres, operários e mergulhadores ligados às atividades portuárias (OLIVEIRA, 2000). O campo de pouso de Parnamirim, por sua vez, num primeiro momento, proporcionou à Cidade a convivência com outros países, sobretudo, europeus. O determinante era a localização geográfica. Considerando que na travessia pelo Oceano Atlântico, era o primeiro ponto de chegada de aviões ao continente sulamericano. Isso contribuiu, segundo Vidal (1998, p. 16) para a “instalação em 92 1939 de uma linha regular de vôos entre Europa e Natal, por uma empresa italiana – LATI.” Mas, o papel fundamental do campo de pouso de Parnamirim e da localização geográfica de Natal, no processo de ocupação do seu território e no seu crescimento urbano, ocorreu, sobretudo, nos anos de 1940, no contexto da II Guerra Mundial. Na ocasião, funcionou em Natal uma base americana. Com isto, a Cidade passou a receber tropas americanas em trânsito e a hospedar, conforme Ferrari (1968, 51), um grande número de norte-americanos. Segundo GOUVEIA (1993, p. 21), a Base Aérea de Parnamirim “foi a maior mobilização técnica dos Estados Unidos, realizada fora do seu território.” A referida base é assim descrita por Câmara Cascudo (1980, p. 401): “[...] pistas de 2.000 metros facilitando a descida de 250 aviões diários. 1.500 edifícios abrigavam 10.000 homens” (CASCUDO, 1980, p. 401). Este papel que Natal cumpriu durante a guerra teve como conseqüência um enorme crescimento e o surgimento de inúmeros problemas. Ferrari (1968, p. 51) descreve assim este período: As bases aérea e naval, as linhas aéreas internacionais, a demanda de domésticas, o desenvolvimento do comércio, o aparecimento de novos hotéis, bares e cinemas, vieram criar um grande número de novos empregos na cidade. Tudo isto e mais o dólar ‘fácil’, que corria abundante, vieram canalizar para a Capital a já existente corrente migratória, cujo elemento propulsor era constituído pelas precárias condições de vida no meio rural, agravadas pelas escassas chuvas nos primeiros anos do decênio dos [1940]. Ainda conforme Ferrari (1968, p. 52), os imigrantes que não conseguiam se inserir no mercado formal de trabalho “viviam da mascateação, à caça fácil do dólar.” Este contexto trouxe para a Cidade também o encarecimento do custo de vida. Com o fim da Guerra, os americanos foram embora e, com eles, o dólar; o emprego de doméstica desapareceu; houve uma queda brutal nas atividades do comércio, sobretudo com o fechamento das atividades ligadas à presença dos americanos: bares, cafés, hotéis e “as linhas aéreas internacionais retiraram-se para o Recife. Muitos dos que tinham encontrado na mascateagem o seu ganha pão, passaram a engrossar as fileiras dos vagabundos.” 93 Mas os problemas não ficam por aí. Há um significativo crescimento de Natal. Sua população havia saltado de 16.059 habitantes em 1.900 para 54.836 habitantes em 1940 e para 103.215 em 1950. Em 10 anos (1940-1950) a população cresceu 88,2%. Para isto contribuiu também, o problema da seca, que será tratado a seguir. Ferrari (1968, p. 52) cita a convivência da Cidade com problemas que até então não enfrentava: “o desemprego, a vadiagem, a delinqüência (principalmente juvenil), a mendicância, o menor abandonado, a prostituição (principalmente de menores), a falta de água, luz, escola, assistência médico-dentária.” Sobre este período e os problemas que a Cidade enfrentava ao final da II Guerra Mundial, Pedro Lima (2001, p. 156) ressalta: A população pobre de Natal, obviamente, pré-existia ao período da II Guerra Mundial. Mas as transformações que ocorreram, principalmente com a criação de um mercado de terras, fazendo surgir um setor imobiliário organizado, consolidou, desde então, as posições ocupadas pelas classes sociais no espaço urbano de Natal. Alem da Cidade Alta e Ribeira, o território correspondente aos bairros de Petrópolis e Tirol se consolidaram como local de moradia da burguesia. Enquanto isso, a população pobre foi concentrada na terceira margem do rio, formada então pelos bairros das Rocas, Alecrim e Lagoa Seca (grifo do autor). Concomitante ao envolvimento da Cidade com a Guerra e os problemas daí decorrentes, Natal convivia com as conseqüências de mais um período de seca no nordeste (1941-1943). Segundo Gouveia, “a cidade é invadida por centenas de flagelados”. Famílias inteiras, vindas de municípios mais próximos, percorriam bairros residenciais e ruas do comércio a procura do que comer. As maiores vítimas eram as crianças. O jornal “A Ordem” descreve este cenário da seguinte forma “[...] centenas de crianças maltrapilhas, em completa vagabundagem, sem escolas, sem alimentação, sem teto, sem orientação, abandonadas material e moralmente nos termos da lei” (O PROBLEMA..., 1943, p. 4). Mas a seca no Nordeste e as suas conseqüências não é só um fenômeno climático. O cenário de Natal, nesse momento, é a manifestação de um problema cuja raiz se encontra na concentração da terra e da água no nordeste brasileiro. A população de flagelados que chegava à Cidade era formada por trabalhadores 94 rurais sem terra, minifundistas, moradores nas fazendas. Para eles, diante da seca, a única alternativa era a migração para áreas urbanas da região, ou para o centro-sul do país. E, para muitos, a opção foi vir para a Capital. A chegada de grande número de camponeses miseráveis na cidade acabou por obrigar os governantes a tomarem uma atitude diante do crescimento da pobreza que isso provocava. Ao mesmo tempo, esse fato marcou o início do envolvimento de Aluízio Alves com a assistência social, o que exige, situar, mesmo que sumariamente, algumas características da trajetória desta liderança política do Rio Grande do Norte, para então tratar deste seu envolvimento com a assistência social. O início da vida pública de Aluízio Alves foi marcado pela sua aproximação com setores oligárquicos, tendo sido deputado federal pela União Democrática nacional - UDN em 1946. Em 1960, rompeu com a UDN e foi o candidato do Partido Social Democrático - PSD ao governo do Estado do RN como candidato da oposição. Conforme Germano (1982, p. 50-62), embora aparecesse como uma força modernizadora, representante dos interesses da industrialização e da burguesia nacional, Aluízio recebeu apoio de uma fração da oligarquia agrária do estado. De modo que, mesmo apresentando uma posição “‘favorável ao progresso’, não se tratava de substituir pura e simplesmente a tradicional dominação oligárquica no comando político do Estado, porém modernizar para conservar, em essência, essa dominação” (GERMANO, 1982, p. 62). Assim, Aluízio Alves venceu as eleições e sua gestão no governo do Estado foi marcada por práticas modernizadoras, como o investimento em eletrificação, transporte, telecomunicações, ao lado de práticas clientelistas, conservadoras e repressivas (GERMANO, 1982, p. 48-49). Apoiou o golpe militar e, em 1969, com o AI-5, acabou sendo cassado pelo regime que apoiou. Atualmente é presidente do Diretório Estadual do PMDB e o principal representante da oligarquia Alves. Conforme Trindade (2004, p. 25), [...] os Alves são o que poderíamos chamar de oligarquia moderna. Aluízio Alves não construiu uma oligarquia nos moldes antigos, baseada essencialmente no poder agrário. Em vez disso, erigiu um império de comunicação, utilizando-o no melhor estilo do coronelismo eletrônico, sendo dono de jornal, rádios, televisão – veículos que, naturalmente, são utilizados não para amplificar 95 críticas aos aliados políticos e sim para fazer propaganda dos representantes da oligarquia (grifo do autor). O envolvimento de Aluízio Alves com a assistência social ocorreu antes da sua eleição para governo do estado. Conforme Trindade (2004, p. 67-68), diante da necessidade de assistência aos flagelados da seca, o então secretário geral Aldo Fernandes chamou Aluízio Alves31 dizendo que queria fazer uma reunião com as principais autoridades da cidade. Diante disso, Aluízio escreveu um artigo com o título “convocação à família natalense!”, chamando as principais autoridades da cidade para uma reunião no Palácio. Compareceram à reunião: o bispo, Dom Marcolino Dantas, um representante da Associação Comercial e o chefe dos escoteiros, Professor. Luis Soares. Nessa reunião, diante da recusa dos presentes em se dispor a organizar uma campanha de assistência aos flagelados da seca, Aluízio Alves se dispôs a fazê-la. De acordo com o Caderno Especial do Jornal Tribuna do Norte sobre a História do Rio Grande do Norte, Dentro de três dias, 8 mil pessoas estavam abrigadas. Terminada a seca Aluízio Alves organizou a volta dos retirantes, fazendo com que cada um levasse instrumento de trabalho, além de recursos para recomeçar a vida, inclusive comida para um mês. Aconteceu que, no final, ficaram 60 menores de ambos os sexos. Aluízio Alves sugeriu então criar o Serviço de Assistência ao Menor [...]. Incansável, Aluízio Alves, com ajuda da Legião Brasileira de Assistência, criou o Instituto Padre João Maria e, com auxílio da prefeitura, organizou o abrigo Juvino Barreto. Ambos foram inaugurados no dia 19 de abril de 1943 (HISTÓRIA..., 2005, p. 2). Conforme Trindade (2004, p. 68), a partir desse acontecimento e até 1946 Aluízio Alves tornou-se “um dos mais atuantes líderes envolvidos com projetos de assistência social no estado.” A coordenação da assistência aos flagelados da seca foi, conforme o autor, o embrião do Serviço de Reeducação e Assistência Social - SERAS do qual Aluízio Alves foi o primeiro diretor, assim como lhe credencia para dirigir a seção estadual da LBA. Desta forma, na segunda metade da década de 1940, Natal enfrentava os problemas de uma cidade que cresceu muito rapidamente e de forma 31 Desde 1940, Aluízio Alves trabalhava no jornal “A República” para o qual foi convidado por Aldo Fernandes (na época, interventor interino do RN) e de onde se tornou repórter e editor (HISTÓRIA..., 2005, p. 2). 96 desordenada, sem contar com uma infra-estrutura produtiva, capaz de absorver a mão de obra sobrante existente. Além da seca, é preciso considerar também o processo de expansão do capital na agricultura do RN, que assim como ocorre em toda região Nordeste, é um processo que gera a concentração da propriedade fundiária e expulsa os trabalhadores rurais de suas terras, aumentando o número de trabalhadores temporários e bóias frias, que passam a procurar os centros urbanos em busca de sobrevivência. Contudo, outros estudos revelam que foi somente a partir dos anos 80 do século XX que Natal recebeu maior contingente de migrantes, sobretudo, populações rurais expulsas do campo. Conforme Andrade (1987), uma pesquisa realizada por Itamar de Souza nos anos de 1970 (SOUZA, 1978), destinada a analisar a origem dos migrantes na Cidade, identificou que 88,7% dos entrevistados eram “provenientes de áreas urbanas tanto de dentro como de fora do Estado.” Este dado, aliado a outras pesquisas desenvolvidas por pesquisadores da UFRN (ANDRADE, 1980), revelam que “Natal não é o destino imediato dos trabalhadores rurais expulsos do campo. Estes, migram primeiramente para o centro-sul, retornando ao Estado mais tarde com a recessão econômica dos anos 1980” (ANDRADE, 1987, p. 18). Se, no início do século XX, houve uma grande migração para Natal em decorrência dos períodos de seca, talvez pela repressão ocorrida naquele momento, pela expulsão a qual os migrantes foram submetidos, forçados a uma nova migração para o sul ou para a Amazônia, a Cidade, durante muito tempo, não foi o destino principal daqueles que eram expulsos do campo, seja pela decadência da monocultura da cana de açúcar, seja pela seca, seja pela grilagem de terras ocupadas. Com isso, os migrantes que chegaram a Natal até a década de 1970 tiveram um perfil mais de população urbana das cidades do interior. Conforme Andrade, “até a década de 70, a migração para Natal era caracterizada por ser de camadas médias da zona rural e de cidades do interior que vinham para a capital a procura de trabalho e estudo” (ANDRADE, 1987, p. 18). Assim, no contexto da II Guerra mundial, objetivando apoiar as famílias dos combatentes de guerra foi criada pelo então presidente Getúlio Vargas, em 1942, a Legião Brasileira de Assistência, presidida pela Sra. Darci Vargas, esposa do presidente. Logo após, conforme Ferrari (1968, p. 52), em 28 de setembro de 1942 foi instalada em Natal a Comissão Estadual da 97 LBA, cujo objetivo no Rio Grande do Norte era, segundo o autor, o apoio às forças armadas e a assistência às famílias dos convocados, como ocorria em todo Brasil, além disso, objetivava ainda prestar “assistência médico-dentária através de ambulatórios; assistência aos flagelados das estiagens; assistência financeira a instituições públicas e particulares de caráter assistencial”. Como ocorria em todo o país, iniciou-se com a LBA, uma ação mais direta do Estado frente à pobreza crescente na cidade do Natal. Os trabalhadores habitantes da cidade ou os migrantes, que não conseguiam prover o seu sustento são alvos das ações do órgão. Estes eram vistos, antes de tudo, como necessitados, vagabundos, pedintes, desajustados, pessoas que precisam de tratamento. Para tanto, era necessário comprovar sua miséria para ter direito a ajuda e aceitar ser treinado para aprender a sobreviver com os seus próprios recursos. Junto com a LBA, foi criado um outro órgão, voltado mais especificamente para a problemática do “menor abandonado”. Trata-se do Serviço de Reeducação e Assistência Social - SERAS. Instalado em 26 de março de 1943 pelo governo do Estado para enfrentar o “problema do menor”. Um inquérito aplicado pelo SERAS após a sua criação identificou “a existência de 941 menores de - 12 a 17 anos – abandonados moral e materialmente.” Até então a cidade possuía apenas um abrigo feminino sob a responsabilidade da congregação religiosa Filhas de Sant’ Ana. Foi então criado um abrigo masculino (GOUVEIA, 1993, p. 35). O crescente número de “menores abandonados” em Natal era justificado pelo retorno de muitas famílias aos seus municípios de origem deixando as crianças em Natal. Diante disso o SERAS desenvolveu ações voltadas para o serviço a menores nas zonas rural e urbana. A preocupação era fixar o homem ao campo e favorecer o desenvolvimento das potencialidades das crianças sem retirá-la do meio em que vivia (GOUVEIA, 1993, p. 36). Antes da LBA e do SERAS, a pobreza da cidade do Natal era objeto de preocupação, sobretudo das obras sociais da Igreja Católica, por meio da Ação Católica e da Congregação Mariana. Estas tiveram grande influência nas ações dos novos órgãos. A influência católica na LBA é bem explicitada na descrição de Ferrari (1968, p. 53) segundo a qual, logo que foi instalada a Comissão Estadual da LBA, “Dom Marcolino reuniu os diretores de todas as instituições católicas a fim de estudar os meios de colaborar com a LBA. Desenvolveu-se em todo o 98 Estado, estreita colaboração entre a Igreja, a LBA e o SERAS.” Esta colaboração incluía a ajuda, por parte da LBA, para as “obras católicas já existentes.” Um exemplo da participação ativa da Ação Católica nas ações da LBA é dado pelo programa de voluntariado. Segundo Gouveia (1993, p. 30), este programa era constituído por 15 comissões de visitadoras sociais, em sua quase totalidade integrantes da Ação Católica. Outros programas desenvolvidos eram o de Formação de Pessoal; o Plantão de Serviço Social de Casos Individuais, destinado a prestar assistência à família, assistência médica, assistência econômica e encaminhamentos a diversas organizações sociais. Gouveia (1993, p. 33), afirma que “ao ‘plantão’ compareciam ‘necessitados’ de toda natureza à busca de soluções para os seus ‘desajustamentos’.” Os procedimentos do atendimento individual são assim descritos: Preenchida a ficha com nome, endereço e solicitação do interessado, era feito o resumo do caso. Levado à apreciação da chefia, esta determinava a realização de um ‘inquérito’ junto ao ‘necessitado’ e seu meio social. De posse do resultado desse estudo, elaborava-se o ‘diagnóstico’ e determinava-se o ‘tratamento’. Este visava principalmente estimular o ‘necessitado’ a participar de projetos que se relacionavam com a solução dos seus problemas (GOUVEIA, 1993, p. 33-34). No caso do SERAS, além do que já foi exposto, uma das ações mais importantes foi a realização de um cadastramento de todas as instituições e obras sociais do RN, com vistas a “cooperação e orientação técnica” na forma de “concessão de subvenções sociais; elaboração de planos para organização de ‘obras sociais’; orientação às instituições matriculadas visando à melhoria dos serviços prestados” (GOUVEIA, 1993, p. 38). Isso permitiu “um controle eficiente da assistência, evitando a duplicidade de auxílios”. Coube ao SERAS também a criação do “Serviço de Repressão à Mendicância”. Este desenvolveu dois tipos de ação: “um abrigo para atender os casos de invalidez e abandono e um atendimento domiciliar para os casos que, por sua natureza, não comportavam internamento” (GOUVEIA, 1993, p. 38-39). Em linhas gerais, esse foi o padrão de assistência social que predominou em Natal até os anos 90 do século XX. A ele se aliará a assistência de caráter clientelista prestada pelo Gabinete Civil da prefeitura. 99 3.2 Considerações sobre a formação sócio-econômica de Natal O período 1940-1990 foi marcado por um gradativo crescimento populacional decorrente das migrações e também da forma como a Cidade se inseriu no processo de acumulação de capital na região Nordeste, o que acontecia, sobretudo, por meio da política de incentivos fiscais desenvolvida pela Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE. Antes da SUDENE, a economia nordestina se caracterizava pela exploração da cana-deaçúcar, do algodão, das culturas de subsistência e da pecuária extensiva. Na atividade industrial, predominava a produção têxtil, de alimentos, de couro, de bebida e de óleos vegetais (VIDAL, 1998, p. 20).32 Em termos de crescimento demográfico, a população de Natal teve um grande crescimento até 1991, quando atingiu 606.556 habitantes. A partir desse período, a taxa de crescimento reduziu significativamente, conforme pode ser observado no quadro a seguir. ANO/CENSO POPULAÇÃO % DE CRESCIMENTO 1900 16.059 1920 30.696 91,1 1940 54.836 78,6 1950 103.215 88,2 1960 162.537 57,5 1970 264.379 62,7 1980 416.898 57,7 1991 606.556 45,5 1996 656.037 8,1 2000 712.317 8,6 2003 744.794 4,6 Quadro 1 - População de Natal no período 1900-2000 Fonte: IBGE – Censos Demográficos. O dado de 2003 é uma estimativa feita pelo Departamento de Informação e Informática do SUS - DATASUS 32 Uma análise aprofundada da formação social, econômica e política do Nordeste no período de 1950-1960 é encontrada na obra Elegia para uma re(li)gião de Francisco de Oliveira (OLIVEIRA, 1981). Para o autor, o conceito de região se fundamenta no movimento de reprodução do capital e das relações de produção. Por esta concepção, é possível encontrar, na história regional, vários nordestes – o nordeste açucareiro, o nordeste algodoeiro e o nordeste dos latifundiários – os quais expressam a forma de inserção da região no conjunto do desenvolvimento capitalista do país e sua inserção no mercado internacional (OLIVEIRA, 1981, p. 32). 100 Conforme Andrade (1987, p. 21), o processo de industrialização que ocorreu no Nordeste, como resultado da intervenção da SUDENE é caracterizado pela sua concentração espacial nos estados da Bahia e de Pernambuco. Até o início dos anos de 1970, estes dois estados, juntos, eram responsáveis por 63,5% dos investimentos e 52,7% dos projetos aprovados na região. O Rio Grande do Norte participava com apenas 4,0% dos investimentos e 31 projetos. O ramo industrial que mais recebeu investimentos no Estado foi o de extração mineral em virtude do potencial de sua produção salineira. Segundo Leonardo Guimarães (1989, p. 25), até os anos 1980, é possível considerar que o Nordeste passou por três etapas no processo de ajustamento e de integração no contexto nacional. Uma primeira etapa, que ele considera de “isolamento relativo”, na qual predomina no Nordeste e nas regiões de modo geral o “comércio internacional de bens primários.” A segunda etapa, é a que ele denomina “articulação comercial.” Nesta, em decorrência do processo de industrialização vivido no país e de uma melhora no sistema de transporte e de comunicação, há a “constituição do mercado nacional de bens e serviços.” A terceira etapa, denominada de integração produtiva, caracteriza-se pela “transferência de capital produtivo de uma região para outra região, o que traz como conseqüência modificações na estrutura produtiva e nas relações de trabalho.” Esta terceira etapa, segundo Guimarães (1989, p. 275-276), é condicionada pelas medidas de política de desenvolvimento regional, desenvolvida a partir dos anos 60 e início dos anos 70 do século XX. Neste período, enquanto a economia nacional entrava em recessão, no Nordeste, foi criado todo um sistema de incentivos fiscais e financeiros pelo Estado e oferecidos a grandes empresas nacionais e estrangeiras que quisessem se instalar na Região. Outro determinante da integração produtiva é mais estrutural e relaciona-se, conforme Guimarães à “produção de insumos básicos”. Para ele as formas tomadas pela industrialização brasileira a partir do ciclo expansivo do “milagre”, “atrelam a região à estrutura industrial concentrada no Sudeste, definindo para a industria localizada no Nordeste uma função fornecedora de bens intermediários.” Com a integração produtiva, há um intenso crescimento da economia na região Nordeste no período 1960-1980, o qual é marcado pela conjuntura 101 autoritária vivida na história do país. Francisco de Oliveira (1990, p. 67), tomando como ponto de partida este contexto, ressalta que a conseqüência da política de desenvolvimento implementada pela Sudene é exatamente a “desregionalização da economia regional”. Tanto Guimarães (1989, p. 281) quanto Oliveira (1990, p. 67) destacam que a ação do Estado no Nordeste, ao mesmo tempo em que modernizou a economia, sobretudo na área urbana, reforçou a reprodução de velhas estruturas ou relações sociais atrasadas, como a presença das velhas oligarquias rurais, o latifúndio etc. Na realidade, segundo Francisco de Oliveira (1990, p. 68) os mecanismos de financiamento (com destaque para o Fundo de Investimento do Nordeste – FINOR) promoveram a privatização do público, à medida que a lógica do desempenho das empresas estatais é privada e os fundos que as sustentavam eram estatais. O resultado desta fase foi um Nordeste desregionalizado e o fim da homogeneidade com a qual se identificava esse mesmo Nordeste, a partir das semelhanças entre os estados da Região. Neste sentido, “o discurso regionalista da economia não faz mais sentido”, assim como a visão de um Nordeste homogêneo (OLIVEIRA, 1990, p. 88). Contudo, mesmo ocupando um lugar quase insignificante no contexto dos investimentos federais antes e depois da SUDENE, conforme já ressaltado, internamente, estes tiveram outro significado. Conforme Vidal (1998, p. 26), o investimento recebido no período 1970-1980 promoveu algumas transformações na economia do RN, como a mecanização das salinas, com implicações na dinâmica econômica e populacional dos municípios da região salineira; mecanização na produção agrícola, sobretudo na região canavieira; e na introdução da produção de frutas tropicais para exportação. Em Natal, a partir da década de 70 do século XX, tem-se um período marcado por “uma nova etapa no processo de acumulação de riqueza na cidade” com a exclusão dos mais pobres dos benefícios desta acumulação. Nesse período, 35% das indústrias do RN estavam concentradas em municípios próximos a Natal (Parnamirim, Macaíba e Extremoz). Mesmo assim, as atividades de comércio e de serviços continuaram predominando na cidade, absorvendo 70,41% da PEA (VIDAL, 1998, p. 26). Um outro setor bastante dinamizado no período 1970-1980 foi a construção civil, consolidando-se como um importante setor produtivo (VIDAL, 102 1998, p. 26-28). Uma das explicações para o crescimento do setor da construção civil e da consolidação do comércio e dos serviços é a participação do RN na produção petrolífera e de gás natural, aliada a massa salarial de funcionários públicos civis e militares. Conforme Vidal, A partir da exploração do petróleo e a produção de gás natural no Estado, configurou-se um estrato diferenciado de trabalhadores, com níveis de renda distinto do conjunto dos servidores públicos e composto por técnicos e operários qualificados. Estes se distribuem entre a Petrobrás e empresas prestadoras de serviço à mesma. Desse estrato também fazem parte alguns grupos de militares e servidores federais que contribuem para o surgimento de um mercado de consumo ascendente (VIDAL, 1998, p. 28). O nível de renda dos técnicos e operários qualificados da Petrobrás e das empresas subsidiárias, implicou na elevação constante do custo de vida na Cidade, em que a maioria da população tinha uma renda de até 3 Salários Mínimos. Mas, conforme Andrade (1987, p. 30), “uma parcela da população com uma renda superior, proveniente do trabalho em repartições públicas federais civis e militares além de empresas do ramo petrolífero é uma característica da cidade.” Do ponto de vista militar, por exemplo, Natal concentra o III Distrito Naval, o Centro de Aplicações Táticas e Recompletamento de Equipamentos – CATRE, da Aeronáutica; além de vários grupamentos do Exército, tendo abrigado até o final dos anos de 1990 o Centro de Lançamentos de Foguetes da Barreira do Inferno. Com relação ao crescimento da produção industrial no “pós-70”, sobretudo da industria têxtil, este apresentou como um dos principais determinantes a criação, pelo Governo do Estado, do “Programa do Parque Industrial”. Tal programa, conforme Andrade (1987, p. 24-28), consistia em “oferecer aos investidores um máximo de vantagens locacionais e uma bateria de incentivos do governo estadual, além dos já oferecidos pela SUDENE.” O referido programa, conseguiu promover um certo incremento na produção industrial, principalmente na indústria têxtil, mas sem a implantação de indústrias de base, que poderiam impulsionar um desenvolvimento econômico mais consistente e duradouro. Porém, o desenvolvimento econômico experimentado por Natal e pelo Rio Grande do Norte no pós-70, como parte do modelo de desenvolvimento adotado 103 no país e intensificado nos anos do regime autoritário, teve como características marcantes o seu caráter concentrador de renda e produtor de desigualdades sociais. Por isso, o crescimento experimentado pela Cidade, no período, não resultou numa melhoria nos níveis de renda da sua população; ao contrário, houve uma queda significativa da renda. Conforme Andrade (1987, p. 28-29), em 1970, 81,7% das famílias recebiam rendimentos de até 5 Salários Mínimos. Em 1980, 80% das pessoas com 10 anos ou mais residentes em Natal recebiam até 3 Salários Mínimos. Esta realidade vivida em Natal é coerente com a realidade que Guimarães (1989, p. 278) identifica no mercado de trabalho que resulta da integração produtiva que marcou a economia do Nordeste até os anos de 1980. O autor ressalta que houve um crescimento do emprego no setor de serviços; mas, o que marca o mercado de trabalho no período é a subocupação e a sub-remuneração. As relações de trabalho são marcadas pelo trabalho “por conta própria”, pelo assalariamento sem vínculos empregatícios, pelo “trabalhador sem carteira assinada, ou aquele que recebe remuneração abaixo do salário mínimo.” Como em todo o país os anos de 1980 em Natal são marcados por recessão, fechamento de grandes indústrias, sobretudo têxtil e de confecções. Contudo, a partir da segunda metade desta década, há uma grande expansão da atividade turística, com investimentos na construção de grandes hotéis na orla marítima e na “Via Costeira”, uma avenida beira-mar, com 12 km de extensão e que liga a praia de Ponta Negra às praias do Centro e ao bairro de Petrópolis. Esta avenida representou um dos maiores investimentos públicos na questão do turismo. O seu projeto inicial contrariava a legislação urbana e ocasionou a reação de ecologistas, moradores dos conjuntos residenciais da zona sul e vários outros setores da cidade, gerando um amplo movimento com grande repercussão na imprensa, o que obrigou o governo a rever o projeto inicial. Mesmo assim, para construí-la foi cortada toda uma área de dunas. A principal conquista do movimento popular foi impedir que nestas áreas fossem construídos hotéis e outras grandes edificações. Mesmo tendo sido preservada a área das dunas (que constitui atualmente o “Parque das Dunas”), a grande maioria dos hotéis da Cidade se situam nesta área, localizados à beira mar, o que tem gerado um outro problema, que é a privatização das praias aí localizadas. 104 O turismo consolidou o setor de comércio e serviços na Cidade que cresce em decorrência da “circulação intensiva de moeda, a qual em sua maioria é proveniente de fora, seja pelo pagamento de funcionários públicos civis e militares, seja pelo crescente fluxo de turistas que chegam à Natal” (ANDRADE, 1987, p. 31). Ainda sobre a atividade turística em Natal, um estudo da Secretaria Especial de Comércio, Indústria e Turismo de Natal (SECTUR) ressalta que, até 1969, Natal possuía apenas três hotéis (o Hotel Internacional Reis Magos, o Hotel Samburá, e o Grande Hotel). Além do que já foi exposto o investimento do poder público, tanto municipal quanto estadual, neste tipo de atividade desde os anos de 1970 ocorre, sobretudo, por meio da criação de infra-estrutura. Merecem destaque, por exemplo, obras como a nova ponte de Igapó, sobre o estuário do Rio Potengi, que possibilitou o acesso ao litoral norte; a duplicação da rodovia Natal-Parnamirim que dá acesso ao aeroporto Augusto Severo e a construção de viadutos (do Baldo e de Ponta Negra); a urbanização das praias do centro da Cidade e a construção do Centro de Turismo, entre outras (NATAL..., 2004b, p. 823). Outra medida de impacto na área turística foi a criação da Empresa de Promoção e Desenvolvimento do Turismo do Rio Grande do Norte S.A – EMPROTURN, em dezembro de 1971. Sobre o seu papel o documento da SECTUR ressalta: Essa empresa durante o Governo Cortez Pereira, teve como objetivo desenvolver três grandes linhas de ação: a) estudar as potencialidades turísticas do Estado; b) divulgar as belezas de Natal em outros Estados; c) construir uma infra-estrutura local para o turismo. Desse modo, o nosso artesanato, a culinária potiguar e demais produtos da terra foram divulgados em Brasília, Rio de Janeiro e outros centros brasileiros e estrangeiros. Em 1973, o Rio Grande do Norte passou a integrar também a exposição permanente do Brasil no Centro Internacional de Roma (NATAL..., 2004b, p. 11-12). O resultado do investimento público nesta atividade à época e que continua acontecendo até o presente foi que a receita resultante do turismo na Grande Natal em 2002 teve um montante de US$ 34.882.823,00; e em 2003, US$ 77.716.364. Um crescimento, portanto, de 123% somente entre 2002 e 2003. 105 Em termos de fluxo turístico, Natal recebeu em 2003 um total de 1.006.766 turistas, sendo 837.911 brasileiros e 168.855 estrangeiros. Apesar dos investimentos voltados para o turismo que embelezam a Cidade, e, de alguma forma, melhora a vida da parcela dos seus habitantes que conseguem usar os bens e serviços construídos em função do turismo, do ponto de vista da ocupação do espaço urbano e das condições de vida da maioria da população, Natal chegou aos anos 90 dividida entre carências e privilégios, uma divisão determinada, sobretudo, pela contradição entre a produção coletiva de riquezas e a sua apropriação privada. Em 1993, o “mapa da fome” no estado do RN (RIO GRANDE DO NORTE, 1993) revelou a existência de 170.100 pessoas em situação de indigência em Natal, correspondendo a 30% da sua população total. Este foi, inclusive um dos melhores índices encontrados no estado, considerando que 137, do total dos 152 municípios existentes no RN àquela época, tiveram índices de indigência que variavam entre 45% e 74%. Em todo o RN, este índice foi de 46% (no nordeste, o mesmo mapa produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA revelou, na época, um índice de 45%). Do ponto de vista da ocupação do seu espaço urbano o período 19701990 foi marcado por um grande crescimento da Cidade, em virtude da construção de conjuntos habitacionais. Em 1986, haviam sido construídas 36.859 moradias, que abrigavam uma população de mais de 202.724. A maioria na região Norte da cidade. Segundo Silva (2005, p. 10), até 1991 haviam sido construídos 127 conjuntos habitacionais.33 O primeiro, a Cidade da Esperança, na região Oeste, ainda nos anos de 1960. A região Norte concentrou 60% dos conjuntos habitacionais construídos pela Companhia de Habitação Popular – RN COHAB. Na região Sul, predominaram os conjuntos construídos pelo Instituto de Orientação as Cooperativas Habitacionais – INOCOOP, mais voltados para a classe média, assim como aqueles construídos por empresas da construção civil sem uma relação direta com a política habitacional. A construção de conjuntos habitacionais de forma fragmentada, aliada à ausência de ordenamento por parte do poder público, no sentido de disciplinar o processo de ocupação do solo urbano, contribuiu para a formação de vazios que 33 Dados da SEMURB, de 2002, informam a existência de 179 conjuntos habitacionais. Sendo, 50 na Zona Norte, 80 na Zona Sul, 24 na Zona Leste e 23 na Zona Oeste. 106 intensificam o mercado de terras em Natal. Segundo Silva (2005, p. 11) “tal padrão de construção periférica deixava em seu rastro uma sobrevalorização nos terrenos particulares, pois permitia a estes um acesso a infra-estrutura até então inexistente.” Mas, a moradia proveniente dos conjuntos habitacionais não estava ao alcance da maioria da população cuja renda era de até 3 Salários Mínimos. O resultado foi o surgimento de favelas e de outras formas precárias de habitação e ocupação do solo urbano (ANDRADE, 1987, p. 33). Os números quanto à quantidade de favelas em Natal nos anos 80 não são muito precisos. Contudo, conforme Mineiro e Passos (1998, p. 152-154), com base em dados do Instituto de Planejamento Urbano de Natal - IPLANAT, afirmam que havia na cidade 32 favelas em 1981 com 37.307 pessoas, o que correspondia a 8,9% da população total. Em 1993, esse número de favelas havia mais que duplicado: contabilizavase a existência de 70 favelas, com uma população de 57.912 pessoas equivalente a 9,5% da população total da Cidade. Entretanto, o problema da habitação em Natal não se explicita apenas pelo número de favelas. Há outras formas que a população utiliza para enfrentá-lo e que consiste na subdivisão de casas e de lotes, sobretudo, nos bairros mais populares e de maior densidade populacional, como é o caso de bairros como Rocas, Alecrim e Quintas; bem como a formação de vilas e de loteamentos irregulares. Em 1992, contabilizava-se 40.395 pessoas morando em 2.217 vilas e 118 loteamentos irregulares, nos quais predomina a autoconstrução (MINEIRO; PASSOS, 1998, p. 156-157). Nos anos de 1990, foi pela via dos loteamentos e ocupações que a Cidade mais cresceu, principalmente na região norte. Na região sul, predominou os loteamentos regulares e grandes condomínios, destinados à classe média alta e à elite. Não há dados do número de pessoas que habitam estes loteamentos na periferia. A moradia, conforme Kowarick (2000, p. 83-87), constitui “fator primordial no processo de inclusão-exclusão.” A favela e o cortiço são os últimos redutos da escala habitacional, por serem alternativas que apresentam condições materiais e simbólicas muito deterioradas. Contudo, para o autor, sem negar “a espoliação urbana inerente à autoconstrução” esta modalidade de alternativa habitacional pode significar um dispêndio monetário mais baixo. 107 Apesar de requerer trabalho extenuante da família, pode ser compensador por resultar na aquisição de um bem. Na realidade, “a mercadoria habitação, feita pelo tortuoso e sacrificante processo autoconstrutivo, é o único bem material cujo preço aumenta ao mesmo tempo que é consumido.” Mas, por integrar projetos individuais, a autoconstrução faz ressurgir “com pleno vigor o que pode ser nomeado de cidadão privado: aquele que, com seu esforço e perseverança, venceu na vida, pois ergueu durante muitos e penosos anos a sua própria casa” (KOWARICK, 2000, p. 94, grifo do autor). Atualmente, Natal é uma cidade com uma área territorial de 169,9 km² e 744.794 habitantes conforme já explicitado anteriormente, o que representa 25,6% da população total do Rio Grande do Norte. Conforme apresentado no Quadro 1 houve um crescimento relativo de 71% da população da Cidade nos últimos 20 anos. Mas, entre 1996 e 2000, Natal teve uma taxa de crescimento anual, segundo o IBGE, de 1,98%, registrando-se, portanto, uma desaceleração em relação ao crescimento demográfico anterior. Em termos das regiões administrativas a população é assim distribuída: 244.734 habitantes, na região Norte; 155.884, na região Sul; 116.106, na região Leste e 195.584, na região Oeste (INSTITUTO..., 2001). Hoje não é possível pensar esta Cidade descolada da Região Metropolitana de Natal (RMN) a qual tem uma área total de 2.522,8 km² e uma população de 1.097.273 habitantes. Natal, com 169,9 km² ocupa apenas 6,7% desta área total. Mas, possui 70% da população e arrecada 72% do ICMS da região. Conforme mapa a seguir, a RMN é constituída por 8 municípios: Natal, Parnamirim, São Gonçalo do Amarante, Macaíba, Extremoz, Ceará Mirim, Nísia Floresta e São José de Mipibu. A Região Metropolitana de Natal foi instituída pela Lei Complementar n.º 152 de 16 de janeiro de 1997 com seis municípios. Em 2002, pela Lei Complementar n.º 221, de 10 de janeiro de 2002, foram incluídos mais dois municípios: Nísia Floresta e São José do Mipibu. É uma das poucas regiões metropolitanas do país, instituída por iniciativa do legislativo e a partir de uma demanda da sociedade e de um debate com esta. A maioria das regiões metropolitanas do país foram instituídas de forma autoritária pelos governos militares. É o caso das que foram implantadas em 1974 como uma das primeiras estratégias de ação do II Plano Nacional de Desenvolvimento dos governos da 108 ditadura: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Salvador, Curitiba e Belém. REGIÃO METROPOLITANA DE NATAL São Gonçalo do Amarante Macaíba Natal Parnamirim São José de Mipibu Nísia Floresta n o O c e a Extremoz o n t i c â l A t Ceará Mirim N ESCALA Mapa-base: Sempla - Setor de Estatística e Informações Trabalhado por Josélia Carvalho 0 8 16km Figura 1 – Mapa da Região Metropolitana de Natal Fonte: SEMPLA – Setor de Estatística e Informações A maioria dos municípios da RMN teve significativo crescimento populacional no período 1991-2000. Contudo, Parnamirim, distante 25 km de 109 Natal, foi o que mais cresceu, com uma taxa de crescimento anual34 de 7,9 conforme dados do Censo Demográfico 2000 do IBGE, sendo atualmente o terceiro município do RN em população, com 124.690 habitantes35, e o que apresenta mais intensamente uma gradativa integração populacional, territorial e sócio-econômica com Natal. Outros municípios tiveram aumento populacional a uma taxa de crescimento anual superior a 2,0: São Gonçalo do Amarante (4,9), Extremoz (3,1), Nísia Floresta (3,6), Macaíba (2,7), São José do Mipibu (2,4). A taxa de crescimento de Natal, no período, foi de 1,8 e de Ceará Mirim, de 2,0. Há vários fatores que explicam o crescimento demográfico de Natal e que foram explicitados anteriormente, como o processo de industrialização induzida via incentivos fiscais, a expansão da construção civil, a urbanização da região Norte da Cidade e o êxodo rural. Mas, conforme França (2003, p. 01-02), o elevado crescimento da população de Natal nas últimas quatro décadas, é decorrente, principalmente, do êxodo rural. A Cidade tem sido o principal destino da população migrante do Estado. Com isso, pobres rurais transformam-se em miseráveis urbanos, num processo de urbanização desordenada, de periferização e empobrecimento urbano. Natal tem seu território organizado politicamente em 36 bairros e quatro regiões administrativas (Norte, Sul, Leste, Oeste), conforme o mapa a seguir. 34 35 Taxa média geométrica de crescimento anual 1991/2000, divulgada pelo IBGE. Conforme dados do IBGE, em 1991 sua população era de 63.312 habitantes. 110 NATAL - REGIÕES ADMINISTRATIVAS Região Oeste Região Sul Parque das Dunas Região Leste n o O c e a o n t i c â l A t Região Norte N ESCALA Mapa-base: Sempla - Setor de Estatística e Informações Trabalhado por: Josélia Carvalho 0 8 16km Figura 2: Mapa de Natal – Regiões Administrativas Fonte: SEMPLA – Setor de Estatística e Informações O processo de urbanização desordenada, de periferização e de empobrecimento urbano em Natal, se explicita na existência de 70 favelas36, a maior parte delas nas regiões Leste e Oeste, de 392 loteamentos sendo que, 163 não registrados ou irregulares37 e 03 bolsões de miséria segundo dados da Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social (SEMTAS). Os chamados bolsões de miséria se distribuem em três, das quatro regiões administrativas 36 O número de favelas não tem mudado, conforme os dados pesquisados. O que há é um gradativo crescimento do número de pessoas vivendo nesses espaços, assim como o número de loteamentos irregulares. 37 Os loteamentos irregulares se concentram na região Norte, onde estão 35,5% destes. O restante, é assim distribuído: 28% na região Sul, 21,2% na região Leste e 15,2% na região Oeste (MINEIRO; PASSOS, 1998, p. 157). Conforme a Secretaria Especial de Meio Ambiente e Urbanismo - SEMURB (NATAL..., 2003, p. 56), Natal possui atualmente 392 loteamentos, sendo 229 registrados e 163 não registrados. 111 (norte, leste e oeste), o que revela uma cidade partida entre a zona sul (rica e privilegiada) e o restante das regiões. Conforme Mineiro e Passos (1998, p. 154), em 1993 o número de habitantes em favelas em Natal era 57.912 pessoas. Atualmente, segundo a SEMURB (NATAL..., 2003c, p. 54), com base em dados da SEMTAS de 2002, existem 70 favelas que reúnem 14.458 habitações e uma população de 65.122 pessoas. Este total corresponde, na realidade, a 9% da população da Cidade. A distribuição das favelas segundo as regiões revela que a região Norte e a Oeste são as que possuem o maior o número de favelas (20 e 22 respectivamente ou 60% do total). A região Sul possui 11 favelas e a região Leste 17. Estudos da Fundação Instituto de Desenvolvimento Econômico do RN – IDEC-RN (RIO GRANDE DO NORTE..., 1996), com base em dados do Censo Demográfico de 1991 do IBGE, revelaram que neste período 54,9% dos chefes de família ganhavam até 2 Salários Mínimos, sendo que, deste total, 30,9% recebem de ½ a 1 Salário Mínimo. No Censo Demográfico de 2000, os chefes de família com rendimento de até 2 Salários Mínimos eram de 41,7%, destes, 20,4% recebiam até 1 Salário Mínimo, incluindo neste total os 8,6% que se declararam sem rendimento, segundo o IBGE. Os dados atuais sinalizam, portanto, uma melhora neste dado em relação a situação identificada no censo anterior (INSTITUTO..., 2001). Os dados relativos à renda dos habitantes da cidade apresentados nos quadros 2 e 3 a seguir revelam a divisão entre riqueza e miséria no espaço urbano de Natal. Região Administrativa Leste Norte Oeste Sul Rendimento Nominal Médio Mensal (Salários Mínimos) 9,00 2,92 2,92 11,62 Rendimento Mediano Mensal (Salários Mínimos) 3,31 1,99 1,65 7,28 Quadro 2 - Rendimento médio e mediano nominal mensal das pessoas com rendimento por região administrativa da cidade – Natal – RN Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2000 (INSTITUTO..., 2001) 112 Região Sem Até 1 De 1 a 3 De 3 a 5 De 5 a 10 De 10 a 20 Acima de renda SM SM SM SM SM 20 SM Norte 29.022 56.311 96.246 32.906 22.764 5.351 943 Sul 5.465 12.078 25.735 17.532 37.223 34.105 23.145 Leste 7.910 22.113 29.316 13.023 17.928 13.281 11.488 Oeste 22.355 54.421 73.996 21.987 15.321 4.834 1.797 TOTAL 64.752 144.923 225.293 85.448 93.236 57.571 37.373 Quadro 3 - Moradores em domicílios por classe de rendimento em Natal – Distribuição por região administrativa. Fonte: IBGE - Censo Demográfico 2000 (INSTITUTO..., 2001) e SEMURB (NATAL..., 2003c). Um dado que chama a atenção, a partir do Quadro 3 é a existência de 209.675 pessoas, 29,43% que não têm qualquer rendimento ou recebem, no máximo, um Salário Mínimo e que podem ser incluídos na condição de indigentes. “O mapa da exclusão social no Brasil” (POCHMANN; AMORIM, 2003, p. 57) indica para Natal 0,624 de índice de pobreza, 0,595 de índice de exclusão, 0,307 de índice de emprego formal e 0,287 de índice de desigualdade. Considerando que, conforme os autores, o índice varia de 0 a 1 e que os valores mais próximos de zero revelam as piores situações, é no campo das desigualdades sociais e do emprego formal que se concentram as piores situações em Natal. Segundo Francisco de Oliveira (1995, p.5) [...] o que diferencia os indigentes dos pobres, num recorte puramente analítico, posto que a rigor são um grupo só, é que na maior parte, são trabalhadoras e trabalhadores que não recebem salário, nem o mínimo. São os do chamado setor informal, que às vezes dispõem de emprego fixo, mas não têm sua situação trabalhista regularizada, são os trabalhadores que não têm qualquer classe de emprego e ocupam-se ou subocupam-se em atividades típicas da informalidade do trabalho: biscateiros, vendedores de bugigangas nas ruas [...]. Mas, o retrato em preto e branco ou a feiúra social de Natal exposta nos números e em seus bairros periféricos, “não estão ao alcance dos olhos dos seus visitantes nem dos nativos mais segregados” como afirma França (2004, p. 0103), pela própria configuração de sua malha urbana. Para o autor, coexistem três cidades dentro de Natal: a cidade dos pobres, a dos arremediados e a dos ricos. A Natal dos pobres é formada por 50% da população total, possui renda média de R$ 375,00 e 56% dos seus chefes de família ganham menos de 2 Salários Mínimos. Outros indicadores destacados por ele são os seguintes: o analfabetismo atinge 18 de pessoas a cada grupo de 100 pessoas com mais de 113 15 anos, “para cada grupo de 100 jovens menores de 15 anos existem apenas 12 pessoas idosas com mais de 65 anos; apresenta a maior densidade domiciliar, com uma média de 4,2 pessoas por domicílio” (FRANÇA, 2004, p. 03). A Natal dos ricos, por sua vez, é formada por 26% da população. A renda média dos seus habitantes é de R$ 2.007,00. Mas, é uma cidade envelhecida em relação à Natal dos pobres, “para cada grupo de 100 jovens com menos de 15 anos de idade, há 33 pessoas com mais de 65 anos. Nesta cidade o analfabetismo é relativamente baixo, apenas 4%.” A densidade familiar é de 3,7 pessoas por domicílio (FRANÇA, 2004a, p. 04). Para o autor, a importância de tais dados reside no fato de que eles revelam o status social e econômico da Cidade. Não é necessário muito esforço para compreender que indicadores de natalidade, mortalidade e migração elevada, quase sempre, são manifestações negativas decorrentes da pobreza, porque a dinâmica demográfica é fortemente influenciada pela dinâmica econômica, principalmente em regiões de grandes desigualdades sociais. Nesse sentido, as duas dinâmicas – demográfica e econômica – são mutuamente dependentes. (FRANÇA, 2004, p. 02). A Natal dos arremediados é constituída por 24% da população total de 744.794 habitantes. Possui uma renda média de R$ 743,00 e situa-se nos bairros mais antigos da cidade: Cidade Alta, Rocas, Ribeira e Alecrim. Nesta Natal, 40% dos chefes de família ganham menos de dois Salários Mínimos e integram famílias que têm em média 2,1 filhos. É uma cidade que cresce pouco e na última década teve crescimento negativo de 1,16%. Possui uma população idosa significativa: 30 idosos para cada 100 jovens. A taxa de analfabetismo entre os adultos é de 10% e a densidade domiciliar é de 3,9 pessoas por domicílio (FRANÇA, 2004, p. 03). Nesta mesma linha, Pedro Lima (2001, p. 149) observa Natal dividida a partir do estuário do rio Potengi, e afirma que “enquanto Natal se desenvolvia como uma cidade legal e provida de serviços e equipamentos urbanos, em ambas as margens do rio Potengi uma outra cidade clandestina e pobre também se desenvolveu.” Por isso, Natal é uma Cidade com “uma terceira margem” que há trinta anos não existia, e que permitiu ao urbanista Jorge Wilheim descrevê-la, em 1968, da seguinte forma: 114 A ponta de terra formada pelo rio Potengi, desembocando no Atlântico constitui um sítio de rara beleza, uma das mais interessantes localizações urbanas do Brasil. A estrutura física desse sítio se caracteriza por uma série de elementos importantes: - o rio, lento e curvo, de pouco calado, suas infiltrações e inundações - o longo recife formando pequenas baías em forma de meia lua, do lado do mar - a divisão entre um sítio ‘baixo’ e um sítio ‘alto’ com as conseqüentes rampas de contato e visuais panorâmicas - a linha de altas dunas cobertas por vegetação, anteparo que isola o mar da plataforma em que se desenvolve a cidade - uma linha de dunas fechando ao sul o sítio provável da cidade (WILHEIM, 1977, apud LIMA, 2001, p. 149). Pedro Lima (2001) denuncia que o processo de urbanização que vem ocorrendo na Cidade, com a ocupação de dunas e de mangues por favelas e conjuntos habitacionais de baixa renda, mas também por hotéis e habitações de luxo, como os principais responsáveis pela destruição dos elementos paisagísticos e ambientais que justificaram a inspiração poética de Jorge Wilheim. Segundo o autor, hoje, “o rio Potengi está contaminado e tende a morrer. Os mangues nas margens do rio, berçário natural da vida marinha estão ameaçados [...]. As dunas situadas a leste foram preservadas pela criação do Parque das Dunas.” Mas, a parte oriental do referido parque continua em constante ameaça pela construção da Via Costeira, da rede de hotéis aí localizada e da construção do Centro de Convenções (LIMA, 2001, p. 149-150). Esta Cidade, dividida entre pobres, arremediados e ricos; ou divida entre uma cidade oficial, normal e uma terceira margem, clandestina, é a resultante de um desenvolvimento e de um processo de urbanização que foi incapaz de incluir, nos benefícios que produziu, a maioria da sua população. Com isso, o que cresce é o produto negativo destas opções: analfabetismo; baixa escolaridade; serviços de saúde precários; condições precárias de habitabilidade de grande parcela da população; sérias agressões ao meio ambiente; falta de saneamento básico; sistema de transporte precário, sem planejamento incapaz de atender as necessidades do número crescente de usuários; elevados índices de desemprego etc (FRANÇA, 2004, p. 6). Há uma profunda carência de direitos, que gera vulnerabilidades e pauperização. Conforme Oliveira (1995, p. 1) “os grupos 115 sociais vulneráveis não o são como portadores de atributos que no conjunto da sociedade os distinguiram. Eles se tornam vulneráveis, melhor dizendo, discriminados pela ação de outros agentes sociais.” E uma das razões que torna uma grande parte da população natalense vulnerável é a ausência de investimento em serviços públicos, os quais não resolvem a desigualdade social e a precarização das condições de vida dos pauperizados, dos vulnerabilizados, mas, afiançam direitos e podem garantir a estes uma sobrevivência com mais dignidade. Tais serviços não significam ruptura com a situação política de subalternidade em que estes se encontram, já que, muitas vezes, “ao invés de consolidarem direitos, esses serviços são, via de regra, operados como favores fugazes do Estado aos mais espoliados” (SPOSATI, 1988, p. 23-24). Contudo, eles possibilitam acessos sociais, atendimento a necessidades elementares, como alimentar-se, beber água tratada, não adoecer pela ausência de rede de esgoto, ter condições de moradia digna, locomover-se, ter acesso a educação, atendimento de saúde quando necessita, cultura, lazer e outras necessidades que dificilmente conseguirão resolver ou adquirir no mercado. 3.3 O acesso a serviços sociais e aos equipamentos urbanos em Natal Observa-se que em Natal, a criação e garantia dos serviços e equipamentos urbanos não acontece na mesma proporção que o crescimento da Cidade, nem com a mesma prioridade que esta cidade se preparara para receber seus visitantes. Importante ressaltar que tais serviços, na maioria do centros urbanos e, particularmente, em Natal, estão muito mais ao alcance dos ricos e arremediados do que dos pauperizados. Sem a pretensão de apresentar um quadro da situação das principais políticas públicas em Natal, vale situar sumariamente como se apresentam alguns dos serviços sociais básicos fundamentais tais como saneamento, acesso a água, saúde e educação. Em termos de saneamento básico, conforme Mineiro (2001a), apenas 29% dos natalenses têm acesso a este serviço. Essa parcela inclui, sobretudo os 116 bairros onde residem os ricos da Cidade38 (Tirol, Petrópolis, Morro Branco, Lagoa Nova). Natal convive cada vez mais com problemas decorrentes da falta de drenagem. Apesar de não contar com períodos chuvosos rigorosos, é crescente a ocorrência de alagamentos em áreas centrais e inundações em bairros periféricos, normalmente, naqueles construídos a partir loteamentos irregulares. Em termos de acesso à água, a Cidade apresenta uma boa cobertura do serviço, o qual atinge, segundo Mineiro (2001a, p. 4-5), com base em dados da Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte - CAERN, 98% da área da cidade. O serviço de coleta e tratamento de esgotos no entanto é insignificante para o tamanho da cidade. Em 2001, “os dejetos produzidos por 71% da população, ou 503.202 habitantes, eram lançados diretamente em fossas sépticas e sumidouros com riscos para o aqüífero subterrâneo.” 39 O resultado é o aumento da contaminação por nitrato das águas subterrâneas de Natal, sua principal fonte de abastecimento. Além da contaminação das suas águas subterrâneas, há também a destruição do estuário do rio Potengi, o qual recebe in natura a parte do esgoto (doméstico e industrial) que Natal produz e que não é lançado em fossas sépticas e sumidouros. Uma situação que segundo Mineiro (2001a), compromete não só o futuro da Cidade mas também o da Região Metropolitana. No campo da saúde, as unidades da rede básica com melhor atendimento e melhores profissionais são as localizadas em bairros da elite, ou de classe média. Os serviços mais precários na atenção à saúde estão exatamente nas unidades da rede localizadas em bairros periféricos. Nestas, falta de tudo, inclusive profissionais em quantidade e com competência técnica para atender às necessidades da população. Mas, de um modo geral, a maioria das unidades básicas de saúde existentes em Natal, um total de 47, estão sucateadas pela falta de investimento nos últimos dez anos, tanto do ponto de vista da estrutura física e material, quanto da qualificação de recursos humanos, como aponta o relatório da IV Conferência Municipal de Saúde (NATAL..., 2003b). 38 Conforme Mineiro (2001a, p. 4), com base em dados da CAERN, os bairros ligados à rede de coleta de esgotos são: Rocas, Santos Reis, Praia do Meio, Ribeira, Petrópolis, Areia Preta, Mãe Luiza, Cidade Alta, Tirol, Lagoa Seca, Barro Vermelho, Morro Branco, Lagoa Nova, Alecrim, Felipe Camarão, Quintas, Bairro Nordeste, Nazaré, Dix-Sept-Rosado, Cidade da Esperança e Igapó. 39 Até o presente (2005) não houve nenhuma ação no sentido de mudar este quadro. 117 Apesar da consolidação do Sistema Único de Saúde - SUS na cidade, o modelo de atenção básica predominante é centrado na clínica individual, com pouca resolutividade. É uma atenção que os profissionais de saúde caracterizam como fragmentada, focalizada e medicamentosa. O rompimento com esta situação exige um conjunto de investimentos. Por outro lado, o Programa Saúde da Família - PSF com 101 equipes e cobertura de 46,1% da população poderia significar uma melhoria na qualidade da atenção, sobretudo, no campo da prevenção de doenças. Entretanto, à medida que a implantação de equipes do PSF ocorre ao lado do sucateamento das unidades da rede de atenção básica, o resultado é a substituição de uma atenção, já ruim, por outra muito mais pobre e precária. Porém, o serviço que é prestado passa à população a idéia de que há uma melhora na qualidade do atendimento, porque há “médicos” mais próximos dela. Com relação à educação, em 2002 o Município possuía 808 salas de aula, 114 estabelecimentos de ensino e 47.586 matrículas, das quais, 8.037 eram na educação infantil e o restante no ensino fundamental. Nesta área registra-se um crescimento de 49,62% no número de salas de aula entre 1996 e 2002, o que possibilitou um aumento no número de matrículas em torno de 71,05% que era de 33.813 em 1996. Não há matrículas municipais no ensino médio (RIO GRANDE DO NORTE..., 2003). A Educação infantil, por lei, deve atender a crianças de 0 a 06 anos de idade em creches (0 a 03 anos) e pré-escolas (04 a 06 anos). Os dados do Censo Demográfico de 2000 revelam que existiam em Natal, naquele ano 91.339 crianças na faixa etária de 0 a 6 anos. Destas, 50.937 encontravam-se na faixa etária até 03 anos. A rede de creches do Município, incluindo aí as creches públicas e filantrópicas que recebem recursos públicos, atendiam apenas 12.777 crianças, o que correspondia a 25,08% da demanda. Hoje, 2005, esta situação não mudou muito. A referida rede atende a 12.907 crianças, na faixa etária de 0 a 06 anos. Este serviço, como ocorre em muitos municípios do país, continua com a sua gestão sob a responsabilidade da Secretaria Municipal de Assistência Social e não da Secretaria de Educação, como determina a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (NATAL...,2001d; 2004a). A falta de acesso à educação, juntamente com a baixa qualidade do ensino, torna as pessoas mais pobres ou constitui uma vulnerabilidade que 118 conduz à pobreza. A baixa qualidade do ensino, aliás, faz com que o dado relativo aos anos de estudo não signifique, necessariamente, o domínio da leitura, da escrita e o desenvolvimento de capacidades e habilidades que uma educação de qualidade possibilita. Conforme dados do IBGE, no Censo Demográfico de 2000, a taxa de alfabetização em Natal era de 84,81%. Em 1991 era de 78,53%. Nas regiões da Cidade onde reside a população mais empobrecida, a taxa de alfabetização cai para 78,19% na Região Oeste e 82,62% na região Norte (INSTITUTO..., 2001; 1991). Outro dado relativo à educação, que merece ser ressaltado é que 52,75% das pessoas responsáveis por domicílios em Natal têm até no máximo 7 anos de estudo. Contudo, 21.604 pessoas, ou 12,15% do total de responsáveis por domicílios não têm instrução, junto com os que têm de 01 a 03, anos correspondem a 26,09% desse grupo. Se considerado a qualidade do ensino, a taxa de alfabetização real em Natal pode ser bastante inferior ao encontrado pelo IBGE no Censo Demográfico de 2000 (INSTITUTO..., 2001). Apesar do quadro de pobreza e da precariedade dos serviços públicos, Natal ostenta um Índice de Desenvolvimento Humano Municipal - IDH-M de médio desenvolvimento humano, segundo a classificação do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano - PNUD. O IDH-M, segundo o PNUD é um índice que tem como componentes: educação, renda e longevidade. O IDH, supõe o acesso (ou não) de uma população a conhecimentos, recursos necessários a um padrão de vida digno e uma vida longa e saudável. Contudo, para o PNUD, desenvolvimento humano é um processo mais amplo e relaciona-se à possibilidade das pessoas terem acesso a instrumentos e a oportunidades para fazerem as suas escolhas. O Relatório do Desenvolvimento Humano de 1997 afirma que “o processo de alargamento das escolhas das pessoas e o nível de bem-estar que atingiram estão na essência da noção de desenvolvimento humano. Tais escolhas não são finitas nem estáticas.” Conforme o Relatório, três escolhas são essenciais: “capacidade para ter uma vida longa e saudável, adquirir conhecimentos e ter acesso aos recursos necessários a um padrão de vida adequado.” Considera ainda importante a liberdade política, econômica e social, a oportunidade de ser criativo e produtivo, o respeito próprio e aos direitos humanos garantidos (PROGRAMA..., 1997). 119 A partir da referida concepção de desenvolvimento humano, o IDH é construído numa escala que varia de 0 a 1 e classifica o desenvolvimento humano em alto, médio e baixo. Com um índice até 0,499, o município é considerado de baixo desenvolvimento humano; até 0,799, de médio desenvolvimento humano; e acima de 0,799, de alto desenvolvimento humano. Em Natal, um estudo da Secretaria Municipal de Planejamento e Gestão Estratégica – SEMPLA (NATAL..., 2003d) analisou a evolução do IDH-M entre 1991 e 2000. Segundo este, o IDH-M de Natal em 2000 foi de 0,787, maior que o do RN que foi de 0,702. Em 1991 este índice havia sido de 0,733 para Natal e 0,618 para o Rio Grande do Norte. Entre as capitais do Nordeste, Salvador, Recife e Aracaju têm IDH-M superior a Natal (0,805, 0,797, 0,794 respectivamente) (NATAL..., 2003d, p. 09-12). Para compor tal índice o referido documento ressalta que foram analisados os aspectos da educação, da renda e da longevidade na Cidade, conforme determina a metodologia de construção do indicador. No caso da educação, entrou na composição do índice a taxa de alfabetização das pessoas com 15 anos ou mais de idade e a freqüência escolar. A taxa de freqüência escolar em Natal cresceu 17,9%; passando de 76,61% em 1991 para 90,33% em 2000. A taxa de alfabetização passou de 78,53% em 1991 para 84,81% em 2000. (NATAL..., 2003d, p.18) No caso da renda, o documento ressalta que a renda per capita de Natal passou de R$ 252,97 em 1991, para R$ 339,92 em 2000, correspondendo a um acréscimo de 34%. No contexto da região nordeste, trata-se de um crescimento significativo, tendo em vista que a renda per capita na Região variou, no ano 2000, entre R$ 250,69 em Teresina e R$ 392,46 em Recife. Junto com Recife e Aracaju, Natal é a terceira capital com o melhor IDH-M em termos de renda (NATAL..., 2003d, p.16). Com relação à longevidade o documento ainda aponta que este foi o componente que menos influiu no crescimento do IDH-M de Natal, passando de 0,693 em 1991 para 0,730 em 2000. Assim, “a esperança de vida (vida média) dos moradores de Natal passou de 66,59 anos, em 1991, para 68,78 em 2000.” No contexto da região Nordeste “as capitais que apresentaram vida média superior a Natal, em 2000, foram Fortaleza, com 69,63, Salvador, com 69,64, São Luiz, indicando 69,19, e Teresina, com 69,06 anos.” (NATAL..., 2003d, p. 17). 120 Diante do exposto, vale lembrar, conforme Vera Telles (1998, p. 8), que a pobreza no Brasil “é e sempre foi notada, registrada, documentada.” O conhecimento da realidade da pobreza, no entanto, não tem sido suficiente para “constituir uma opinião pública crítica capaz de mobilizar vontades políticas na defesa de padrões mínimos de vida.” Diante das disparidades observadas nas análises estatísticas sobre pobreza e indigência no Brasil, a autora observa a existência de uma “batalha estatística”, que decorre da inexistência de uma definição quanto a patamares de qualidade de vida, a serem garantidos a todos. Tudo se reduz “a uma combinação de critérios supostamente científicos para definir a pobreza” (TELLES, 1998, p. 14 e 9). Com tal diversidade de indicadores, uma das conseqüências é a dificuldade em conhecer qual é o real tamanho da pobreza no Brasil. Aliado a isto, os critérios de acesso aos programas, cada vez mais focalistas, exclui de bens e serviços muitos dos que necessitam. Juntos, indicadores e critérios de acesso, conseguem “a proeza de fazer os pobres desaparecerem do cenário oficial” (TELLES, 1998, p. 8). Além disso, a preocupação dos formuladores dos índices de pobreza recai sobre a chamada “pobreza absoluta”, como se houvesse uma pobreza aceitável e, outra que diz respeito àqueles que não conseguiram se adequar às exigências do mercado. Conforme os neoliberais, é para esta gente que as políticas sociais devem se voltar, no sentido de garantir-lhes as condições de disputar seu lugar no mercado competitivo. Contudo, “Os pobres, em geral podem ser definidos como aqueles para os quais o salário é claramente insuficiente em vista das condições gerais da mercantilização da vida nas cidades e, já há muito, no campo também” (OLIVEIRA, 1995, p. 4). A superação das situações de pobreza e de vulnerabilidade da maioria da população, exige que tais situações sejam tratadas não como carências, mas como direitos, ou direito a ter direitos. Nessa perspectiva, a política de assistência social está no centro do debate acerca das políticas sociais, ao modo como estas são formuladas e executadas. Todavia, a assistência social pode existir na perspectiva da carência, da caridade pública ou privada, do favor, da tutela, da benemerência e da reprodução da subalternidade, mas, pode existir também na perspectiva do direito, sobretudo, a partir da auto-organização e da participação ativa dos que se encontram em situação de pobreza. 121 Já foi ressaltado que, em Natal, a assistência social até os anos de 1990, foi exercida enquanto objeto da caridade privada, filantrópica ou da caridade pública via LBA e Assessoria de Promoção Social do Gabinete Civil da Prefeitura. Aliado a isso, houve um outro tipo de caridade pública destinada muito mais a reproduzir as situações de subalternidade e favorecer a dominação política das frações das classes dominantes do RN ocupantes do poder do Estado. Diante desse quadro, quais as forças políticas que governaram Natal no período imediatamente anterior à LOAS? Quais os instrumentos utilizados por estas forças para a conquista e permanência no poder? Como conseguem obter o consenso e o apoio dos dominados aos seus projetos? São questões que se busca responder nos capítulos seguintes. 3.4 Políticas participacionistas, “cultura do atraso” e o enfrentamento à pobreza em Natal no período autoritário As características da sociedade brasileira, que configuram uma cultura conservadora, uma “cultura do atraso” e conferem a esta sociedade, conforme Marilena Chauí (2001a), um perfil autoritário e violento, embora não sejam um fenômeno brasileiro40, são bastante recorrentes na sociedade contemporânea e reproduzem-se, ao lado das conquistas e das lutas por justiça, cidadania e democracia que vêm sendo travadas no Brasil. São características que, enquanto relações presentes na sociedade como um todo, marcam, por sua vez, as relações sociais e políticas que se estabelecem entre Executivo e Legislativo nas diferentes esferas de governo, assim como entre estes e as classes populares em todos os níveis de governo. Nesse contexto, por quais caminhos a cultura do favor, do assistencialismo e a não-política no campo da assistência social se reproduz historicamente em Natal? Como os grupos no poder constroem a sua 40 Um estudo de Maria Helena Guimarães Castro (1988, p. 64-65) discute, com base em Tarrow o clientelismo em países como França e Itália. Neste trabalho ela afirma que, “tanto o clientelismo italiano como o dirigismo francês limitavam a ação dos governos locais de esquerda e obstaculizaram a participação política dos cidadãos no processo decisório das políticas permeado por mecanismos não transparentes e bastante informais” (TARROW, S. Between Center and Periphery: Grassroots politics in Italy and France. Yale, Yale Univ. Press. 1977, citado pela autora). 122 hegemonia? Como o assistencialismo, a caridade pública e a filantropia, contribuem para a construção da hegemonia dos grupos no poder? Como se articulam, em Natal, o assistencialismo e o controle da população? Frente a tais questões, um dos elementos que se levanta no sentido de desvendá-las é de que as práticas que conformam a cultura do favor, da tutela e do assistencialismo encontram, em Natal, um campo fértil para se reproduzir a partir das políticas participacionistas implementadas pelo poder público a partir da segunda metade dos anos 70 do século XX. As formas tradicionais de fazer política, baseadas no clientelismo, na troca de favores e no autoritarismo, como estilo de governar, ganham mais visibilidade a partir desse período, nas práticas e nos discursos de governantes e assumem uma forma renovada, embutida num discurso que incorpora idéias de democracia, cidadania e participação popular. Tais práticas tiveram grande impulso com as políticas participacionistas41 dos últimos prefeitos da Ditadura militar, enquanto aplicação, em nível local, das ações previstas no II Plano Nacional de Desenvolvimento – PND dos governos militares. Diante da crise política e econômica, dos primeiros sinais de esgotamento do chamando milagre econômico e diante do agravamento dos problemas sociais, expresso na concentração de renda e no crescimento da pobreza, o Governo Federal lançou, para o período de 1975-1979, o II PND. Os programas propostos no plano incorporavam um discurso participativo e abrangiam várias áreas: saúde, nutrição, educação, habitação, bem estar social do menor e desenvolvimento de comunidade. A coordenação era do Conselho de Desenvolvimento Social – CDS e o financiamento, do Fundo de Desenvolvimento Social (FAS)42. A implementação, no Rio Grande do Norte, da política de desenvolvimento prevista no II PND, ocorreu sem maiores problemas, sobretudo pela aproximação das forças governistas locais com o governo federal. O ator 41 O termo “políticas participacionistas” é usado para definir processos que propagam a idéia de participação social, de participação popular, por meio da utilização de práticas nas quais a população não decide absolutamente nada das finalidades ou resultados desses processos. Um trabalho que aprofunda essa questão é o de Ammann (1997). Analisando a ideologia do desenvolvimento de comunidade no Brasil, a autora explicita como o recurso da participação foi utilizado no período da Ditadura militar para legitimar os interesses políticos e econômicos dos que ocupavam o poder no Brasil naquele período. 42 O Conselho de Desenvolvimento Social – CDS, foi criado pela Lei nº 6.118, de 9 de outubro de 1974, como órgão de assessoramento do Presidente da República. O Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social – FAS, por sua vez, foi criado pela Lei nº 6.168, de 9 de dezembro de 1974 com a finalidade de dar apoio financeiro aos programas do PND. 123 principal neste cenário era o Senador Dinarte Mariz, o qual, segundo Andrade (1996, p.123), desenvolveu todo um trabalho de articulação política, a fim de conseguir a aceitação do Sr. Tarcísio Maia pelos grupos políticos locais, após este ter sido indicado pelo General Golbery do Couto e Silva para assumir o governo do Estado, em 1975. Com isso, teve início um período marcado pela hegemonia da família Maia à frente da prefeitura de Natal e do governo do Estado no RN. A família Maia, enquanto força política, se vinculava à oligarquia agrária algodoeira-pecuária cujo representante principal na década de 1970 era o então Senador Dinarte Mariz, o qual surgiu na vida política do RN como coronel na região do Seridó, havia sido governador do Estado no período 1955-1960 e conforme Trindade (2004, p. 60), era um político tradicional, financiou o Partido Popular nos anos 30 com dinheiro ganho no comércio do algodão e financiava a União Democrática Nacional – UDN. Um dos atos marcantes do governo de Dinarte Mariz, conforme Germano (1982, p. 52), foi a aprovação, em 1960, pela Assembléia Legislativa, numa sessão que reuniu apenas deputados governistas, do que ficou conhecido como o ‘inventário político’, que “consistia, essencialmente, em contemplar amigos e correligionários com empregos e aposentadorias em bons cargos públicos.” O Diário Oficial que publicou esse “inventário” foi recolhido das bancas e apreendido pela polícia militar a mando do então governador. De modo que até hoje não se sabe quais foram os atos que o governador Dinarte Mariz tomou e que impediu sua divulgação. Assim, em 1975, o Governo Militar, por influência e indicação sua, nomeou Tarcísio Maia para governo do Estado. Foi uma estratégia bem sucedida com vistas a superar a derrota sofrida nas eleições parlamentares de 1974, quando a população do RN votou majoritariamente no Movimento Democrático Brasileiro – MDB, acompanhando uma tendência que acontecia em todo o país. Ao mesmo tempo, este fato também marcou um processo de renovação dos quadros políticos de direita, no RN, pois conforme Andrade (1996, p. 123), sua tarefa principal era “criar novas bases de sustentação política para o partido governista e de se firmar como uma nova liderança, capaz de articular o projeto de renovação política que o momento requeria”. 124 Em sua administração, Tarcísio Maia se preocupou em criar a estrutura social necessária à implementação do II PND no Estado e fez um governo marcado pela boa convivência com a oposição, tendo conseguido atrair o apoio de Aluízio Alves, principal liderança da oposição naquele período. Ao final do seu governo, Tarcísio encontrava-se na posição de principal articulador das forças políticas governistas, o que lhe assegurou o comando da sucessão para o Governo do Estado, cargo para o qual indicou o seu primo, Lavoisier Maia. Este, por sua vez, indicou para prefeito da capital, um dos filhos de Tarcísio Maia, José Agripino Maia, um jovem engenheiro de 33 anos que, à época, residia no Maranhão (ANDRADE, 1996, p. 126). Como governador, Tarcísio Maia escolheu43 para prefeito de Natal o Senhor Vauban Bezerra de Faria. Em termos das ações na capital, tanto o governo estadual, como municipal priorizaram a realização de obras de grande impacto: o projeto da “Via Costeira” pelo governo estadual e obras de infraestrutura viária pelo governo municipal. O período do governo de Tarcísio Maia à frente do governo do Estado e de Vauban Bezerra de Faria na prefeitura de Natal foi marcado também pela regulamentação do Plano Diretor de Natal, o qual, depois de aprovado, passou a ser um instrumento utilizado pela população na defesa dos seus interesses, como a defesa de áreas de preservação ambiental, contra a especulação imobiliária, a construção de grandes edifícios de forma desordenada na orla marítima, tendo em vista que tais edifícios acabariam aumentando a temperatura na Cidade por impedir a entrada de ventos vindo do Oceano Atlântico (ANDRADE, 1987, p. 44). A política habitacional foi uma outra prioridade do período, a qual se aliou a implementação do Programa Nacional de Centros Sociais Urbanos – PNCSUs, destinado a desenvolver serviços sociais e promover atividades comunitárias, complementares aos programas de habitação, abastecimento d’água, saneamento, transportes coletivos, segurança pública, controle de poluição etc. Os serviços prestados no âmbito dos Centros Sociais Urbanos - CSUs eram considerados de alta relevância social e envolviam ações no campo da educação e cultura, do desporto, da saúde e nutrição, do trabalho, da previdência e assistência social e da recreação e lazer. Os serviços voltados ao trabalho 43 Durante a Ditadura militar os prefeitos das capitais não eram eleitos, era uma escolha dos governadores, que por sua vez eram escolhidos e nomeados pelo Presidente da República. 125 correspondiam ao “treinamento profissional e orientação para o trabalho e agências de emprego”, e as ações no campo da previdência voltavam-se para “expedição de carteiras de trabalho e assistência previdenciária” (BRASIL..., 1975, p. 8). Em termos de assistência social, as ações recaíam basicamente sobre a “assistência ao menor abandonado e a velhice”. O projeto voltado para a questão do “menor”, no âmbito de uma das unidades do CSU em Natal44, conforme estudo realizado por Nicolau (1984, p. 53), desenvolvia atividades de iniciação ocupacional e ação educativa junto aos pais, o que envolvia a busca do compromisso destes com a educação dos filhos e questões relativas ao direito previdenciário. De modo geral, as ações realizadas, além de cumprir o papel próprio das políticas sociais de redução dos custos com a reprodução da força de trabalho, buscavam integrar a população usuária destes serviços à ordem vigente. Um exemplo disso é a ênfase dada ao projeto de participação comunitária por meio da institucionalização de núcleos de base, ou grupos de representantes, assessoramento a grupos de jovens, “articulação de canais de comunicação entre os grupos, o governo e o povo em função do desenvolvimento comunitário” (NICOLAU, 1984, p.52). Neste aspecto da relação povo-governo, o projeto de participação comunitária implementado pelo CSU foi apenas o ponto de partida para uma política muito mais agressiva e ousada dos governantes do grupo Maia nos anos seguintes. O espaço do CSU foi também o lugar para o desenvolvimento e fortalecimento das práticas clientelistas, sobretudo pelo repasse dos serviços como favor, e da construção da imagem dos governantes como benfeitores. Para isso, conforme Nicolau (1984) era necessário contar com direções e um corpo técnico comprometidos com os chefes políticos e com a prática clientelista. A autora observa que “na maioria dos CSU’s implantados, cerca de 10 CSU’s até 1979, a força política oligárquica usa os cargos existentes nestes Centros e o próprio local físico-social em função dos seus interesses partidários” (NICOLAU, 1984, p. 45). 44 Natal foi a primeira cidade do país a implantar a política de Centros Sociais Urbanos. A primeira unidade do CSU foi instalada num conjunto habitacional – Cidade da Esperança, na zona oeste de Natal. 126 Em nível do RN, para garantir esta política, o Governo Estadual criou a Secretaria de Trabalho e Bem Estar Social (STBS), órgão responsável pela execução do Programa Nacional de Centros Sociais Urbanos. Desde a sua criação esta secretaria foi o espaço político fundamental de construção das políticas de participação comunitária, desenvolvendo ações diretas junto à população, criando ou cooptando os mais diferentes grupos: de jovens, de idosos, conselhos comunitários etc. Em 1986, o jornal “Nova Gente” (A STBS..., 1986, p. 5), um boletim informativo da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) da Arquidiocese de Natal, denunciava a manipulação política e o assédio que vinha sendo praticado junto aos grupos de jovens vinculados a esta pastoral, tanto na capital, quanto no interior do RN, por técnicos da STBS, desde 1985. O Órgão vinha promovendo, segundo o boletim, atividades como encontros, festivais de quadrilhas juninas, visitas de técnicos da secretaria aos grupos de jovens e uma campanha de cadastramento de grupos de jovens. O jornal chamava atenção para que os grupos de jovens estivessem atentos a possíveis práticas de cooptação e manipulação política por parte da STBS, sobretudo por ser 1986, um ano eleitoral. Assim, pela ação do Estado, surgiu em Natal nos anos de 1970, um tipo de participação popular45 viabilizada a partir de políticas públicas voltadas para o urbano, cujo objetivo era integrar as classes subalternas no desenvolvimento urbano e evitar o surgimento de conflitos sociais, considerados prejudiciais à harmonia da sociedade. Com um discurso democratizante, este tipo de participação popular originou também um padrão de relação entre poder público municipal e classes subalternas, que reeditou as velhas práticas populistas, clientelistas, assistencialistas e de reprodução da subalternidade da parcela mais empobrecida 45 No âmbito da Universidade Federal do Rio G. do Norte, vários pesquisadores já desenvolveram estudos voltados para a análise das políticas participativas desenvolvidas nos governos autoritários, o papel que as forças governistas locais desempenharam no período e a relação destas políticas com o processo de constituição das organizações comunitárias e do movimento de bairro em Natal. Um dos trabalhos mais significativos a esse respeito foi a pesquisa de âmbito regional “Estado e Movimentos Sociais Urbanos no Nordeste”, desenvolvida no período 1988-1990 por pesquisadores dos cursos de pós-graduação em Ciências Sociais das Universidades Federais do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Alagoas, Sergipe e Bahia, coordenada pelo Centro Josué de Castro Estudos e Pesquisas, do Recife. Na UFRN, ela foi desenvolvida por professores do Mestrado em Ciências Sociais e de outros departamentos, sob a coordenação da Professora Ilza Araújo L. de Andrade e teve como título “Estado e Movimentos Sociais Urbanos - o caso de Natal” (ANDRADE, 1987,1990,1991). Além desta pesquisa, há outros trabalhos que tratam destas questões, como Paiva (1994) e Andrade (1996). 127 da população. Tal “participação popular” encontrou, na realidade de Natal, terreno fértil para se desenvolver, dada a existência de uma sociedade civil pouco organizada e da ausência de organizações comunitárias consolidadas e criadas a partir de iniciativas da própria população. O outro fator favorável às políticas participacionistas foi a política habitacional do governo autoritário. Conforme exposto anteriormente, Natal sofreu, a partir dos anos 70 do século XX, uma grande expansão do seu espaço urbano por meio da construção de conjuntos habitacionais46. Estes se tornaram espaços privilegiados para o desenvolvimento de programas “participativos”, através dos quais o Estado tomou para si a tarefa de “organizar a população.” Em 1979 a família Maia continuou ocupando o governo estadual. A liderança escolhida pelo então presidente Geisel para governador do RN foi Lavoisier Maia Sobrinho, o qual, convidou para assumir a prefeitura de Natal o jovem engenheiro José Agripino Maia. Este é um período em que em várias regiões do país, sobretudo no sul-sudeste, pouco a pouco, os movimento sociais voltavam à cena política, tornando visível a insatisfação popular com a Ditadura militar e com a crescente desigualdade social. Em Natal, contudo, convive-se com uma sociedade civil pouco mobilizada e grupos políticos que utilizam estratégias participativas para se consolidar no poder (ANDRADE, 1987, p. 47). José Agripino Maia, penúltimo prefeito “biônico”47 de Natal, tomou posse aos 23 de março de 1979 e dedicou-se a implementar, em nível local, a Política Urbana Nacional definida no Programa Nacional de Capitais e Cidades de Porte Médio (PNCCPM), cuja versão local foi, conforme Andrade (1996, p. 131), o Plano de Desenvolvimento Municipal – PDM. O PDM, segundo a autora, incorporou também outros projetos nacionais como: o Projeto de Complementação Urbana e Recuperação Acelerada – CURA e o Programa de Erradicação da Sub-Habitação – PROMORAR, cujo objetivo era a erradicação de favelas. Logo no início da sua gestão, José Agripino Maia se destacou pela nova forma de atuação ligada ao atendimento às demandas da população de baixa renda e “à 46 Conforme Andrade (1996, p. 135), foram construídos em Natal, no período 1974-1985, 34.825 unidades habitacionais, que atingiram uma média de 191.537 pessoas, num momento em que a Cidade possuía 416.898 habitantes. Cerca de 60% deste total de habitações (20.254 unidades), foram entregues à população no período 1980-1983 (MINEIRO, 1998, p. 143-144). Atualmente, dados da SEMURB de 2003 informam a existência de 151 conjuntos habitacionais e um total de 55.999 unidades (NATAL...,, 2003c). 47 Não escolhido pelo voto popular. 128 promoção de programas envolvendo a organização popular, como os encontros de bairros, onde discute com a população os seus problemas.”48 (ANDRADE, 1987, p. 47, grifos da autora). Com os recursos do projeto CURA, o prefeito realizou grandes obras de pavimentação e abrigos de ônibus, uma das obras marcantes da sua administração.49 A preocupação do prefeito José Agripino para com a população mais carente, aparece em um dos seus primeiros pronunciamentos, na solenidade de anúncio do secretariado, publicado no jornal “A República” de 23.03.79 e citado por Andrade (1996, p. 127): ‘vamos governar para toda a cidade, mas a ênfase maior será dada àqueles que não têm força para nos estirar a mão. Nós vamos até eles. Vamos estender a mão do Poder Executivo da cidade ao povo humilde que precisa de nós’. Este discurso, juntamente com alguns atributos pessoais do prefeito, foram capazes de impressionar a população e fazer com que ele aparecesse como alguém que se diferenciava do perfil dos políticos existentes até então. O primeiro diferencial era sua juventude; o segundo, o fato de possuir uma formação técnica; e um terceiro diferencial era a demonstração de conhecimento da realidade da cidade. Com isto, ele se tornou uma das lideranças políticas de direita de maior expressão em Natal (ANDRADE, 1996, p.127).50 A política participativa era desenvolvida basicamente por meio do trabalho da Assessoria de Promoção Social,51 da realização de encontros do prefeito com a população nos diversos bairros da periferia de Natal; do envolvimento da população em obras, como pavimentação de ruas; e ações da política de 48 Essa prática foi o embrião do que nos anos 90 em diante se configurou em uma das estratégias mais bem sucedidas de Vilma de Faria para se manter em contato direto com o povo e que tem sido apresentado como uma importante iniciativa de promoção da “cidadania” e da “participação popular”: o Programa “Prefeitura nos Bairros”, o qual será melhor apresentado no capítulo 4. 49 O projeto também se destinava a financiar: pontes, sinalização de tráfego, equipamentos de saúde, educação e lazer (Andrade 1987, p. 48; 51-52). 50 Mas, José Agripino Maia, ou este perfil de liderança política não é um caso isolado. Há no nordeste, neste período, o surgimento de várias lideranças novas de direita, quadros políticos novos que nasceram da ditadura e passaram a construir um campo próprio e uma política diferenciada em relação ao que até então era praticado pelos velhos coronéis. Além de José Agripino Maia tiveram esta origem políticos como Roberto Magalhães em Pernambuco, Wilson Braga na Paraíba, Hugo Napoleão no Piauí, Divaldo Suruagy em Alagoas, Gonzaga Mota no Ceará. Todos com trajetórias muito parecidas: foram prefeitos das capitais, depois governadores e construíram o PFL em seus estados. 51 Conforme Andrade, a Assessoria de Promoção Social era uma estrutura administrativa vinculada ao gabinete do prefeito para coordenar as ações da área social e fazer a articulação do executivo com as organizações de bairro (Andrade, 1996, p. 137). 129 desenvolvimento comunitário, cujos locais privilegiados eram os conjuntos habitacionais. Um depoimento da Assessora de Promoção Social na administração José Agripino, em entrevista à equipe da pesquisa “Estado e Movimentos sociais Urbanos no Nordeste”, citado por Andrade (1996, p. 137-138), é bastante esclarecedor de como se desenvolvia este processo participativo no contexto de Natal: [...] nós discutíamos a proposta da prefeitura naquele bairro, nós ouvíamos a comunidade, fazíamos triagem dos pedidos e o encaminhamento aos diversos órgãos da prefeitura para atendêlos. O prefeito tomava conhecimento e definia as prioridades dentro da limitação de recursos que a prefeitura tinha e se dava uma resposta ao povo: de como ia ser feito, de quando seria feito... Isso quando se tratava de uma obra física. Quando a obra era concluída, a própria comunidade era responsável pela promoção da inauguração. Eles estavam sempre presentes nos palanques das inaugurações, falando em nome da comunidade. Então eles tinham uma participação do começo ao fim. Trata-se de uma participação que, em primeiro lugar, destinava-se a legitimar a definição de prioridades frente às demandas por serviços públicos que a prefeitura necessitava fazer, diante da escassez de recursos. Ao mesmo tempo, era uma forma de baratear custos. A moradia construída em mutirão, por exemplo, reduz de forma significativa todo o custo com mão de obra. Andrade (1996, p.134) lembra que desenvolver políticas voltadas à melhoria da qualidade vida da população mais pobre, a um custo mais baixo, usando procedimentos criados pela própria comunidade era um procedimento recomendado pelo Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento – BIRD, órgão financiador de muitos programas federais implementados pela Prefeitura de Natal neste período. Este tipo de prática participativa, que segundo Andrade (1996, p. 132138), não significava exatamente uma novidade, posto que era uma exigência dos programas federais implementados. Contudo, o desenvolvimento comunitário mereceu, em Natal, uma ênfase muito maior que a recomendada. Além disso, diferentemente do que ocorria em outras capitais, como Recife, onde as políticas participativas tiveram que ampliar a qualidade da participação, pela pressão das forças sociais envolvidas; em Natal, isto não aconteceu. Não havia resistência 130 nem oposição. Na realidade “a população pobre da cidade, ao ser reconhecida pelo estado e ao poder tomar parte nas ações governamentais, se sente reinserindo-se na sociedade e ocupando o seu lugar.” O período 1979-1982 em que José Agripino Maia governou Natal, foi marcado por mais uma estiagem no Nordeste brasileiro, com ondas de saques, invasão por parte da população atingida pela seca. Este foi um momento “particularmente dramático para milhares de despossuídos, que acorriam aos centros urbanos em busca da caridade pública” (ANDRADE, 1996, p.134). A política habitacional voltada para a população de baixa renda, em parte, atendia a esta população que tentava encontrar teto e sobreviver em Natal, nas áreas de ocupação recente. Os conjuntos habitacionais, sobretudo, os construídos pelo programa PROMORAR e pela Companhia de Habitação Popular - COHAB-RN, por estarem voltados a atender à população de baixa renda, foram os espaços privilegiados para o desenvolvimento da política de desenvolvimento comunitário. Na região Norte de Natal, a totalidade das unidades habitacionais foram destinadas à população de baixa renda. Enquanto que a região Sul, apesar de possuir uma quantidade de conjuntos habitacionais bem superior, poucos foram os construídos pela COHAB ou destinados a população de baixa renda, predominando, na verdade, duas modalidades de construções: aquelas financiadas pelo Sistema Financeiro de Habitação representado em nível estadual pela COHAB-RN; e aquelas construídas pelo INOCOOP ou outro órgão e destinadas à classe média, e ainda um número significativo de construções que resultaram da iniciativa da própria indústria da construção civil. Neste caso, são conjuntos de casas ou apartamentos, com uma quantidade menor de unidades habitacionais. Segundo Andrade (1996, p. 136), o programa de desenvolvimento comunitário que integrava as ações da COHAB em todo o Brasil, objetivava preparar as famílias para a ocupação da casa própria, organizar a vida comunitária nos conjuntos habitacionais, promover o desenvolvimento da vida associativa, o que incluía manutenção dos conjuntos ou das habitações e atividades, com vistas a suplementar a renda familiar. Os Conselhos Comunitários tinham um papel importante neste processo, como “um elemento complementar ao programa de construção de unidades habitacionais e a sede dessa entidade 131 era o primeiro e, na maioria das vezes, o único equipamento social entregue à população dos conjuntos habitacionais.” Andrade (1996, p. 140) mostra que a experiência de Conselho Comunitário não é nova. Os órgãos públicos que a implementaram se apropriaram apenas do nome de uma outra experiência de organização comunitária executada pela Igreja católica nos anos de 1960 e que consistia na formação destas entidades enquanto um “fórum de decisões formado pelos representantes de todas as entidades existentes no bairro – agremiações esportivas, recreativas, corporativas, religiosas, assim como associações de jovens e idosos.” Na perspectiva da Assessoria de Promoção Social da Prefeitura de Natal e dos demais órgãos públicos criados pelo governo do estado com a finalidade de cuidar do “desenvolvimento comunitário”, trabalhar com este formato de Conselho Comunitário dos anos de 1960 implicava aceitar entidades criadas pela própria população e suas lideranças. Isto “parecia temerário dentro da estratégia de participação sob controle” (ANDRADE, 1996, p. 140). Conforme Andrade (1996, p. 169-172), alguns estudos realizados sobre experiências participativas, envolvendo poder público e organizações comunitárias, “vêem as novas relações entre governantes e atores coletivos, no âmbito dessas práticas, como um fenômeno que denominam neoclientelismo”. Analisando a política participacionista da prefeitura de Natal no governo José Agripino Maia ao final dos anos 70 e a sua relação com as organizações comunitárias, a autora contesta esta visão. Para ela o que ocorre em Natal, neste período é o “velho clientelismo de bases individuais”. Contudo ele reaparece na cena política, num contexto das lutas pela democratização do país, conforme Andrade (1996, p.172), “de uma forma renovada, intermediado por lideranças populares que assumem, no contexto da modernidade, o papel de agenciadores de relações de troca, difíceis de realizar, de forma direta, no meio urbano.” Enquanto candidato mais provável do grupo Maia ao Governo do Estado nas eleições de 1982, as primeiras após o período da ditadura militar, Andrade (1987, p. 51) constata que “Estado e Prefeitura inauguram obras em profusão, a maioria delas com sérias deficiências.” Ao mesmo tempo ambos promovem “o envolvimento das chamadas lideranças comunitárias” por meio do “trabalho de manipulação política nos bairros e entidades.” Uma expressão disso é que a sua 132 candidatura ao governo do Estado foi proposta e anunciada pelo presidente da Federação das Entidades Comunitárias e Beneficentes do RN – FECEB. A FECEB foi fundada aos 08 de outubro de 1980; e, conforme Andrade (1996, p. 145), com o incentivo da Assessoria de Promoção Social, em uma reunião com algumas lideranças de Conselhos Comunitários dos conjuntos habitacionais. O vínculo entre esta e o Executivo Municipal era tal, que no primeiro ano de sua existência, funcionou em uma sala, no prédio da Prefeitura. Além disso, “para se ter uma idéia da presença da assessoria do prefeito nessa Federação, a indicação por aclamação do primeiro presidente recai numa funcionária da prefeitura sem qualquer liderança comunitária anterior.” A colaboração da FECEB com o poder público consistia, basicamente, na criação de Conselhos Comunitários nos bairros, no financiamento de suas candidaturas e na organização das eleições para estas entidades. No tocante ao processo de criação de Conselhos Comunitários, Andrade (1996, p. 146) apresenta o depoimento de uma liderança comunitária, bastante esclarecedor de como atuava a FECEB: A tática da federação era visitar os bairros, entrando em contato com algumas lideranças comunitárias, principalmente aquelas que poderiam ter possibilidade de envolvimento político. Nestas visitas, colocava-se a necessidade de criar no bairro o Conselho Comunitário, marcando para breve uma reunião para escolher a diretoria. A reunião era feita de imediato, de forma a não dar espaço de tempo para ser difundida, no bairro, a notícia da criação da entidade. Na reunião, geralmente com as poucas pessoas que tinham sido contactadas anteriormente, eram indicados os nomes para compor a diretoria e, através da coleta de assinatura dos presentes, considerava-se a diretoria eleita. Os moradores do bairro portanto, não participavam do processo de criação do conselho e da eleição dos membros da diretoria, e a grande maioria ignorava a existência da entidade (ANDRADE, 1996, p. 146). Com isso, surge em Natal, um movimento de bairro sem o mínimo de autonomia em relação ao poder público. Frente a Conselhos Comunitários criados sob a ação direta de um órgão público, no caso, a COHAB ou de uma entidade atrelada ao Executivo Municipal como a FECEB, dava-se a formação da principal base de sustentação de um tipo de relação entre poder público municipal e classes subalternas baseada no clientelismo e na manipulação política de 133 organizações e lideranças comunitárias. Tratava-se de uma prática na qual a subalternidade das classes populares era reproduzida pela prestação de serviços precários e pela negação de direitos e pela cooptação e uso eleitoreiro de suas organizações, como forma de se antecipar a estas e evitar o surgimento de organizações autônomas. Aliada a esta prática e para reforçá-la, o Governo do Estado também criou a Fundação Estadual de Trabalho e Ação Comunitária (FETAC), destinada a coordenar o Programa de Artesanato, os Centros Sociais Urbanos e o Sistema Nacional de Emprego (SINE). Mas o principal papel da FETAC foi o trabalho desenvolvido junto às entidades e organizações comunitárias. No início dos anos de 1980, num contexto político nacional marcado pela abertura política, aconteceu a eleição de 1982 para governador. No Rio Grande do Norte, este foi um momento de disputa política, que teve por um lado, o retorno de Aluízio Alves (pelo PMDB) ao cenário político do estado e, por outro, a afirmação, do então prefeito de Natal, José Agripino Maia (pelo PDS), como uma das maiores lideranças de direita no Estado. Aluízio Alves havia sido cassado pela ditadura em 1969, junto com outros dois integrantes da família Alves: Garibaldi Alves e Agnelo Alves. Aluízio Alves retornou à vida pública nas eleições legislativas de 1978, liderando o então MDB. Nesta eleição, apoiou um candidato da ARENA ao Senado, ligado ao emergente grupo Maia (que desejava constituir-se como uma segunda força política no estado), o Senhor Jessé Pinto Freire. Contudo, esta aliança entre Alves e Maia durou apenas nesta eleição (TRINDADE, 2004, p. 245). José Agripino Maia, conforme já exposto, contava com o apoio das organizações comunitárias. Seu trabalho e sua popularidade à frente da prefeitura permitiram-lhe entrar nesta disputa com muita segurança e grande chance de vitória. Os demais candidatos eram Rubens Manoel Lemos (PT) e Vicente Cabral de Brito (PTB). José Agripino foi o candidato vitorioso, conforme o Quadro 4: 134 CANDIDATO PARTIDO VOTOS NOMINAIS José Agripino Maia Aluízio Alves Rubens Manoel de Lemos Vicente Cabral de Brito TOTAL PDS PMDB PT PTB Absolutos Relativos (%) 389.924 57,6 283.572 41,9 3.207 00,5 441 0,06 677.144 100 Quadro 4 – Resultado das eleições estaduais de 1982 para Governo do RN Fonte: Tribunal Regional Eleitoral do RN - TRE/RN (BRASIL..., 1997) Como Governador do Estado, José Agripino indicou para Prefeito de Natal o Senhor Marcos César Formiga, um ex-secretário de planejamento do governo do Estado e que procurou dar continuidade à política de ação comunitária da gestão anterior,52 sobretudo com o objetivo de fortalecer a liderança do governador. Contudo, o Prefeito encontrou sérias dificuldades, em virtude da crise mais geral em que se encontrava o Brasil, da crise do “milagre”, do endividamento externo e do fim do financiamento dos projetos que vinham sendo implementados; sendo a escassez de recursos uma das maiores dificuldades que enfrentou. Mesmo assim, conforme Andrade (1996, p. 52-55), o prefeito tentou “imprimir um estilo de administração participativa, trazendo as entidades de bairro à discussão de programas de trabalho.” No que diz respeito às políticas de atenção à pobreza, merece destaque a criação de uma secretaria específica para cuidar das questões relacionadas ao “desenvolvimento comunitário” e ao que chamaram de “ação social”. Até então estas questões tinham como lócus institucional a Assessoria de Promoção Social vinculada ao gabinete civil do prefeito. Marcos Formiga extinguiu esta assessoria e criou, pela Lei 3.366, de 01 de novembro de 1985 a Secretaria Municipal de Promoção Social – SEMPS, tendo seu corpo funcional sido constituído pelos funcionários da Assessoria de Promoção Social. A referida Lei define como competências do novo órgão: I – orientar e apoiar as associações comunitárias de Natal; II – coordenar e executar as ações que visem assistir e promover o menor carente; 52 Neste período, esta política passou a ser desenvolvida de forma articulada com o Governo do Estado por meio da Secretaria de Trabalho e Ação Social (STBS) e da Fundação Estadual do Trabalho e Ação Comunitária (FETAC), entre outras entidades. 135 III – coordenar e executar programas de desenvolvimento comunitário e educação complementar IV – desenvolver programas e projetos relacionados com o emprego de mão de obra no Município de Natal; V – desenvolver programas de orientação, assistência e readaptação social de grupos especiais da população; VI – prestar assistência social às famílias de baixo nível de renda; VII – supervisionar entidades assistenciais subvencionadas pelo Município de Natal; VIII – articular com organismos federais, estaduais e municipais sobre assuntos de sua competência; IX – exercer outras atividades concernentes à política de Promoção Social da Prefeitura Municipal de Natal (NATAL..., 1985). Posteriormente, por meio da Lei 4.067, de 15 de fevereiro de 1990 (NATAL..., 1990), que promoveu ajustes na estrutura organizacional da administração direta do Município, foram excluídas as competências definidas nos itens III, V, VI, VII, IX e acrescentadas outras duas competências: a “coordenação e execução de ações de promoção social direcionadas para a população carente.” e “atividades de apoio a programas e projetos voltados para o idoso e deficientes.” A perda de competências por parte da SEMPS explica-se pela criação, no ano anterior (1989) de uma entidade civil sem fins lucrativos, mas ligada ao gabinete civil: a Associação de Atividades de Valorização Social ATIVA. Esta, constitui-se até hoje numa entidade com função paralela ao órgão gestor da assistência social. No ato da sua criação, a SEMPS possuía, na sua estrutura organizacional, três coordenadorias: desenvolvimento comunitário (para cuidar das ações de apoio às associações comunitárias, de educação de base, de promoção social e de trabalho e participação social); bem estar do menor (para desenvolver projetos de apoio ao “menor carente” e projetos especiais); de ação social (responsável pelas ações orientação, assistência e readaptação de grupos especiais e de assistência social). É possível afirmar que, ao ser criada, a SEMPS incorporou no seu perfil institucional, a cultura e as práticas predominantes na história de atenção aos pobres em Natal. Assim como acontecia com a Assessoria de Promoção Social, incorporou o controle, a cooptação e o uso político das organizações comunitárias. Instituiu-se cada vez mais um padrão de relação entre poder público e organizações comunitárias, no qual para estas o bom trânsito junto às 136 autoridades e os acordos de gabinetes são a estratégia principal para conseguir o atendimento de necessidades coletivas. Por outro lado, a concepção de assistência incorporada ao Órgão criado configurou-se como não-política, “promoção social”, com ações pontuais e espontaneístas, ao mesmo tempo em que as relações sociais praticadas no seu interior eram conservadoras, marcadas pelo favor, pela tutela, pelo assistencialismo, pelo paternalismo e pelo clientelismo. Práticas que conformam o que pode ser considerado como uma “cultura do atraso”, porque concebe a assistência social como caridade pública e ajuda aos pobres; porque utiliza a assistência social nesta perspectiva (assistencialismo, ajuda, favor) para promover a dominação política e a reprodução de práticas que a sustentam, como as relações clientelistas e de dependência pessoal por meio da troca de bens e serviços por voto. Entretanto, do lado das classes subalternas, o uso do voto como instrumento de troca, freqüentemente, é algo praticado por necessidade, último recurso para atender necessidades sociais. É alternativa de sobrevivência. Porém, ao conquistar o acesso a bens e serviços, sem acesso à informação sobre direitos, a fidelidade política é uma conseqüência bastante presente. Ainda com relação ao governo estadual e sua atuação em Natal, vale lembrar que, dentro da sua equipe de governo, José Agripino escolheu para a STBS, a Senhora Vilma Maia, fim de conduzir todo o trabalho de ação comunitária e de implementação de projetos assistenciais voltados para a população de baixa renda. Vilma Maia, por ser esposa do ex-Governador Lavoisier Maia, enquanto primeira dama, esteve à frente do Programa de Voluntários e do Movimento de Integração e Orientação Social no governo anterior. Ao mesmo tempo José Agripino Maia criou quatro projetos especiais que incluíam a “participação popular” na definição e execução de suas ações: Terra Verde, Vilarejo, Crescer e Capital. “Os dois últimos direcionados para o meio urbano” (ANDRADE, 1987, p. 52). À frente da STBS, Vilma Maia desenvolveu um intenso trabalho junto às organizações comunitárias. Conforme Andrade (1987, p. 52-53), os governos anteriores haviam elegido a COHAB-RN como “instrumento de sua política habitacional no Estado. Ao chegar ao poder, José Agripino Maia escolheu a STBS para lançar um grande programa de melhoria habitacional no Estado: o projeto 137 Crescer.” Este programa foi intensamente implementado em Natal, meses antes das eleições diretas para prefeito das capitais que ocorreu em 1985 e que teve Vilma Maia como uma das candidatas (ANDRADE, 1987, p. 53). O Projeto Crescer era financiado pelo Banco Nacional de Habitação BNH e destinava-se à construção de habitações para a população de baixa renda, por meio do sistema de mutirão. Aliado às ações de melhoria habitacional, a STBS desenvolvia todo um trabalho de organização da comunidade, incentivando a criação de Conselhos Comunitários, Clubes de Mães, Grupos de Jovens, Grupos de Idosos etc. Em entrevista a Andrade (1996, p. 156), Vilma Maia afirmou que “a concepção inicial do projeto era provocar mudanças naqueles bairros desorganizados socialmente em todos os sentidos”. Com isso, a casa era apenas um instrumento, “uma atração imediatista”, o ponto de partida para um outro trabalho na perspectiva de que “a comunidade assumisse seu papel, que a comunidade se organizasse” mas, sobretudo, para aproximação do governante com a comunidade: “o projeto CRESCER fazia a casa em mutirão com a própria população e era a partir deste trabalho que a gente se aproximava da comunidade.” Segundo a entrevistada, os recursos para o programa não foi difícil conseguir, já que o BNH “comprou logo a idéia, porque achou incrível que a gente pudesse fazer uma casa com menos de um quarto do preço que uma construtora fazia” (ANDRADE, 1996, p. 156). Assim, como ocorreu no período anterior, que teve à frente da gestão do Governo do Estado, Lavoisier Maia e da Prefeitura de Natal José Agripino Maia, os vínculos entre o Governo do Estado e Prefeitura no período se mantiveram bem fortalecidos. Um instrumento forte na sustentação dos vínculos entre governo do Estado e Prefeitura foi, “a Política de Ação Comunitária do governo do Estado, efetivada pela STBS, na periferia da cidade, com o intuito de fortalecer a liderança de José Agripino Maia em Natal.” Juntos STBS, FETAC, Movimento de Integração e Orientação Social – MEIOS e Programa Nacional do Voluntariado – PRONAV53 investiram recursos e trabalho, sobretudo na Região Norte, “de forma a obter o 53 O Programa Nacional do Voluntariado da LBA - PRONAV foi lançado em 1979. Tanto MEIOS como PRONAV funcionam como organizações não-governamentais, filantrópicas. Contudo, no real existem para executar programas governamentais. MEIOS, por exemplo, tem sido historicamente o espaço principal das primeiras damas em nível estadual. Foi presidido por Vilma Maia durante a gestão de Lavoisier Maia no Governo do Estado, então seu marido, e por Anita Catalão, esposa de José Agripino Maia quando este foi governador. 138 apoio dos conselhos comunitários da área.” A história mostra que na perspectiva do projeto político destas lideranças, esta foi uma estratégia bem sucedida e que tem o reconhecimento de muitas lideranças comunitárias até hoje. É o que revela o depoimento de uma liderança comunitária, coordenadora de um Grupo de Idosos na região Norte de Natal: [...] quando eu cheguei aqui, eu morava no Rio de Janeiro, eu cheguei no Panatis e não tinha Grupo de Idosos. Aí naquela época, a esposa de Zé Agripino, Dona Anita Catalão, ela foi e se envolveu no trabalho com idosos. Aí eu fui e me envolvi também com ela, ela precisava muito, aí fazendo pintura, fazendo... aí eu morava em casa alugada, saí de lá. Isso era 1981, 1982, juntamente com Dona Vilma, que hoje em dia é governadora. Dona Vilma foi quem apoiou, dava muito apoio. Era muito bonito isso, a atenção que elas estavam dando para os idosos. No Rio de Janeiro, onde eu morei, não tinha isso, eu não conheci ninguém que fizesse isso. Era difícil ter uma associação de idosos.... Aí de repente eu achei muito bonito o trabalho da Dona Vilma no Projeto Capital. Ela dava o lanche, ela dava até passeio. Tudo ela conseguia pra gente. Eu me formei muito naquele momento nessas coisas e eu digo, bom, eu vou ajudar também, vou entrar como voluntária. Eu sei que isso não dá dinheiro, não dá nada, mas, como eu gosto de trabalhar, eu vou ajudar. Aí me envolvi. Fui pra Pajuçara, cheguei em Pajuçara fundei outro grupo de idosos, Raízes das Rosas. Aí meu filho comprou uma casa no Soledade I. Nunca teve grupo de idosos aqui na comunidade. O presidente do conselho perguntou: D. Filomena, a senhora quer abrir um grupo de idosos aqui? Aí eu estou formando, esse grupo de idosos tem três anos e eu estou muito satisfeita porque tenho o apoio da prefeitura. Aí eu me apeguei mais ainda, porque a gente tendo apoio, é bom pra gente, isso ajuda. A gente não tem nada para oferecer... aí elas vêm e ficam só conversando, não tem um cafezinho, não tem um lanche, isso desanima né? Graças a Deus que o Prefeito ta segurando a barra do mesmo jeito de Vilma.54 A atuação de Vilma Maia à frente da STBS, sobretudo em Natal, a credenciou para ser escolhida, dentro do grupo articulado em torno do PDS e liderado pelo governador José Agripino Maia e por Tarcísio Maia, para disputar a Prefeitura de Natal em 1985, na primeira eleição municipal para as capitais, após os 20 anos de ditadura militar. A sua capacidade de trabalho e a sua habilidade política tornaram a experiência participativa no RN diferente e significativa em 54 Dona Filomena. Coordenadora do Grupo de Idosos “Sol Nascente” que funciona na sede do Conselho Comunitário do conjunto Soledade I – Região Norte. Entrevista realizada em 04 de junho de 2004. 139 relação ao que havia acontecido até então neste campo. Isto lhe garantiu o lugar de “candidata natural do esquema governista.” 55 A sua inserção na periferia de Natal e “no movimento associativo urbano foi tão significativa que o lançamento de sua candidatura a prefeita, em 1985, foi feita primeiramente por um movimento denominado ‘Aliança Comunitária’“, formado por Conselhos Comunitários e um número significativo de Clubes de Mães, de Grupos de Jovens e de Idosos, que haviam sido criados por ela ou recebido a sua atenção em algum momento. Por este movimento as lideranças de bairro pressionaram o PDS pela escolha da candidata. O slogan de sua campanha levava exatamente este nome “Aliança Comunitária”, com o qual a candidata procurava demarcar a idéia de uma candidatura popular “cujo único compromisso político era com o povo da periferia da cidade e com os seus conselhos comunitários” (ANDRADE, 1996, p. 156157).56 A disputa entre os grupos dominantes, nesta eleição, envolveu além de Vilma Maia como candidata do PDS/PFL, uma candidatura da oposição “confiável”, o deputado estadual Garibaldi Alves Filho, pelo PMDB, ligado a família Alves e apoiado por forças de esquerda, como o PC do B e PCB. Além destas duas candidaturas dos grupos dominantes, houve também a do Professor Waldson José Bastos Pinheiro e de Miriam Garcia de Araújo Sousa, esposa do então deputado federal Carlos Alberto de Araújo, um ex-radialista que havia sido ligado ao grupo Alves. Cumprindo uma tendência que acontecia em todo Brasil, em que a população votou majoritariamente na oposição, o deputado Garibaldi Alves foi eleito Prefeito de Natal, conforme o quadro IV, a seguir, o que marcou o retorno da família Alves aos espaços de poder no Rio G. do Norte. 55 Vilma Maia disputou internamente, no grupo governista, a preferência pela candidatura do PDS/PFL a Prefeitura de Natal com o então prefeito de Natal Marcos César Formiga. 56 O resultado da política participacionista de José Agripino e Vilma Maia foi a proliferação de conselhos comunitários na cidade. Em 1987, 67% destas organizações existentes em Natal haviam sido criadas neste governo. Atualmente existem em Natal 365 organizações comunitárias incluindo aí associações e centros comunitários, conselhos, grupos de idosos e clubes de mães. Deste total os conselhos comunitários são 104, correspondendo a 28,5% do conjunto das organizações comunitárias. 140 CANDIDATO PARTIDO Garibaldi Alves Filho Vilma Maria de Faria Maia Waldson José Bastos Pinheiro Miriam Garcia de Araújo Sousa TOTAL PMDB PDS PDT PTB VOTOS NOMINAIS Absolutos Relativos (%) 97.920 53,2 82.136 44,6 2.725 1,5 1.240 0,7 184.021 100 Quadro 5 – Resultado das eleições municipais de 1985 para Prefeito de Natal FONTE: Tribunal Regional Eleitoral do RN - TRE/RN (BRASIL..., 1997) Segundo Andrade (1996, p. 157), “a secretária Vilma Maia tinha um projeto pessoal e foi até as últimas conseqüências para realizá-lo.” Não conseguiu vencer as eleições para prefeito de Natal em 1985, mas o trabalho realizado à frente dos órgãos ligados às políticas de desenvolvimento comunitário a levou a candidatar-se pelo PDS à Câmara Federal, nas eleições legislativas de 1986, destinadas a eleger os deputados que iriam elaborar a nova Constituição Federal. Foi a deputada constituinte mais votada do Rio Grande do Norte. 3.5 As administrações municipais em Natal na transição democrática e a assistência social No momento em que o primeiro prefeito eleito pelo voto popular assumia a Prefeitura de Natal, o país vivia o início da chamada Nova República. Um período de transição que marca o começo da redemocratização após 20 anos de ditadura militar. Antes de tratar da administração municipal deste período, vale a pena situar, mesmo que sumariamente, alguns aspectos fundamentais do significado da ditadura e do processo que conduziu a Nova República para situar as forças dominantes na política do RN e de Natal no novo contexto nacional. A ditadura não foi apenas um regime político, ela cumpriu o papel de promover o desenvolvimento econômico e de criar condições para a expansão e acumulação do capital no país, de acordo com os interesses da burguesia local e atendendo à lógica do capital, em nível internacional. Conforme José Paulo Neto (2004, p. 31), as “linhas mestras” do modelo econômico da ditadura baseavam-se em “benesses ao capital estrangeiro e aos grandes grupos nativos, concentração e centralização em todos os níveis, etc.” Essa política se realizava por meio da 141 abertura ao capital estrangeiro, do incremento à exportação, da realização de grandes obras de infra-estrutura, do investimento na indústria pesada e de bens de capital. No caso de Natal, conforme Andrade (1996, p.154), é flagrante o papel desempenhado pelo poder público para o fortalecimento de determinados grupos econômicos do estado “em especial daqueles ligados ao turismo e à construção civil.” Os empresários da construção civil foram os grandes beneficiários dos recursos do Sistema Financeiro de Habitação. No RN e em Natal estes recursos tiveram o papel de capitalizar antigas e poderosas empreiteiras. A partir de 1973 o modelo de desenvolvimento econômico brasileiro começou a entrar em crise. Revelava-se a farsa do discurso que prometia promover o crescimento econômico com distribuição de renda (ou o “crescimento do bolo” para que depois este fosse repartido). Ao final da primeira metade da década de 1980, o país encontrava-se mergulhado numa de suas piores crises econômicas, com recessão, desemprego e crescimento da dívida externa. Também do ponto de vista político, é neste período que o regime militar sofreu a sua primeira derrota. Mesmo numa eleição controlada, sem que o dissenso pudesse se explicitar, os militares saíram derrotados das eleições de 1974. Esta derrota apareceu como uma ameaça ao regime, o qual, diante da crise econômica, do agravamento dos problemas sociais e da ameaça de uma crise política, começou a buscar formas de legitimação. Por um lado, prometia promover a redistribuição de renda, ajustar a economia e iniciar o processo de abertura política. Ao mesmo tempo foi desencadeada a implementação de programas sociais, sob um discurso participacionista. Iniciou-se, deste modo, o processo de democratização no Brasil, o qual, em hipótese alguma, decorreu da boa vontade do regime militar. Diferentemente do que acontecia em Natal, em que somente em 1979 é que se registrou as primeiras greves (de rodoviários e de professores da rede pública), houve, em amplos setores da sociedade civil brasileira, já no início da segunda metade da década de 1970, todo um sentimento de rejeição à política autoritária e de reação ao agravamento da pauperização, em termos das condições de vida da maioria da população. É bastante extenso o leque de experiências organizativas, 142 movimentos e lutas sociais deste período57, as quais, conforme Carvalho e Laniado (1989, p. 109-110), expressaram lutas pela sobrevivência mas também lutas por mudanças políticas, na perspectiva de uma sociedade democrática. Estes movimentos, sobretudo os que têm os dominados como protagonistas, não surgem por acaso, nem decorrem simplesmente do autoritarismo e da política econômica dos governos da ditadura. Eles surgem relacionados às mais diversas experiências de organização vivenciadas, pelas classes populares antes e durante o período autoritário. Destaca-se a esse respeito, as experiências das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs, ligadas à Igreja Católica, da esquerda católica, dos ex-militantes de esquerda que haviam passado pela experiência da luta armada ou por outras experiências da esquerda. Uma parcela considerável destes grupos vivenciava um momento de avaliação dos erros do passado e buscava reconstruir sonhos e projetos que haviam sido destruídos pela ditadura. Além disso, os movimentos resultavam também da existência de pessoas que, diante das situações de carência, nas grandes e médias cidades, resolveram se mobilizar para buscar solução para determinados problemas imediatos. O fato da sociedade civil brasileira conseguir fortalecer-se, mesmo sob a ditadura militar, pode, segundo Coutinho (1988, p. 123), ser explicado pelo fato de que a ditadura no Brasil não se constituiu num regime fascista, isto é, não foi um regime com base de massa. Se, no momento do golpe, os militares conseguiram algum apoio da sociedade, sobretudo da classe média, isso não se manteve ao longo dos anos de repressão. A luta pela reconstrução de uma sociedade e de um Estado democráticos no Brasil, tem conseguido avanços significativos mas, também, tem sido repleta 57 Glória Gohn (1995) oferece uma visão bastante completa das lutas e movimentos sociais no Brasil, desde o século XIX, até os anos de 1990. No que se refere aos movimentos que ocorreram na sociedade brasileira no período 1970-1980, lembra-se alguns, entre os que são destacados pela autora. Nos anos de 1970, destacam-se por exemplo, os movimentos do custo de vida, dos loteamentos clandestinos, por creches, por transporte coletivos, movimento feminista, pela anistia e o movimento sindical, que dará origem ao Novo Sindicalismo; o Movimento dos Sem Terra, a criação da Comissão Pastoral da Terra e a rearticulação do movimento estudantil. Na década de 1980, destaca-se, por exemplo, a Articulação Nacional dos Movimentos Populares e Sindicais ANAMPOS, a qual deu origem a pelo menos três grandes organizações com atuação nacional: a Central Única dos Trabalhadores - CUT, a Central Geral dos Trabalhadores e a Coordenação Nacional das Associações de Moradores CONAM e, recentemente, a Central dos Movimentos Populares - CMP; destaca-se ainda a criação do Partido dos Trabalhadores, o Congresso Nacional de Luta contra a Carestia, os movimentos dos desempregados, o movimento negro, o movimento nacional de meninos e meninas de rua, o movimento pró-participação popular na constituinte, o movimento em defesa da escola pública, a criação da UDR e da Força Sindical. 143 de retrocessos e derrotas. No âmbito do processo de redemocratização, muitos dos sonhos e aspirações das forças populares foram frustrados. A primeira grande frustração foi o fato de não conseguir eleger diretamente o primeiro presidente civil, após os anos de ditadura militar. Apesar do amplo movimento por Eleições Diretas ocorrido no país em 1984, repetiu-se a velha tradição da burguesia brasileira, de promover “mudanças” pelo alto, quando sente que a organização das classes subalternas poderá, de alguma forma, impedir a realização do seu projeto de dominação. Este tipo de prática situa-se bem naquilo que Gramsci denomina de “revolução passiva”, conceito que permite entender o papel da burguesia brasileira historicamente, assim como o processo de modernização capitalista no Brasil. A “revolução passiva” segundo Coutinho (1988, p. 108) implica sempre em dois momentos: o da “restauração” enquanto uma reação da burguesia aos movimentos das classes populares e o da “renovação”, que significa a incorporação pela burguesia de demandas das classes populares. No contexto dos países do capitalismo avançado, a burguesia foi uma classe revolucionária no enfrentamento do regime feudal e no processo de construção do capitalismo, realizando revoluções democrático-burguesas, com apoio popular. No Brasil, não houve uma realidade na qual fosse possível afirmar a existência de regime feudal. Segundo Coutinho (1988, p. 106) “o latifúndio précapitalista e a dependência em face do imperialismo, não se revelaram obstáculos insuperáveis ao completo desenvolvimento capitalista.” No Brasil, o latifúndio “transforma-se em empresa capitalista agrária” e o capital internacional, longe de ser um problema, “contribuiu para reforçar a conversão do Brasil em país industrial moderno.” Este processo de modernização capitalista no Brasil, se faz pela ação do Estado. Isso porque “a transformação capitalista teve lugar graças ao acordo entre as frações das classes dominantes, à exclusão das forças populares e à utilização permanente dos aparelhos repressivos e de intervenção econômica do Estado” (COUTINHO, 1988, p. 106). Segundo o autor, a ditadura de Vargas e o golpe militar de 1964 são exemplos concretos da capacidade da burguesia 144 brasileira de realizar “transformações pelo alto” e impedir o avanço de transformações efetivas vindas das classes subalternas.58 A revolução passiva tem ainda, segundo Coutinho (1988, p. 112-114) duas conseqüências: “o fortalecimento do Estado” e a “prática do transformismo como modalidade de desenvolvimento histórico.” Citando Gramsci, ele observa que, numa revolução passiva, ‘um Estado substitui os grupos sociais locais na função de dirigir uma luta de renovação.’ Neste sentido, no Brasil, o Estado teve, historicamente, “o papel de substituir as classes em sua função de protagonistas do processo de transformação e o de assumir a tarefa de ‘dirigir’ politicamente as próprias classes economicamente dominantes.” O que Gramsci chama de prática do transformismo consiste, exatamente, na capacidade dos grupos dominantes de incorporar ou cooptar “frações rivais das próprias classes dominantes ou até mesmo de setores das classes subalternas.” O padrão de relação entre governantes e a quase totalidade do movimento de bairro inaugurado por José Agripino Maia e Vilma Maia, em Natal pode ser definido como uma espécie de “transformismo”. O conceito gramsciano parece dar conta dessa realidade, à medida que a prática desses governantes tem significado um modo de incorporação e cooptação de um número significativo de lideranças do movimento comunitário nos espaços de poder através das políticas participacionistas, ao mesmo tempo em que conquista também o apoio da população em geral. A noção de transformismo pode ainda elucidar, por exemplo, as sucessivas vitórias eleitorais do grupo político dominante, assim como o reduzido surgimento de movimentos populares autônomos nos bairros de Natal. Contribui para isso a existência de um movimento de bairro que privilegia as práticas de colaboração com o Estado, e no qual as organizações comunitárias são espaços de legitimação e de colaboração com o Executivo municipal. Gramsci (2002, p. 286) distingue, na realidade italiana, duas formas de transformismo: o “transformismo molecular”, por meio do qual “personalidades 58 A expressão “transformações pelo alto” é usada por Coutinho (1988) para designar uma prática política em que, diante de situações de mobilização popular que podem ameaçar a ordem burguesa, os dominantes sempre encontram saídas cuja característica principal é a exclusão da sociedade de qualquer debate e o privilegiamento dos acordos de gabinete, feitos nos centros do poder. O processo que culminou com a não aprovação da emenda constitucional Dante de Oliveira, que daria ao país a oportunidade de por fim à ditadura militar elegendo diretamente o novo Presidente da República, é um exemplo desta prática das classes dominantes no Brasil. É uma forma de promover mudanças, alterações, para que na realidade “tudo fique como está”. 145 políticas elaboradas pelos partidos políticos democráticos de oposição se incorporam individualmente à ‘classe política’ conservadora e moderada”. A outra forma é o “transformismo de grupos radicais inteiros que passam ao campo moderado”. A prática das classes dominantes em Natal, aproxima-se mais da segunda modalidade de transformismo identificada por Gramsci. Referindo-se à realidade brasileira, Coutinho (1988, p. 115) mostra que é possível observar no Brasil as duas formas de transformismo. Apesar do transformismo molecular ser mais freqüente, ele observa que também ocorre a incorporação de grupos sociais e de massas, pois “sob muitos aspectos o populismo pode ser interpretado como uma tentativa de incorporar ao bloco de poder, em posição subalterna, os trabalhadores urbanos, através da concessão de direitos sociais e de vantagens econômicas reais.” O período que vai da campanha por Eleições Diretas, até o início do governo de transição, revela a fragilidade do movimento das classes subalternas e a capacidade da burguesia brasileira evitar as transformações. O movimento por eleições diretas, talvez o maior da história política brasileira até aquele momento, colocava na ordem do dia, a necessidade de romper com o regime militar e com a própria hegemonia burguesa por meio de um governo democrático. Entretanto, conforme Perseu Abramo (1988, p. 03), [...] os setores liberais percebem o perigo a tempo. Nos palanques, continuam gritando ‘diretas já’. Mas nos corredores palacianos, articulam o fim da campanha, a derrota das diretas, a eleição indireta pelo Colégio Eleitoral e a manutenção da burguesia no poder. Fazem um pacto com a ditadura: haverá transição, sim, mas ‘lenta, gradual e segura’, sem traumas nem retaliações, sem mudanças essenciais e sem povo no poder. Com isso, ocorre o fim da ditadura militar, mas este processo não implica encerramento do regime e da forma de dominação, nem resulta numa democracia burguesa de tipo clássico. O que vai existir é um regime civil sob tutela militar, à medida em que é mantido pelo governo de transição todo o aparato repressivo do período autoritário, e não há um efetivo afastamento dos militares da cena política. O continuísmo do governo da transição é identificado por Potyara A. Pereira (1988, p. 70-72) a partir de três fatores: na permanência dos atores 146 políticos do antigo regime; na composição das suas forças políticas, onde ressalta-se a presença de atores cuja prática baseia-se no fisiologismo, na corrupção e na ausência de fidelidade partidária; e, na ausência de representantes do povo nas instituições políticas de cúpula como o congresso, partidos e outros. A transição democrática59, denominada “Nova República” iniciou-se, portanto, com um governo civil, eleito indiretamente num Colégio Eleitoral, e com enormes tarefas, difíceis de serem cumpridas, entre outras razões, pela composição de forças do próprio governo da transição. A expectativa era de que se controlasse a inflação e a crise econômica e se construísse uma nova institucionalidade, sobretudo por meio da convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, que elaboraria uma nova Constituição; e ainda, removesse todos os instrumentos autoritários, enfrentasse a questão agrária, a dívida externa e os graves problemas sociais. Em praticamente todas as áreas, o governo da transição foi um grande fracasso. As conquistas do período, sobretudo as conquistas políticas, podem ser creditadas à resistência e à capacidade de mobilização da sociedade civil. No âmbito dos problemas sociais, o governo expressava um discurso democratizante e de prioridade ao social; mas, na essência, manteve a estrutura centralizada do período anterior com algumas exceções, como foi o caso da política de saúde, em que registram-se alguns avanços. Mas, conforme Carvalho e Laniado (1989, p. 127), foi no campo das políticas sociais, que o continuísmo da Nova República abriu espaço para o neocorporativismo, dentro e fora da máquina estatal; e para o recrudescimento do clientelismo particularista, à medida que limitou a definição de programas sociais àqueles que poderiam ser negociados na arena de trocas políticas. 59 O governo de transição foi constituído por forças de centro-direita reunidas em torno da chamada “Aliança Democrática”. Foi uma composição possível a partir de um pacto político entre a Frente Liberal liderada pelo então Vice-Presidente Aureliano Chaves, o PDS do José Sarney, partido que dava sustentação ao regime militar, o PMDB, que era para o regime militar a “oposição confiável” e o partido ao qual havia se filiado o Tancredo Neves. Contudo, vale ressaltar o papel de Tancredo Neves neste contexto. Conforme Martins (1986, p.29), com a reforma partidária de 1979, os militares tinham o projeto de dividir as oposições criando “um grande partido de centro que fosse o mediador entre as posições do PMDB, à esquerda, e do PDS, à direita. Esse partido seria o PP, do qual Tancredo Neves foi o fundador e presidente.” Apesar do PP não ter se consolidado, a eleição de Tancredo Neves, conforme Martins, “constitui a vitória desse ponto de vista”. Com esta composição de forças políticas é que foram eleitos, em colégio eleitoral, os Senhores Tancredo Neves e José Sarney, tendo início a chamada “Nova República”. 147 Neste sentido, apesar do discurso e da elaboração de planos que poderiam supor a preocupação com a justiça social e a democratização, o que marcou, conforme Barreira e Braga (1991, p. 83), o governo da Nova República foi a criação de [...] novos mecanismos de articulação e intervenção na sociedade sedimentados numa estratégia participativa através da qual, os setores organizados do movimento popular são convocados a colaborar e a negociar com o Estado a solução de seus problemas e a participar do gerenciamento e execução de projetos nas área de habitação, saúde, nutrição, creches e outras. A transição terminou com uma crise de hegemonia e com aprofundamento da crise econômica e social. Diferentemente da crise da ditadura, a crise de hegemonia que a burguesia enfrentou neste momento foi uma crise política, a qual se revelava na falta de unidade e de liderança dentro do próprio bloco de forças que constituiu a “Nova República”. A elaboração da nova Constituição, um dos acontecimentos mais importantes deste período, foi antecedida por mais uma derrota das forças populares, na medida em que, ao invés de uma Assembléia Nacional Constituinte, com representantes eleitos exclusivamente para este fim, houve um Congresso Constituinte. Isto significou a impossibilidade de realizar um processo de transição com soberania e participação popular. A forma como o governo da “Nova República” tentou assegurar que a nova Constituição não resultasse em uma ameaça à ordem burguesa foi, não só, impedindo que sua elaboração acontecesse por meio de uma Assembléia Nacional Constituinte, mas, também, influenciando decisivamente no processo eleitoral de escolha dos deputados e senadores constituintes, nas eleições de 1986. Diante da crise econômica, do desgaste político e da insatisfação popular que enfrentava, o Governo sentiu que, das eleições de 1986, poderia resultar um Congresso Constituinte de maioria progressista. O Plano Cruzado60, lançado poucos meses antes da eleição, congelando preços e salários e transformando grande parcela da população em “fiscal do Sarney” no controle de preços, foi a 60 O Plano Cruzado foi o primeiro dos três planos econômicos lançados pelo governo da “Nova República” (Cruzado - 1986; Bresser - 1987 e Verão - 1989). O principal objetivo destes planos era conseguir a estabilização monetária. 148 alternativa mais eficiente para evitar que isso acontecesse. O resultado foi que o PMDB elegeu, nestas eleições, 305 constituintes e o PFL, 120. Esta maioria das forças que davam sustentação ao governo, teve um imenso poder de organização, sobretudo, aqueles que se articularam em torno do que ficou conhecido como “centrão” e conseguiu impedir importantes avanços no texto constitucional. No Rio Grande do Norte, as divisões ocorridas no bloco governista a partir de 1985, que resultaram na formação do PFL, que apoiou a eleição de Tancredo Neves/José Sarney, e na continuidade do PDS, que apoiou a candidatura de Paulo Maluf, contribuiu para a divisão do grupo articulado em torno da família Maia. Um bloco mais ligado ao então governador José Agripino Maia passou a integrar o PFL e uma outra parcela, mais ligada ao ex-governador Lavoisier Maia permaneceu no PDS. Neste grupo estava Vilma Maia. O outro grupo político dominante existente no estado, o liderado pela família Alves, permaneceu no PMDB, o qual, ao assumir a Prefeitura de Natal tendo à frente Garibaldi Alves Filho, implementou, em nível local, a política da Nova República. Apesar de eleito numa composição política que envolvia partidos de esquerda, as mudanças mais substanciais, em termos de democratização do poder na administração de Garibaldi Alves, restringiram-se à implementação, em nível local, de políticas que, nacionalmente, já vinham sofrendo algum tipo de mudança nesse sentido, como foi o caso da política de saúde. Nesta área houve grandes avanços na Cidade. Garibaldi criou a Secretaria Municipal de Saúde, sob um discurso que enfatizava o acesso do cidadão da periferia à saúde. Neste sentido, criticava o modelo de saúde predominante, por estar baseado em ações convencionais da medicina curativa, incapaz de enfrentar doenças, cujos determinantes são a desinformação, a desnutrição, a falta de condições sanitárias. Conseguiu ampliar a rede básica, com a construção de novas unidades de saúde na periferia e com a realização de concurso público. Entretanto, sua administração foi marcada por ações pontuais e paliativas nos bairros, atendendo às demandas vindas das entidades comunitárias, por desenvolver um trabalho junto a estas organizações, por meio do Programa Nacional do Leite para Crianças Carentes (PNLCC - “o leite do Sarney”). Este programa é conhecido pelo seu caráter paternalista e que representou a essência 149 da política assistencial do governo da “Nova República”, enquanto parte de um projeto mais amplo de “ação comunitária” desenvolvido pela Secretaria de Ação Comunitária – SEAC.61 O programa aliava a distribuição de leite para as crianças carentes à utilização do trabalho voluntário e gratuito de entidades comunitárias, sobretudo, os Conselhos Comunitários e Clubes de Mães, a quem competia administrar todo o processo, desde a distribuição do ticket do leite, até a seleção de beneficiários e a prestação de esclarecimentos acerca do programa (ESTEVÃO; NERY; GOUVÊA, 1993, p. 66). Apesar da aparente descentralização, este foi um programa desenvolvido com enorme grau de centralização em nível federal. Contudo, nos municípios, este programa e as ações da SEAC serviam também para fortalecer os grupos políticos ligados ao governo da “Nova República”. No caso de Natal, foi bastante útil para fortalecer o Prefeito Garibaldi Alves e seu grau de influência junto às entidades comunitárias. 3.6 Democratização, assistência social e forças políticas em Natal, pós-1988 Em 1988, houve uma nova eleição municipal, na qual Vilma Maia, então Deputada Federal, conseguiu ser vitoriosa. Com isso, ressurgiu com mais vigor na Cidade o estilo de governar e de relação com a população dos bairros periféricos e com as organizações comunitárias, inaugurado por José Agripino Maia e por ela, quando esteve à frente da STBS. Contudo, antes de situar os aspectos que marcaram a sua gestão à frente da Prefeitura de Natal, no tocante à relação com as classes subalternas, com as lideranças e organizações comunitárias, bem como as ações no campo da assistência social, é preciso lembrar alguns fatos da trajetória política da Prefeita, que repercutem na sua prática à frente da Prefeitura de Natal. Em primeiro lugar, trata-se do processo que culminou com a sua saída do PDS. Durante o Congresso Constituinte, Vilma surpreendeu o PDS/PFL e até mesmo as 61 A SEAC foi uma secretaria criada pelo então presidente José Sarney, vinculada ao Gabinete da Presidência da República para implementar projetos na área de ação comunitária. 150 lideranças e parlamentares de oposição e da esquerda no RN, ao votar a favor de cláusulas sociais que beneficiavam os trabalhadores. A partir daí, assumiu um discurso progressista em defesa da cidadania e dos direitos dos trabalhadores. Após o Congresso Constituinte, filiou-se ao PDT, fato que acabou provocando uma crise interna neste partido, em nível de Natal, e a saída dos seus quadros, de figuras expressivas das posições de “centro esquerda” na Cidade, como foi o caso do Professor Waldson Pinheiro. Estas pessoas acabaram fundando o PSB. Com um discurso progressista, defendendo a democratização, a participação popular no seu governo, e a cidadania, Vilma Maia conseguiu ganhar a eleição para a Prefeitura de Natal, com uma votação conforme é apresentado no quadro a seguir: CANDIDATO PARTIDO Vilma Maria de Faria Maia Henrique Eduardo Lira Alves Waldson José Bastos Pinheiro Marcos César Formiga Ramos TOTAL PDT PMDB PSB PL VOTOS NOMINAIS Absolutos Relativos (%) 93.728 46,9 86.808 43,4 13.493 6,8 5.748 2,9 199.777 100 Quadro 6 – Resultado das Eleições Municipais de 1988 para Prefeito de Natal Fonte: Tribunal Regional Eleitoral do RN - TRE/RN Algumas medidas marcaram a primeira administração de Vilma Maia (1989-1993) à frente da Prefeitura de Natal: um discurso participativo, com amplo envolvimento das entidades comunitárias ligadas à Federação das Entidades Comunitárias e Beneficentes do RN – FECEB, em algumas iniciativas; algumas medidas legais de descentralização administrativa mas, sem uma efetiva descentralização do poder; a implementação, em nível local, de exigências legais relativas à política de saúde, com a implantação do SUS iniciada no governo anterior. No campo da assistência social, manteve a SEMPS com o papel que já vinha cumprindo desde a administração de Marcos César Formiga e criou a Associação de Atividades de Valorização Social – ATIVA, em 13 de abril de 1989, como uma “entidade civil sem fins lucrativos.” Contudo, concretamente, foi uma 151 entidade vinculada diretamente ao Gabinete da Prefeita, presidida por um dos seus auxiliares mais diretos, vinculados ao trabalho comunitário. A ATIVA é, até hoje uma ONG cujo quadro de pessoal é pago com recursos públicos municipais; bem como os recursos para o seu funcionamento são do município por meio de convênios diversos, ao mesmo tempo recebe também recursos provenientes de convênios de origem federal, estadual ou municipal. É possível afirmar que a ATIVA foi criada com o claro objetivo de desenvolver ações para dar sustentação política e fortalecer o apoio popular ao Executivo municipal.62 Formalmente, em termos dos estatutos a “ONG” ATIVA tem como finalidade: I – Realizar estudos e pesquisas no campo da assistência e promoção social; II - Promover a coordenação e a conjugação de esforços para a melhoria das condições de vida das comunidades; Desenvolver programas, prestação de serviços e assistência social à família carente, à infância, à maternidade, à adolescência e à 3ª idade, complementando a atuação de órgãos governamentais e organizações privadas. IV – Integrar a ação com participação ativa de um corpo de voluntários, visando despertar a cooperação em prol da melhoria da assistência e pesquisa no campo social; V – Desenvolver, por si ou em colaboração com voluntários e/ou outras entidades, quaisquer atividades compreendidas nos objetivos e propósitos da instituição; VI – Promover e desenvolver atividades econômicas, voltadas para seu objeto social, revertendo sua receita para manutenção, funcionamento e desempenho de atividades da ATIVA (ASSOCIAÇÃO..., 1989) Até 1998 a ATIVA praticamente tornou sem função a SEMPS. Mantida até o presente, sua atuação sempre esteve marcada por atividades assistencialistas junto à população dos bairros mais carentes da Cidade e às organizações comunitárias. O público priorizado em suas ações são os Clubes de Mães, os Grupos de Idosos e Grupos de Jovens. Define como principais diretrizes: ocupação e geração de renda; combate à subnutrição; organização e participação comunitária. Neste contexto, a relação com as organizações comunitárias era de vínculo direto entre estas e a governante. Para as lideranças e dirigentes 62 A ATIVA foi reconhecida como uma entidade de utilidade pública pela Lei nº 3817 de 24 de agosto de 1989. 152 comunitários, sobretudo daquelas organizações que nasceram da ação do Estado nos anos 1970-1980, como a FECEB, há uma avaliação bastante positiva e um grande consenso quanto ao investimento da administração de Vilma Maia, e sua forma de resolver as necessidades da população dos bairros periféricos. Para isto, além da sua trajetória e do trabalho que desenvolveu enquanto esteve à frente da STBS, contava com um partido, o PDT que havia se constituído em Natal, aglutinando na sua militância, pessoas do movimento de bairro, conforme afirma Sergio Freitas, uma liderança comunitária ligada a FECEB: Olha, eu vou começar pelo princípio básico: o partido que Vilma era filiada era o PDT, um partido que tinha uma base muito boa em Natal. A maioria das pessoas de bairro era ligada ao PDT, uma militância muito boa [...]. Então, a Vilma sabendo disso, ela investia muito no pessoal de comunidade durante o mandato dela. Eu vou dizer pra você, por exemplo, em Felipe Camarão a população reivindicava uma determinada rua para ser pavimentada. O que ela fazia? Ela designava o secretário de obras e dizia: olha, chama o pessoal lá da população e diga que o calçamento vai sair. Ele chamava o pessoal e dizia: tal dia o calçamento vai. Claro, valorizava o pessoal da base: ‘aquela reivindicação nossa vai chegar tal dia, pode se preparar que a prefeitura vem aqui dar uma vista na rua, ver como é que está a rua pra começar a terraplanagem’. Depois da terraplanagem ela mesmo vinha com o pessoal que fez a reivindicação e alguns moradores da rua fazer inspeção se a obra estava sendo feita ou não. No final, era a inauguração, aquela festividade, com todo pessoal da rua. Isso foi uma marca da gestão dela. Ela realmente 63 valorizou os conselhos comunitários (OLIVEIRA, 1997, p. 93). Fortalecendo o lugar ocupado pelas lideranças comunitárias na administração municipal, Vilma lançou um amplo programa de descentralização administrativa, com a criação de quatro Regiões Administrativas (norte, sul, leste, oeste) e quatro subprefeituras, trabalho que esteve sob a responsabilidade de uma secretaria criada para este fim: Secretaria das Regiões Administrativas SECRA. Conforme o Decreto Municipal 4.067, de 15 de fevereiro de 1990, competia a esta secretaria o desenvolvimento de atividades: 63 Sergio Freitas do Nascimento, entrevista concedida à autora em 07.02.97, durante pesquisa de mestrado (OLIVEIRA, 1997). 153 a. de coordenação no âmbito das Regiões Administrativas, dos serviços de diversos órgãos que integram a estrutura da Prefeitura Municipal do Natal; b. de articulação entre a comunidade e os diversos órgãos da Administração Municipal; c. de identificação de problemas nas comunidades que integram as Regiões Administrativas, elegendo prioridade e adotando providência junto aos diversos órgãos da Administração Municipal (NATAL..., 1990). Em tese, a criação da SECRA foi uma iniciativa inovadora em termos de descentralização administrativa. Contudo, esta não funcionou, nem na gestão, de Vilma Maia, nem na administração seguinte. Para algumas lideranças comunitárias a SECRA e as subprefeituras serviram muito mais para empregar cabos eleitorais ou como “cabide de emprego” e ressaltam, sobretudo, a falta de poder de decisão dos subprefeitos: “[...] os presidentes de conselho quando procuram essa pessoa ele não pode fazer nada porque quem faz é a prefeitura, não tem poder de decisão, fica como subprefeito mas é só cabide de emprego, só pra dizer que ali é o local dele” (OLIVEIRA, 1997, p. 94). 64 Mas, os dirigentes comunitários costumam ressaltar também a facilidade que tinham de acesso ao Executivo durante a administração de Vilma Maia, assim como a competência dela na forma de se relacionar com estas organizações, em decorrência do trabalho desenvolvido por ela anteriormente. Com Vilma funciona normalmente, sem problema nenhum. Até porque, o pessoal de Vilma, o staf de Vilma é um pessoal muito ligado às organizações comunitárias [...].Todo o pessoal que trabalha com Vilma é político. E Vilma já leva uma vantagem que foi secretária do trabalho e bem estar social desse Estado, tem um conhecimento, Vilma conhece todas as lideranças comunitárias [...]. Ela dá muito apoio às lideranças comunitárias. Vilma talvez, em termos de políticos hoje no Estado, seja o político que dê mais condições de viabilizar projetos dentro da comunidade. Apoio no sentido de facilitar acesso, o comunitário tem mais acesso na administração de Vilma. Ela procura realmente entre os membros do seu secretariado, procura que eles atendam às lideranças comunitárias. Se vai resolver o problema ou não, é outra esfera, mas, ao menos, atenda! Escute o comunitário! Veja o que ele está precisando!(OLIVEIRA, 1997, p. 95).65 64 Ronaldo de Carvalho. Entrevista concedida à autora em 14.02.97, durante a pesquisa de mestrado (OLIVEIRA, 1997). 65 Valdefran Pereira Câmara. Entrevista concedida à autora em 19.02.97, durante a pesquisa de mestrado (OLIVEIRA, 1997). 154 Assim, ao assumir a Prefeitura Vilma Maia deu continuidade ao estilo de governar praticado por José Agripino Maia e por ela anteriormente, incorporando a estes novos elementos para atualizá-lo e adequá-lo ao contexto democrático. Um estilo que se caracteriza até hoje por práticas autoritárias66 e um discurso em defesa da participação popular e da cidadania, sustentado por meio da relação com as lideranças e organizações comunitárias, e com o povo em geral, baseada no vínculo pessoal com o governante, no assistencialismo, através do atendimento às demandas mais imediatas e na troca de favores com lideranças comunitárias e com o legislativo. Ao final do seu mandato, Vilma Maia deixou o PDT e filiou-se ao PSB. Apresentou como candidato à sua sucessão nas eleições municipais de 1992, o seu Secretário de Obras, Aldo da Fonseca Tinôco Filho, numa tentativa de se constituir como terceira força política no Estado e com um discurso de independência em relação às duas oligarquias.67 A disputa eleitoral na Cidade, nestas eleições, envolveu ainda o candidato do grupo Alves, Henrique Eduardo Alves pelo PMDB e outras três candidaturas: o deputado estadual Manoel Júnior Souto pelo PT; Pedro Lucena Dias pelo PSC e Ana Catarina Alves Wanderley pelo PFL. Esta última, filha do Sr. Aluízio Alves, irmã do candidato do PMDB, aliou-se ao grupo liderado pelo Sr. José Agripino Maia. 66 Um exemplo foi o que ocorreu na política de saúde. Ao assumir a Prefeitura em seu segundo mandato (1997-2001), Vilma proibiu a realização de eleições diretas para diretores de Unidades de Saúde, substituindo os diretores existentes nas unidades (os quais haviam sido eleitos diretamente por usuários e servidores), por pessoas da sua confiança, na maioria alheias à realidade da unidade de saúde que iriam dirigir. Outro exemplo são os Conselhos Municipais. Sempre foram instrumentos legais para cumprir determinações da legislação federal das políticas públicas e para referendar decisões já tomadas. Esta é a principal conclusão da pesquisa de Almeida (2001), que entrevistou integrantes de 4 Conselhos Municipais: assistência, saúde, criança e adolescente e planejamento urbano e meio ambiente. 67 Com este discurso, e sem o apoio financeiro do grupo político que sempre lhe deu sustentação (PDS/PFL) e da “máquina do Estado”, foi candidata ao governo do Estado pelo PSB nas eleições de 1994 e obteve 35.591 votos (3,1%), ficando em 4º lugar. Na oportunidade, já divorciada do então senador Lavoisier Maia, passou a chamar-se VILMA DE FARIA. Esta eleição, na qual foi eleito governador o Senador Garibaldi Alves Filho, teve para os demais candidatos, o seguinte resultado: Garibaldi Alves (pela coligação “Unidade Popular” que reuniu PMDB/PSDB/PPR) 489.765 votos (42,5%); Lavoisier Maia (pela coligação “Vontade do Povo” que reuniu PDT/PTB/PL/PFL/PP) 359.870 (31,2%) e Fernando Mineiro (pela “Frente Popular Potiguar” que reuniu PT/PSTU) 44.596 votos (3,9%) (BRASIL..., 1997). 155 CANDIDATO Henrique Eduardo Alves Aldo da Fonseca Tinôco Filho Ana Catarina Alves Wanderley Manoel Júnior Souto de Souza Pedro Lucena Dias PARTIDO VOTOS NOMINAIS Absolutos Relativos (%) PMDB 81.495 39,3 PSB 55.903 27,0 PFL 44.254 21,4 PT 14.286 6,9 PSC 11.300 5,4 TOTAL 207.238 100 Quadro 7 – Resultado do primeiro turno das Eleições Municipais de 1992 para Prefeito de Natal. Fonte: Tribunal Regional Eleitoral do RN - TRE/RN (BRASIL..., 1997) O resultado da eleição no primeiro turno, conforme o quadro acima, garantiu ao candidato do grupo Alves a liderança da disputa no segundo turno. Contudo, o resultado final foi a eleição de Aldo Tinôco Filho, com uma maioria de apenas 961 votos. Os números desta eleição foram os seguintes: num total de 227.777 votos válidos, Aldo Tinoco Filho obteve 112.993 votos (49,6%) e Henrique Eduardo Alves 112.032 (49,2%). Para a maioria da população natalense, a administração Aldo Tinôco foi um grande desastre. Ao assumir a Prefeitura, ele tentou seguir um caminho próprio, dispensando a influência da ex-prefeita em seu governo. No primeiro ano de mandato, deixou o PSB e filiou-se ao PSDB. Sua administração foi uma sucessão de escândalos, com denúncias de corrupção e mudanças constantes no secretariado. A isto, aliavam-se um discurso favorável à participação popular e alguns projetos com bastante divulgação na imprensa local, os quais, ou não saíram do papel, como foi o caso da construção de uma ponte sobre estuário do rio Potengi, ligando a Zona Norte ao centro da Cidade; ou foram implementados com muitas distorções entre o discurso e a prática, como foi o caso do “orçamento participativo”. A idéia de “orçamento participativo”, tal como a experiência desenvolvida pelo PT na Prefeitura de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul - RS, implica antes de tudo, num compromisso do Executivo municipal em romper com a prática da apropriação privada do recurso público. Prática esta que historicamente tem integrado a forma como as elites dominantes governam os municípios brasileiros e o país. Trata-se de romper com as práticas clientelísticas, fisiológicas, paternalistas, assistencialistas, do “jeitinho”, da troca de favores, do empreguismo 156 e da corrupção, que sempre marcaram a relação do Executivo municipal com o Legislativo e com a população. Nas administrações democrático-populares, o “orçamento participativo” supõe a democratização do poder como algo que integra o projeto político do governo. Se no município existe uma tradição organizativa da sociedade, a construção de uma gestão participativa resulta da articulação entre a vontade política do governante, com a dinâmica organizativa da sociedade civil, tendo portanto, mais facilidade para se realizar. Em lugares onde a sociedade civil não possui uma tradição organizativa, que é a realidade da grande maioria dos municípios brasileiros, a participação popular na perspectiva de um projeto democratizante, necessariamente, possui um caráter pedagógico. À medida em que o poder público se abre à efetiva participação da população nas decisões de políticas públicas, ele realiza um processo pedagógico de organização e capacitação da população, a fim de que esta possa assumir-se como um conjunto de cidadãos, com real capacidade para influenciar e tomar decisões sobre as grandes questões que dizem respeito à vida de todos. Nesta perspectiva, a participação popular, por meio do orçamento participativo, se configura como uma disputa de interesses; disputa pelo poder na Cidade, com vistas à construção de um outro modelo de sociedade e de administração pública, que pode por fim ao monopólio do poder, do saber, do conhecimento, da informação e da apropriação de recursos públicos por uma minoria. Isto supõe vontade política do governante para criar mecanismos de gestão participativa e implementar as decisões tomadas coletivamente nestes fóruns. Supõe também organização e acesso da sociedade civil a conhecimentos e informações sobre recursos e projetos, para que possa exercer o seu papel. Diante da cultura política autoritária, clientelista e paternalista que marca a sociedade brasileira, a proposta de orçamento participativo possui um apelo pedagógico muito forte. Considerando que esta cultura política se encontra profundamente enraizada na vida da população, o primeiro grande desafio é romper com ela. Conforme Genro (1995, p. 22), é possível encontrar, por exemplo, lideranças populares que têm uma ética comunitária e estabelecem nas comunidades, uma relação de solidariedade que “tende a valores de transformação socialista da sociedade.” Mas é possível encontrar também 157 aquelas lideranças que “reproduzem a ética mais degenerada da nossa cultura burguesa dominante.” Neste caso, conforme o autor, nas relações com o poder público, este último tipo de liderança privilegia os interesses pessoais, ao invés dos interesses comunitários e coletivos; no momento das disputas políticas, utilizam todos os mecanismos para destruir os que se opõem às suas idéias e impedem o surgimento de novas lideranças, para que o seu poder autoritário não seja destruído etc. Conforme o que foi exposto até aqui, considera-se que este é o tipo de liderança comunitária que predomina em Natal. O orçamento participativo, na administração Aldo Tinoco, não se constituiu como tal, sobretudo, porque a democratização do poder não integrava o projeto do seu governo. Foi um processo que se desenvolveu num curto período de 30 dias, entre os meses de julho e agosto de 1994. Um período insuficiente para que a população, mesmo os setores organizados, tivessem a oportunidade de se mobilizar e intervir de forma qualificada; assim como, para o desenvolvimento de um processo educativo em torno da questão do orçamento municipal. O programa foi lançado no dia 20 de julho e, no dia 21 de agosto, estava sendo encerrada a I Conferência Municipal de Orçamento, na qual os delegados definiram as prioridades. O processo foi, basicamente, o seguinte: a Prefeitura realizou inicialmente reuniões nos 35 bairros da Cidade, nas quais os técnicos prestavam esclarecimentos à população quanto aos serviços públicos existentes, aos limites geográficos, o número de habitantes etc. Nestas ocasiões, ocorria também a escolha dos delegados do bairro para a Conferência de Orçamento, marcada para o período de 19 a 21 de agosto de 1994. Além destas reuniões, a população foi convocada a indicar, por meio de uma eleição, que aconteceu no dia 06 de agosto 1994, três prioridades: uma para o bairro, uma para a Região Administrativa e uma para a Cidade. A votação ocorreu em todos os bairros, em locais estratégicos de movimentação, como supermercados, bancas de revistas, escolas etc. Desta etapa participaram, aproximadamente 5.600 pessoas, o que significou o envolvimento de apenas 0,8% da população nesta votação (OLIVEIRA, 1997, p. 99). O último momento do orçamento participativo foi a realização da I Conferência Municipal de Orçamento, da qual participaram 125 delegados, 158 representantes dos 35 bairros existentes na Cidade naquela época, para eleger as prioridades, a partir do resultado da votação anteriormente realizada. Três questões centrais foram ressaltadas pela população que participou da consulta: segurança, saúde, saneamento básico. Além destas, comuns nas quatro regiões administrativas, foram ressaltados: o problema do transporte coletivo, dos meninos e meninas de rua, da habitação popular e urbanização de favelas e a construção da ponte sobre ao estuário do rio Potengi, ligando a praia da Redinha ao bairro da Ribeira (OLIVEIRA, 1997, p. 99). Ao final do mandato de Aldo Tinoco Filho, a constatação foi de que as prioridades eleitas na I Conferência de Orçamento Participativo jamais saíram do papel. Neste sentido, conclui-se que o orçamento participativo foi muito mais um artifício utilizado pelo Prefeito para se promover, dada a intensa propaganda realizada em torno desta ação. Ressalta-se que, além da iniciativa do “orçamento participativo”, Aldo Tinôco foi o prefeito que mais criou Conselhos Municipais no âmbito das políticas públicas. Nove, dos treze conselhos existentes em Natal até 1996, foram criados durante a sua administração: habitação e desenvolvimento social, entorpecentes, turismo, cultura e fundo municipal de financiamento à cultura, pessoas portadoras de deficiência, assistência social, alimentação escolar, idoso, conselho e fundo municipal de apoio ao esporte. Destes nove conselhos, quatro foram iniciativas do Executivo68, na maioria das vezes por exigência legal para recebimento de recursos; os demais foram iniciativa do Legislativo. Na relação com as organizações comunitárias, Aldo tentou romper com a prática anterior. Apesar de ter a sua candidatura apoiada por este setor, por ter sido o candidato da situação e apoiado pela então prefeita Vilma Maia, não teve com as organizações comunitárias a mesma relação que esta. Para os dirigentes da FECEB, uma das piores ações de Aldo Tinoco foi ter colocado na SECRA a Vice-Prefeita Eveline Guerra, que era do PC do B. O trabalho desenvolvido por ela junto a esta secretaria, desagradou as lideranças desta entidade, que compreenderam como uma tentativa de destruição do movimento de bairro: [...] muitos políticos acham que o movimento popular ele é uma coisa da esquerda, de inclinação total da política da esquerda, 68 Turismo, Idoso, Esporte e Habitação. 159 quando na verdade não é bem assim. A vice-prefeita que é militante do PC do B, entrou em choque quando percebeu que a coisa não é desse jeito. As lideranças comunitárias cada uma tem as suas preferências políticas, independente de serem de esquerda ou de direita. Por isso que ela tentou aquele trabalho de destruição do movimento, de enfraquecimento e conseguiu, parcialmente, mas conseguiu (OLIVEIRA, 1997, p. 101).69 Contudo, apesar da sua administração ter sido, para muitos, um desastre, Aldo Tinôco foi um prefeito que abriu canais de participação. Com isto, valorizou os movimentos, permitindo ao povo se mobilizar para discutir os seus problemas. Apesar de não atender as reivindicações, costumava receber as organizações comunitárias, conforme ressaltou uma liderança comunitária naquele período: Então, Aldo ficou na administração. Só que Aldo não manteve nenhum contato com o pessoal. A falha de Aldo foi essa. Ele foi um prefeito que não teve arestas com o movimento em si. Ele sempre atendia. O pessoal fazia uma reivindicação do orçamento participativo, ele dizia: vai chegar! O pessoal cobrava de novo, ele dizia: vai chegar amanhã! aí ele sempre tinha uma desculpa. Não, foi o repasse que não veio! Ficava nessa enrolada. Ele foi um cara que embora tendo feito uma má administração, não saiu tão mal com o pessoal do movimento de bairro, o pessoal ainda tem um respeito por ele. Embora tendo ficado desgastado, é aquele camarada de chegar num bar em Felipe Camarão, Bom Pastor, Cidade da Esperança e tomar cachaça com o pessoal. O pessoal diz: não rapaz, Aldo pelo menos sabia enrolar! Não é de agora não. Desde que ele estava no IPLANAT, ele sempre estava nas comunidades fazendo palestra sobre o plano diretor, então ele conheceu mesmo a fundo o movimento indo na cozinha do pessoal. O pessoal não tem ele como prefeito não, tem ele como um colega assim de... vamos tomar uma na minha casa! que ele vai. Então esse foi o governo de Aldo. Ele foi um desastre em algumas coisas, mas ele em outras coisas foi sensível: valorizou a municipalização, valorizou a questão dos movimentos, até mesmo pelo orçamento participativo, o povo se mobilizou pra discutir na comunidade os problemas. Se as obras tivessem sido cumpridas ele talvez tivesse saído daí aclamado. Só não fez cumprir, mas abrir os canais para a participação ele abriu (OLIVEIRA, 1997, p. 70 102). Com relação à assistência social, o governo Aldo Tinôco Filho marcou o início do processo de implementação da LOAS. Entretanto, foi também o período 69 Ajax Felipe, secretário da FECEB, entrevista concedida à autora, em 31.01.97, durante a pesquisa de mestrado (OLIVEIRA, 1997). 70 Sérgio Freitas do Nascimento, liderança comunitária da FECEB, entrevista concedida à autora em 07.02.97 durante a pesquisa de mestrado (OLIVEIRA, 1997). 160 em que a ATIVA praticamente tornou sem função a Secretaria Municipal de Promoção Social - SEMPS. Funcionou muito mais como uma repassadora de recursos para a ATIVA, quem realmente desenvolvia os programas e projetos implementados. Poucas eram as ações sob a responsabilidade direta da SEMPS. Num relatório sobre as ações realizadas no período 1993-1996 (ASSOCIAÇÃO..., 1996, p. 11) a ATIVA destaca que a sua receita “origina-se apenas de convênios com a Prefeitura Municipal de Natal e instituições a nível federal e internacional (UNICEF)”. Mais que isso: a ATIVA passou a funcionar no mesmo prédio da SEMPS, ocasionando uma grande confusão de competências. A primeira dama, Zélia Maria de Medeiros Tinôco, era, ao mesmo tempo, presidente da ONG e Secretária Municipal de Promoção Social. Um exemplo da confusão de competências pode ser observado num discurso da primeira dama ao participar de um seminário latino-americano de alimentação alternativa em Porto Alegre (RS), em 12 de outubro de 1993, no qual ela afirmou que a ONG fazia parte da estrutura da Prefeitura: Atualmente Natal é administrada pelo prefeito Aldo Tinôco Filho, o qual propõe-se a realizar uma administração participativa envolvendo todos os segmentos da população, tendo como uma das metas o combate à subnutrição. Fazendo parte da estrutura da prefeitura, existe a ATIVA – Associação de Atividades de Valorização Social – sociedade civil sem fins lucrativos, criada em 1989 para apoiar e realizar programas especiais na área social do governo municipal. As principais diretrizes da ATIVA são: ocupação e geração de renda, combate à subnutrição e organização comunitária (TINÔCO, 1993, p. 2). A ATIVA desenvolveu, durante a gestão Aldo Tinoco, oito programas que na sua maioria estavam voltados a minorar as situações de carência dos mais miseráveis de Natal, que conforme o “Mapa da Fome no RN” (RIO GRANDE DO NORTE..., 1993) somavam 170.100 pessoas, correspondendo a 30% da sua população total. Os programas desenvolvidos foram: combate à subnutrição; ocupação e geração de renda; braços dados; creche; adolescentes e jovens; mães; idosos e informação e capacitação. O programa de combate à subnutrição consistia no fornecimento de uma sopa comunitária em 28, das 70 favelas 161 existentes71, na suplementação alimentar à base de alimentação alternativa (multimistura) a gestantes e crianças; assim como no atendimento às gestantes; na realização de cursos em bairros populares e favelas sobre alimentação alternativa; e na implantação de cozinha escola alternativa. Ao todo, eram 14 ações. O programa de “ocupação e geração de renda” desenvolvia atividades de qualificação profissional, em oficinas de artesanato ou trabalhos manuais (papel artesanal, cestaria, flores, serigrafia etc) ou em cursos mais específicos, como padeiro, guia de turismo, garçom, camareira, copeira, babás etc. As atividades deste programa eram desenvolvidas pelo Centro de Arte e Produção - CENARP (ASSOCIAÇÃO..., 1996, p. 179-82). O programa “braços dados” consistiu em mais um programa de atendimento a situações pontuais e emergenciais em favelas e bairros da periferia da Cidade e, segundo o relatório anteriormente referido (ASSOCIAÇÃO..., 1996, p. 45), “surgiu da necessidade de atuar imediatamente junto à favelas e comunidades carentes, realizando serviços ágeis nas áreas de Meio Ambiente, Educação, Saúde, Cultura e Lazer.” A sua realização começava pela visita de técnicos no bairro ou favela, mobilizando a população por meio de panfletagem, visitas domiciliares e contatos com lideranças dos grupos organizados, para definição de prioridades a serem decididas em reunião posterior. Durante 30 dias, ocorriam atividades sócio-educativas, culturais, de saúde e de melhoria do meio ambiente. Ao final deste período, ocorria o “dia de mutirão” com “ações de impacto” como: limpeza de vias públicas, operação tapa-buracos, pintura de meio fio, coleta de lixo, retirada de entulhos, distribuição de mudas plantas ornamentais etc; além de ruas de lazer, show musicais e uma audiência pública com o Prefeito e o secretariado. Nestas audiências, as lideranças comunitárias apresentavam as demandas da comunidade (ASSOCIAÇÃO..., 1996, p. 43-54). Um dos programas executado pela SEMPS e transferido para a ATIVA foi o programa “creche”, num total de 49 unidades, que atendiam 5.048 crianças de 0 a 06 anos. Segundo o relatório da ATIVA, a reestruturação realizada no programa 71 Para estas sopas a ATIVA fornecia o material necessário (equipamentos, alimentos crus, gás de cozinha, material de limpeza, manutenção do espaço físico) e voluntários das favelas beneficiadas confeccionavam e distribuíam as refeições. (ASSOCIAÇÃO..., 1996, p. 26) 162 permitiu que as creches “passassem a ter função pedagógica, transformando-se num ambiente alfabetizador, portanto propício ao desenvolvimento/aprendizagem da criança e, sobretudo, criando condições para o exercício da cidadania” (ASSOCIAÇÃO..., 1996, p. 60). O programa denominado “sócio-educativo” envolveu atividades junto a 34 Grupos de Jovens, 45 Grupos de idosos e 80 Clubes de Mães em toda a Cidade e ainda ações voltadas para a população adolescente e jovem, em situação de risco social e pessoal. As ações desenvolvidas abrangiam uma casa de acolhida no centro da Cidade (Casa da Praça), que servia de ponto de apoio e de referência para adolescentes e jovens que vivam nas ruas; e o Projeto Vida Nova, em parceria com o Exército e a Marinha, no qual os adolescentes e jovens realizavam atividades sócio-educativas, sobretudo, oficinas de serigrafia de marcenaria, de mecânica de automóveis, de garçom e de música. Estas oficinas ocorriam nos quartéis das duas forças armadas envolvidas e ocupavam o contraturno da escola dos adolescentes. Além destas ações sob a responsabilidade da ATIVA, integraram a assistência social no município de Natal, outras atividades que estiveram sob a responsabilidade da SEMPS executadas, na sua maioria com recursos do orçamento municipal, conforme apresenta o relatório de ações da SEMPS de 1994: a. a conclusão do mercado de arte popular; b. a realização de feiras de artesanato e de cursos de iniciação e reciclagem de artesãos; c. a concessão de documentos – registro de nascimento, de carteira de identidade a pessoas “eminentemente carentes”; d. o atendimento emergencial - concessão de passagens, medicamentos, ataúdes e alimentação a pessoas “eminentemente carentes”; e. a “humanização e urbanização de favelas” que consistiu no desenvolvimento de dois projetos em duas áreas da cidade. Um, a remoção de 60 famílias da favela bem-te-vi localizada no centro da cidade para novas moradias na zona norte de Natal. A outra foi o execução do projeto Habitar Brasil na favela da África localizada no 163 bairro da Redinha envolvendo melhoria habitacional e trabalho social junto a 990 famílias. O trabalho social envolveria, segundo o plano de ação da SEMPS de 1994 “assessoramento técnico e jurídico junto a lideranças e/ou grupos representativos da comunidade”. f. cursos de hortigranjeiro e de produção de flores para adolescentes de rua ou de famílias de baixa renda (NATAL..., 1994b). Ainda neste período em que Aldo Tinoco esteve à frente da Prefeitura Municipal de Natal, em 1993, um grupo de profissionais da LBA e do Conselho Regional de Serviço Social – CRESS – 14ª região iniciou a discussão sobre a implantação da LOAS no Rio Grande do Norte. O ponto de partida foi a realização de debates sobre a LOAS com a categoria dos assistentes sociais e com lideranças comunitárias, com o objetivo de divulgar o texto da referida Lei e sensibilizar a sociedade civil para a necessidade da sua implantação. Já neste momento, a Prefeitura, por meio da SEMPS e da ATIVA tiveram uma participação efetiva. Após um longo processo de muitas reuniões desse grupo, durante mais de um ano, aos 26 de abril de 1995, foi criado o Fórum Permanente de Assistência Social do Município do Rio Grande do Norte. No ato de implantação do Fórum estiveram presentes 236 pessoas representantes de 19 organizações da sociedade civil e 9 instituições públicas (FORUM...., 2001, p. 01).72 Em seu discurso, no ato de instalação do Fórum, a secretária municipal de promoção social de Natal e primeira dama, Zélia Tinôco, afirmou que ao assumir a SEMPS procurou redimensionar o trabalho social da Prefeitura Municipal de Natal “na perspectiva de um trabalho sério e comprometido com os 72 Organizações da sociedade civil, envolvidas na criação do Fórum: CRESS – Conselho Regional de Serviço Social – 14ª Região; APAE (Natal) - Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais; Centro Suvag; Federação Estadual das APAE’s; ATIVA – Associação de Atividades de Valorização Social; Pastoral da Criança; Federação dos Pescadores do Rio Grande do Norte; Pastoral dos Pescadores; Pastoral do Idoso; Centro Integrado de Atenção ao Idoso; SBGG Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia; Clube da Maioridade; MEIOS – Movimento de Integração e Orientação Social; SESC – Serviço Social do Comércio; Abrigo Juvino Barreto; Conviver São José do Mipibu; OAB – Ordem dos Advogados do Brasil; ADOTE - Associação de Orientação aos Deficientes; ARPI – Associação Norte Riograndense Pró Idosos. E, as organizações governamentais envolvidas foram as seguintes: LBA – Legião Brasileira de Assistência Social; INSS – Instituto Nacional de Seguro Social; SEMPS – Secretaria Municipal de Promoção Social; UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte; SAS – Secretaria de Estado de Assistência Social (Escritório do RN); SETAS – Secretaria Estadual de Trabalho e Assistência Social; DEMEC – Delegacia do Ministério da Educação e Cultura; IDEC – Instituto de Desenvolvimento Econômico e Meio Ambiente do RN; Secretaria Municipal de Saúde. 164 segmentos mais empobrecidos da cidade [...]. Estamos construindo uma prática participativa onde a população conquista cada vez mais seu espaço” (NATAL..., 1995c, p. 01). De acordo com documento do CRESS – 14ª região (FORUM...., 2001, p. 2), o fórum foi criado com os seguintes objetivos: a. Discutir e definir estratégias para implementação da Política de Assistência Social no Estado do RN em articulação com as demais políticas públicas; b. Apoiar e assessorar os conselheiros dos Conselhos Estadual e Municipal de Assistência Social; c. Mobilizar e engajar a sociedade civil (entidades, movimentos populares e usuários) nas lutas, articulações e negociações que impliquem na defesa dos cidadãos que constituem o público-alvo da Assistência Social; d. conhecer, estudar, discutir e avaliar os programas, projetos, serviços e ações propostas e/ou em execução pelo poder público; e. levar a discussão sobre Assistência Social ao poder executivo e legislativo; f. treinar, capacitar conselheiros do CEAS e CMAS’s g. Outro elemento que chama atenção é o caráter formal da organização Faz-se necessário destacar algumas peculiaridades deste fórum. Em primeiro lugar, observa-se uma diferença na própria concepção de fórum, entre aquilo que a literatura e os movimentos têm construído sobre estes espaços, e a configuração deste Fórum de Assistência Social, criado em Natal. Ao se falar de fórum como espaço público e de fortalecimento das lutas sociais, a noção que se tem é de um espaço de articulação política de organizações da sociedade civil; autônomo, com uma estrutura a mais leve possível, destinada ao fortalecimento do controle social e da formulação de propostas alternativas, como instâncias não institucionalizadas, que ampliam as possibilidades de participação e representação política de setores excluídos dos espaços decisórios e tradicionais de deliberação política. A leitura dos poucos registros encontrados sobre este Fórum de Assistência Social do RN revela diferenças substanciais com relação a esta concepção de fórum esboçada acima. Em primeiro lugar, foi um espaço que reuniu organizações governamentais e da sociedade civil, envolvidas com a 165 política de assistência social, ao contrário de experiências de fóruns constituídos por organizações da sociedade civil. Além disso, teve uma composição que é a mesma dos Conselhos, que são instâncias institucionais: entidades governamentais, usuários, representantes dos trabalhadores da área, representantes da sociedade civil nos conselhos da área a que o fórum se refere. Outro elemento observado é que a estrutura organizativa do fórum é concebida de modo a privilegiar uma certa formalidade das instâncias de funcionamento: assembléia geral e secretariado executivo. Mesmo com este perfil, em certa medida destoante com relação às experiências de fórum construídas no país, no campo do movimento popular, e até mesmo de outras experiências no âmbito da assistência social, o primeiro problema enfrentado pelo Fórum foi a criação do Conselho Municipal de Assistência Social. Após a realização de debates sobre o texto da Lei e contando com uma articulação e contribuição do mandato do vereador Fernando Mineiro (PT) para que apresentasse o projeto de Lei na Câmara, em 26 de julho de 1995 a Câmara aprovou a Lei nº 4.657, que cria o Conselho Municipal de Assistência Social - CMAS e dispõe sobre a organização da assistência social em Natal. O passo seguinte foi a mobilização da sociedade civil para a escolha dos conselheiros. Após dois meses de mobilização e de debates foi realizada uma assembléia, que elegeu os representantes da sociedade civil no Conselho Municipal de Assistência Social de Natal. Em seguida o Fórum participou ativamente da organização da I Conferência Municipal de Assistência Social, que aconteceu aos 26 de outubro de 1995 e da I Conferência Estadual de Assistência Social. A Conferência Municipal, foi precedida de pré-conferências nas quatro Regiões Administrativas da Cidade com uma participação de 50 pessoas em média. O relatório da referida Conferência revela que ela foi um momento para divulgação da LOAS, ao mesmo tempo em que se questionava aspectos desta Lei, que se apresentavam como problemáticos ou incapazes de atender as demandas dos usuários. É o caso, por exemplo do Artigo 20, da LOAS, que definia 70 anos como a idade mínima para o idoso ter acesso ao Benefício de Prestação Continuada - BPC, assim como o critério de renda per capita familiar de ¼ do Salário Mínimo. Com relação a esta questão a conferência propôs o critério de renda familiar mensal de até três salários mínimos. 166 Entre as proposições desta Conferência merece destaque ainda: a definição de um percentual no orçamento da SEMPS, destinado a assegurar o funcionamento do Conselho; o aumento dos tributos dos grandes proprietários, destinando-os ao financiamento da assistência social; a divulgação ampla da LOAS e da política de assistência social, na perspectiva dos direitos por conselhos, fóruns e organizações de assistência social; a recomendação da articulação do CMAS com os demais conselhos de políticas sociais públicas existentes no município; a articulação dos usuários para a elaboração do plano municipal de assistência social; a necessidade de capacitação de conselheiros, para que tivessem condições de cumprir o seu papel; também exigiu atendimento de qualidade em creches; garantia do atendimento ao portador de deficiência no SUS e aumento dos recursos para as instituições que trabalham com idosos. (NATAL..., 1995b). Apesar do protagonismo do Fórum na criação do Conselho e Fundo Municipais de Assistência Social, na organização da I Conferência Municipal e na divulgação da LOAS com vistas ao seu cumprimento, após estes primeiros momentos ou a partir do segundo ano – 1996 – as reuniões do Fórum foram sendo esvaziadas, de modo que as atividades programadas eram inviabilizadas pela falta de envolvimento das entidades e organizações participantes. Durante algum tempo, organizações como o CRESS – 14ª região e outras buscaram dar continuidade à experiência. No entanto, acabaram sendo vencidas pelo cansaço ou pela indiferença das demais entidades. Em síntese, o fato é que o Fórum de Assistência Social do RN acabou, sem que houvesse uma definição coletiva sobre o seu fim por parte dos sujeitos envolvidos. Há quem considere que o fim desta experiência deve-se ao fato do Fórum não possuir uma estrutura e nem apoio institucional para o desenvolvimento de suas atividades. Todavia, caberia também questionar sobre a sua composição, a sua estrutura organizacional, seus objetivos. Aliás, com relação aos objetivos, se for considerado a sua atuação, o contexto em que ele existiu e sua experiência de funcionamento, este cumpriu o papel ao qual se propôs. Assim, Natal iniciou a segunda metade dos anos de 1990, dando os primeiros passos no processo de municipalização da política de assistência social. As iniciativas no campo da sua institucionalização, com base nos princípios 167 e diretrizes da LOAS, considera-se como os acontecimentos mais importantes. Porém, durante os dois anos seguintes, 1996, 1997, muitas decisões permaneceram no papel. A ATIVA continuou como uma organização paralela na gestão, instalada no mesmo prédio da SEMPS, e executando as principais ações. O Relatório de Gestão da SEMPS em 1995 ressalta que suas ações ocorreram em três eixos: atenção à criança e ao adolescente pobre; desenvolvimento comunitário; e ocupação e geração de renda. As atividades previstas em torno do eixo “desenvolvimento comunitário” consistem em concessão de documentos básicos, atendimento emergencial a população de rua, estudo sobre comunidades carentes, urbanização de favelas além de assessoramento técnico-jurídico a organizações comunitárias. O documento permite observar que todas as ações em creche e com criança e adolescentes são desenvolvidas pela ATIVA integrantes do denominado “programa sócioeducativo” da entidade (NATAL..., 1995d). No campo da geração de renda, as atividades citadas são aquelas do “CENARP” e do “Prosperar Natal” que aparece também no relatório da ATIVA citado anteriormente. Além disso, o relatório ressalta o atendimento às famílias vítimas de inundações na Zona Norte e a remoção de famílias vivendo em favelas e em loteamentos irregulares no bairro Planalto. O referido relatório chama atenção para o fato das ações da área serem predominantemente em torno de situações emergenciais, como: a. encaminhamentos, concessão de passagens a famílias do interior; b. recolhimento de crianças de rua para suas famílias, sobretudo quando ocupantes de canteiros de grandes avenidas e ruas centrais da cidade; c. plantão social, com predomínio do atendimento em alimentação, passagens, medicamentos e albergamento. No Relatório de Gestão de 1996 observa-se que se mantém a mesma lógica das ações do ano anterior. Predomina a preocupação com a mendicância, principalmente quanto às famílias do interior e crianças de rua, assim como com aquelas famílias que se encontram em situações mais gritantes, em termos de moradia. Há, ainda, a continuidade dos chamados “projetos especiais”, voltados para o artesanato: inauguração do Mercado de Arte Popular e instalação de feiras. A novidade deste, que é um ano eleitoral, são os programas de 168 capacitação e de financiamento para o trabalhador autônomo e para cooperativas e associações. Ao mesmo tempo, conforme o exposto até aqui, a “cultura do atraso” parece realizar-se, entre outros caminhos, a partir de uma política de assistência que se efetiva por meio de ações pontuais, seletivas, emergenciais, destinadas a minorar a situação dos mais miseráveis. Esta cultura vai se realizando também na prática do “transformismo”, revelada no uso político de organizações comunitárias e de suas lideranças, como um padrão de relação dos governantes municipais e representantes do Legislativo, com uma parcela das classes subalternas. Essa prática se mantém como uma cultura que tem se renovado a cada dia. 169 CAPÍTULO 4 DESCENTRALIZAÇÃO E GESTÃO MUNICIPAL DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM NATAL 4.1 O Município no processo de execução de políticas sociais públicas e a política de assistência social O Município no Brasil tem, hoje, um papel importante no processo de implementação de políticas sociais públicas e na efetivação de direitos, mas, nem sempre foi assim. Antes da Constituição de 1988 e, sobretudo, no período autoritário as relações intergovernamentais entre os municípios, estados e o governo central eram de total submissão do município a este último. A autoridade de governadores e de prefeitos, sobretudo, das capitais, das cidades de porte médio e de fronteiras, não decorria do voto popular, à medida que a ocupação do cargo era feita a partir de uma indicação do governo federal. Além disso, estados e municípios possuíam uma reduzida autonomia fiscal em decorrência da forte centralização dos tributos na União. A partir dos anos 1980, com o processo de democratização do país e da recuperação das bases do Estado Federativo, após o longo período de ditadura militar, o município foi recuperando sua autonomia política e fiscal. Dois acontecimentos foram decisivos para isso: a retomada das eleições diretas e a definição, na Constituição de 1988, do Município como uma esfera autônoma de poder, conforme o seu artigo 18: “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição” (BRASIL, 1999). Ao mesmo tempo, no que se refere a gestão das políticas sociais públicas, tanto na 170 Constituição de 1988, quanto na legislação complementar, que regulamenta algumas áreas de políticas sociais (como a saúde e a assistência social que integram a Seguridade Social), a descentralização aparece como princípio básico da gestão em todos os níveis de governo. Com relação a uma maior autonomia fiscal ressaltada anteriormente, a partir da Constituição de 1988 os municípios (e os estados) passaram a ter uma maior participação nas receitas da União, assim como o poder de arrecadar alguns impostos como o Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana IPTU e o Imposto Sobre Serviços – ISS, o qual é cobrado sobre serviços de qualquer natureza. Mas, conforme Arretche (2004, p. 18) a arrecadação tributária no Brasil continua até hoje bastante concentrada na União. Entre cinco impostos principais, que correspondem a mais de 70% da arrecadação total, quatro são arrecadados pela União: a contribuição para a previdência, o Imposto de Renda, a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS e o Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI. O quinto imposto, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias – ICMS, é arrecadado pelos estados. Contudo, Arretche (2004, p. 18) mostra que a “desigualdade horizontal de capacidade de arrecadação tem sido compensada por um sistema de transferências fiscais.” Tais transferências, que são obrigatórias e de caráter constitucional73 “distribuem parte das receitas arrecadadas pela União para estados e municípios, bem como dos estados para seus respectivos municípios.” Um dos instrumentos para isso é o Fundo de Participação dos Municípios e o Fundo de Participação dos Estados. Mesmo assim, o município continua sendo no Brasil a esfera mais destituída de poder e de recursos. Conforme Erundina (1996, p. 13), mesmo tendo conquistado uma certa autonomia política na Constituição de 1988, “não foi assegurado aos municípios autonomia econômica, financeira e poder real para 73 As transferências constitucionais da União para os municípios são: 22,5% da arrecadação somada do Imposto de Renda -IR e do Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI para o Fundo de Participação dos Municípios; 50% da arrecadação do Imposto Territorial Rural – ITR; 100% do Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) pelo tesouro local; 70% do Imposto sobre Operações Financeiras – Ouro – IOF-Ouro. As transferências constitucionais dos Estados para os Municípios são: 25% dos recursos do Fundo de Compensação pela Exportação de Produtos Industrializados – FPEX, recebidos pelos Estados da União (equivalente a 2,5% do IPI); 25% da arrecadação do ICMS, 50% do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores - IPVA. Para um aprofundamento ver o trabalho de Sulamis Dain e Laura Tavares Soares (1998) e o endereço eletrônico: http://www.stn.fazenda.gov.br/estados_municipios/transferencias_constitucionais.asp. 171 promover o desenvolvimento local.” Para isto, seria necessário, por exemplo, que aos municípios fosse destinado uma maior fatia de recursos, dentro do conjunto da arrecadação da União. A autora cita alguns dados comparativos da nossa realidade com a de países desenvolvidos, que são reveladores do caráter da descentralização que aqui se desenvolve: [...] em países como a Suécia, 72% da receita pública fica com os municípios [...] no Japão, Estados Unidos e em países da Europa esse percentual oscila entre 40% a 60%. No Brasil, apenas a partir de 1988 os municípios passaram a deter uma fatia de 15% da receita pública; antes era de 5% a 6% (ERUNDINA, 1996, p. 13). No Brasil, com freqüência, associa-se a descentralização à democratização e à participação popular. A descentralização aparece como elemento central, e até suficiente para a garantia da democratização e da participação popular, na gestão de políticas públicas. Contudo, essa não é uma questão tranqüila. O termo “descentralização” pode abrigar concepções, práticas de gestão e projetos políticos diferentes. Uma explicação para essa leitura reside na constatação de que as experiências de descentralização surgiram no Brasil (e na América Latina) no contexto de reconstrução da democracia. Diante disso, em nível imediato, a descentralização aparece em oposição à centralização e como algo próprio da democracia. Contudo, conforme Tânia Bacelar de Araújo (1998, p. 21-22) os anos de ditadura reforçaram “a tradição centralista do Estado brasileiro.” Mas, a centralização na gestão de políticas e serviços sociais não foi uma exclusividade brasileira, foi uma característica da gestão de políticas e serviços sociais em muitos países que adotaram o Estado de Bem Estar de base keynesiana. Por outro lado, se em nível local, a descentralização surgiu relacionada a um anseio de maior democratização, este é um processo que não se separa do quadro mais geral em que surge a defesa das práticas descentralizadas e da valorização do espaço local. Tânia Bacelar ressalta a este respeito, que a produção flexível, o avanço da globalização, as revoluções na comunicação, com base na microeletrônica “estariam remontando as bases (técnicas, econômicas, sociais, geográficas, institucionais) de funcionamento da economia privada e influindo na organização 172 do Estado e das sociedades”. A forma descentralizada de atuação parece corresponder melhor a estas transformações. Mas, afirma a autora que “na era da globalização o comando é centralizado, enquanto a operação é extremamente descentralizada (donde o reencontro com o local)” (ARAÚJO, 1998, p. 22, grifos da autora). Nesse contexto, a descentralização tem sido útil aos processos de ajuste neoliberal em muitos países, porque ela parece compatível com a idéia de Estado mínimo e a transferência de responsabilidades públicas para o setor privado e para a sociedade. Analisando o discurso sobre descentralização no Brasil Frederico Tobar (1991, p. 35-37) identifica quatro características comuns: a) o argumento de que esta permite o fortalecimento da esfera local, inclusive respeitando a heterogeneidade e particularidades desta esfera. A valorização do poder local aparece também como uma reação a tendências centralizadoras; b) a descentralização é de caráter político, mas sua implementação é de caráter administrativo. O caráter político implica em responder a questões como: “por que, para que, e como deve ser implementado o processo” e se ela “representa um fim em si mesmo ou um meio para atingir determinados fins”; c) ela implica uma redefinição do papel do Estado na sociedade. Destaca então que “ao existir uma transferência da capacidade decisória, é a totalidade do sistema de poder quem está sendo redefinida. E essa redefinição atravessa tanto o Estado como a sociedade”; d) diz respeito a impossibilidade de uma dicotomia centralização/descentralização na qual um ou outro conceito possa ser tomado em sentido puro. Entretanto, mesmo sendo comum no discurso de diferentes atores, as características acima não se apresentam de forma única. O conteúdo da sua realização e o perfil que assume nas várias experiências dependem também dos interesses e das forças políticas que disputam o poder. Assim, no tocante às políticas públicas, a forma e a perspectiva que a descentralização assume em cada realidade dependem de diferentes fatores, como a configuração das forças políticas que ocupam o governo, do nível de organização e mobilização da sociedade civil etc. Frederico Tobar (1991, p. 38-40) chama a atenção para a necessidade de distinguir a descentralização de outros termos e práticas com as quais ela pode ser confundida e nas quais reside as controvérsias no uso e análise da questão. 173 Neste sentido distingue a “descentralização” da “desconcentração” entendendo que a primeira “implica redistribuição de poder, uma transferência na alocação das decisões” a segunda, ao contrário, “é a delegação de competência sem deslocamento do poder decisório.” Uma descentralização limitada à desconcentração é, para ele, uma concepção restrita de descentralização. Entretanto, a desconcentração pode ser um elemento da descentralização, por meio da organização territorial de serviços. À medida que a descentralização está relacionada à redistribuição de poder, uma questão que aparece como polêmica é o problema da “autonomia da esfera local” sobretudo no que se refere a tomada de decisões, não só naquilo que diz respeito a competência do nível local mas de todo o processo de elaboração de programas e normas gerais que de alguma forma repercute nas suas ações (TOBAR, 1991). Com relação a associação da descentralização a processos democratizantes, Tobar (1991, p. 41-45) destaca que ela pode servir para reforçar tanto práticas autoritárias e clientelísticas quanto processos democratizantes, dependendo do contexto e da correlação de forças em que acontece. Nisto cumpre importante papel a presença de dois componentes fundamentais num processo de descentralização: a participação popular e o controle social. A sua presença é decisiva para que a descentralização venha contribuir com a democratização do poder, do saber e da informação. Dois outros elementos também são destacados pelo autor: a relação privatismo x estatismo e o problema da definição do nível local apropriado ou da unidade territorial apropriada. No primeiro caso aparece a visão de descentralização bastante defendida pelo Banco Mundial, que a concebe como “estratégia de redução do gasto público” e como tal vem acompanhada de medidas racionalizadoras, que inclui a privatização pura e simples de empresas e serviços públicos e a transferência de responsabilidades do poder público para a sociedade civil. Em torno dessas questões levantadas por Tobar é pertinente considerar alguns elementos da abordagem da descentralização feita por Felicíssimo (1994). O autor ressalta a necessidade de analisar a descentralização situando-a em duas perspectivas: a democratizante e a neoliberal e a partir de três eixos: 174 administrativo, econômico e político. Assim como Tobar, Felicíssimo ressalta aspectos que são consensuais no discurso da descentralização: a valorização do poder local e a crítica a centralização que aparece como uma “excessiva centralidade do Estado” e uma “centralização excessiva no interior do próprio Estado.” A descentralização seria então uma forma de enfrentar os males que resultam dessas distorções revertendo “os resultados do longo processo histórico de centralização através da transferência de recursos, atribuições e poder em geral, desde a cúpula do Estado até as bases do mesmo Estado” (FELICÍSSIMO, 1994, p. 47-48). As divergências aparecem quando ela é tomada a partir dos três eixos citados pelo autor. O primeiro, conforme ressaltado anteriormente, é o eixo administrativo e diz respeito à transferência, dentro do Estado, de funções, recursos, competências de um nível superior ou central para um nível local (que pode ser estadual, municipal, empresas descentralizadas etc). Utiliza-se como argumento principal para esta descentralização, a eficiência. O segundo eixo, é o econômico. Neste, aparece com muita força o debate em torno da privatização. Descentralizar, no aspecto econômico, significa privatizar, “transferir recursos e partes completas do aparelho do Estado para a iniciativa privada.” Argumenta-se, para isto, que a iniciativa privada é mais eficiente. De acordo com o autor, nesta concepção, “o exercício da liberdade na luta pelo máximo alcance dos interesses particulares levaria a que todos estivessem melhor.” Há, por fim, o eixo político, o qual relaciona-se a um processo de mudança que pode resultar numa maior democratização do Estado e da sociedade. Diz respeito, portanto, a uma mudança dos mecanismos de decisão política (FELICÍSSIMO, 1994, p. 47-49). O autor observa ainda que o eixo econômico e o administrativo predominam nas proposições do ideário neoliberal. No aspecto econômico, ressalta-se a redução das funções sociais e reguladoras do Estado e a defesa da abertura da economia nacional ao capital internacional, o que acaba por tornar as elites políticas locais “implementadoras das políticas centrais.” Isto o leva a afirmar que “sob a denominação dos princípios da liberdade, a ‘descentralização’ (ou desestatização?) esconde um projeto de gigantesca centralização capitalista do poder econômico em escala mundial” (FELICÍSSIMO, 1994, p. 49). 175 No que se refere ao eixo administrativo, sobressai na proposta neoliberal, a ênfase no espaço local (entendido como o Estado e o Município) e sua “capacidade de administrar e gerir serviços”. Tal valorização vem acompanhada da redução de subsídios e recursos e de uma modernização do setor público a fim de torná-lo “rentável e passível de ser privatizado em outro momento”. Diante destas proposições, o autor observa que o eixo político, entendido como democratização, não tem lugar. Ao contrário, para implementar uma descentralização dentro dos objetivos acima, faz-se necessária “uma elevada concentração de poder político e repressivo no Estado que dirige a transição.” Seus patrocinadores e teóricos trabalham, inclusive, com a “idéia da ingovernabilidade das economias capitalistas periféricas, se regidas por normas democráticas” (FELICÍSSIMO, 1994, p. 50). Na perspectiva do modelo democratizante de descentralização, busca-se assumir os três eixos ressaltados anteriormente e considera-se a centralidade do eixo político, objetivando-se “uma redefinição explícita do Estado e das suas funções, concomitante a uma profunda reforma da sociedade política e a uma luta no plano dos valores no interior do setor popular.” Em nível administrativo e econômico, a perspectiva democratizante “propõe uma descentralização territorial do Estado”, na perspectiva de que “a multiplicação de cenários de gestão local abram um terreno favorável para a luta cultural.” Desta forma, a descentralização supõe, conforme o autor, a não idealização do “local” como resposta aos problemas; promover uma descentralização que incorpore a dimensão da autogestão; a valorização da participação da sociedade na discussão e resolução dos problemas nos diferentes níveis de governo e a promoção de uma democracia efetiva (FELICÍSSIMO, 1994, p. 51). No contexto das propostas neoliberais, a descentralização tem significado a transferência de responsabilidades do nível federal para o nível estadual e sobretudo, municipal, sem a necessária transferência de recursos e poderes, e sem que os municípios sejam capacitados tecnicamente para assumir as novas responsabilidades. Com isso, tem-se uma descentralização que, além de só transferir encargos e responsabilidades, contribui para fortalecer a dependência de prefeitos em relação a governadores e ao executivo federal. Considerando que o município é a instância de poder mais próxima da população, freqüentemente troca-se recursos por apoio eleitoral. Em eleições 176 municipais, é muito comum, no discurso de alguns candidatos, ser apresentado como vantagem para que os eleitores façam uma opção pelas suas propostas, o vínculo que este e/ou seus aliados possuem com instâncias de poder estadual e federal. Tal vínculo indica a possibilidade do candidato trazer recursos para o município e de realizar tudo aquilo que está prometendo. A utilização de argumentos como estes, em campanhas eleitorais, é uma prática política bastante comum em muitos municípios, e tem a capacidade de transmitir para o conjunto da população, a idéia de que a quantidade de recursos à qual o município tem acesso, depende das relações de amizade e de apadrinhamento do governante municipal, e que este é o melhor caminho para garantir o acesso a bens e serviços, que venham a melhorar a vida de todos. Oculta-se, desta forma, até mesmo a informação acerca dos avanços obtidos na Constituição de 1988, com relação a autonomia política e fiscal dos municípios. Ao mesmo tempo, esta prática garante a permanência no poder, de políticos que não têm qualquer compromisso com processos de democratização da gestão; ao contrário, seu compromisso é com a reprodução da “cultura do atraso”. Na realidade brasileira, conforme Carvalho e Teixeira (1996, p. 63), mais de dois terços dos municípios possuem menos de 20 mil habitantes. A este respeito, citam por exemplo, a realidade do Estado da Bahia, onde 53% dos municípios possuíam no início dos anos de 1990 até 5 mil habitantes. Considerando que em tais realidades, predomina “uma economia pouco dinâmica e diversificada, baseada, na maior parte dos casos, em atividades agrícolas de baixa produtividade”, os autores ressaltam a situação de dependência destes municípios das transferências e verbas federais e estaduais. A isto aliam-se as dívidas historicamente acumuladas para com empreiteiras para financiar obras eleitoreiras e a freqüente composição oligárquica da maioria destas administrações municipais. Este quadro, segundo os autores, contribui para a reprodução de uma prática na qual [...] os prefeitos passam a disputar recursos e tentar extrair de cada ‘escaninho político burocrático’ a maior quantidade possível de verbas, tornando-se presa fácil de relações clientelísticas desenvolvidas pelos governantes estaduais e por parlamentares, e contribuindo para reproduzir as práticas políticas e os mecanismos tradicionais de dominação (CARVALHO; TEIXEIRA, 1996, p. 63). 177 Mesmo que o eixo político da descentralização não seja prioridade para os que ocupam o poder no Brasil; ou seja, mesmo que a descentralização, tal como vem sendo conduzida pela elite dirigente, não tenha como horizonte a possibilidade de uma efetiva democratização do poder, desde 1985 ela tem integrado o leque de discussões e de práticas de um parcela considerável da sociedade civil organizada, de intelectuais, de parlamentares e de governantes, em dezenas de prefeituras democrático-populares. Estas últimas, normalmente são experiências inovadoras de gestão municipal que têm conseguido, a partir da abertura de diferentes canais de participação da população e da transparência e eficácia administrativa, mudar, de forma expressiva, o modelo de gestão da “coisa pública”, em que tais experiências se desenvolvem, contribuindo desse modo, para a construção de uma cultura política de direitos. Para Celso Daniel, as administrações municipais que assumem com a população, uma relação baseada no direito e na participação popular, podem favorecer o exercício de uma “cultura política dos direitos”. Ao invés de usar as demandas da população por moradia, comida, emprego e serviços públicos de forma clientelista, a gestão municipal substitui esta prática, por exemplo, por “concursos públicos idôneos, critérios claros de acesso a programas habitacionais e procedimentos transparentes e iguais para todos para a prestação de serviços públicos.” A construção de uma cultura de direitos, no entanto, depende da garantia do direito à participação e do direito a informação (DANIEL, 1991, p. 1619). Nos anos de 1990, conforme Laura Tavares (2004b, p. 3), o desmonte dos serviços públicos, promovido pelas políticas de ajuste neoliberal, tem como uma de suas estratégias a “desresponsabilização por parte dos governos da união e da maioria dos estados associada à crescente prefeiturização das ações públicas no âmbito social.” Nesse contexto, os processos de descentralização ocorridos no Brasil e na América Latina têm trazido como conseqüências: a pulverização de recursos, a fragmentação das ações, o aumento das desigualdades regionais e, em muitos casos, a redução da eficácia da ação pública, em decorrência do aprofundamento da questão social. A descentralização, nessa perspectiva, é chamada por Soares (2001c, p. 177) como “Descentralização Destrutiva”: 178 de um lado se tem o desmonte de Políticas Sociais existentes sobretudo aquelas de âmbito nacional - sem deixar nada em substituição; e de outro se delega aos Municípios as competências sem os recursos correspondentes e/ou necessários. Em todos os âmbitos da Política Social – Saúde, Educação, Saneamento Básico – onde essa estratégia de descentralização foi acompanhada por um desmonte, o resultado foi um agravamento da iniqüidade na distribuição e oferta de serviços. Os municípios que lograram manter uma boa qualidade de serviços básicos sociais, estão tendo, como “prêmio”, a invasão de populações vizinhas onde isso não acontece. Soares (2004b, p. 4) identifica um conjunto de problemas no processo de descentralização no Brasil: a. a descentralização de encargos não tem sido acompanhada da descentralização de recursos, sobretudo com repasses regulares e em quantidade e qualidade suficientes e capazes de atender as necessidades e as “heterogêneas capacidades de intervenção das prefeituras e órgãos municipais”; b. a descentralização normalmente vem acompanhada do desmonte de estruturas e equipamentos federais e/ou estaduais pré-existentes; c. não leva em conta a complexidade dos problemas sociais em determinadas regiões, como as regiões metropolitanas; d. “os estados, enquanto unidades federadas, são praticamente ignorados nesse processo de descentralização/municipalização.” Com isso às vezes acabam exercendo um papel meramente formal de coordenadores e de repassadores de recursos. Ainda conforme Soares (2004b, p. 4), a municipalização tem sido, muitas vezes, justificada pelo argumento de que “o governo local, estando mais ‘perto’ do cidadão, executaria melhor e seria mais bem fiscalizado.” A autora considera esse debate insuficiente e essas idéias ‘fora do lugar’. Afirmar o local como um espaço puro e mais democrático constitui uma falsa ideologia, além de ser um argumento que ignora a realidade social brasileira “marcada por enraizadas e conservadoras estruturas locais de poder onde ainda proliferam relações clientelistas.” Ao mesmo tempo o grau de participação dos municípios na receita pública, acaba por favorecer as relações de favor entre o executivo federal e prefeitos, deputados federais e senadores, os quais fazem todo tipo de negociação para conseguir 179 recursos para seus estados e municípios. Aliado a isto, o discurso em defesa das parcerias conforma uma estratégia bem sucedida de transferência de responsabilidades para a sociedade. Nessa mesma linha, Silvio Caccia Bava (1995, p. 175) também ressalta que a descentralização, apesar de ser algo importante, pelo fato de romper com a centralização dos recursos e dos processos e competências decisórias na esfera federal, ela não constitui uma garantia da democratização das relações entre o Estado e a sociedade civil, em nível dos estados e municípios. Para que se efetive, exige participação popular, o que envolve disputa de interesses e disputa pelo poder, com vistas à construção de um outro modelo de sociedade e de administração pública, que põe fim ao monopólio do poder, do saber, do conhecimento, da informação e da apropriação de recursos públicos por uma minoria. Um outro elemento a ser considerado nas reflexões sobre descentralização é o que Santos Júnior (2001, p. 45) ressalta quando trata desta questão no contexto de desestruturação do fundo público promovido pela implementação do programa de ajuste neoliberal. Ele mostra que para os neoliberais a descentralização municipal visa promover a “inserção competitiva das cidades como forma de aumentar a competitividade urbana”, o que obriga o poder público a “se transformar em agente econômico com a mesma racionalidade que os atores privados.” Ao fazer isso os governos municipais põem em risco “a construção de esferas públicas autônomas em relação aos interesses dos grupos particulares e a publicização dos interesses locais.” Conforme o autor, Sem recursos suficientes para responder a todas as atribuições transferidas no processo de descentralização, estados e municípios se lançam na competição por investimentos privados, reforçando os riscos já assinalados de apropriação privada dos fundos públicos e da guerra fiscal. Não é preciso avançar mais para concluir que no fim das contas, essa competição atende a interesses particulares do capital, principalmente de certos capitais que se beneficiam de vantagens e isenções fiscais oferecidas pelos níveis subnacionais de governo (SANTOS JÚNIOR, 2001, p. 45). A descentralização da Política de Assistência Social no Brasil se insere nesse contexto, e experimenta tanto o que há de positivo quanto os problemas e dificuldades do processo de descentralização de políticas públicas, implementado 180 no país após a Constituição de 1988. Assim, no que diz respeito à gestão, a LOAS rompeu com o modelo centralizado de implementação das política sociais, à medida que propôs que as ações na área de assistência social fossem organizadas em um sistema descentralizado e participativo (Art. 6) com articulação das três esferas de governo no desenvolvimento das ações, competindo à União a coordenação destas e a elaboração de normas gerais. Propôs ainda a criação de instâncias deliberativas do sistema descentralizado e participativo, na quais os Conselhos (em nível nacional, estadual e municipal), têm caráter permanente e composição paritária entre governo e sociedade (Art. 16) (BRASIL..., 2004a). Além do exposto, e apesar dos avanços no sentido de corrigir as distorções iniciais, o processo de descentralização da assistência social tem sido mais um ato burocrático e formal, do que o cumprimento de um princípio de gestão que contribua para o reordenamento qualitativo da organização desta política no país. O exame de alguns aspectos da história da municipalização da assistência social no Brasil revela uma trajetória repleta de equívocos e descoordenação por parte do governo federal, entre outros problemas. Conforme Lima (2003, p. 33) até 1997, quando foi aprovada a Norma Operacional Básica – NOB - nº 174, o que ocorreu foi uma estadualização. Por ela, a União transferia para os estados os recursos federais. Os estados, por sua vez repassava-os aos municípios e às organizações de assistência social conveniadas. Esta prática passou a demandar dos estados uma estrutura técnica e administrativa que de fato não existia, a fim de firmar convênios e acompanhá-los. Após a aprovação da NOB nº 1, ocorreu um processo de municipalização, que foi muito mais um ato burocrático, administrativo e de transferência de responsabilidades, sem qualquer preocupação da União com a capacidade e criação de condições efetivas nos municípios para assumir a gestão da política de assistência social. Lima (2004, p. 33) relata que no final de 1997, a então Secretaria de Estado da Assistência Social - SAS, órgão coordenador da política dentro do Ministério da Previdência e Assistência Social, solicitou de todos o estados brasileiros a relação dos municípios que haviam criado o Conselho, o Fundo e o Plano municipal de Assistência Social e que recebiam recursos de 74 Documento que disciplina a descentralização político-administrativa da assistência social, o financiamento e a relação entre os três níveis de governo (federal, estadual e municipal). 181 ação continuada. Atendendo estes requisitos, os municípios estariam aptos à municipalização. Sem dúvida esses instrumentos (Conselho, Fundo e Plano) são necessários, mas insuficientes para garantir a gestão municipal da assistência social como política pública. Conforme Lima (2003, p. 40), por si só eles não garantem, por exemplo, uma gestão “[...] em interação com a rede de assistência social, que faça uso dos recursos de planejamento e principalmente trabalhe em co-gestão, envolvendo todos segmentos sociais atuantes na área e usuários dos serviços de assistência social.” Assim, o passo seguinte no processo de transferência de responsabilidades para os municípios, foi o envio, pela SAS, de uma comunicação, informando que o município “estava habilitado à gestão municipal, apto a receber recursos do fundo nacional diretamente para o fundo municipal.” Contudo em momento algum foi esclarecido aos municípios que a aceitação deste ato implicava na municipalização da política de Assistência Social e todas as conseqüências daí decorrentes. Muitos municípios, afirma Lima, “não sabiam que haviam recebido o recurso, que seriam responsáveis pelo repasse às entidades e pela gestão da política no nível local” (LIMA, 2003, p. 34). O executivo municipal apenas recebeu um termo de convênio com o governo federal, uma relação de entidades sociais a quem deveria repassar recursos do fundo e foi informado “da abertura de uma conta no Banco do Brasil, com os recursos desses serviços assistenciais.” Não houve, portanto, qualquer preocupação do governo federal em capacitar os municípios, em informar, por exemplo, da necessidade de criação de um órgão gestor municipal, da criação de capacidade técnica para a execução da política e para o acompanhamento e monitoramento das ações executadas pelas entidades de assistência social (LIMA, 2003, p. 34). Diante disso, a descentralização que vem se efetivando na assistência social nos últimos 11 anos é marcadamente conservadora, fundamentada na lógica neoliberal, destinada a transferir responsabilidades para estados e municípios, mantendo um grau significativo de centralização das decisões no executivo federal. Mas, neste processo é preciso considerar que muitas destas lacunas foram sendo superadas, inclusive como resultado da mobilização de gestores dos níveis estadual e municipal, da sociedade civil e dos órgãos de 182 controle social (os Conselhos, nos três níveis de governo). Contudo, muitos problemas ainda se mantém. Um deles, conforme aponta Sposati (2003a, p. 50) é a permanência da relação por convênio entre a união, estados e municípios. Essa forma de relação, se contrapõe, conforme a autora, “ao disposto na Constituição Federal quanto a autonomia dos poderes federados” e constitui uma agressão “aos princípios democráticos que fundam as relações entre poderes públicos no Brasil.” O princípio da autonomia assegurado na Constituição de 1988 impossibilita a intromissão, no município, de qualquer outro órgão, autoridade ou poder. Supõe autonomia deste ente da Federação para formular e implementar políticas. A descentralização na área da assistência social, ao “se mover por relações de convênio, onde o município é tratado pelas normas conveniais como um incapacitado a exercer a decisória gestão pública” (SPOSATI, 2003a, p. 50), acaba ferindo a autonomia dos municípios. Outros problemas levantados pela autora e que se relacionam à questão da descentralização é o uso da classificação dos municípios brasileiros pelo Índice de Desenvolvimento Humano para a alocação de recursos. Este indicador, extremamente genérico, é considerado inadequado, por não dar conta das situações de vulnerabilidades, riscos pessoais e sociais, exclusões sociais presentes numa realidade de profundas desigualdades sociais, econômicas e extensas áreas geográficas como a brasileira (SPOSATI, 2003a, p. 51-52). Problemático também é o não cumprimento do princípio de dever do Estado na gestão da política. A esse respeito, Sposati afirma que “o modo de regulação predominante nestes 10 anos de LOAS fragiliza os entes públicos face as ONGs para cumprir suas responsabilidades.” A autora ressalta ainda o “caráter burocrático atribuído pela União aos planos municipais”, o que contribui para torná-lo mera formalidade e a não efetivação e pouca clareza do comando único como “orientação do Sistema Descentralizado e Participativo de Assistência Social” (SPOSATI, 2003a, p. 59). O processo descoordenado, difícil e problemático que marca a descentralização da assistência social fez com que, após 10 anos de LOAS, A IV Conferência Nacional de Assistência Social, realizada em 2003 ainda precisasse clamar pela construção imediata do Sistema Único de Assistência Social – SUAS e por uma descentralização capaz de cumprir o que a LOAS já determinou: 183 Efetivar a descentralização político-administrativa para romper com a verticalidade de ações planejadas e financiadas pela esfera federal, estaduais e Distrito Federal, a partir do repasse automático de recursos fundo-a-fundo, compatíveis com os Planos de Assistência Social aprovados pelos Conselhos Estaduais e do Distrito Federal, assegurando efetiva partilha de poder e respeito a autonomia das esferas de governo, em suas decisões relativas aos programas, projetos, serviços e benefícios (BRASIL...., 2003, p. 5). A “Partilha de poder” talvez seja um elemento central ausente nos processos de descentralização da assistência social no Brasil. Sem dúvida, conforme Yazbek (2004a, p, 15-16), “a descentralização político-administrativa na gestão da assistência social [...], reconfigura esta política em um novo patamar no âmbito municipal”, reconhecendo-o como esfera autônoma de poder e de gestão da política de Assistência Social. Mas, “o reconhecimento da autonomia da esfera local não exclui as responsabilidades do nível federal pela direção e condução geral da política e por sua integração nos diversos níveis de governo.” Atualmente, a partir da aprovação da nova Política Nacional de Assistência Social, em setembro de 2004, a gestão desta área iniciou um processo de normatização que define regras em direção a construção de um Sistema Único de Assistência Social conforme deliberou a IV Conferência. Com base nesse novo instrumento, a organização e execução da política de assistência social em todo território nacional passou a se organizar com base nos seguintes eixos estruturantes: matricialidade sócio-familiar; descentralização político administrativa e territorialização, novas bases para relação Estado e Sociedade Civil e financiamento, que tem como instância os fundos de assistência social em todos os níveis de governo e controle social; participação dos usuários; política de recursos humanos; a informação, o monitoramento e a avaliação (BRASIL..., 2004, p. 33-34). Completando o atual processo de normatização, no dia 14 de julho do corrente ano, foi aprovada pelo Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, uma nova Norma Operacional Básica - NOB, após três meses de um significativo processo de discussão envolvendo governo e sociedade civil em todos os estados do país. Esta NOB, disciplina as ações de assistência social no Brasil nos termos da nova Política Nacional de Assistência Social e na perspectiva da construção do 184 Sistema Único de Assistência Social - SUAS. A expectativa é que ela contribua para a correção das dificuldades vigentes, definindo o papel dos entes federados e as responsabilidades públicas que garantam o efetivo funcionamento do SUAS. Este é, sem dúvida um novo momento da Política de Assistência Social no país, cuja efetivação ainda se encontra em construção. 4.2 Governo municipal e as ações de combate à pobreza no pós-LOAS Considerando que a implementação de uma política pública depende, em grande parte, dos governantes, a apreensão do processo de implementação da LOAS em Natal exige uma caracterização das forças políticas que ocuparam o governo municipal no período analisado, assim como a identificação das ações prioritárias no enfrentamento da pobreza na Cidade, no projeto político destas forças. Exige ainda buscar apreender questões tais como: de que forma estas forças têm atuado? Em que medida o padrão de relação com a população, inaugurado no período anterior, marcado pelas políticas participacionistas foi rompido? Que ações sociais são prioritárias no projeto de governo dos que ocupam o poder no município? A assistência social é uma política prioritária no combate à pobreza? Até 1996, no que diz respeito ao processo de municipalização da assistência social, o que havia sido feito, limitava-se muito mais a aspectos legais do processo de institucionalização do Conselho e do Fundo Municipal de Assistência Social. Embora desde 1993 a LOAS estivesse propondo que os municípios assumissem a gestão da política, na prática, o repasse de recursos federais estava ocorrendo para a Secretaria Estadual de Trabalho e Ação Social – SETAS. O que havia, até então, era um processo de estadualização. A partir de 1997, com a aprovação da NOB nº 1, se iniciou mais concretamente a municipalização. Em Natal, contudo, como será melhor explicitado a seguir, esse processo só avançou a partir de 1998. Do ponto de vista das forças que ocuparam o executivo municipal, um dos acontecimentos importantes de 1996, foi o retorno de Vilma Maia à cena política natalense como candidata a prefeita, após ter sido derrota nas eleições de 1994. 185 Nesta eleição, ela se candidatou ao governo do estado pelo PSB, sem o apoio financeiro do grupo político que sempre lhe deu sustentação (PDS/PFL) e sem contar com a máquina de algum governo, seja estadual, seja municipal. Obteve 35.591 votos (3,1%) ou o 4º lugar na disputa eleitoral. Na campanha de 1996, já divorciada de Lavoisier Maia e tendo retirado o sobrenome “Maia” do seu nome, mas, contando com o apoio do Senador José Agripino Maia (PFL) e de outras lideranças desse campo político, procurava se mostrar como uma força política alternativa. Em seu discurso, predominava a idéia de uma mulher independente pelas rupturas realizadas, inclusive na esfera privada. Além disso, predominou a imagem de mulher guerreira, corajosa e com uma história de coerência. O sucesso da sua primeira administração à frente da prefeitura de Natal foi o seu maior instrumento na campanha de 1996. Desta administração procurava destacar: as obras realizadas, sua experiência, sua competência, a avaliação positiva com que terminou o mandato (92% de aprovação). As frases mais repetidas pelo marketing da campanha eram: “Vilma fez e vai fazer muito mais” ou, “Natal me conhece”. Com este discurso, conseguiu ser vitoriosa no segundo turno com 51,7% dos votos, contra 48,3% obtidos pela candidata Fátima Bezerra (PT). A disputa eleitoral nesta eleição envolveu ainda, no primeiro turno, conforme o quadro a seguir, os seguintes candidatos: João Faustino F. Neto (PPB/PSDB), José Geraldo dos Santos Fernandes (PRP), Leonardo Arruda Câmara (PDT/PRN/PSD) e Dário Barbosa (PSTU). CANDIDATO PARTIDO Vilma Maria de Faria Meira Maria de Fátima Bezerra João Faustino Ferreira Neto José Geraldo dos Santos Fernandes Leonardo Arruda Câmara Dário Barbosa de Melo TOTAL PSB PT PSDB PRP PDT PSTU VOTOS NOMINAIS ABSOLUTOS RELATIVOS (%) 92.244 35,79 74.444 28,89 66.227 25,70 13.170 05,11 10.388 04,03 1.254 00,48 257.727 100 Quadro 7 – Resultado do primeiro turno das eleições municipais de 1996 Fonte: Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte - TRE/RN (BRASIL..., 2005) 186 Coerente com o discurso voltado para “causas sociais” que vinha adotando desde o final do seu mandato como deputada federal constituinte, não faltou no discurso de campanha de Vilma de Faria a promessa de um governo comprometido com a descentralização, a participação popular, a cidadania, os direitos sociais, a melhoria da qualidade de vida da população. Em entrevista a Almeida (2001, p. 27), Vilma ressalta a forma participativa com que seu projeto de governo foi elaborado, tendo sido resultado do contato com o povo nas caminhadas pelos bairros durante a campanha e de seminários e encontros com segmentos da população: ‘Em [1997], quando nós entramos, tínhamos um projeto de governo que foi feito durante a campanha, inclusive no final da campanha, nós elaboramos um projeto, um programa de governo com várias lideranças comunitárias que participaram, lideranças políticas. No contato direto que eu tive durante a campanha com o povo nós fizemos um esboço de programa de governo e a partir daí nós desenvolvemos esse programa durante a nossa gestão’ (ALMEIDA, 2001, p. 27). Na eleição municipal seguinte, a de 2000, Vilma de Faria foi candidata à reeleição, com uma vitória garantida a partir do que ficou conhecido na cidade como o “acordão” realizado em 1999 entre ela e as lideranças do grupo ligado à família Alves. Este consistiu no seguinte: o governador Garibaldi Alves Filho (até então seu adversário político) e as forças políticas da coligação que sustentava o Governo do Estado (PPB/ PMDB/ PPS/ PAN/ PRTB/ PMN/ PRN/ PSD/ PT do B) apoiariam a sua candidatura à reeleição para a Prefeitura de Natal, com direito a indicar o candidato a vice-prefeito.75 Em troca, nas eleições de 2002, a prefeita apoiaria o deputado federal Henrique Eduardo Alves para governador e o Governador Garibaldi Alves Filho para Senador. Este acordo resultou em investimentos conjuntos da Prefeitura de Natal e do Governo do Estado em grandes obras na cidade como a urbanização da praia de Ponta Negra (construção de um calçadão e de barracas padronizadas) e de um complexo viário na BR 101. 75 O indicado foi um membro da família Alves, o Sr. Carlos Eduardo Alves, atual Prefeito de Natal. 187 Em termos eleitorais, o resultado do “acordão” foi a eleição de Vilma de Faria como Prefeita de Natal no primeiro turno das eleições de 200076, com 57,7% dos votos, numa coligação que envolveu os seguintes partidos: PSB, PMDB, PAN, PL, PMN, PPB, PPS, PSD, PV. A disputa envolveu ainda os candidatos/as: Fátima Bezerra (PT, PC do B, PCB, PDT, PT do B, PHS), Sonali Rosado (PFL, PRN, PSDB, PTB), Dário Barbosa (PSTU) e outros 5 candidatos que não chegaram a obter 0,50% dos votos. CANDIDATO PARTIDO VOTOS NOMINAIS Absolutos Wilma Maria De Faria Meira Maria De Fatima Bezerra Sonali Rosado Cascudo Rodrigues Nelson dos Santos Dário Barbosa De Melo Maurício Pereira Dantas Marconio Cruz Do Nascimento Carlos Roberto Ronconi Raimundo Julio Do Nascimento TOTAL PSB PT 178.016 90.630 PSDB PSTU PTN PSC PSDC PGT 33.995 1.422 1.286 1.123 1.065 906 308.443 Relativos (%) 57,71 29,39 11,02 0,46 0,42 0,36 0,35 0,29 100 Quadro 8 – Resultado do primeiro turno das eleições municipais de 2000 para Prefeito de Natal Fonte: Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte - TRE/RN (BRASIL..., 2005) Assim, desde o final dos anos 1980 e, a partir da segunda metade dos anos 90 do século XX, até o ano de 2002 do século XXI o Município de Natal foi administrado por um único grupo político, liderado por Vilma de Faria. Nos seus três mandatos, ela deu continuidade ao estilo de governar inaugurado por José Agripino Maia e por ela no período 1970-1980. Por exigência do novo aparato institucional que se construiu no país, Vilma de Faria se submeteu ao cumprimento das regras do jogo democrático e assumiu um discurso em defesa da participação popular e da cidadania; mas, ao mesmo tempo, manteve, com as lideranças e organizações comunitárias, um tipo de relação baseada na troca de favores, no vínculo pessoal e no assistencialismo. 76 Nas eleições de 2002, a Prefeita descumpriu o acordo firmado em 1999 e rompeu com o grupo Alves. Em seguida renunciou ao seu mandato na prefeitura de Natal e lançou-se candidata ao Governo do Estado. Tendo liderado a disputa no primeiro turno, disputou o segundo turno com o candidato do grupo Alves, o Sr. Fernando Freire (PP). Conseguiu ser vitoriosa, com 61% dos votos válidos, sendo atualmente a Governadora do Rio Grande do Norte. 188 Para tanto, ela criou mecanismos de relação direta com a população, e dedicou atenção privilegiada às demandas das organizações e lideranças comunitárias da sua confiança (recebidas semanalmente em seu gabinete) e da presença cotidiana da prefeita nos bairros, visitando ou inaugurando obras, conversando com a população. Mas, não foi só isso. Nas duas últimas gestões, essa relação direta com a população ganhou um espaço privilegiado desde 1997: o programa “Nosso Bairro Cidadão.” Esta realidade é confirmada por Márcia Maia, sua filha e ex-Secretária Municipal de Assistência Social em entrevista a Almeida (2001, p. 93). Para ela, governar ouvindo o povo, abrindo espaço para as organizações comunitárias é uma característica de Vilma, [...] ela tem uma forma de administrar procurando sempre ter contato com a população, então é rotineiro na agenda da prefeita Vilma, ela estar visitando obras, estar fiscalizando os serviços [...], e também atendendo aos representantes das comunidades de Natal. Na hora em que concede audiências comunitárias com os representantes das comunidades [...], ela está próxima da população, procurando ouvir o que a população tem a dizer da sua administração, o que a população tem a dizer com relação às reivindicações pra melhorar a qualidade de vida do bairro e assim por diante. Isso, com certeza, é uma identificação muito forte da prefeita, esse estilo de administrar, de governar e isso faz com que ela, digamos assim, seja considerada uma liderança política na cidade do Natal. [...]. É uma característica de Vilma saber ouvir, ter a paciência de escutar, ter o interesse, não é só a paciência, mas o interesse de escutar o que a comunidade tem a dizer, o que ela está reivindicando (ALMEIDA, 2001, p. 93). O programa Nosso Bairro Cidadão foi então um importante instrumento para esse “estilo de governar”. Em nível institucional, ele esteve inicialmente sob a responsabilidade da Secretaria Municipal das Regiões Administrativas – SECRA, criada por Vilma em seu primeiro mandato. Posteriormente, em 1999, a SECRA foi extinta e suas competências transferidas para a Assessoria de Assuntos Comunitários. Em 2000, esta assessoria foi extinta e o programa Nosso Bairro Cidadão e demais “assuntos comunitários” foram transferidos para uma nova secretaria: a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Comunitário, em funcionamento até o presente. O programa “Nosso Bairro Cidadão”, no seu formato, na sistemática de funcionamento, nas ações que realiza, nos seus objetivos é, na essência, uma 189 continuidade do que já vinha sendo realizado pela administração do prefeito Aldo Tinoco Filho, sob a responsabilidade da ATIVA, com o nome “Programa Braços Dados”. Assim como era feito neste programa, em “Nosso Bairro Cidadão” os técnicos da prefeitura visitam o bairro escolhido para mobilizar a comunidade, fazer contatos com lideranças comunitárias, identificar os principais problemas do bairro, elaborar a pauta de reivindicações a ser apresentada aos secretários e à Prefeita. Além disso são identificadas as necessidades mais urgentes da comunidade e que podem ser resolvidas de forma imediata, durante a semana de realização do programa no referido bairro. Durante uma semana os diversos órgãos dos governos municipal, estadual e federal (como a Delegacia Regional do Trabalho, Instituto Nacional de Seguro Social - INSS) se instalam no bairro e oferecem serviços e informações de forma intensiva. São realizadas atividades na área de educação, serviços de manutenção e limpeza de ruas e avenidas, pequenas obras como “operação tapa buraco”, exposições e atividades educativas na área de saúde como as voltadas para combate ao mosquito transmissor da dengue, sexualidade e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, cuidados de higiene com os alimentos e com as crianças; cursos rápidos; serviços de emissão de documentos, como Carteira de Trabalho e Previdência Social, Carteira de Gratuidade do Transporte Coletivo para Idoso, alistamento militar, certidão de nascimento etc. O programa também realiza atividades culturais, envolvendo artistas locais; e ainda atividades de reflorestamento, com distribuição de mudas de plantas (ALMEIDA, 2001, p. 6869). Durante um período de três dias, que também poderia durar até uma semana, era montada no bairro, toda uma estrutura com tendas e palcos; utilizando também os prédios públicos ou comunitários existentes (escolas, conselhos comunitários, igrejas, etc) para receber as atividades do Programa. O ponto alto da sua presença no bairro era o momento da audiência pública. Neste dia, o gabinete da prefeita era instalado no bairro; e ela, juntamente com os secretários, recebia as lideranças comunitárias, ouvia suas reivindicações e decidia o que seria atendido de acordo com as condições orçamentárias da prefeitura. Contudo, conforme o depoimento a seguir de Rinaldo Claudino de Barros, técnico da Secretaria Municipal de Administração e Planejamento - 190 SEMAP entrevistado por Lindijane Almeida (2001), esta prática significa mais que a ação de um programa específico, faz parte do estilo de governar de Vilma: A Professora Vilma tem uma vida política baseada numa sensibilidade social e num estilo de estar sempre ouvindo a população, não só o povo no sentido mais amplo, mas ouvindo empresários, ouvindo segmentos importantes sindicalizados etc. Ela nunca deixa de ouvir, mesmo que às vezes tome uma decisão contrária àquelas reivindicações, mas ela ouve. Então, ela tirou, no caso da prefeitura de Natal, a imagem do gabinete, de atender em gabinete e ela foi pra rua, ela leva não só o gabinete dela pra rua, mas o secretariado todo também teve que se adaptar a isso. [...]. Então, há uma mudança de estilo de governo, é uma inversão levando o governo para junto da população e não esperar que a população busque, procure o governo. Isso, somado com a sensibilidade social que ela tem, eu acho que é a explicação, digamos assim, do sucesso, da aprovação da administração. [...]. Quer dizer, em vez de você planejar, você executa de maneira a atender, a direcionar os investimentos para aquilo que está sendo mais solicitado. É esse estilo de aproximar o governo do povo, quer dizer, você abandonou os gabinetes (ALMEIDA, 2001, p. 9394). Para Vilma de Faria o social é prioridade no seu governo. Em entrevista concedida a Almeida (2001), ela destaca três programas muito importantes nesse campo: o Programa Nosso Bairro Cidadão, o Programa Sistema de Emprego e Renda - SER e o Programa Tributo à Criança. Sendo o primeiro, o mais importante no sentido de favorecer a ligação da Prefeita com a comunidade, como ela afirma, é um projeto “que me liga ao povo”. Qualquer governo que deseje realizar um bom trabalho tem que pensar na parte social [...], a população precisa acima de tudo que os serviços funcionem, os serviços de educação, de pré-escola, de creches, de educação infantil, de qualificação, então, na verdade, a parte social pra nós é muito mais importante do que a parte física propriamente dita. E é tanto que o nosso governo nas obras físicas só gastou 10% do que arrecadou, 90% foi gasto nos serviços que são prestados à população, 90% dos recursos que foram arrecadados... Então, quer dizer, a maior parte dos recursos é gasta exatamente com essas atividades, que não aparece; a parte social não aparece, se eu calçar uma rua aparece, os 10% que nós investimos na obra física aparece bem, todo mundo vê e até aplaude mais. [...] Procuro desenvolver programas sociais que possam atender a essa população que é, vamos dizer assim, que é uma população hoje excluída. Nós fazemos, então, nesse trabalho social, uma ação de inclusão social. Assim, é que nós implantamos vários programas como o Tributo à Criança, que dá uma bolsa escola pra família, que cuida da criança, inclusive 191 aquela que já tem conduta anti-social, e coloca novamente essa criança na escola [...]. Temos outros programas importantes também na área social que é da área de qualificação profissional e de também crédito para montar o pequeno negócio, esse é o Programa SER, que começa com a qualificação e requalificação e termina com o financiamento para pequenos negócios. [...] Porque na hora em que as ações são destinadas mais à população mais carente, nessa área social, principalmente, significa exatamente dar melhores condições e, ao mesmo tempo, me aproxima mais da população em geral. E o que fez com que o nosso governo fosse um governo participativo foi um outro projeto que me liga ao povo, que é o Programa Nosso Bairro Cidadão [...], isso tem sido assim da maior importância para ligação com a comunidade... além das ações de cidadania que são desenvolvidas, onde se 77 atende a população (ALMEIDA, 2001, p. 46) . O programa “Tributo à Criança” foi uma das propostas mais prometidas por ela e também uma das mais difundidas pelo seu marketing na campanha eleitoral de 1996. Trata-se de um programa de transferência de renda, na linha do que já se encontrava em andamento no país em municípios paulistas como Campinas, Ribeirão Preto, Santos e no Distrito Federal com o programa “Bolsa 77 Ao assumir o Governo do Estado do RN em 2003, Vilma passou a implementar no estado iniciativas bem sucedidas em Natal. Uma delas foi a implantação de um programa no estilo “Nosso Bairro Cidadão” denominando “Governo nas Cidades”. Sobre este assunto, o jornal Diário de Natal, em 31 de dezembro de 2003 registrou: “Um programa no qual o governante deixa o gabinete da capital e faz de vários municípios a sede temporária do Governo, discutindo os problemas com representantes das várias cidades da região, lançando programas e definindo estratégias e projetos para melhorar a vida do cidadão. Poucas vezes, com exceção das épocas próximas dos períodos eleitorais ou por interesses mais políticos do que administrativos, a cena foi vista no Rio Grande do Norte. Neste 2003, porém, com a adoção do Governo nas Cidades, ela foi muito mais comum. Ao final do primeiro ano de administração, 67 municípios das regiões do Alto Oeste, Seridó, Agreste e Médio Oeste foram beneficiados pelas ações decorrentes da instalação do Governo das Cidades. O programa esteve em Pau dos Ferros, Caicó, Nova Cruz e Mossoró, abrangendo uma população de 838 mil habitantes. Em cada uma dessas cidades, a governadora Vilma de Faria, com todo o seu”. secretariado e a equipe técnica das várias áreas do Governo, ficaram, em média, três dias lançando programas e debatendo com a população e com os prefeitos [...]. A característica itinerante de administrar da governadora Vilma de Faria já era conhecida em Natal. Durante o período em que governou a capital ela criou o programa Bairro Cidadão, que consistia exatamente na transferência da sede da prefeitura para vários bairros da periferia, onde eram realizadas ações de cidadania e implantados programas e também onde a população se manifestava para fazer reivindicações. Uma vez por mês a prefeita Vilma de Faria se deslocava para um bairro periférico de Natal, com todos os secretários, para ver de perto os problemas e debater com os moradores a melhor forma de resolvê-los. Através deste diálogo com a comunidade, construía o orçamento para o exercício seguinte. Como governadora, ampliou esta prática para todo o Rio Grande do Norte, sem discriminação política. ‘Nenhum município do Rio Grande do Norte ficará sem obras do governo na minha administração’, garante a governadora Vilma de Faria, que na primeira semana de março de 2004 estará comandando mais uma versão do Programa Governo nas Cidades, agora na região do Trairi, que terá como sede o município de Santa Cruz” (GOVERNO..., 2003, p. 01). 192 Escola”. Esta última, a experiência mais difundida no país, foi implantada pela administração petista de Cristóvão Buarque.78 Vilma de Faria apresentou a Natal a proposta de Bolsa Escola sob o nome de “Tributo à Criança”, como algo inédito, prometendo atender até o ano 2000, a 9 mil crianças. A população de Natal nesta faixa etária em 1996, era de 113.538 pessoas. Análises com base em dados do Censo Demográfico de 1991 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE informavam, na época, a existência de 13,2% de crianças na faixa etária de 07 a 14 anos fora da escola o que corresponderia a aproximadamente 14.987 crianças (RIO GRANDE DO NORTE..., 1996). O programa foi criado então por meio da Portaria 007, de 07 de abril de 1997, com o objetivo de promover a “inserção social das famílias de baixa renda incentivando financeiramente a sua adesão a programas de qualificação profissional e de geração de renda” (Art. 3º). Além disso, se propunha também trazer para o sistema formal de ensino as crianças que se encontravam fora da escola e proceder ao pagamento de um Salário Mínimo às famílias com renda per capita familiar mensal de meio Salário Mínimo que mantenham os filhos de 7 a 14 anos na escola, com freqüência escolar de 80%. Outra condição era de que pelo menos um adulto da família deveria participar de um programa municipal de formação profissional ou geração de renda (NATAL..., 1997). O órgão gestor do programa foi o Gabinete da Prefeita por meio de uma comissão executiva, de uma comissão local e de uma secretaria executiva, criadas para este fim. A comissão executiva era presidida pelo representante do Gabinete da prefeita e constituída por representantes da Secretaria de Educação, da Secretaria de Promoção Social, do Juizado da Infância e da Juventude, do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher e Minorias, do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, da Secretaria Municipal de Finanças e da Câmara Municipal de Natal. A comissão local era formada em cada bairro ou região administrativa atendida pelo programa, e deveria ser formada por um representante dos programas municipais existentes no bairro, um representante da SECRA e uma entidade comunitária. 78 Uma análise dos programas de transferência de renda em nível federal, assim como daqueles de iniciativa de governos estaduais e municipais desenvolvidos no Brasil é feita em SILVA; YAZBEK; GIOVANNI (2004). 193 Dentro deste programa, competia à Secretaria de Promoção Social as seguintes atribuições: I. Atender as famílias encaminhadas pela Comissão Executiva, enquanto órgão executor da política de qualificação profissional e de geração de renda. Cadastrar os desempregados e autônomos beneficiados pelo Tributo, para posterior encaminhamento aos programas de emprego e geração de rena. II. Acompanhar as famílias beneficiárias, no sentido de orientá-las para que possam sair da situação de exclusão em que se encontram; qualificando profissionalmente, associando, cooperativando enfim, abrindo caminhos para a geração de renda (NATAL..., 1997). A portaria define como beneficiários prioritários do programa: crianças de rua, crianças com entrada em Casas de Passagem, ocorrências do Juizado da Infância e do Adolescente, casos registrados pelo Conselho Municipal da Criança e do Adolescente, crianças e adolescentes com medidas sócio-educativas, com medidas de proteção social, desnutridas com acompanhamento da Secretaria Municipal de Saúde, dependentes de idosos ou de portadores de deficiência, ocorrências registradas no “SOS Criança”, crianças e adolescentes participantes do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, crianças atendidas pela delegacia do menor, pela Fundação Estadual da Criança e do Adolescente – FUNDAC e evadidos da rede municipal e estadual de ensino no ano de 1996. Além destas são consideradas prioritárias as famílias residentes nas regiões administrativas que concentram a parcela da população mais empobrecida da cidade. O programa começou em 1997, atendendo a 208 famílias e 679 crianças. Em 2000, o total de famílias atendidas era de 3.291 e 8.969 crianças. O investimento mensal do Município no programa, no início, foi de R$ 209.372,00 (ALMEIDA, 2001, p. 62). Em 2004 este investimento chegou a 400 mil reais, atendendo a 11.500 crianças cujas famílias recebiam até R$ 100,00 da seguinte forma: o programa paga uma bolsa de 50,00 para quem tem uma criança no mesmo, R$ 75,00 para quem tem duas e 100,00 para quem tem 3 ou mais crianças inscritas (NATAL..., 2004, p. 7). De acordo com os dados da pesquisa realizada por Silva; Yazbek e Giovanni (2004, p. 48-85), os valores pagos pelo programa Tributo à Criança em 194 Natal se aproxima do que se efetivava nas experiências de programas dessa natureza implementados em Santos (SP) e Ribeirão Preto (SP). No primeiro a transferência monetária chegava a R$ 100,00, no segundo até R$ 80,00. Em Campinas esta transferência chegava a R$ 385,00 no caso de famílias sem renda; e, em Brasília, era assegurado um Salário Mínimo a toda família carente, que mantivesse todos os filhos na escola. É importante lembrar que, em 1993, os dados do “Mapa da Fome” (RIO GRANDE DO NORTE..., 1993, p. 65) indicavam a existência de 40.500 famílias em situação de indigência em Natal e 10,5% dos chefes de família recebendo até meio salário mínimo. Em termos da faixa etária atendida pelo programa, outro estudo do IDEC (RIO GRANDE DO NORTE..., 1996) indicava 32.232 crianças na faixa etária de 07 a 14 anos vivendo em situação indigência em Natal. Diante disso, apesar de apresentado como uma política de prevenção e combate à marginalização, que garante renda mensal às “famílias humildes”, observa-se que o Programa é apenas mais uma ação pontual, destinada a atender aos mais miseráveis dentre os miseráveis. Não se constitui um programa que busque a redistribuição de renda, mas, orientado por uma perspectiva compensatória e que apenas atenua os efeitos da desigualdade social. Neste sentido, situa-se entre os programas que “parecem direcionar-se para a criação de um estrato de pobres situados num patamar de indigência ou de mera sobrevivência, com impactos duvidosos sobre a interrupção do ciclo vicioso de reprodução da pobreza” (SILVA; YAZBEK; GIOVANNI, 2004, p. 38). Outra ação importante e prioritária no projeto de governo de Vilma para Natal foi o Programa Sistema de Emprego e Renda - SER. Criado através do decreto n.º 6.006 de 06 de junho de 1997, tendo como lócus institucional a Secretaria Municipal de Promoção Social – SEMPS e a finalidade, conforme o referido decreto, “de promover a qualificação profissional e colocação no mercado, difundir a criação de micro e pequenas empresas, cooperativas, associações de produção e negócios no setor informal.” Nos seus objetivos, afirma-se o compromisso para com: “a redução dos níveis de pobreza e de exclusão social no município de Natal, através da programação de ações conjuntas que viabilizariam o fomento da economia local.” Para tanto, define como objetivos específicos: 195 1. Promover a qualificação e/ou aperfeiçoamento de adolescentes, jovens e adultos, de acordo com as exigências do mercado; 2. Proporcionar a interação entre os trabalhadores beneficiados e a população que demanda seus serviços; 3. Estimular a organização e a autogestão das pessoas qualificadas em grupos de produção de bens e prestação de serviços, na perspectiva associativista; 4. Qualificar e requalificar o funcionário público municipal, visando à eficácia dos serviços da administração municipal; 5. Fomentar a produção e a comercialização do artesanato como uma atividade economicamente viável, beneficiando artesãos individualizados ou engajados em grupos associativos; 6. Apoiar a organização de pequenas empresas do setor informal, fornecendo informações sobre novos negócios, treinamentos e oportunidades; 7. Assessorar na elaboração de projetos de viabilidade econômica, beneficiando micro-empresários e associações que necessitam de funcionamento. 8. Apoiar a instalação de unidades de produções comunitárias, propondo inclusive, a adoção de uma política governamental de compras; 9. Estabelecer parceria com bancos e agências de fomento, para obtenção de crédito subsidiado; e 10. Financiar o micro-empresário, associação e cooperativas populares em projetos de investimento e custeio (NATAL..., 1998c, p.11-12). Para a formulação deste programa a Prefeitura firmou uma parceria com o Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos - CEBELA79, a quem coube o estudo, levantamento e identificação de experiências na área de geração de emprego e renda no país e em nível internacional e a elaboração da proposta juntamente com técnicos da SEMPS. Os princípios que nortearam o programa, envolviam: vontade política, no sentido de que o programa era prioridade em termos de recursos e de máquina de governo; uma nova visão conceitual, ações integradas, humildade na formulação do programa, parcerias (com órgãos da prefeitura e com a sociedade); e capacidade de gestão, acompanhamento de outras experiências exitosas, indicadores de avaliação de resultados, planejamento de novas ações (SIQUEIRA, 1999, p. 102-104). Em termos da “nova visão conceitual” os formuladores ressaltam que o Programa SER inverteu a lógica dos programas de emprego e renda na qual é o cidadão que procura o crédito, a qualificação, a oportunidade de emprego. No programa estes “é que vão atrás do cidadão” através da figura do “Agente SER”, 79 Organismo ligado ao Partido Socialista Brasileiro – PSB. 196 que são pessoas das comunidades, selecionadas dentro de um perfil mínimo de qualificação e treinadas para “sair batendo de porta em porta perguntando: ‘o que você está fazendo em casa? Por que você não está trabalhando? Vamos lá! Nós vamos te ajudar. Vamos tirá-lo de casa, proporcionar a qualificação, um empréstimo...” (SIQUEIRA, 1999, p. 102). Estruturado a partir de uma ampla articulação institucional, este Programa contemplava: ações de pesquisa, de planejamento e de controle, de incentivo à criação de micro-empresas, cooperativas, associações, de qualificação profissional (com três casas de treinamento denominadas “Casa dos Ofícios” e dois “ônibus-escola”); micro-crédito (por meio das Agências do Cidadão) e apoio ao desenvolvimento do artesanato. Possui apoio financeiro do Banco do Nordeste do Brasil – BNB através do Programa de Fomento a Geração de Emprego e Renda - PROGER; do Programa de Aplicação dos Recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador – PROFAT; e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, através do Programa de Apoio a Micro e Pequena Empresa PNPE e do Programa trabalhador solidário. Conforme LOPES (2004, p. 04), com base na Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED, realizada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos - DIEESE, em novembro de 1999 a taxa de desemprego total em Natal era de 17,2%. Contudo, quando o desemprego é analisado considerando a População Economicamente Ativa - PEA por sexo e cor, observa-se que assim como acontece em outras capitais do país, o desemprego em Natal atinge mais as mulheres (19,1%) e as pessoas nãobrancas (18,6%). A maioria dos desempregados em Natal perdeu postos de trabalho no setor serviços (44%) e no comércio. Segundo dados do IBGE, em 2000 a PEA de Natal era de 318.820 pessoas, sendo 176.133 homens e 142.687 mulheres. A população em idade ativa, por sua vez era de 471.861 pessoas. Considerando a população ativa e mantido o índice de desemprego do ano anterior, o dado indica a existência de 81.160 pessoas desempregadas. Uma das principais ações do Programa SER era a qualificação profissional, com a oferta de cursos divididos em três modalidades: profissionais do lar e educação profissional; balcão do primeiro emprego; programa funcionário cidadão destinado a requalificar ou qualificar servidores públicos municipais. Na primeira modalidade, os cursos oferecidos eram: congelamento, auxiliar de 197 creche, acompanhamento de idosos, corte e costura, doces e salgados, camareira, depilador, cozinha, bolos, tortas e congelados, chocolate artesanal, habilidade culinária em alimentação alternativa, panificação profissional, computação, serigrafia, tecelagem, garção e barman, recepção automatizada, corte de cabelo, telefonista e datilografia informatizada. Na modalidade “balcão do primeiro emprego” o público prioritário eram adolescentes em situação de risco social e os cursos oferecidos eram os de datilografia, office boy, computação, serigrafia e cestaria. No caso da qualificação voltada para o servidor público eram oferecidos cursos de português básico e redação oficial, atendimento ao público e relações humanas no trabalho, noções de administração financeira, informática, administração de pessoal e cálculos trabalhistas, técnico de secretariado, segurança do trabalho e primeiros socorros, artesanato e alimentação alternativa. Observa-se que as ações de qualificação profissional desenvolvidas partem do pressuposto de que o trabalhador que se encontra fora do mercado de trabalho é o principal responsável pela sua condição de desempregado. Seja porque é preguiçoso, “O que você está fazendo em casa?”, seja porque precisa adquirir condições de “empregabilidade”, a qual tem três requisitos: competência profissional, disposição para aprender e capacidade de empreender. O desemprego, nesta perspectiva é causado pela inadequação da mão de obra às exigências de qualificação do mercado de trabalho. Diante disso, basta ofertar qualificação técnica. Contudo, a concepção de formação profissional, os tipos de cursos oferecidos e a baixa qualidade destes, apenas conseguem minorar a situação de alguns, frente a um problema que tem sua raiz no modelo de desenvolvimento econômico e no secular descaso com que historicamente foi tratada a educação em todos os níveis no Brasil. A ação do Programa SER em torno da qualificação profissional, neste sentido, não constituía nenhuma iniciativa inovadora. Inseria-se numa concepção de políticas de emprego e renda em andamento no país e num determinado padrão de qualificação profissional que integrava o Plano Nacional de Qualificação do governo federal, desenvolvido com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT. No caso do Rio Grande do Norte - RN, este plano era implementado através do SINE-RN (Sistema Nacional de Emprego) com base no Plano Estadual de Qualificação Profissional - PEQ-RN. A prefeitura de Natal 198 através da SEMTAS e da ATIVA, era uma das organizações executoras do PEQRN. Programas desta natureza se inserem, conforme Paul Singer (1999, p. 58), na lógica da gestão social neoliberal, a qual, ao lado da ênfase na expansão das matrículas escolares como prevenção ao desemprego, privilegia a realização de “cursos de reciclagem profissional, sobretudo para desempregados de baixa escolaridade. E, em vez de transferência de renda [...], os neoliberais preferem facilitar o crédito a pessoas sem trabalho que pretendem abrir um negócio.” Ao mesmo tempo, faz parte da ação dos neoliberais, no mundo do trabalho a transformação de direitos trabalhistas em itens contratuais. Por este caminho conquistas como o 13º salário, horas extras, férias subvencionadas por 1/3 do salário etc são renunciados pelos trabalhadores, em troca da manutenção dos seus empregos. Alia-se a isto a “legalização de formas precárias de emprego, como o trabalho temporário ou a demissão temporária (lay off) para incentivar as empresas a empregar mais ou desempregar menos” (SINGER, 1999, p. 58). Esta lógica neoliberal, presente no Programa SER, não pode ser omitida. Contudo, do ponto de vista da visibilidade das ações da Prefeitura de Natal, a qualificação, realizada pela ATIVA e em espaços criados para esta finalidade (as Casas dos Ofícios, instaladas nas quatro regiões administrativas da Cidade) tinham a vantagem de promover eventos de massa nos bairros, sobretudo em solenidades de entrega de certificados. O boletim de notícias da SEMTAS de novembro de 2001 (NATAL..., 2001c) informa a solenidade de entrega de certificados a 6 mil pessoas “formadas” em cursos de três meses (julho a setembro) promovidos pela ATIVA através de convênio com o SINE. Estes eventos, que contavam sempre com a presença da Prefeita e da Secretária Municipal de Assistência Social, Márcia Maia, eram momentos privilegiados do programa. Em termos de resultados quantitativos, em 2002, contabilizava-se a qualificação de 42.182 pessoas, a aprovação de 1.504 créditos nas Agências do 199 Cidadão,80 num valor total de mais de três milhões de reais financiados81 tendo gerado 5.564 empregos. Em termos da “parceria do emprego”, pela qual o programa intermediava o emprego ou estágio de trabalhadores qualificados em empresas privadas ou entidades públicas, os números anunciados eram de 205 empresas cadastradas, 6.324 pessoas cadastradas e uma empregabilidade de 1.802 pessoas. Além disso o Programa colocou 04 núcleos de produção (confecção (2), panificação e serigrafia) em bairros periféricos que atingiam 113 pessoas, com o incentivo à formação de cooperativas. Além disso é destacado o incentivo ao artesanato, sobretudo com a promoção de feiras de artesanato em regiões de grande circulação (Ponta do Morcego, Praça Padre João Maria e Redinha) (Natal..., 2002a). Contudo, na questão do financiamento a pequenos negócios o depoimento de alguns usuários do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI revela as limitações do Programa SER para atender as pessoas que não se encontram incluídas no mercado financeiro: [...] eu precisava de R$ 50,00 para botar um carro de cachorro quente. Aí fui procurar a agência do cidadão. Aí a moça perguntou: você trabalha? eu disse não. Sua renda? Eu disse nenhuma. Perguntou um monte de coisa e no final disse: minha filha, não dá. Eu digo: como é que a gente vai conseguir botar um negócio se a gente não tem uma renda fixa? Assim é impossível a gente sobreviver ou abrir um negócio pra gente.82 O que eu gostaria era assim, era ter um órgão que a gente chegasse e pudesse dizer: quero tanto para melhorar as nossas condições. Mas, não tem. [...]. Se tem, tem tanta burocracia, quer saber se tem casa, se não tem casa, se tem crédito no comércio, aí fica difícil. Qual é o pobre que pode dizer, eu tenho uma casa pra botar aqui na garantia?83 Mesmo estando sob a responsabilidade da Secretaria de Promoção Social, integrando as ações previstas no Plano Municipal de Assistência Social, o 80 As Agências do Cidadão eram quatro, uma em cada região administrativa. Os financiamentos a pequenos negócios eram feitos pelo Banco do Nordeste com valores que variavam entre um mínimo de R$ 400 reais e o máximo de 5 mil reais. Para pessoas jurídicas também havia uma linha de financiamento com um limite de crédito de até no máximo 11 mil reais. 81 O valor total financiado foi de R$ 3.724.754,40 (três milhões, setecentos e vinte e quatro mil, setecentos e cinqüenta e quatro reais e quarenta centavos) (NATAL..., 2002c). 82 Irma Alves de Paiva. Usuária do PETI. NAS Praia do Meio. Entrevista realizada em 30 de julho de 2004. 83 Armando Cláudio. Usuário do PETI. NAS Praia do Meio. Entrevista realizada em 30 de julho de 2004. 200 Conselho Municipal de Assistência Social apenas foi informado do programa. Para o Programa SER foi criada uma outra instância de “controle social”, o COMUT (Conselho Municipal do Trabalho, criado pelo Decreto 6.015 de 01 de julho de 1997) e o Fundo de Fomento Municipal, hoje Fundo Municipal de Desenvolvimento Econômico - FUMDEC. Ao COMUT, constituído por três representantes do poder público, três dos empregadores e três dos trabalhadores, competia acompanhar, avaliar e fiscalizar a política de geração de emprego e renda do Município de Natal. Contudo este foi muito mais uma formalidade. Conforme Almeida (2001, p. 81), este nem se quer realizava reuniões, configurando-se muito mais numa formalidade, em cumprimento a exigências do CODEFAT no financiamento de ações do Programa SER. Um outro aspecto da gestão municipal do período que merece destaque é a relação do Executivo com o Legislativo. Nos seus três mandatos esta relação foi caracterizada conforme depoimento do vereador Olegário Passos citado por Almeida (2001, p.90), pela “cultura do é dando que se recebe”. Enquanto o executivo assumia um discurso em defesa da cidadania, os vereadores, através das suas fundações, recebiam recursos públicos para realizar ações assistencialistas nos bairros periféricos e, com isto, manter o apoio popular ao seu nome, mas, sobretudo, a prefeita. Conforme o referido vereador, O que faz com que nós tenhamos a grande maioria dos vereadores aqui nessa casa votando tudo o que a Vilma manda? É por que os projetos dela são bons? É por que as propostas que ela apresenta para serem votadas nessa casa é melhor pra cidade? Não. Primeiro, nós temos o grande câncer na política local que são as fundações, a grande maioria delas mantidas pelo poder executivo com o dinheiro do povo para que os vereadores façam assistencialismo eleitoreiro com a miséria da população. Segundo, nós temos os cargos comissionados dentro da prefeitura, na sua grande maioria loteados pelos vereadores. Essas duas coisas eu posso falar sem ser leviano, tendo condições de comprovar, [...] mas infelizmente aqui na câmara eu posso afirmar que o que estabelece a maioria dela aqui nesta casa, transformando inclusive essa casa legislativa, o parlamento municipal num espaço cartorial de aprovação da vontade do executivo [...] é exatamente a cultura do é dando que se recebe, e essa cultura se expande até a classe empresarial, estabelecendo uma relação de clientelismo promíscuo do poder público com a iniciativa privada: os favores, as comissões, o assistencialismo... Lamento muito que seja assim, eu gostaria muito que a Vilma 201 pudesse estar fazendo uma administração em que ela tivesse maioria por apresentação de propostas exeqüíveis, eficientes, qualificadas, que fosse realmente uma liderança que acontecesse dentro de princípios éticos e morais (ALMEIDA 2001, p. 90). Outro vereador, Paulinho Freire, do Partido Socialista Brasileiro - PSB, Partido da Prefeita, entrevistado por Almeida (2001), explica como Vilma consegue fazer um governo voltado para a população: [...] um governo voltado para a população. Ela tem uma participação muito grande porque ela visita obras..., visita secretarias, cobra dos secretários, escuta a população, participa muito de reuniões, nos Centros Comunitários, Conselhos, Clubes de Mães, Centros Desportistas e está sempre em contato com as pessoas, escutando das pessoas quais os principais problemas que existem hoje na cidade de Natal. Então, eu acho que a gestão dela é uma gestão muito participativa, o povo tem muito acesso para participar e ela também trabalha escutando muito as comunidades. [...]. É o estilo de estar nas comunidades vendo o problema de perto, é o estilo de tentar resolver os problemas, e também a sua força de trabalho que é muito grande [...] e a prova disso tudo é até a aprovação que ela está tendo na sua administração (ALMEIDA, 2001, p. 92). Assim, ao mesmo tempo em que se vive um contexto de democratização no país, a descentralização e municipalização de muitas políticas sociais públicas, como são os casos da saúde, da educação e da assistência social, o crescimento de mecanismos de controle social, no âmbito da formulação e execução destas políticas, vive-se em Natal uma situação em que, por um lado, executam-se as determinações legais e, ao mesmo tempo, há um estilo de governar, que reproduz velhas práticas com uma nova roupagem. Este é o contexto político, do ponto de vista da administração municipal, no qual acontece a descentralização e municipalização da política de assistência social em Natal. Tal como proposto na LOAS, ela não é uma política prioritária nem na “sensibilidade social”, nem no projeto de governo da Prefeita. Assim como ocorre com outras políticas que a Constituição de 1988 assegurou o caráter de direito (como a saúde, a educação), a assistência social tende a ser implementada de modo a cumprir minimamente o que a legislação determina e muito mais como uma formalidade do que a efetivação real de direitos. Ao mesmo tempo são mantidas, com nova roupagem, formas tradicionais, conservadoras e 202 clientelistas de relação do poder público com a população; e, particularmente, com os usuários da assistência social. 4.3 A gestão municipal da assistência social em Natal: uma visão geral das ações realizadas após a municipalização Natal começou a assumir a gestão da política de assistência social a partir de 1995, com a criação do Conselho e do Fundo Municipal de Assistência Social pela Lei 4.657, de 26 de julho daquele ano, na gestão do então Prefeito Aldo Tinoco Filho. Contudo, até 1996 as ações ficaram mais no âmbito da institucionalização e da formalização do processo de municipalização da assistência social ou do cumprimento dos critérios definidos pelo Artigo 30 da LOAS.84 A concepção de assistência e a forma como esta política vinha sendo executada no município não se alterou. Manteve-se inclusive o paralelismo de ações entre a SEMPS e a ATIVA. A partir de 1997, teve início uma nova administração municipal, e o retorno de Vilma de Faria à prefeitura de Natal. Na formação do seu secretariado, a SEMPS foi confiada à sua filha, a socióloga Márcia Faria Maia Mendes.85 O paralelismo entre SEMPS e ATIVA foi uma das dificuldades que esta afirma ter encontrado ao assumir esta secretaria. Uma das dificuldades mais expressivas se deu, quando, após a gestão do Prefeito Aldo Tinôco, encontrou-se a ATIVA dentro do mesmo prédio onde funcionava a SEMPS. Foi constatado na ocasião, paralelismo de ações, indefinição da identidade da ATIVA enquanto ONG. De certa forma, no período, a SEMPS foi literalmente “esvaziada” na sua missão Institucional, transferindo a sua responsabilidade para a ONG ATIVA.86 Diante deste quadro, as primeiras iniciativas da nova gestão foram: 84 De acordo com o Artigo 30 da LOAS o Município deverá atender os seguintes critérios: 1) Comprovar a criação e funcionamento do Conselho e Fundo Municipal de Assistência Social; 2) Apresentar Lei Orçamentária e anexos que comprovassem a existência de recursos próprios no Fundo Municipal de Assistência Social, enquanto unidade orçamentária; 3) Apresentar o Plano Plurianual de Assistência Social devidamente aprovado pelo Conselho; 4) Apresentar parecer do Conselho sobre a capacidade técnica, política e administrativas do órgão gestor e as condições estruturais de modo geral para a gestão da política de assistência social. 85 Atualmente (2005) é secretária estadual de trabalho, habitação e assistência social do Governo do Estado do RN na gestão da sua mãe, Vilma de Faria. 86 Deputada Estadual Márcia Faria Maia Mendes, ex-Secretária Municipal de Assistência Social. Resposta por escrito ao roteiro de entrevista da presente pesquisa. Natal, dezembro de 2004. 203 a. a mudança na denominação do órgão gestor responsável pela coordenação e execução da política de assistência social que passou a se chamar Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social (SEMTAS), sendo então retirado do nome o termo “promoção social”. Este ato, conforme Márcia Maia refletiu “o propósito de dar visibilidade a Assistência como Política Pública, não mais como uma coisa residual, pontual, menor”.87 Mas não só. A mudança, incorporou o termo “trabalho” porque esta secretaria estava assumindo também a política de emprego e renda do município, cuja ação principal e praticamente a única era o Programa SER, um dos programas principais da nova administração, conforme já explicitado; b. a criação da Gerência Operacional da Descentralização da Assistência Social (GODAS) em 1998. À GODAS competiu operacionalizar a descentralização da assistência social em Natal, cuidando, sobretudo, da relação do órgão gestor com a rede de entidades conveniadas prestadoras dos serviços de assistência social e da gerência do Fundo Municipal de Assistência Social - FUMAS. Assim, foi somente em 1998 que o Município assumiu efetivamente a política de assistência social. Enquanto gestor, de acordo com a Política Nacional em vigor até 2004 e com a Norma Operacional Básica – NOB em vigor até julho de 2005,88 compete ao Município: a. coordenação geral do Sistema Municipal de Assistência Social; b. co-financiamento da Política de Assistência Social; c. formulação da Política Municipal de Assistência Social; d. organização e gestão da rede municipal de inclusão e proteção social, composta pela totalidade dos serviços, programas e projetos existentes em sua área de abrangência; e. execução dos benefícios eventuais, serviços assistenciais, programas e projetos de forma direta ou coordenação da execução realizada pelas entidades e organizações da sociedade civil; 87 Deputada Estadual Márcia Faria Maia Mendes, ex-Secretária Municipal de Assistência Social. Resposta por escrito ao roteiro de entrevista da presente pesquisa. Natal, dezembro de 2004. 88 Conforme já apresentado no item 4.1 deste capítulo, a NOB em vigor até julho de 2005 foi a aprovada pelo CNAS pela Resolução n. 207 de 16 de dezembro de 1998. Em julho de 2005 uma nova Norma Operacional Básica foi aprovada pelo CNAS. 204 f. definição da relação com as entidades prestadoras de serviços e dos instrumentos legais a serem utilizados; g. definição de padrões de qualidade e formas de acompanhamento e controle das ações de assistência social; h. articulação com outras políticas públicas de âmbito municipal, com vistas à inclusão dos destinatários da assistência social; i. supervisão, monitoramento e avaliação das ações de âmbito local; j. coordenação do Sistema Nacional de Informação, no seu âmbito de atuação; k. coordenação da elaboração de programas e projetos de assistência social no seu âmbito; l. acompanhamento e avaliação do Benefício de Prestação Continuada; m. elaboração do Relatório de Gestão; n. elaboração do Plano Municipal de Assistência Social; o. desenvolvimento de programa de qualificação de recursos humanos para a área de Assistência Social; p. controle e fiscalização dos serviços prestados por todas as entidades beneficentes na área da educação, da saúde e da assistência social, cujos recursos são oriundos das imunidades e renúncias fiscais por parte do governo, conforme Leis nos 8.812, de 24 de setembro de 1991, e 9.732, de 11 de dezembro de 1998 e suas regulamentações (BRASIL..., 1999b, p. 29-30). Uma das dificuldades deste processo, segundo Márcia Maia, foi receber a rede de entidades da LBA/SAS, “sem nenhuma orientação, capacitação, etc”. Estas contudo, “foram superadas no processo com muito zelo, com muita responsabilidade e competência”, afirma a entrevistada.89 A elaboração do Plano Municipal de Assistência Social foi outro passo fundamental. O mais importante deles, o de 1998, propôs a estruturação das ações em três eixos: a. programas, projetos e serviços de enfrentamento à pobreza e a miséria; b. programas, projetos e serviços de assistência social; c. programa e serviços de apoio às entidades e organizações comunitárias 89 Deputada Estadual Márcia Faria Maia Mendes, ex-Secretária Municipal de Assistência Social. Resposta por escrito ao roteiro de entrevista da presente pesquisa. Natal, dezembro de 2004. 205 No primeiro eixo aparecem as ações voltadas para o atendimento emergencial, os serviços de atenção à população de rua e o programa de incentivo à geração de renda (Programa SER). O segundo eixo contempla as ações voltadas para a criança de 0 a 06 anos, o adolescente de 7 a 14 anos e aos jovens de 14 a 18 anos; os programas e serviços de atenção a pessoa idosa; portadores de deficiência, o Benefício de Prestação Continuada - BPC e os benefícios eventuais. Os programas que têm como público alvo a criança envolvem desde a questão da creche, o combate à prostituição, infantil, a erradicação do trabalho infantil, casas abrigo, etc. O programa Tributo a Criança integra as proposições do Plano Municipal de Assistência mas, conforme apresentado anteriormente, é vinculado diretamente ao gabinete da prefeita. O terceiro eixo trata das atividades de assistência social junto às organizações e lideranças comunitárias através da assistência técnica, jurídica e financeira a tais entidades e o desenvolvimento de “projetos sócio-pedagógicos para suscitar novas lideranças comprometidas com as causas populares” (NATAL..., 1998a, p. 57). Atividades que eram efetivadas pelo Departamento de Assistência Social da SEMTAS, através do setor de apoio e assessoramento às entidades comunitárias. Um levantamento das ações desenvolvidas pela SEMTAS permite distinguir dois tipos de ações: a. aquelas que são de iniciativa do governo federal e executadas pelos municípios, seja na forma de serviços de ação continuada, seja na modalidade de programas ou projetos especiais com duração temporária; b. ações de iniciativa do Município, financiado por este, podendo também contar com parcerias governamentais ou com organizações da sociedade e do mercado. O quadro a seguir oferece uma visão geral das ações implementadas pela SEMTAS no período 1998-2004. 206 AÇÕES 1. Bolsa Família90 2. Benefício de Prestação Continuada (BPC)91 3. Programa de Atenção à Criança de 0 a 6 anos Creche 4. Atenção integral à criança e ao adolescente em abrigo – Casas de Passagem 5. Programa de Apoio à Pessoa Portadora de Deficiência92 6. Apoio à pessoa idosa Conviver 7. Apoio à pessoa idosa Asilar 8. Agente Jovem para o Desenvolvimento Humano/Centros de Juventude 9. Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) 10. Núcleos de ação social93 11. Combate ao abuso e exploração sexual – Projeto Sentinela/Casa Nova Infância 90 USUÁRIOS ATENDIDOS EM 2004 PERÍODO DE REALIZAÇÃO / DURAÇÃO 1998 1999 2000 2002 2003 2004 X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X 3.249 X X X X X X X 264 X X X X X X X X X X X X 24.497 6.358 X X X 12.907 X X 301 X 1.352 500 2001 2.878 X X X X X X X 274 X X X X X X X X X X X X 300 Até março de 2005 haviam 80.000 pessoas inscritas em Natal no Cadastro Único do Governo Federal. Deste total 51.801 pessoas recebiam algum tipo de transferência de renda: Bolsa Família (24.497), Auxílio Gás (15.538), Bolsa Escola (11.087), PETI (2.878), Agente Jovem (475), Bolsa Alimentação (59). Importante lembrar que desde 09 de janeiro de 2004, a Lei 10.836 criou o Programa Bolsa Família e unificou os procedimentos de gestão e execução da maioria destas ações de transferência de renda do Governo Federal. No momento da realização da coleta de dados desta pesquisa estavam sendo realizados procedimentos de recadastramento e migração de beneficiários de outros programas para o Bolsa Família pela equipe da SEMTAS responsável pelo Cadastro Único em Natal. 91 A SEMTAS não tem nenhum controle, nenhuma informação sobre o BPC no município. Tudo é feito pelo INSS sem qualquer acompanhamento do órgão gestor da assistência social. Deste total, 4.130 são usuários portadores de deficiência e 2.228 são idosos. 92 A SEMTAS não executa nenhuma ação junto a portadores de deficiência. Todas as ações são realizadas pela ATIVA e outras organizações da rede. 93 Estes Núcleos atendem também 2.878 crianças do PETI 274 e crianças vinculadas a outros programas do município, como o Tributo à Criança ou que não estão vinculadas a nenhum programa social e que são encaminhadas aos Núcleos por organizações de atenção à criança e ao adolescente como Conselhos Tutelares, SOS Criança etc, Inicialmente implantados apenas nos bairros de Cidade Nova e Conjunto Panatis, atualmente são um total de 13 distribuídos em 03 das 04 regiões administrativas da cidade (Norte, Leste e Oeste). Nestes espaços são desenvolvidas atividades esportivas, lúdicas e artísticas nos turnos matutinos e vespertinos com jornada de 04 horas. São freqüentados pelas crianças em horários opostos ao da escola. 207 1.500 12. Programa de Atenção Integral à Família (PAIF)/Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) 13. Projeto “Aprendendo na 50 X X X praça”94 1.100 X x x X X 14. Projeto Cidadão do Amanhã (em parceria com Exército, Marinha e Correios) 15. SOS Idoso 208 X X X 16. Construindo a cidadania 45 junto à terceira idade95 17. Canteiros da cidadania 1.227 X X X 18. Atendimento no Plantão 2.962 X X X X X Social96. 19. Dinamização dos 2.325 X X X X X Clubes de Mães 20. Programa Artesanato 1.470 X X X X X 21. Programa SER 10.402 X X X X X 22. Atendimento a 286 X X X X X gestantes e nutrizes 23. Programa de Sopa 19.495 X X X X X Comunitária 3.722 X X X x X 24. Combate à desnutrição (Cozinha Alternativa e recuperação de desnutridos)97 Total - pessoas atendidas em ações de assistência social - 97.694 X X x X x X X X X X X X X X X X X X X X X X Quadro 9 – Ações de assistência social em Natal-RN no período 1998-2004 – Duração das ações e população atendida em 2004. Fonte: SEMTAS (NATAL..., 1998b; 2000a; 2002b; 2004; 2005). 94 Este é na verdade mais um programa de transferência de renda que repassa bolsa de R$ 75,00 aos jovens participantes durante um período de 9 meses. 95 Programa criado recentemente e destinado a desenvolver ações de proteção e acolhimento a idosos em situação de risco social ou vivendo na rua. 96 O atendimento no plantão social é voltado para a concessão de auxílio funeral, auxílio natalidade, alimentação, medicamentos, passagens e registros de nascimento. É também responsável pela atenção ao migrante e à população de rua. O número de usuários atendidos corresponde ao total de pessoas que procuraram o plantão social e receberam algum tipo de auxílio. O total de atendimentos/ano no plantão social, na verdade, é superior a 10 mil pessoas, com uma média de 40 pessoas por dia. No período de janeiro a outubro de 2004, por exemplo, 9.304 pessoas procuraram o Plantão Social. Destes, 2.962 receberam algum tipo de auxílio e 6.342 foram encaminhados a outros serviços da SEMTAS e/ou outros órgãos públicos, ONGs etc. Não há qualquer registro dos atendimentos no plantão social da SEMTAS nos anos anteriores. 97 As ações: Apoio à Pessoa Idosa; Projeto Cidadão do Amanhã; Dinamização dos Clubes de Mães; Atendimento a Gestantes e Nutrizes; Programa de Sopa Comunitária e Combate à Desnutrição, são executadas pela ATIVA. 208 Além das ações descritas neste quadro, ocorreram também as denominadas de “Desenvolvimento Comunitário”, que consistiram em atendimentos técnico-jurídico e de apoio logístico a organizações comunitárias98 e em trabalho junto a 31 grupos de jovens na área de produção cultural, esporte e lazer. De um modo geral, as ações desenvolvidas atingem quase 100 mil pessoas nos Serviços de Atenção Continuada – SAC99 e em programas e projetos específicos, parte deles de iniciativa do município. O número de pessoas atendidas é ainda muito pequeno em relação à demanda real por assistência social existente na cidade. É preciso lembrar, por exemplo, que os indigentes de Natal somam 209.675 pessoas, segundo dados do Censo Demográfico do IBGE de 2000 e que a Natal dos pobres, nos termos de Mardone França (2004) corresponde a 50% da população total que é de mais de 700 mil habitantes. O Quadro 9 apresentado anteriormente revela que as ações de assistência social na Cidade não têm sofrido problemas de continuidade. Mesmo aquelas que não integram os chamados Serviços de Ação Continuada (rede SAC) têm uma presença relativamente contínua ao longo do período analisado. Contudo os serviços da chamada rede SAC, o BPC e o Bolsa Família concentram o maior número de usuários (55,80%). O restante, são usuários atendidos em ações de iniciativa do Município. Algumas destas, dificilmente podem ser compreendidas na concepção de assistência social proposta pela LOAS, dado o caráter assistencialista e/ou de atenção precária com que são implementadas. É o caso, por exemplo, das ações executadas pela ATIVA, como a Sopa Comunitária, a Dinamização dos Clubes de Mães, o trabalho junto aos Grupos de Idosos (este, integrante da rede SAC). 98 O Relatório de Gestão de 1998 (NATAL..., 1998b) registra o atendimento a 138 organizações comunitárias. Dados de 2002 divulgados pela Secretaria Especial de Meio Ambiente e Urbanismo - SEMURB (NATAL..., 2003) informam a existência de 365 organizações comunitárias em Natal incluindo aí Associações, Centros e Conselhos Comunitários, Clubes de Mães e Grupos de Idosos. A região da cidade que concentra o maior número destas organizações é a Norte, com 152; seguida pela região Leste, com 79 organizações. 99 A partir de 2004, pelo Decreto n.º 5085 de 19.05.2004, estes serviços, inicialmente reduzidos as ações herdadas da LBA e voltadas para o atendimento a crianças em creche e adolescentes, idosos e portadores de deficiência, tiveram uma nova definição. Em seu Artigo 1º o Decreto afirma: “São consideradas ações continuadas de assistência social aquelas financiadas pelo Fundo Nacional de Assistência Social que visem ao atendimento periódico e sucessivo à família, à criança, ao adolescente, à pessoa idosa e à portadora de deficiência, bem como as relacionadas com os programas de Erradicação do Trabalho Infantil, da Juventude e de Combate à Violência contra Crianças e Adolescentes.” 209 Assim como observa Boschetti (2003b, p. 88), para o nível nacional, no nível municipal os segmentos privilegiados são crianças e adolescentes, pessoas idosas e pessoas portadoras de deficiência e uma parcela minoritária de jovens. No caso dos jovens, a população de Natal na faixa etária de 10 a 29 anos no Censo Demográfico do IBGE de 2000, era de 281.701 pessoas. As ações voltadas para este segmento atingem 2.877 pessoas. Além disso, limitam-se a minorar a situação dos que se encontram em situação de maior vulnerabilidade. Com exceção do Programa Agente Jovem, não há ações capazes prevenir riscos e de oferecer resposta às necessidades juvenis, no sentido de melhoria da sua qualidade de vida e da sua inclusão social e política, nos processos decisórios da política de assistência social. A análise feita por Duarte (2004, p. 9-12), dos gastos com assistência social, no contexto do Orçamento Geral da Prefeitura Municipal de Natal para o ano de 2004 revela que estes chegam a 3,65% do total das despesas da Prefeitura. Conforme o autor, o orçamento da SEMTAS representa 3,78% do orçamento total do Poder Executivo e 4,25%¨do orçamento da Administração Direta. Percentual bem inferior ao de outras políticas públicas, como a saúde (37,06%) e a educação (18,39%). O autor lembra ainda que, em termos absolutos, o orçamento programado para a secretaria, em 2004 foi de R$ 21.643.000,00. Neste montante, o Fundo Municipal de Assistência Social – FUMAS foi responsável por 79,63%, tendo sido também a única unidade orçamentária da Secretaria a contar com recursos oriundos de fontes não pertencentes ao Tesouro Municipal. O Fundo Municipal de Desenvolvimento Econômico, responsável pelos recursos das ações do Programa SER participou neste montante com 6,94%. O restante, segundo Duarte, foi distribuído entre o Gabinete do Secretário (11,84%), o Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres e das Minorias (1,47%) e o Fundo Municipal de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (0,12%) (DUARTE, 2004, p. 12). No quadro a seguir, é apresentada uma síntese do financiamento das principais ações de assistência social desenvolvidas pelas SEMTAS. 210 AÇÕES 1. Programa de Atenção à Criança de 0 a 6 anos – Creche 2. Atenção integral à criança e ao adolescente em regime de abrigo – Casas de Passagem 3. Programa de Apoio à Pessoa Portadora de Deficiência 4. Apoio à pessoa idosa – Conviver/Asilar/Domiciliar 5. Agente Jovem para o Desenvolvimento Humano/Centros de Juventude 6. Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e Núcleos de Ação Social 7. Combate ao abuso e exploração sexual – Projeto Sentinela/Casa Nova Infância 8. Programa de Atenção Integral à Família - PAIF 9. Projeto “Aprendendo na praça” 10. SOS Idoso, Plantão Social e Construindo a Cidadania junto a terceira idade 11. Canteiros da cidadania – abordagem em canteiros 12. Programa Artesanato 13. Programa SER – todas as ações: qualificação profissional, agências do cidadão, parceria do emprego, fomento ao cooperativismo.100 14. Apoio a ações assistenciais Total GASTOS EM R$ União Município 1.373.351,00 1.216.443,86 113.226,00 158.488,44 514.643,92 231.924,81 358.223,24 6.000,00 6.305,00 19.863,21 587.338,46 424.102,39 103.200,00 50.203,48 57.300,00 20.329,00 37.750,00 146.443,00 54.209,00 10.522,00 418.406,28 4.200.000,00 3.339.207,43 4.829.580,28 Quadro 10 - Demonstrativo de gastos com recursos da união e do município no período de janeiro a outubro de 2004101 Fonte: SEMTAS - Relatório de Gestão de 2004 (NATAL..., 2004). O Quadro 10 não oferece uma visão do financiamento das ações da SEMTAS como um todo, mas das ações de assistência social constantes no plano municipal no período analisado e que estiveram em funcionamento em 2004. Os valores apresentados permitem observar a preponderância do Município no financiamento das ações da área, visto que os recursos investidos são superiores aos recebidos da União. Contudo, o maior volume de recursos oriundos do tesouro municipal recai sob uma ação denominada “apoio a ações assistenciais”. Esta, conforme Duarte (2004, p. 23), constitui 100 Em 2004, conforme informações obtidas junto ao DAT – Departamento de Ações para o trabalho, as ações realizadas incidiram preponderantemente na questão da qualificação profissional. 101 O quadro apresenta um demonstrativo dos recursos efetivamente gastos em 2004, e não inclui todas as ações da SEMTAS; o que exigiria, por exemplo, contemplar as atividades voltadas ao atendimento de mulheres vítimas de violência doméstica, a construção e melhoria habitacional, reurbanização de favelas. O quadro privilegia as ações de assistência social constantes no plano municipal, com uma relativa continuidade e presença no período analisado (1995-2004) e que foram desenvolvidas em 2004, conforme o relatório de gestão de 2004 (NATAL..., 2004). 211 uma rubrica de transferência de recursos da SEMTAS para a Associação de Atividades de Valorização Social – ATIVA, representando uma espécie de ‘terceirização’ das ações da SEMTAS, na busca por uma maior eficiência e rapidez nas suas ações cotidianas e de urgência, e para evitar o excesso de burocratização dos procedimentos (DUARTE, 2004, p. 23). Talvez essa transferência de recursos possibilite à SEMTAS alguma flexibilidade administrativa. Contudo, conforme já foi ressaltado neste trabalho, a presença da ATIVA, na gestão da política de assistência social em Natal, reforça não só uma gestão paralela e uma sobreposição das ações, mas também tem sido uma entidade que alimenta o assistencialismo, o clientelismo e o controle de parcela considerável dos pobres de Natal por aqueles que têm ocupado o Governo no Município. O quadro anteriormente exposto mostra ainda que os Programas de Creches e de Erradicação do Trabalho Infantil são os programas federais, que recebem maior contrapartida do orçamento municipal. Entre as ações de execução própria, a prioridade orçamentária recaiu em 2004 sobre o Plantão Social e o Programa SER. Outra observação que surge a partir do Quadro 10 é a de que as ações de assistência social mais consistentes e menos propensas ao assistencialismo são aquelas definidas no nível federal e implementadas pelo Município. Isto revela, como já foi ressaltado por Boschetti (2003b, p. 278) o papel ainda muito centralizador deste nível de governo, na definição das ações; o que fere “o princípio da descentralização e da autonomia dos poderes locais.” Entretanto, isto pode revelar também a incapacidade – em decorrência da própria história de como vem se dando a descentralização e municipalização – dos municípios, no sentido de exercer um papel mais propositivo na formulação de serviços, programas e projetos que atendam à realidade local. Diante disso, acabam se acomodando ao que é proposto pelo nível federal. Mas, a visão geral apresentada até aqui, em torno da trajetória da assistência social em Natal, apesar de permitir observar algumas tendências desta política social na cidade, precisa considerar a visão de alguns sujeitos diretamente envolvidos com a sua execução: usuários, gestores, técnicos, coordenadores de programas e serviços, conselheiros. Mesmo sinalizando a predominância de uma assistência social restrita, com práticas assistencialistas e 212 clientelistas, dividida entre o direito e a “cultura do atraso”, voltada para os mais vulneráveis, destinada a apenas minimizar os efeitos perversos da política econômica, concentradora de renda e riqueza, o que pode ser apreendido a partir da visão dos sujeitos diretamente envolvidos com ela, quanto à sua contribuição na formação, ou não, de uma cultura de direitos neste campo de política pública? É uma questão que se busca responder no capítulo a seguir. 213 CAPÍTULO 5 ASSISTÊNCIA SOCIAL EM NATAL: UMA POLÍTICA SOCIAL ENTRE O DIREITO E A “CULTURA DO ATRASO” A existência de uma cultura de direitos em determinada sociedade é insuficiente para a construção e consolidação de direitos. Mas, é uma contribuição importante nesta direção. No campo da assistência social, o predomínio de práticas que afirmem direitos sobre as que os negam e sobre práticas do que está-se denominando de “cultura do atraso” pode ser um passo importante em direção à sua afirmação como política pública. O direito, de um modo geral e em qualquer área de política pública, é algo muitas vezes conquistado legalmente, mas de difícil presença no cotidiano da vida daqueles aos quais se destina. No campo da assistência social, a efetivação de direitos tem como instrumento fundamental a LOAS, a partir da qual vem-se construindo um sistema descentralizado e participativo de decisão e controle social que, conforme Sposati (2004b, p. 40) “é particularidade brasileira para a gestão da assistência social.” Dentro do conjunto das determinações da LOAS e do que tem sido formulado para a gestão desta política, observa-se a existência de alguns elementos que, dependendo da direção tomada, da perspectiva adotada, podem, se não conformar uma cultura de direitos, mas, neutralizar o avanço ou a reprodução da “cultura do atraso”. Estes seriam: a. a concepção e conteúdo de assistência social presente nos instrumentos que orientam a ação (legislação, planos, programas, projetos) e entre os sujeitos diretamente envolvidos com esta política (gestores, técnicos, conselheiros, usuários); 214 b. a participação popular e o controle social; c. de quem é a primazia na condução da política no município; d. a percepção dos usuários sobre os serviços; e. a qualidade dos serviços oferecidos; f. se a política de assistência social é uma referência para os usuários frente às suas necessidades sociais; g. como é a organização e a gestão da política. Além do que já foi exposto até aqui, a pesquisa procurou apreender as práticas e a compreensão de gestores, usuários, conselheiros e técnicos, coordenadores de programas da política de assistência social em Natal, em torno destes elementos. O resultado não pode ser visto como uma palavra final sobre o assunto, mas acrescenta novos elementos ao complexo processo de implementação da assistência social no nível local, sobretudo, em cidades nas quais predomina, no campo dos movimentos populares, organizações comunitárias atreladas ao Estado e com práticas que reforçam o clientelismo e a troca de favores.102 5.1 A Concepção de assistência social entre os sujeitos envolvidos Compreende-se a assistência social na direção proposta pela LOAS: uma política social que, orientando-se por padrões de universalidade e justiça, e não de focalização, devolva a dignidade, a autonomia e a liberdade a pessoas que se encontram em situações de exclusão e abra possibilidades para que estas adquiram condições de existir enquanto cidadãs(os). Neste sentido ela pode ser 102 Esta constatação, contudo, não significa negar a presença de movimentos populares autônomos e com práticas libertárias, de resistência ao status quo em Natal. A Cidade possui um forte movimento sindical, com destaque para categorias como educadores, petroleiros, bancários, servidores públicos federais, comerciários, rodoviários, hoteleiros, vigilantes, entre outros. No âmbito do movimento popular, merecem destaque os movimentos juvenis diversos e de lutas de grupos específicos como negros, homossexuais, mulheres; além do movimento de direitos humanos etc. No movimento de bairro, no entanto, apesar da presença de grupos de oposição comunitária em alguns bairros e de movimentos espontâneos em torno de problemáticas específicas de um bairro ou localidade, predominam as organizações (Conselhos Comunitários, Grupos de Idosos, Clubes de Mães) que privilegiam a relação de favor e de amizade com lideranças políticas (vereadores, deputados e com o executivo municipal), assim como o bom trânsito nas instituições públicas, como forma de conseguir o atendimento às necessidades coletivas. 215 uma política social que contribui para a inclusão social103 e para a incorporação de uma cultura de direitos pela sociedade civil. A presente reflexão opta por este caminho da inclusão social e recusa a idéia de que o horizonte possível, na ordem burguesa atual, seja a adoção de políticas sociais que resultem em padrões aceitáveis de pobreza. Esta compreensão de assistência social, apesar de presente nos documentos oficiais, nos discursos dos gestores e na maioria dos instrumentos de formulação desta política, em Natal, não é a predominante entre os sujeitos envolvidos com ela, entrevistados nesta pesquisa (gestores, usuários, técnicos, conselheiros). Assim, por exemplo, um exame do Plano Municipal de Assistência Social de 1998 permite perceber nele a proposta de uma política de assistência coerente com o que determina a LOAS. Neste sentido, o referido plano adota, por exemplo, os princípios e diretrizes estabelecidos pela legislação da política de assistência social, bem como pela legislação das políticas relacionadas à assistência, como: a do idoso, a da criança e do adolescente e a dos portadores de deficiência. Neste sentido, aparece no plano, o compromisso com a qualidade dos serviços, programas e projetos, compromisso com a ampliação da rede e com o desenvolvimento de ações voltadas para a criança e o adolescente, o idoso, a pessoa com deficiência, a família e os grupos excluídos ou em processo de vulnerabilidade econômica e social. Contudo, questiona-se: qual a concepção de assistência social assumida pelos sujeitos envolvidos na implementação desta política pública em Natal? Em que medida, a concepção de assistência social explicitada no Plano se efetiva no cotidiano da execução desta política? Um dos sujeitos com papel fundamental na realização da assistência social na perspectiva do direito, são os gestores. Para tanto, é preciso que compreendam a assistência social na perspectiva definida na LOAS e tenham 103 A noção de “inclusão social” tem estado muito presente nas formulações da esquerda, acerca das políticas sociais. Contudo, há muitas imprecisões no sentido de qualificar do que se trata. Uma contribuição importante neste sentido, até o presente, é a da professora Aldaíza Sposati, na Pesquisa “O Mapa da Exclusão/Inclusão Social na cidade de São Paulo”. Conforme a autora, a pesquisa partiu de quatro grandes campos ou utopias para construir a idéia de inclusão: autonomia, qualidade de vida, desenvolvimento humano e eqüidade. A noção de inclusão social no referido estudo, parte de uma concepção de máximos sociais para configurar o que seria o conjunto de necessidades gerais de um incluído (Sposati, 1997, p. 31). A afirmação, neste trabalho, de que a política de assistência social pode contribuir para a inclusão social, adota esta concepção formulada por Aldaíza Sposati. 216 vontade política para fazer rupturas: recusar a assistência social como “governo paralelo da pobreza” e com as formas discriminatórias na relação com os usuários; romper com as práticas do favor e do clientelismo, com a baixa qualidade dos serviços; e se comprometer com a implantação de uma política de assistência social voltada para a recuperação do papel do Estado enquanto regulador, provedor, financiador e gestor de serviços sócio-assistenciais. Natal não tem contado com gestores da assistência social com este perfil. Desde o início da municipalização desta política pública passaram pela SEMTAS seis gestores, conforme o quadro a seguir: SECRETÁRIO (A) Zélia Maria de Medeiros Tinoco Márcia Faria Maia Mendes Professor Onilson Rodrigues de Oliveira Vivaldo Costa Márcia Faria Maia Mendes Maria das Graças Fernandes Mota Andréa Ramalho Pereira de Araújo Alves PERÍODO DE GESTÃO 1995-1997 JAN 1997 a ABR 1998 ABR 1998 a ABR 1999 ABR 1999 a JUL 1999 JUL 1999 a MAR 2001 MAR 2001 a JAN 2003 JAN 2003 aos dias atuais Quadro 11 – Secretários(as) Municipais de Assistência Social em Natal no período 1995-2004 Fonte: Atas das reuniões do CMAS (CONSELHO..., 2004) Relatórios de Gestão da SEMTAS (NATAL..., 1995d; 1998b; 2000b; 2001a; 2002b; 2004a) Apesar da relativa rotatividade de secretários, visualizada numa primeira observação, e que poderia sinalizar para problemas de descontinuidade das ações, isto, contudo, não ocorreu. Uma das razões é a permanência do mesmo grupo político no poder. Além disso, um dos secretários(as) do período analisado esteve à frente desta secretaria de 1997 até 2001: Márcia Faria Maia Mendes. Apesar de ter permanecido no cargo em dois momentos diferentes durante este período, foi quem nele esteve por mais tempo: 2 anos e 11 meses. Os demais secretários(as) permaneceram no cargo por menos de 2 anos, com exceção de Zélia Maria Tinoco, que havia assumido a SEMPS em 1993 e, na realidade permaneceu no cargo por 4 anos (1993-1997), durante todo o mandato do seu marido, o Prefeito Aldo Tinoco Filho. Márcia Maia esteve afastada da SEMTAS apenas em períodos que antecederam momentos eleitorais, quando foi candidata a Deputada Estadual, ou 217 em momentos em que necessitou assumir por algum tempo o seu mandato no Legislativo Estadual; inclusive para justificar, junto ao eleitorado, o mandato recebido e a sua candidatura à reeleição. Nestas ocasiões, a SEMTAS foi assumida por pessoas do grupo político de Vilma de Faria, com um perfil mais técnico. A partir de janeiro de 2003, quando Vilma de Faria assumiu o Governo do Estado, Márcia Maia passou a ser a Secretária Estadual de Trabalho e Assistência Social. Com o início da administração do Prefeito Carlos Eduardo Alves (2003), a SEMTAS passou a ser assumida por Andréa Ramalho Alves, psicóloga e primeira dama. Para Márcia Maia, a assistência social é uma política pública, um direito do cidadão: É uma Política Pública específica, em construção e sua identidade se faz de modo articulado com outras Políticas Públicas; é uma Política de proteção social, que se efetiva nos campos da prevenção e da proteção; é uma busca de superação de situações onde o usuário ainda é considerado como ‘assistido’, para situações onde o usuário deve ser considerado como sujeito de Direitos; é uma conquista no campo dos Direitos Sociais – Direitos do Cidadão, dever do Estado104. Para a gestora atual da assistência social em Natal, Andréa Ramalho, a assistência social também é compreendida na perspectiva do direito, uma política cuja principal tarefa é reverter o atual processo de exclusão social, garantindo mínimos sociais. Contudo afirma a necessidade de que esta política tenha mais visibilidade, pois ainda carrega a marca do “primeiro-damismo”, do assistencialismo: Pra mim, assistência social é uma política pública, que eu vejo com pouca visibilidade. Que poderia ter um alcance maior. Mas, acho que passa por uma questão cultural do que era a ação social há alguns anos, como começou com as Santas Casas de Misericórdia, aquela coisa das primeiras damas, aquela coisa do assistencialismo, da alienação.... um processo de cristalização na sociedade e muitas organizações se acomodaram. Então eu entendo como uma política pública que precisa ter mais visibilidade, uma política pública com o objetivo principal de reverter esse processo de exclusão, garantindo essas condições de cidadania, esses mínimos aí que atendam verdadeiramente a 104 Deputada Estadual Márcia Faria Maia Mendes, ex-Secretária Municipal de Assistência Social. Resposta por escrito ao roteiro de entrevista da presente pesquisa. Natal, dezembro de 2004. 218 essa condição de dignidade, para que o cidadão possa ser sujeito das suas ações e possa ser cidadão no sentido da palavra cidadão. Eu entendo dessa forma, mas acho que ainda falta muito trabalho pra chegar a isso105. Com isso, Andréa Ramalho se coloca rompendo com a tradição do “primeiro-damismo” e todas as distorções que esta posição implicou historicamente. Para ela, não é a condição de primeira-dama que lhe assegura um lugar no primeiro escalão da equipe do Prefeito Carlos Eduardo, mas a sua formação na área das ciências humanas e sua afinidade com as questões relacionadas ao social e à política de assistência social. A pesquisa entrevistou também 30 usuários da assistência social em Natal vinculados a três ações (Programa de Atenção a Idosos/Conviver, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI e usuários que procuram o Plantão Social). Entre estes, houve uma parcela significativa, em torno de 30%, que não souberam ou não quiseram expressar o que entendiam por assistência social. Outros 30% a identificam com o trabalho desenvolvido por assistentes sociais: “pessoa que presta uma assistência mesmo, a quem precisar”106; é a quem recorre em busca de “uma orientação, porque conhece mais e fica mais fácil pra gente ajudar os outros”107; ou então “[...] assistente social resolve muita coisa. Até um problema um pouco difícil, mas pelo conhecimento da assistente social, a pessoa resolve. Eu preciso de muita orientação da assistente social. As vezes é difícil arranjar as coisas e tendo a assistente social [...].” 108 O assistente social aparece às vezes como o único caminho para ter acesso a um direito: “Você tem um direito a isso ou aquilo. Se você falar com A, B ou C não vai conseguir. Só com a assistente social.”109 Para os demais, a assistência social é relacionada a ajuda, assistir os necessitados, atender as necessidades. Uma outra entrevistada afirma: “assistência social é pra esse tipo de coisa não é? Ver a necessidade e ver o que 105 Andréa Ramalho Pereira Alves. Atual Secretária Municipal de Assistência Social de Natal. Entrevista realizada em 22 de dezembro de 2004. 106 Senhora Maria José. Coordenadora do Grupo de Idosos, “Encontro de Irmãos”, no bairro Quintas. Entrevista realizada aos 23 de julho de 2004 107 Senhora Francisca. Coordenadora do Grupo de Idosos, “N. Sra. Da Apresentação”, no Loteamento Vale Dourado. Entrevista realizada aos 14 de junho de 2004. 108 Maria de Lourdes Silva dos Santos. Usuária do Núcleo de Ação Social da Zona Norte. Entrevista realizada aos 29 de julho de 2004. 109 Sabrina dos Santos. Usuária da Casa Nova Infância. Entrevista realizada aos 29 de julho de 2004. 219 pode ajudar não é?110 Já para alguns coordenadores de Grupos de Idosos “é assistir as pessoas necessitadas e dá o máximo que a gente poder dar”;111 ou ainda, “é assistir àquele que está precisando de alguma coisa. Principalmente aquele idoso carente [...]. Quando a gente promove a ação cidadão, a gente está desenvolvendo um trabalho de assistência social.” 112 Os trabalhadores da assistência social são, em tese, os principais aliados desta política no sentido de torná-la um direito. Sendo os responsáveis por sua formulação e execução, estas pessoas podem ser também educadoras dos usuários e da sociedade como um todo, no sentido de construir a assistência social segundo os princípios e diretrizes da LOAS. Contudo, em Natal, para 42,8% dos coordenadores de programa e técnicos responsáveis pela execução, entrevistados nesta pesquisa, a noção de assistência social é predominantemente promoção social ou ajuda social enquanto expressão de uma certa solidariedade para com os mais carentes. Algumas vezes, isso é dito com todas as letras; em outras, essa noção de assistência vem dentro de um discurso em defesa da inclusão social. Um processo de inclusão que passa necessariamente por um processo de resgate, de promoção, de qualificação, para gerar a inclusão e daí autonomia. Eu não concebo a assistência social como um eterno vir a ser, a você sempre não tendo e você sempre alimentando aquela pessoa. Eu entendo como você tirar aquela pessoa do estado em que ela se encontra, alimentá-la, sustentá-la, dar condições, para que ela seja promovida a um outro estágio. Então tem uma porta de entrada e uma porta de saída113. Quando a gente ouve esse termo a gente pensa logo nas pessoas mais carentes. Mas na verdade, a assistência social não se restringe apenas a essa parte da população que é carente, ela engloba outros aspectos, a questão da cidadania, que muitas vezes ela não é trabalhada e disso decorre uma série de outros problemas. Então a gente imagina que seja assim, algo que venha 110 Maria de Jesus. Usuária do Plantão Social da SEMTAS. Entrevista realizada aos 06 de agosto de 2004. 111 Senhora Terezinha. Coordenadora do Grupo de Idosos, “Vivendo Feliz na Terceira Idade”, no bairro de Felipe Camarão. Entrevista realizada aos 15 de junho de 2004. 112 Carlos Magno. Coordenador do Grupo Inaraí. Centro da Cidade. Entrevista concedida aos 30 de agosto de 2004. A “Ação Cidadã” consiste no evento de um dia, promovido pelo Grupo Inaraí, juntamente com outras organizações que trabalham com idosos tais como: MEIOS, ATIVA, etc. É realizado uma vez por mês nas dependências do Serviço Social do Transporte – SEST / Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte – SENAT, reunindo Grupos de Idosos de toda a cidade para atividades de lazer e prestação de serviços na área da saúde, higiene e limpeza etc. 113 Telma Indhira Caldas Targino. Coordenadora do Programa de Atenção ao Idoso na ATIVA. Presidente do Conselho Municipal do Idoso. Entrevista realizada aos 25 de maio de 2004. 220 facilitar ou melhorar a qualidade de vida das comunidades mais carentes, mas, eu acredito que exista uma coisa mais profunda nesse termo114. A gente contribuir da melhor forma com essas famílias que vivem em situação de pobreza para uma melhoria de vida pra elas115. Os demais (57,2%) apresentam uma concepção de assistência social como direito do cidadão e como política pública. Mas para alguns, sem muita profundidade: “é política, pública, de serviços à população. Deveria prestar serviços de qualidade”;116 ou, sem um conhecimento da LOAS: Em primeiro lugar é preciso dizer: eu nunca trabalhei nessa área. Comecei em 2003. A minha maior preocupação era com a confusão que se faz entre política de assistência social e assistencialismo. Ainda não domino a LOAS, mas, a idéia que eu tenho de assistência social é a idéia de uma coisa bem mais ampla do que hoje se trabalha. É você ter políticas que você possa fazer com que a população, o povo de uma maneira geral e de modo especial o mais carente, ele tenha acesso aos serviços públicos, aos bens que o poder público deve oferecer, não como uma esmola, mas como um direito117. Entre os coordenadores de Programas ou de Departamentos que foram entrevistados, apenas uma coordenadora apresentou um conhecimento mais consistente da política de assistência social, ressaltando a difícil tarefa de efetivação de direitos no atendimento às necessidades dos usuários, na própria forma como a assistência social é compreendida no interior do órgão gestor, na busca por definir o que é específico da assistência social: Eu compreendo a assistência social como um direito. Mas, isso é uma visão que a gente está tentando implementar agora. Historicamente ela foi vista como favor, como benesse, como dádiva. Isso é muito comum. As pessoas chegam aqui pedindo pelo amor de Deus, se humilhando muitas vezes. Quando a gente inicia um trabalho de orientação eles ficam até surpresos. Acham 114 Lucila Dantas. Coordenadora do Núcleo de Ação Social da Estação do Futuro, no bairro de Cidade da Esperança. Entrevista realizada aos 07 de julho de 2004. 115 Cleide Gomes Barbosa. Assistente Social, coordenadora do NAS Maruim. Entrevista realizada aos 12 de julho de 2004. 116 Andréa Cavalcante. Assistente Social do Departamento de Assistência Social – DAS e do Plantão Social da SEMTAS. Entrevista realizada aos 04 de agosto de 2004. 117 Sandro Sergio Trigueiro da Costa. Teólogo. Coordenador do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. Entrevista realizada aos 01 de junho de 2004. 221 que a gente vai fazer um favor. Nunca o usuário chega aqui solicitando algo enquanto um direito. Na questão do idoso por exemplo, ele é discriminado, ele tem direito ao BPC, mas ele não tem conhecimento do Estatuto do Idoso, a família não tem conhecimento do Estatuto, não sabe o que fazer para receber este benefício. Então, aqui no DAS nós estamos fazendo esse trabalho de orientação. Estamos fazendo um levantamento de todos os serviços existentes na cidade de Natal. Não só na SEMTAS, mas todos os serviços existentes que possa atender a esse público que procura o DAS [...]. Entre os conselheiros do CMAS, a realidade não é diferente. Foram entrevistados três conselheiros da sociedade civil: duas assistentes sociais, representantes de entidades de usuários vinculadas à rede de prestadores de assistência social; e uma conselheira, efetivamente usuária e representante de uma organização de usuários no CMAS. Para todas, a idéia principal é a de ajuda aos mais carentes. Mas ressaltam a importância da qualidade dos serviços e da eficácia das ações, no sentido de produzir mudanças na vida dos usuários: Você fala assim como... a gente aqui na casa a gente trabalha muito isso. Tem uma entrega de cesta básica que a gente faz mensal. E aí a gente vai só entregar por entregar? Não. A gente entrega estas cestas porque entende que não adianta essas crianças virem pra cá, comer do bom e do melhor e quando chegam em casa não têm o que comer. Então a gente faz um trabalho educativo com essas mães, faz oficina. A gente aproveita esse espaço da entrega para fazer isso. A gente também tem o projeto vida que destina-se a visitar a família e ver o que precisa ser trabalhado naquela casa118. Para mim é prestação de serviços a comunidade, principalmente a comunidade mais carente. Prestar um serviço de qualidade, eficiente e eficaz119. Eu acho que o programa de desenvolvimento da assistência é quando você oferece alguma coisa que você tem um retorno.... é aquilo, se aquele programa for oferecido você vê se realmente a ação que foi desenvolvida ele gerou algum fruto. Não sei se você está me entendo... Eu chego na sociedade dos cegos. Eu ofereço uma ação pra qualificar aquelas pessoas numa determinada profissão. Quando eu termino, eu tenho capacidade de medir se aquelas pessoas realmente cresceram, tanto individualmente, como profissionalmente, como também.....então eu acho que 118 Telma Maria do Nascimento. Assistente Social da Casa de Apoio à Criança com Câncer. Conselheira do CMAS (2002-2004). Entrevista realizada a 01 de julho de 2004. 119 Concília Maria Araújo de Brito. Assistente Social. Diretora do Centro SUVAG. Conselheira do CMAS (2002-2004). Entrevista realizada aos 06 de julho de 2004. 222 houve assistência se você pode medir o resultado, seja no intelectual, no profissional.120 Assim, assistência social como política pública de seguridade social e direito do cidadão parece algo muito mais do campo do discurso e de documentos, e pouco conhecida, assumida e defendida por gestores, técnicos, usuários, conselheiros pesquisados. Ainda é muito presente na noção de assistência dos sujeitos pesquisados, a assistência enquanto ajuda, benevolência, solidariedade da sociedade ou do Estado para com os necessitados, um pronto socorro social. A este respeito, o Relatório de Gestão de 2004 (NATAL..., 2004a) e o Relatório da Oficina de Planejamento Estratégico da SEMTAS (NATAL..., 2005) ressaltam como uma das dificuldades encontradas na gestão da assistência social a “imprecisão na concepção de assistência social” e o desconhecimento, por parte dos técnicos, das políticas públicas de um modo geral e da política de assistência social em particular, quanto aos aspectos técnicos, administrativos e de apoio. Diante disso, conforme Falcão (1989, p. 123), o risco de continuar sendo “prato cheio ao casuísmo e fisiologismo político” não é pequeno. Ao mesmo tempo, tal forma de concebê-la a mantêm-na como uma política “opaca, sem visibilidade, sem identidade, sem direção clara, germinando e proliferando uma caótica rede de instituições públicas produtoras de assistência e serviço social que se apresentam marginais.” 5.2 Democratização da gestão, participação popular e controle social Desde os anos de 1990, estes temas têm ocupado o debate em torno das políticas públicas no Brasil; e, de modo particular, na assistência social. Contudo, se para os movimentos sociais e para o conjunto das forças democráticopopulares, eles podem significar o rompimento com uma tradição marcada por decisões centralizadas no nível federal e por uma completa ausência de controle 120 Ivoneide Damasceno Ribeiro. Sociedade dos Cegos do RN (SOCERN). Conselheira do CMAS (2002-2004). Entrevista realizada aos 06 de julho de 2004. 223 popular sobre as ações do poder público; para os dominantes, podem ter outro significado: servir a implementação de políticas de corte neoliberal e de construção do chamado “Estado mínimo” e referendo para práticas autoritárias, clientelistas, fisiologistas etc. Diante disso, considera-se que uma gestão participativa depende, em grande parte, da vontade política do executivo e do projeto político dos que ocupam o governo. Em administrações democrático-populares, a democratização do poder normalmente integra o projeto político do governante. Se no município existe uma tradição organizativa da sociedade civil, sobretudo, com movimentos sociais populares fortes, com organização de fóruns de debate em torno dos problemas que afetam a população e organizações não-governamentais movimentalistas e comprometidas com os movimentos populares, a construção de uma gestão participativa que aponte para uma nova relação Estado/Sociedade resulta da articulação entre a vontade política do governante com a dinâmica organizativa da sociedade civil; tendo, portanto, maiores possibilidades de se realizar. Entretanto, levando em conta a cultura política autoritária e as práticas clientelistas e fisiológicas, que sempre marcaram as relações entre os ocupantes do poder com parcela considerável da sociedade no Brasil, tais experiências ainda são algo extraordinário no conjunto dos municípios brasileiros. Isto exige que governantes abertos à participação popular sejam incentivadores da mobilização da sociedade. Neste sentido, configura-se aquilo que Soares (1996, p. 36) denomina de “participação induzida”.121 Uma das diretrizes da LOAS quanto à organização da política de assistência social é a “participação da população, por meio de organizações representantivas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis” (Art. 5º/II) (BRASIL..., 2004a). Na organização e na gestão do sistema descentralizado e participativo de assistência social, a referida lei cria instâncias 121 A expressão “participação induzida”, é utilizada por Arlindo Soares para caracterizar os processos participativos que possuem um caráter pedagógico e que, neste sentido, permitem uma efetiva participação da população nas decisões de políticas públicas. Tratando da experiência de orçamento participativo por exemplo, ele ressalta que esta “não implica a existência de uma ampla participação em todas as cidades, nem mesmo um processo alimentado por uma cultura associativa forte. Significa, fundamentalmente, um apelo pedagógico para a organização da população, como também um direcionamento para balizar e pressionar o funcionamento da máquina administrativa. Neste sentido, o processo é ao mesmo tempo pedagógico e instrumental para a população e para a administração” (SOARES, 1996, p. 268). 224 deliberativas, de caráter permanente e composição paritária entre governo e sociedade civil, que são os conselhos. Concretamente, os instrumentos fundamentais da participação da população na formulação da política são os conselhos e as conferências em todos os níveis de governo. Esta última ocorre a cada dois anos e tem o papel de avaliar a política e propor diretrizes para o seu aperfeiçoamento. Conselhos e conferências fazem parte atualmente do cotidiano da organização e da gestão de muitas políticas públicas e estão presentes em pelo menos duas, das três políticas que constituem a seguridade social: na saúde e na assistência social. Na Previdência, não se conseguiu, até hoje, construir os mesmos espaços de participação e de controle social. No atual processo de descentralização e municipalização das políticas sociais públicas no Brasil, a existência do Conselho aparece como uma das condições para que os municípios recebam recursos dos governos federal ou estadual. Desta forma, uma parcela considerável de municípios do país, tem criado Conselhos Municipais. Destacam-se neste sentido, os que são criados no âmbito daquelas políticas públicas nas quais se registram maiores avanços em termos de leis complementares, em decorrência da mobilização da sociedade civil, ocorrida nestas áreas. São os casos da saúde, da assistência social, da criança e adolescente. Entretanto, a renovação legal e institucional no processo de formulação e implementação de políticas públicas, não tem sido acompanhada pela renovação das práticas políticas e da efetiva democratização da gestão. Por outro lado, constata-se a existência de uma sociedade civil pouco mobilizada, na qual nem mesmo os setores organizados parecem reconhecer a importância dos Conselhos enquanto mecanismo de controle social. No âmbito da assistência social, essa questão parece muito presente. Romper com a “cultura do atraso” e construir uma cultura da participação, do direito e do controle social, ainda é algo que não se efetivou. Isto supõe consolidar uma esfera pública que, conforme Raichelis (1998, p. 40-41), possui elementos constitutivos sem os quais ela não existe: visibilidade social, controle social, representação de interesses coletivos, democratização e cultura pública. Para tanto, é preciso que as diferentes forças presentes na gestão da política, sobretudo, a sociedade civil, os usuários, se expressem e lhes sejam 225 oferecidas condições para este fim. Isso implica o conhecimento e a capacidade técnica e política dos sujeitos para tomar decisões; o acesso à informação sobre recursos; o planejamento das ações; e a capacidade decisória dos organismos de controle social. Ao lado disso, é preciso contar com a vontade política do governante para implementar as decisões tomadas nos espaços de controle social. A pesquisa procurou identificar como se apresenta em Natal, a questão da democratização da gestão, da participação popular e do controle social, na política de assistência social, a partir de entrevistas com conselheiros, gestores, técnicos e coordenadores de programas e com usuários, sobre o funcionamento do CMAS, o envolvimento destes no processo de formulação da política e a relação do órgão gestor com o CMAS122. O CMAS começou a funcionar em outubro de 1995. É um conselho que, teoricamente, funciona: realiza reuniões mensais, o que pode ser comprovado na consulta às suas atas; possui uma certa estrutura física e técnica de funcionamento (uma sala no interior da SEMTAS, duas funcionárias, computadores ligados à Internet; apoio do órgão gestor na questão de transporte para deslocamento de conselheiros quando há necessidade; acesso controlado, com reduzida cota de cópias junto ao setor de reprografia do órgão gestor). Mas é um Conselho que trava com a SEMTAS uma luta de anos, pela definição de recursos para o seu funcionamento, dentro do orçamento da secretaria. Em 2004, o Conselho conseguiu incluir isso no orçamento, mas conforme o relato a seguir o recurso não havia sido disponibilizado.123 Com freqüência, há, por exemplo, dificuldades de seus membros em participar de eventos nacionais ou regionais, pela inexistência de recursos do Conselho. Tais dificuldades são explicitadas no seguinte relato: Teve o orçamento de 30 mil que não veio. Sinceramente eu não ouvi dizer que chegou. Mas, como ele funciona dentro da SEMTAS, tem computador, telefone, tem toda uma organização, os carros são da SEMTAS, a gente precisando tem o carro. Essa assistência dentro do conselho não falta. Mas, por exemplo, teve um encontro em Fortaleza. Não tinha como, uma pessoa que não fosse da ATIVA ou da SEMTAS participar, não podia ter diárias e 122 Contribui também nesta análise a experiência da pesquisadora como conselheira do CMASNatal, no período entre 2000-2001 e como pesquisadora do tema em OLIVEIRA (1999). 123 Dados da execução orçamentária da SEMTAS em 2004 informam a existência de R$ 9.000,00 destinados ao CMAS, recurso este que não foi utilizado. 226 passagens porque não era funcionário e o conselho não tinha recurso pra mandar. A sociedade civil só foi porque o pessoal da SEMTAS, como funcionário, pagou. Uma das coisas que a gente pediu foi isso. [...] a gente já pediu cópia antecipada de todo e qualquer projeto que for discutido. Se a xerox tiver boa tudo bem, se não, só vem uma cópia, a gente reclama e fica por isso mesmo. Tem documento que a gente pede uma modificação, quando ele volta pra gente e não foi modificado, a gente não vota, a gente manda retirar da pauta124. Algumas das dificuldades apontadas pelos conselheiros entrevistados, e que dificultam um melhor desempenho destes, no exercício do seu papel é a ausência de capacitação e a falta de acesso a documentos, sobretudo, quando da análise de orçamentos e de prestação de contas. Isto nem sempre é algo tranqüilo numa administração pouco aberta à democratização da gestão, conforme explicita o depoimento a seguir: A maior dificuldade foi a análise do orçamento. Vem tudo codificado, você precisa ter acesso aos documentos comprobatórios e isso muitas vezes não é entendido quando você solicita. Eu acho. O que eu digo a você é o seguinte: eu pego uma prestação de contas que diz o seguinte: esse dinheiro aqui foi gasto no PETI [Programa de Erradicação do Trabalho Infantil], aí vem aqueles códigos: tanto pra isso, tanto para aquilo, só que eu não sei se realmente aquilo existe. Pra mim analisar uma prestação de contas eu tenho que acompanhar..... deveria ter uma comissão de acompanhamento dos programas, pra quando chegar a prestação de contas você ter mais ou menos uma visão125. Um dos aspectos fundamentais no exercício do controle social é a participação do Conselho na definição da aplicação dos recursos, sobretudo, por meio do acompanhamento do Fundo Municipal de Assistência Social - FUMAS. Observa-se que em Natal, o FUMAS cumpre as condições básicas para a municipalização: há conta bancária específica; há um setor dentro do órgão gestor responsável pela gerência do Fundo; e uma vez por ano é encaminhado para aprovação pelo CMAS o plano de aplicação dos recursos e a rede de assistência social. 124 Ivoneide Damasceno Ribeiro. Sociedade dos Cegos do RN (SOCERN). Conselheira do CMAS (2002-2004). Entrevista realizada aos 06 de julho de 2004. 125 Idem. 227 Estes procedimentos, apesar da sua importância, são medidas operacionais, burocráticas e condicionantes legais da gestão municipal, dentro do sistema descentralizado e participativo. Mas estes procedimentos são insuficientes para configurar uma efetiva participação do CMAS na definição da aplicação dos recursos da assistência social no município. Além disso, na forma como historicamente isto tem sido feito, incidindo quase que exclusivamente sobre os recursos recebidos do Governo Federal, constitui muito mais um referendo do CMAS às decisões do órgão gestor. Na realidade, conforme Boschetti (2003a, p. 109), a análise e aprovação das contas públicas, que é uma prerrogativa dos Conselhos, assegurada pela LOAS, não vem ocorrendo na maioria dos Estados e Municípios. Segundo a autora, [...] este é um dos elos mais frágeis do sistema descentralizado e participativo, pois constatamos que o órgão gestor não atende a estas diretrizes e, ao não fazê-lo também não está reconhecendo o Conselho como instância deliberativa. Na prática, isto indica que os Conselhos não vêm tendo participação efetiva naquilo que é determinante na implantação da política: a definição de recursos. O conselho é constituído por 08 representantes governamentais, sendo 06 do governo municipal e 02 de órgãos do governo federal (UFRN e INSS) e 08 representantes da sociedade civil com a seguinte composição: 03 usuários, 03 representantes de organizações de assistência social, 01 representante dos trabalhadores da área da assistência social e 01 representante de entidades ou organização de defesa da assistência social. Dentro desta composição, a representação que possui maior clareza acerca do papel do Conselho, maior capacidade técnica e política de intervenção e mais condições de analisar criticamente a documentação que chega ao Conselho, tem sido a representação dos trabalhadores da área da assistência social, principalmente quando esta representação é realizada pelo CRESS – 14ª região, a representação da UFRN e a do INSS. Em alguns mandatos é possível ter uma representação de usuários e de entidades da rede com uma intervenção mais qualitativa e mais comprometida com os princípios e diretrizes da LOAS. Conforme a Lei 4.657 de 26 de julho de 1995 as competências do CMAS-Natal são: 228 I – definir as prioridades da Política de Assistência Social; II – estabelecer as diretrizes a serem observadas na elaboração do Plano Municipal de Assistência Social; III – aprovar a Política Municipal de Assistência Social IV – atuar na formulação de estratégias e controle da formulação da Política Municipal de Assistência Social V – propor critérios para a programação, para as execuções financeiras e orçamentárias do Fundo Municipal de Assistência Social, e fiscalizar a movimentação e a aplicação dos recursos. VI – elaborar o seu regimento interno; VII – acompanhar, avaliar e fiscalizar os serviços de assistência social prestados à população pelos órgãos, entidades públicas e privadas do Município; VIII – definir critérios de qualidade para o funcionamento dos serviços de Assistência Social públicos e privados no âmbito municipal; IX – definir critérios para a celebração de contratos de convênios entre o setor público e as entidades privadas que prestam serviços de Assistência Social no âmbito municipal; XI – apreciar previamente os contratos e convênios referidos no inciso anterior; XII – zelar pela efetivação do sistema descentralizado e participativo de Assistência Social; XIII – aprovar projetos de Combate à Fome e a Pobreza encaminhados pelo prefeito municipal no âmbito do Programa Comunidade Solidária; XIV – convocar, ordinariamente a cada 2 (dois) anos, ou extraordinariamente, por maioria absoluta de seus membros, a Conferência Municipal de Assistência Social, e propor diretrizes para o aperfeiçoamento do sistema; XV - acompanhar e avaliar a gestão dos recursos, bem como os ganhos sociais e desempenho dos programas e projetos aprovados (NATAL..., 1995a). Além destas competências definidas na lei de criação, o regimento interno define ainda um conjunto de competências relacionadas, sobretudo, a uma atribuição legal, mas também burocrática, que são específicas dos conselhos de assistência social. É o caso do fornecimento de atestado de registro e funcionamento a entidades de assistência social (assim como o cancelamento destes, no caso de irregularidades). Trata ainda da regulamentação e do acompanhamento da concessão dos benefícios eventuais; da apreciação e aprovação da proposta orçamentária anual e procedimentos de repasse de recursos para as entidades e organizações de assistência social; e da regulamentação e concessão dos benefícios eventuais. O procedimento adotado pelo CMAS para desempenhar a atribuição de conceder atestado de registro e funcionamento a entidades de assistência social 229 é o parecer com base em visitas às instituições. O que é uma prática recomendável, e nem sempre realizada pela maioria dos conselhos (municipal ou estadual) no país, como mostrou a pesquisa nacional realizada no processo preparatório da IV Conferência, ocorrida em 2003 (BOSCHETTI, 2003a, 171). O relato de uma conselheira entrevistada revela que a visita às entidades é uma tarefa freqüentemente assumida por conselheiros da sociedade civil. “[...] E também é o conselheiro da sociedade civil o que mais participa. Desde as reuniões, as visitas, porque os conselheiros do governo muitas vezes não participam nem das reuniões. [...] A participação do governo é mínima.”126 Mesmo assim, a comissão de cadastro é uma das que melhor atua e onde o Conselho vem cumprindo o seu papel. Com isso, tem conseguido evitar o uso de recursos públicos por instituições cuja prática não atenda aos princípios e diretrizes da assistência social como política pública e direito social. Outros relatos reafirmam essa constatação: Tem uma escola aí que disse que fazia um trabalho que quando foram atrás da creche ela era mantida pela prefeitura, professores da prefeitura, tudo era da prefeitura. Nessa questão o conselho tem que ser firme. Até não dá a renovação da inscrição e assegurar um tempo para eles se corrigirem, se adequarem127. Eu já fui da comissão de cadastro e já fui da análise da prestação de contas. Quem recebe um recurso e desenvolva alguma ação é obrigação de todo mundo aplicar corretamente. Porque eu vejo tantas entidades que precisam e não recebem aquele dinheiro e outras que precisam mas não usam como deveria usar.... é só isso que eu vejo. Isso a gente identificou e a gente chamou a entidade e fez ver que aquilo que ela estava apresentando naquela prestação de contas não é uma ação social e ela preferiu devolver o recurso.128 [...] o ano passado, eu fui visitar uma instituição lá em Nova Natal. Quando cheguei lá me deparei com politicagem. Eu não dei parecer favorável de jeito nenhum. Neguei na hora! O conselho tem conseguido negar inscrição de instituições que fazem politicagem. [...] Se a gente pudesse visitar todas as instituições cadastradas para verificar o funcionamento seria uma coisa maravilhosa. Mas não consegue fazer isso. No máximo visita as instituições que estão renovando o cadastro129. 126 Concília Maria Araújo de Brito. Assistente Social. Diretora do Centro SUVAG. Conselheira do CMAS (2002-2004). Entrevista realizada aos 06 de julho de 2004. 127 Idem. 128 Ivoneide Damasceno Ribeiro. Sociedade dos Cegos do RN (SOCERN). Conselheira do CMAS (2002-2004). Entrevista realizada aos 06 de julho de 2004. 129 Telma Maria do Nascimento. Assistente Social da Casa de Apoio à Criança com Câncer. Conselheira do CMAS (2002-2004). Entrevista realizada em 01 de julho de 2004 230 Contudo, com uma composição majoritariamente favorável aos interesses do executivo municipal, o protagonismo do Conselho tem acontecido apenas em questões e momentos pontuais, como por exemplo: na discussão do primeiro plano municipal de assistência social; na organização da 2ª Conferência Municipal (1997), período no qual o Conselho foi presidido por uma representante do CRESS-14ª Região; na busca da qualidade dos serviços, ao discutir a renovação de cadastro e atestado de funcionamento de organizações de entidades da rede de assistência social, conforme explicitado anteriormente; e no ato de exigir o acesso à prestação de contas, conforme o relato de uma entrevistada: Então hoje já estão colocando as prestações de contas e a maioria dos conselheiros [...] mas você sabe que tem aqueles que só querem puxar o saco não é? Outros que se acomodam, [...] mas hoje a gente já vê que existem discussões e existem momentos que o conselheiro diz está errado, minha função não é essa de dizer amém, é cobrar mesmo dentro da função do conselho.... eu até concordo em chamar o tribunal de contas, porque a função do conselheiro não é dizer amém.130 Ao observar-se as competências garantidas na Lei de criação do CMAS e o seu cotidiano, verifica-se uma distância significativa entre o proposto e o real. O papel de definir as prioridades da política de assistência, por exemplo, jamais passou pelo Conselho. Em termos do plano municipal de assistência social e dos programas e projetos implementados, o Conselho tem tido oportunidade de posicionar-se a partir de propostas que lhes chegam, muitas vezes, sem tempo suficiente para uma apreciação e um debate qualitativo e, na maioria das vezes, com argumentos e pressão de prazos sempre a vencer de imediato. E, neste caso, o gestor com freqüência pressiona o Conselho utilizando o argumento de que se este não aprovar tal projeto, tal relatório, o município perderá o recurso, os usuários deixarão de ser atendidos etc. O processo de elaboração do plano pode ser um momento fecundo na definição da concepção e do conteúdo da política de assistência social municipal, no fortalecimento da participação popular e do controle social, mas pode também ser algo que ocorre de forma tecnocrática e burocrática, envolvendo apenas alguns técnicos do órgão gestor, sem o necessário envolvimento do Conselho 130 Concília Maria Araújo de Brito. Assistente Social. Diretora do Centro SUVAG. Conselheira do CMAS (2002-2004). Entrevista realizada aos 06 de julho de 2004. 231 neste processo. A pesquisa coordenada por Boschetti (2003a, p. 32-33) revela que, em âmbito nacional, a maioria dos conselhos municipais participa da elaboração dos planos. Mas, o estudo revela também a existência de elementos que desqualificam o processo de elaboração dos planos, tais como: a falta de profissionais qualificados, a contratação de consultorias que desconhecem a realidade local e/ou não a respeitam ao reproduzirem o mesmo plano para diversos municípios; a falta de diagnóstico social; desarticulação entre o planejamento e o orçamento previsto para as ações de assistência social; compreensão do plano como apenas um critério para o repasse de recursos da esfera federal para as esferas locais, tornando-o uma peça fictícia; elaboração exclusiva pelo órgão gestor; imposição dos indicadores dos CEAS [Conselhos Estaduais de Assistência Social] na elaboração do Plano Municipal, desrespeitando a autonomia da esfera municipal (BOSCHETTI, 2003a, p.35). A elaboração dos Planos Municipais de Assistência Social em Natal tem sido um processo predominantemente técnico, burocrático e em cumprimento às formalidades da inserção do Município no sistema descentralizado. A exceção deve ser feita apenas ao Plano aprovado pelo Conselho, em 1998 (que teve um processo mínimo de discussão no CMAS, antes da sua versão final chegar ao Conselho para aprovação) e ao processo de elaboração de um novo plano que a SEMTAS vem encaminhando em 2005. Além da pouca participação ativa no planejamento das ações, a avaliação da política e a existência de estudos e debates acerca da realidade do Município é algo completamente ausente da dinâmica do Conselho. Estas questões, aliás, são condição para a existência de avaliações qualitativas da política de assistência social e para a análise de planos e projetos com os quais o conselho se depara no cotidiano da gestão. Outro aspecto importante é o acompanhamento e o controle da qualidade dos serviços. Nesta questão, há uma completa ausência do Conselho na fiscalização e no acompanhamento das ações governamentais, porque “a gente vota aqueles projetos, os programas, mas, acompanhar de perto está faltando.”131 No caso das entidades não-governamentais, conforme o relato anterior de uma 131 Ivoneide Damasceno Ribeiro. Sociedade dos Cegos do RN (SOCERN). Conselheira do CMAS (2002-2004). Entrevista realizada aos 06 de julho de 2004. 232 conselheira, este é um procedimento que acaba sendo feito apenas no processo de visita para renovação de cadastro e de atestado de funcionamento das entidades da Rede de Prestadores de Serviços de Assistência Social, o que cada entidade precisa fazer a cada três anos. Este é um trabalho que o Conselho faz, inclusive, com qualidade. Há, por exemplo, resoluções do CMAS que orientam e regulamentam essa atividade, assim como instrumentos produzidos pelo Conselho para a produção de relatórios e a elaboração de parecer com base nas visitas realizadas. Importa lembrar também que as entidades não-governamentais integrantes da Rede são visitadas periodicamente pela equipe da Gerência Operacional da Descentralização da Assistência Social – GO, a quem compete o monitoramento. O Conselho tem acesso aos relatórios da GODAS. Contudo, conforme a atual secretária, o trabalho do órgão gestor acontece com dificuldades, sobretudo pela falta de pessoal e de capacitação destes: A GODAS faz um monitoramento. Só que a GODAS precisa de mais pessoal, o que passa pela questão orçamentária. Porque, para fazer essa avaliação, para estar sempre monitorando, a gente precisa de pessoal capacitado. Alguma coisa tem sido feita com relação a essa questão, mas é uma questão que nós estamos estudando. Acho que é fundamental a questão da capacitação dos servidores. Precisa melhorar.132 Em termos da convocação e organização das conferências municipais, apenas na segunda Conferência o Conselho teve um papel mais ativo, com os seus membros, sobretudo os da sociedade civil, os trabalhadores da área e representantes da UFRN e do INSS, integrando a coordenação geral e participando ativamente de todo o processo. Nas demais, o Conselho apenas cumpriu a formalidade de convocar a Conferência. A organização destas, entretanto, foi do órgão gestor. Os membros do Conselho, sobretudo os da sociedade civil, apenas participaram. É o que relatam por exemplo, as conselheiras entrevistadas sobre a última conferência ocorrida em 2003: “Conferência?... sim! eu participei. Foi lá num hotel, na Via Costeira”133; “o 132 Andréa Ramalho Pereira Alves. Atual Secretária Municipal de Assistência Social de Natal. Entrevista realizada aos 22 de dezembro de 2004. 133 Telma Maria do Nascimento. Assistente Social da Casa de Apoio à Criança com Câncer. Conselheira do CMAS (2002-2004). Entrevista realizada a 01 de julho de 2004. 233 conselho participou, nós fomos pra lá, mas a organização foi do pessoal da SEMTAS mesmo.”134 Considerando que as conferências são momentos fortes de avaliação da política e definição de novas diretrizes para a sua condução, além de momento privilegiado para o envolvimento dos usuários com o debate e as definições desta política no Município, observa-se que a hegemonia deste processo em Natal não tem sido do CMAS, mas do órgão gestor e de organizações vinculadas às forças no poder, como: ATIVA e MEIOS e a uma concepção atrasada de assistência social. A relação entre a SEMTAS e o CMAS é considerada boa, tanto para os conselheiros quanto para os gestores. É o que afirma por exemplo a atual secretária, Andréa Ramalho. Destaca-se que, durante 10 anos, o órgão gestor disputou a presidência do Conselho. Em 2004, ela não quis ser candidata a presidente, por questionar o fato de presidir um organismo que tinha o papel de controlar as ações do órgão gestor que ela estava à frente: A relação da SEMTAS com o conselho é uma relação muito boa, mas acredito que como toda relação precisa melhorar, precisa de mudanças... mas, as mudanças elas têm que acontecer de forma gradativa. Porque você sabe, tudo o que acontece rápido demais, cai rápido demais. A gestora sempre foi a presidente do conselho. Eu optei por não continuar. Eu questionava como é que eu presidia um conselho e o conselho tem o papel de controlar as ações do órgão municipal que executa a política. Só que, olhe que coisa interessante, a gente deixou o conselho esse ano, mas as coisas não estão acontecendo como aconteciam antes. Não é interessante? Os próprios conselheiros, a gente sente eles precisam de uma capacitação. É proposta de acontecer em 2005. [...] É importante que os conselheiros saibam porque que eles estão ali. Acho que é legal também a troca, a mudança, outras pessoas entrarem, acho que isso é muito bom. Já para Márcia Maia, a relação do órgão gestor com o CMAS, relação esta que ela vê como uma parceria, foi sempre de respeito: Existiu uma relação de respeito na definição dos papéis Governo/ Sociedade Civil, sem que houvesse nenhuma relação de subordinação/ subserviência, sobretudo, na condução do processo de eleição para a escolha das Instituições da Sociedade 134 Ivoneide Damasceno Ribeiro. Sociedade dos Cegos do RN (SOCERN). Conselheira do CMAS (2002-2004). Entrevista realizada aos 06 de julho de 2004. 234 Civil que teriam assento no CMAS, assim como quando da eleição da Presidência e Vice-Presidência do Conselho. Os limites entre a esfera Governamental e da Sociedade Civil, foram sempre preservados. [...] O desempenho se deu de forma crescente até porque, o controle como um processo político-pedagógico se constrói no cotidiano, com avanços, recuos, equívocos e acertos, inclusive foi através de uma parceria, altamente responsável Secretaria Municipal/ CMAS, foi possível descredenciar algumas Instituições do PPD [Programa de Atenção ao Portador de Deficiência] que não cumpriram o objetivo pactuado, quando do convênio Instituição/ SEMTAS/ Governo Federal, processo este, desenvolvido com muita ética e profissionalismo, fortalecendo assim, os papéis do Órgão Gestor Municipal da Assistência e CMAS, refletindo positivamente diante das Instituições Prestadoras de Serviços, Fórum Municipal de Assistência e de outras Instituições e atores desse campo. Assim, decorridos quase 10 anos, é possível afirmar que o CMAS-Natal tem sido muito mais um espaço de referendo das iniciativas do Poder Municipal do que verdadeiramente um espaço de exercício do controle social. As grandes decisões da política municipal de assistência social ainda não passam por este Conselho. Isto é o que se pode concluir a partir da consulta às suas atas, da entrevista a conselheiros, da consulta a trabalhos que analisam Conselhos municipais em Natal e da experiência como conselheira no referido CMAS. 5.3 A Primazia da responsabilidade do Estado Um passo fundamental para consolidar a assistência social como direito social é a efetivação, conforme a LOAS, da “primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social em cada esfera de governo.” Este princípio deve se realizar de modo articulado aos demais, que são a “descentralização político-administrativa para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e comando único das ações em cada esfera de governo” (Artigo 5º, inciso I da LOAS) (BRASIL..., 2004a) e “participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis” (Artigo 5º, inciso II da LOAS) (BRASIL..., 2004a). Conforme Boschetti (2003, p. 79), 235 O status de direito social atribuído à assistência, lhe confere assim, obrigatoriedade governamental na implementação, amparo legal para sua reclamação pelo cidadão, responsabilidade política dos representantes públicos na sua consolidação e ampliação, e possibilidade do usuário reconhecer-se como cidadão portador de direitos. A diretriz da descentralização indica as responsabilidades de cada uma das esferas de governo e estabelece uma hierarquia entre estas. No que diz respeito aos municípios e ao Distrito Federal, a LOAS, em seu Artigo 15 definiu as seguintes competências: I - destinar recursos financeiros para custeio do pagamento dos auxílios natalidade e funeral, mediante critérios estabelecidas pelos Conselhos Municipais de Assistência Social; II - efetuar o pagamento dos auxílios natalidade e funeral; III - executar os projetos de enfrentamento da pobreza, incluindo a parceria com organizações da sociedade civil; IV - atender às ações assistenciais de caráter de emergência; V - prestar os serviços assistenciais de que trata o art. 23 desta lei (BRASIL..., 2004a). Assim, a LOAS exige que o Estado assuma a primazia da responsabilidade em cada esfera de governo, na condução da política de assistência social. Isto significa, conforme Boschetti (2003a, p. 22), “assumir o aparelho estatal como local primordial de condução da política e ainda estabelecer claramente formas de acompanhamento, monitoramento, supervisão e controle das ações assumidas por entidades assistenciais.” No caso de Natal, este monitoramento, pelo menos em tese, é feito pelo órgão gestor por meio da GODAS (Gerência Operacional da Descentralização da Assistência Social), a quem compete entre outras ações: recepção e análise de documentos, atualização do cadastro das entidades da Rede, orientações e análises dos planos de atendimento; elaboração dos termos de convênios; formalização de processos de convênios para pagamento; capacitação continuada da rede de assistência social; realização de visitas para avaliação dos serviços executados pelas entidades; elaboração de pareceres técnicos para habilitação das entidades a receberem recursos do FUMAS. No que diz respeito a relação da SEMTAS com as entidades da Rede, os conselheiros destacam algumas dificuldades: a ausência de capacitação 236 continuada; atraso no repasse dos recursos do FUMAS para as entidades, além da ausência de quadros técnicos capacitados: O problema da rede é que quem está dentro não sai quem está fora não entra. É uma das coisas negativas que eu vejo é isso. Às vezes as entidades passam 2, 3 meses sem receber135. Tem instituições que são do tempo da LBA, mas tem instituição lá que entrou agora que não sabe nem o que é a LOAS. Não tem um encontro para orientar..... e os técnicos estão mudando sempre sabe? Por exemplo, no dia que eu cheguei para uma reunião com o Tribunal de Contas da União para avaliar a parte da pessoa portadora de deficiência, a única pessoa que entendia de assistência social era eu, e tinha um monte de técnico lá, que tinha entrado há 2, 3 meses, que apenas estão fazendo a fatura, o relatório de atendimento sem entender nada! E eu tive a felicidade e a secretaria também de todas as perguntas serem relacionadas ao portador de deficiência e por acaso eu fui convidada como conselheira e os técnicos se calaram. E eu estava lá como conselheira. Na gestão anterior havia uma porção de gente que vinha da LBA136. Andréa Ramalho reconhece que na relação do órgão gestor com a rede há muito a ser feito. Muitas entidades prestam um serviço de forma assistencialista e são resistentes a mudanças, em virtude do enraizamento das práticas assistencialistas ao longo da história desta política pública na Cidade. A saída para a entrevistada reside no trabalho educativo junto às pessoas que fazem as entidades conveniadas: [...] Mas, com a Rede, acho que a gente tem uma relação boa. Eu acho que falta, professora, é essa questão da capacitação, essa consciência do que é ser entidade conveniada, a questão da cultura, o que é a política de assistência. A gente percebe... que trabalho, que ação, qual o significado do trabalho delas ao longo... Porque é uma rede histórica... trabalham há muito tempo. Em algumas, você percebe que o trabalho é um trabalho assistencialista, mas isso é uma mudança gradativa e a gente entende que vai passar principalmente pela capacitação desses gestores quanto a própria política e ao papel deles com rede conveniada, contribuindo também para implementar essa política. Às vezes mudam as pessoas que participam do conselho, aí vem outra pessoa, mas a outra tem a mesma filosofia. Até muda a pessoa, mas vem com a mesma cultura que foi construída. Acho 135 Ivoneide Damasceno Ribeiro. Sociedade dos Cegos do RN (SOCERN). Conselheira do CMAS (2002-2004). Entrevista realizada aos 06 de julho de 2004. 136 Concília Maria Araújo de Brito. Assistente Social. Diretora do Centro SUVAG. Conselheira do CMAS (2002-2004). Entrevista realizada aos 06 de julho de 2004 237 que foi muito tempo, sabe professora, de acomodação. O tempo de acomodação é muito grande. Então assim, as coisas, os sentimentos das pessoas, as próprias ações, elas se cristalizam. Até você quebrar tudo isso, sofre. Porque é gente, é humano. E tem gente que é igual aquela música ‘todo dia ela faz tudo sempre igual...’ então, pra você mudar aquela dinâmica não é fácil. Tem que ter um agente externo.... mas também tem que ter uma coisa naquele humano que abra para aquele agente externo entrar, se não vai continuar a mesma dinâmica. Tem que ser através da educação. De uma proposta pedagógica que chame pra reflexão, que chame pra pensar, pra questionar algumas coisas137. Atualmente a Rede Conveniada é constituída por 29 entidades, a maioria filantrópica. A rede é responsável por 54,27% do atendimento feito nos Serviços de Ação Continuada em Natal os quais reúnem as ações voltadas para a criança e o adolescente (tanto o atendimento na faixa etária de 0 a 06 anos, em creche, quanto o que se efetiva em abrigos, este último voltado, sobretudo, para adolescentes; e ainda os atendidos no PETI e no Agente Jovem); portadores de deficiência; e idosos (nas modalidades de atendimento integral institucional e em grupos de convivência). Isso está explicitado no quadro a seguir: 137 Andréa Ramalho Pereira Alves. Atual Secretária Municipal de Assistência Social de Natal. Entrevista realizada aos 22 de dezembro de 2004. 238 SERVIÇO DE AÇÃO CONTINUADA NÚMERO DE ENTIDADES DA REDE 09 METAS REDE SEMTAS Programa de Atenção à 7.137 5.738 Criança138 (Creche) Programa de Apoio à 05 1.961 1.000139 Pessoa Idosa/Conviver Programa de Apoio à 04 264 Pessoa Idosa/Asilar Programa de Apoio à 24 Pessoa Idosa/Domiciliar Programa de Apoio à 10 1.352 Pessoa Portadora de Deficiência Apoio à Criança e ao 01 06 245 Adolescente (Abrigo) Apoio à Criança e ao 50 Adolescente (Família Acolhedora) Programa de 2.878 Erradicação do Trabalho Infantil -PETI Programa Agente 475 Jovem TOTAL GERAL 29 10.720 10.410 Quadro 12 – Visão Geral dos Serviços de Ação Continuada141 Fonte: SEMTAS (NATAL..., 2004a) RECURSOS SEMTAS/REDE MÊS ANO 175.711,10 2.108.533,20 11.992,05 143.904,60 13.128,70 157.544,40 518,88 6.226,56 57.645,28 691.743,36 8.785,00 105.420,00 1.750,00 21.000,00 143.900,00 1.726.800,00140 39.658,34 475.900,00 453.089,35 5.437.072,12 Além das ações explicitadas no quadro anterior ressalta-se que a partir do segundo semestre de 2004 e, durante 2005 o Município passou a executar o Programa de Atenção Integral à Família – PAIF, com uma previsão de atendimento a 1.500 famílias. Ao mesmo tempo, foram instalados 05 (cinco) Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) distribuídos nos seguintes bairros da periferia de Natal: Guarapes e Felipe Camarão (na Região Oeste), Pajuçara, Salinas e favela da África (na Região Norte). Para este programa, hoje 138 Inclui as ações educativas junto a 32 famílias, cujo recurso mês é de R$ 320,00 e 3.840,00 anuais. 139 A SEMTAS transferiu para a ATIVA até recentemente (2005) este atendimento ao idoso. 140 Deste total/ano, R$ 1.381.440,00 corresponde a bolsas do PETI; o restante, R$ 345.360,00 são recursos destinados à “jornada ampliada”, que é o trabalho educativo realizado com crianças do PETI em horário oposto ao da escola nos Núcleos de Ação Social (NAS). 141 Em 2005, a partir das novas definições da Política Nacional de Assistência Social e do processo de construção do SUAS – Sistema Único de Assistência Social, a execução desta política passou a ser construída a partir da garantia de “seguranças sociais” e da oferta de recursos, bens, serviços etc, por meio de um sistema de proteção social que distingue três modalidades de proteção: básica, especial e de alta complexidade; o que implica o desenvolvimento de ações, serviços etc, de acordo com a realidade de cada município e das necessidades da população usuária. Isso vem implicando também numa adequação destes programas às modalidades de atenção definidas na nova Política Nacional de Assistência Social. 239 denominado “Proteção Social Básica à Família”, está previsto, em 2005, o repasse de recursos no valor de R$ 432.000,00. Sem considerar as ações do “Programa de Atenção Integral à Família”, cuja meta é contabilizada por famílias e não por pessoas, é possível afirmar, com base nos dados do quadro apresentando anteriormente, que o município atendeu, até 2004, em rede própria, a 45,72% dos usuários dos “Serviços de Ação Continuada”, o que revela o peso significativo da rede privada filantrópica na política de assistência social em Natal. Segundo Márcia Maia, durante a sua gestão, esta rede “limitou-se a cumprir as metas pactuadas com o Ministério [da Previdência e Assistência Social], com o cuidado de realizar o trabalho com padrão de qualidade, às vezes com dificuldades devido o valor repassado, defasado com relação a inflação, atrasos constantes, entre outros.”142 No que diz respeito ao atendimento institucional a idosos (abrigos) e aos serviços voltados para os portadores de deficiência, não há serviços executados diretamente pela SEMTAS. A população de portadores de deficiência em Natal é de 102.793 pessoas, segundo dados do Censo Demográfico 2000, do IBGE. O número de pessoas atendidas corresponde a 1,31% do total de portadores de deficiência existentes na Cidade, os quais correspondem a 26,33% da população portadora de deficiência no RN; um dos cinco estados do país com maior número de pessoas com deficiência. O presente estudo não identificou a demanda real desta população por serviços de assistência social. Contudo, estas aproximações iniciais sinalizam para uma atenção extremamente reduzida e focalizada, frente às necessidades dos portadores de deficiência. Além disso, cabe destacar que, em Natal, os governantes têm feito, até hoje, muito pouco para assegurar a estas pessoas o direito a participarem ativamente e com dignidade da vida social, econômica, cultural e política da Cidade. Como acontece em todo o país, as ações nesta área são concentradas na esfera privada/filantrópica. É neste âmbito que se situa boa parte da rede de atendimento às pessoas portadoras de deficiência, rede esta reduzida quase exclusivamente a ações nos campos da saúde, da habilitação e reabilitação. 142 Deputada Estadual Márcia Faria Maia Mendes, ex-Secretária Municipal de Assistência Social. Resposta por escrito ao roteiro de entrevista da presente pesquisa. Natal, dezembro de 2004. 240 Outro grupo de população atendida nas ações continuadas, que chama a atenção no Quadro 12, anteriormente apresentado, são as ações voltadas para a criança e o adolescente. Neste grupo, concentra-se o maior número de atendimentos na rede privada/filantrópica, em torno de 55,43%, o qual se refere, predominantemente, ao atendimento a crianças na faixa etária de 0 a 06 anos, em creche.143 Em torno das ações para esta população, Márcia Maia destaca algumas das principais iniciativas da sua gestão à frente da SEMTAS: ações de atenção às crianças e adolescentes nas creches, capacitando/ qualificando os monitores em nível de 3º grau; construindo/ recuperando/ adaptando os equipamentos para um atendimento com padrão de qualidade; trabalho sistematizado com as famílias; definição de uma proposta sócio-pedagógica para as creches municipais; implantação de Casas de Passagens para atendimento às crianças e adolescentes vítimas de abandono, orfandade, negligência, maus tratos, etc, com a plena consciência de que o lugar de criança é na família, se não possível a biológica, mas a família substituta. A Casa de Passagem foi concebida como espaço transitório, evitando dentro do possível, a longa permanência da criança e do adolescente, para não gerar tutelamento institucional. no período foi possível através de uma parceria com o CMAS e Ministério Público, desativar uma Casa Abrigo, quando foram identificadas que aquelas crianças, todas tinham família. Após longo processo judicial, as crianças foram reconduzidas as famílias, com acompanhamento psico-social e os dirigentes da Instituição, responsabilizados na forma da lei (grifo da entrevistada). 144 Outra ação destacada pela ex-Secretária foi a implantação de dois Núcleos de Ação Social – NAS; um no bairro de Cidade Nova; e outro na Zona Norte, no Conjunto Panatis145. Posteriormente, com o PETI, outros núcleos foram criados nas demais Regiões Administrativas da Cidade para atender à jornada 143 A cidade possui 102 creches. Destas 53 são creches públicas, o restante, 49, são filantrópicas, constituem unidades executoras de entidades que integram a rede de assistência social. 144 Deputada Estadual Márcia Faria Maia Mendes, ex-Secretária Municipal de Assistência Social. Resposta por escrito ao roteiro de entrevista da presente pesquisa. Natal, dezembro de 2004. 145 Ao serem implantados, estes Núcleos foram apresentados como espaços destinados a desenvolver ações “nos campos de esporte, lazer, produção cultural, reforço escolar, assistência social, psicológica e jurídica, em um trabalho de complementaridade entre família, escola e comunidade” (NATAL..., 1998b). 241 ampliada do PETI. Contudo, o Núcleo de Cidade Nova continuou sendo o mais importante e bem estruturado, instalado, segundo ela, “quando da retirada de centenas de crianças e adolescentes do lixão, recebendo inclusive destaque pelo UNICEF, no que se refere à iniciativa da Prefeitura como serviço significativo na proteção à infância.”146 Atualmente, o Núcleo de Cidade Nova atende 420 crianças com atividades de reforço escolar e outras oficinas; além daquelas voltadas a recuperar nas crianças antes submetidas a trabalhos no lixão, a capacidade de “ser criança”, conforme uma das assistentes sociais do Núcleo: Aqui a gente está com 420, só que nem todas são do PETI. Como eu lhe disse, no começo tinha o Tributo a Criança. Quando o PETI veio pra Natal, algumas famílias não quiseram ser transferidas para o PETI. Porque seria mais vantagem, em termos de benefício social ficar no Tributo a Criança. Os filhos, no tributo ela recebia R$ 50,00 e no PETI ela passaria a receber apenas 40,00. Então ela disse: não, eu prefiro ficar no Tributo a Criança. Nesse caso a gente tem 12 famílias do Tributo a Criança que também fazem parte do Núcleo. As atividades que a gente oferece, a principal que a gente chama é o reforço escolar. Porque quando a gente inaugurou aqui a gente tinha uma deficiência muito grande de escola, principalmente porque muitos nem iam pra escola, era o tempo todo trabalhando mesmo. Então a gente tem o reforço escolar diário, que a criança já tem agendado os dias de ir para o reforço, mas conforme as necessidades ela pode ir outros dias. Aí a gente tem oficinas culturais de dança, teatro, capoeira, canto e coral e recreações jovens. A gente tem uma “casa da brincadeira” aí tem sinuca, tem a “casa da boneca”, porque muitas crianças não tinham essa oportunidade e tem o salão de jogos, onde a gente trabalha com jogos de concentração, dama, jogos de montagem. Além disso a gente tem o acompanhamento nutricional que é uma refeição que é servida diariamente147. O sucesso do Núcleo de Ação Social de Cidade Nova, no entanto, não pode ser atribuído ao resultado do investimento da SEMTAS e da Prefeitura de Natal nesta questão. Na verdade, o Núcleo foi montado com uma estrutura mínima e, a partir daí a equipe teve que “se virar” para garantir o atendimento às crianças. Muitos equipamentos necessários ao trabalho resultam de doação de pessoas e empresas a partir da mobilização/articulação feita pela equipe da casa. 146 Deputada Estadual Márcia Faria Maia Mendes, ex-Secretária Municipal de Assistência Social. Resposta por escrito ao roteiro de entrevista da presente pesquisa. Natal, dezembro de 2004. 147 Ivanise Laurentino da Silva. Assistente Social do Núcleo de Ação Social de Cidade Nova. Entrevista realizada aos 09 de julho de 2004. 242 Após muitas idas e vindas, sem sucesso, à sede da SEMTAS, em busca dos equipamentos e material pedagógico necessários ao trabalho do Núcleo, esta equipe, que parece apaixonada pelo seu trabalho, percebendo que as condições de trabalho não viriam pelo investimento da SEMTAS, passou a fazer campanhas junto a pessoas, empresas etc para adquirir material e equipamentos. Segundo a assistente social, [...] a gente tem sempre que ir atrás de parceiro pra conseguir realmente desenvolver o trabalho. A gente vai em busca de amigos, empresas, comerciantes, conhecidos pra conseguir isso aí. Vindo mesmo do próprio programa a gente não tem. Até a gente sente falta. Em termos de material didático, esse ano principalmente está difícil, porque não veio, não veio fardamento, tudo isso a gente está batalhando fora, porque não foi oferecido. Os jogos e brinquedos são todos doações. Nenhum veio da secretaria. Tudo que há na casa da brincadeira foi conseguido através de doação, os livros da biblioteca... Isso se dá com pessoas que vêm e se sensibilizam com a casa e oferece, está entendendo? Porque é assim: montou a casa e a gente que está na base é que vai ter que ralar para conseguir as coisas, ta entendendo? Em termos da equipe, a equipe sente muito a carência de informação, de treinamento... e esse treinamento a gente faz, o Serviço Social faz, além do trabalho de acompanhamento às famílias e às crianças, a gente busca também estar qualificando. Mensalmente a gente pára um dia para capacitação. É a gente mesmo aqui da casa que vai atrás de algum profissional para discutir uma temática com os profissionais da casa. É uma instituição que vem gratuitamente também. Mas da secretaria não vem nada não148. Com este trabalho, a equipe consegue oferecer um serviço que tem o reconhecimento da comunidade: Pra todo mundo da comunidade é um sonho entrar aqui. Até o pessoal estranha, acha que a gente não é órgão público, pelo diferencial do trabalho pedagógico, a organização da casa... o pessoal estranha. [...], teria que ter outra unidade dessa para atender mais 400 crianças. Mas, como a gente trabalha com um perfil que é de usuários do PETI, então uma criança mesmo tendo carência de recursos, mas que não desenvolva nenhum tipo de trabalho, não se adequa ao programa. Então a gente não atende. Tenta encaminhar para outros programas que possam vir a atender. Mas, aqui por exemplo, no Serviço Social, o usuário da 148 Ivanise Laurentino da Silva. Assistente Social do Núcleo de Ação Social de Cidade Nova. Entrevista realizada aos 09 de julho de 2004. Importante lembrar que a maioria dos funcionários da equipe técnica deste Núcleo tem contrato de trabalho temporário e precário. As assistentes sociais (duas) por exemplo, recebiam no momento da entrevista, apenas uma bolsa no valor de pouco mais de R$ 500,00, fato que já dura 5 anos. 243 gente não se limita somente a casa. A gente acaba sendo o assistente social da comunidade hoje. Todo mundo da comunidade, é vizinho de uma mãe daqui, está com um problema? Elas mandam vá falar com a assistente social do Núcleo! Aí vem pra cá e conforme seja a gente encaminha149. Mas, é importante ressaltar que este Núcleo de Ação Social de Cidade Nova, na verdade, funcionou durante toda a gestão de Vilma de Faria como uma vitrine, para mostrar o trabalho do Município junto às crianças que foram retiradas do “lixão” no bairro de Cidade Nova, Zona Oeste de Natal. Sendo vitrine, a qualidade do espaço físico e do serviço oferecido neste núcleo não foi estendida aos demais. Estes enfrentam inúmeros problemas, tais como: equipes sem formação técnica para o desenvolvimento das atividades; falta de espaço físico; distância do local de moradia das crianças, exigindo destas longas caminhadas a pé para freqüentar a jornada ampliada; prédios insalubres; núcleos instalados em espaços físicos já superlotados com atividades de outros programas, conforme o relato de algumas coordenadoras: [...] a falta de infra-estrutura é a primeira dificuldade que a gente enfrenta. Às vezes falta uma bola. A gente tem essa quadra aí, enquanto estivermos aqui... Essa estrutura, esse prédio é grande, mas ele é subdividido em vários programas. Ele abriga aqui várias atividades. Então a gente tem muita dificuldade na questão da infra-estrutura. Depende de muita coisa para que a reivindicação seja atendida. Na verdade a gente tem trabalhado com bastante dificuldade. Material escolar, não tem sido suficiente. Aí a gente busca parceria. Até os próprios professores vão buscando. Tem a questão da criatividade que aqui funciona muito bem, a equipe aqui é bem comprometida. Esse painel aí é com uma caixa de papelão.... a gente não tem uma estante. A gente montou um minibiblioteca. Mas não tem uma estante. Aí veio a idéia de fazer com cano. Aí estou pedindo que tragam um “T”, “um joelho”.... Então tem sido dessa forma, porque a gente não tem muito recurso150. A grande dificuldade é a falta de material didático e pedagógico para as oficinas. A alimentação é ótima, nós servimos três refeições, nunca falta, em boa quantidade. Não temos computadores. Este que temos aqui foi uma doação do Banco do Brasil para o Centro Social. Nada vem da SEMTAS. As instalações são totalmente precárias. A sala de aula é muito precária. As carteiras são emprestadas, eles não têm nem 149 Ivanise Laurentino da Silva. Assistente Social do Núcleo de Ação Social de Cidade Nova. Entrevista realizada aos 09 de julho de 2004. 150 Lucila Dantas. Coordenadora do Núcleo de Ação Social da Estação do Futuro – Cidade da Esperança. Entrevista realizada aos 07 de julho de 2004. 244 mandam. Isso é assim há 5 anos, tem 5 anos que eu estou aqui. Esse computador foi para atender o Centro Social que beneficia o PETI, mas não recebemos nada da SEMTAS. O centro social cedeu o espaço para o PETI funcionar. Por exemplo, a quarta feira aqui não tem atividade do projeto. Quarta feira é do idoso, eles estão aqui para fazer as atividades deles. Todos os grupos da comunidade têm esse espaço como referência. Também são 151 esses grupos que mantêm o centro social . Ainda a respeito dos serviços de ação continuada, destaca-se que todas as ações com idosos, dentro da modalidade “Conviver”, foram sempre executadas pela ATIVA, que, conforme a Subcoordenadora do programa na entidade, atende a 2.830 idosos em 65 grupos, distribuídos nas quatro Regiões Administrativas. Para ela, este atendimento não é feito de forma ideal, sobretudo, pelo fato do Governo Federal manter há 10 anos o mesmo valor dos recursos repassados: Esse programa se ele fosse bem mais estruturado ele se desenvolvia mais. Por quê? Porque faz 10 anos que o governo federal não aumenta a per capita desse programa. Faz 10 anos que é R$ 4,05 por idoso. Há 10 anos. Aí, quando nos eventos, nos seminários, nos encontros, nas conferências nacionais de assistência social, que eu já participei de todas elas, quando questiona esse valor, o governo federal pergunta: qual a contrapartida do município? Essa contrapartida existe e existe de forma efetiva. Por exemplo: na hora que você repassa R$ 4,05 por idoso, isso não paga o lanche que a gente faz por mês para ter essas 4 reuniões. A gente tem técnicos, incluindo a coordenação, nós temos 23 técnicos, nós temos carro pra ir deixar esse lanche, nós temos roupa, traje de folclore, a gente tem que comprar louça (panela, garrafa térmica, pratos, colheres, copos) isso tudo é contrapartida. Se ele não estipula, tipo: eu dou R$ 4,05. Não, o governo municipal dá muito mais do que isso. Só que ele dá na forma de recursos humanos e recursos materiais. O que você comprava há 10 anos com R$ 4,05 você não compra mais. E agente para não deixar cair a qualidade a gente vem cada vez mais assumindo mais. E tem sido uma reivindicação constante de todos os municípios, de todas as cidades, o aumento dessa per capita e existe essa dificuldade do governo federal. Ele não tem entendido isto. Se você pegar as deliberações de todas as conferências nacionais vai ter lá: aumento da per capita para todos os programas.152 151 Kátia Maria Silva Araújo. Pedagoga. Subcoordenadora do Núcleo de Ação Social de Brasília Teimosa. Entrevista realizada aos 07 de julho de 2004. 152 Telma Indhira Caldas Targino, Subcoordenadora do Programa de Assistência ao Idoso da ATIVA e atual Presidente do Conselho Municipal do Idoso. Entrevista concedida à autora aos 25 de maio de 2004. 245 Em 1997 houve uma retomada do papel da SEMTAS como órgão gestor. Contudo, a ATIVA, apesar de ter seu funcionamento em outro prédio e não mais nas dependências da SEMTAS, continuou com um papel ainda muito privilegiado, não só dentro da assistência como no próprio Município.153 O volume de recursos que a SEMTAS repassou para a ATIVA em 2004 representa 86,96% dos gastos com recursos do Município em assistência social, conforme os dados explicitados no Quadro 10, no capítulo 4 deste trabalho. A respeito do papel da ATIVA, na assistência social do Município, e as mudanças implementadas a partir de 1997, a Subcoordenadora do programa com Idosos na entidade ressalta: Em 1994-1996, na gestão Aldo Tinoco, a ATIVA era responsável pela grande parte das ações de assistência social, inclusive funcionava no mesmo prédio da SEMTAS. Quando a deputada Márcia Maia assumiu a secretaria de assistência social, na época promoção social, que era SEMPS, ela teve a preocupação de dizer: eu acho que a ATIVA tem que cumprir seu papel de ONG [organização não-governamental] e a SEMTAS o seu papel de gestora. Foi quando veio a descentralização da assistência social e a SEMTAS avocou pra si esse papel. A ATIVA não perdeu com isso. Ela continuou fazendo seu trabalho. Mas, o protagonismo tem que ser realmente do Estado e ela trouxe para a SEMTAS esse papel. Ela transformou a SEMTAS em Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social, com a nova concepção da política que não deveria ser promoção mas de assistência social e a ATIVA continuou desenvolvendo seus programas, foi buscar outras parcerias também na iniciativa privada, com as indústrias, com o comércio e também como parceira constituinte da rede municipal de assistência ela tem um papel importante porque ela tem um volume muito grande de usuários. Ela desenvolve 10 programas: ela tem o programa com idoso, criança e adolescente, com jovem, gestantes, mães, combate à subnutrição, jovem aprendiz, agora também foi firmado parceria também com o governo do Estado..... Mas ela tem um papel importante, porque ela é uma ONG antiga, tem muita credibilidade, que sempre cumpriu um papel importante na sociedade e tem esse papel de parceira mesmo da SEMTAS.154 153 Conforme Relatório de Gestão de 2004 (NATAL..., 2004a) e Relatório de Consultoria a SEMTAS (DUARTE, 2004), os recursos repassados pela SEMTAS a ATIVA em 2004 foram de R$ 4.200.000,00. 154 Telma Indhira Caldas Targino, Subcoordenadora do Programa de Assistência ao Idoso da ATIVA e atual Presidente do Conselho Municipal do Idoso, em entrevista concedida à autora aos 25 de maio de 2004 na sede da ATIVA. 246 Para Andréa Ramalho, atual secretária, a preocupação da sua gestão é trazer para a SEMTAS o papel que lhe compete na política de assistência social e fazer da ATIVA uma ONG que funcione e exista como tal. A ATIVA é uma ONG como você sabe e tem uma relação com a prefeitura desde a sua fundação. Nosso desejo é cada vez mais a ATIVA funcionando como uma ONG, indo buscar recursos, indo se virar, funcionando como ONG mesmo. Com as ações dela, com os programas. Tem programas maravilhosos. A ATIVA tem um programa de segurança alimentar excelente, que é o programa cidadão hoje. E é um programa que foi reformulado, que vem melhorando. Nosso desejo é que essa simbiose seja cada vez mais desconstruída. Nesses dois anos...... prova disso é que vamos trazer as mil metas do idoso, do CONVIVER para a SEMTAS. Então, volta pra prefeitura. Tem 9 creches que a ATIVA executa. Tem essa discussão, do que vai pra educação, do que fica na assistência social. A gente tem essa discussão no país. A ATIVA não é a única. [...] A gente começa a se apropriar do que é do município, como é o caso do PPD [Programa de Atenção ao 155 Portador de Deficiência] e do programa com Idoso. Os dados levantados permitem afirmar que, em relação à efetivação do princípio da “primazia da responsabilidade do Estado na condução da política” a assistência social em Natal encontra bastante dificuldades. O cumprimento das exigências legais necessárias ao processo de municipalização, não avançou no sentido de ampliar o grau de compromisso público do Município com a efetivação da assistência social como direito. Para que isso ocorresse seria necessário, por exemplo, uma melhor regulação das responsabilidades institucionais relativas à gestão dos serviços sócio-assistenciais efetivados em parceria com as organizações da rede prestadora de serviços de assistência social em Natal. 5.4 As formas de acesso e a visão sobre os serviços Uma das formas de reproduzir a assistência social como favor e como assistencialismo é manter o acesso, de modo a gerar dependência e vínculos entre quem recebe e quem oferece bens e serviços. Consolidar a assistência 155 Andréa Ramalho Pereira Alves. Atual Secretária Municipal de Assistência Social de Natal. Entrevista realizada aos 22 de dezembro de 2004. 247 como política pública exige publicizar e universalizar o acesso. Até 2004, a principal forma de acesso dos usuários aos bens e serviços no “Plantão Social” da SEMTAS era o bilhete de lideranças políticas (vereador ou liderança comunitária). Era um espaço, por excelência, do favor. Esta era a realidade deste setor, conforme relato da atual coordenadora: Mas, aqui, muitas pessoas que nos procuram além de chegar com um bilhete de um vereador, de uma liderança, ainda chegava com o título na mão. Outro dia recebi um telefonema de um vereador dizendo: olha, vai uma pessoa minha aí e tal. Eu digo: olha, o senhor pode encaminhar quem o senhor quiser, porque a SEMTAS está aberta para toda a população. Sua pessoa vai ser atendida, vai ser orientada. Aí ele falou: mas eu queria que você liberasse uma cesta básica. Eu digo: ela vai ser atendida. Todos que nos procuram precisam. Mas nós só temos 100 cestas básicas/mês. Então a gente define alguns critérios. Por exemplo, quem está fora de qualquer outro atendimento da rede de assistência, quem já está ligado ao PETI, Bolsa Renda, Tributo a Criança, eu não atendo. Porque já estão minimamente inseridos em algum serviço. Paralelo a isso a gente tem que lutar pela ampliação de vagas. Nunca pensei na minha vida ter que selecionar pobreza, mas, a gente tem que ter algum critério.156 A partir de 2004, no segundo ano da gestão do Prefeito Carlos Eduardo Alves, algumas mudanças foram implementadas na SEMTAS. Uma delas foi a demissão da liderança política ligada ao grupo “Maia” que ocupava há cerca de 8 anos, a coordenação do Departamento de Assistência Social – DAS, departamento responsável pelo “Plantão Social”. Em seu lugar foi contratada uma assistente social, estudiosa da política da assistência social, a qual passou a adotar medidas no sentido de coibir a prática do favor naquele setor, assim como a relação clientelista com as organizações comunitárias. Para o usuário que procura o “Plantão Social”, dentro da demanda espontânea que chega até este setor, a “necessidade”, a “precisão” é o que lhe faz vir em busca de uma cesta básica ou qualquer coisa que lhe possibilite superar as inúmeras carências, conforme o depoimento a seguir: A precisão que está muito grande. Eu vim ver se consigo uma cesta básica para os meus filhos. Já hoje eles não foram pra escola, estou devendo dois meses de aluguel, estou sem 156 Ilsamar Silva Pereira. Assistente Social. Coordenadora do Departamento de Assistência Social e do Plantão Social da SEMTAS. Entrevista realizada em 04 de agosto de 2004. 248 condições mesmo [...]. Estou vindo pela primeira vez. Vim porque 157 minha vizinha me informou. Ela veio aqui e conseguiu a cesta . O plantão social atende, diariamente, a cerca de 40 pessoas; e a mais de 800 pessoas por mês. Destas, a demanda específica por cesta básica é de 500 pessoas/mês. Conforme relato da coordenação, o perfil da população que procura este serviço é, na sua maioria, residente na Região Norte e Oeste da Cidade, áreas de maior concentração de pobreza, conforme já ressaltado anteriormente. Há um predomínio de mulheres, negros e idosos; e dentre estes, muitos envelhecidos precocemente. “Chegam pessoas aqui que eu penso que são idosas. Vou falar do Benefício de Prestação Continuada - BPC aí a pessoa diz: ‘não, eu tenho 45 anos’. Então são pessoas envelhecidas precocemente.” 158 Além disso há também uma demanda de pessoas que não são residentes em Natal, mas nos municípios da Região Metropolitana: “Como a assistência social em São Gonçalo do Amarante, em Extremoz, não funciona minimamente, então eles nos procuram para ataúde, para cesta básica, uma série de coisas.” 159 Já foi ressaltado que uma das formas de reforçar o assistencialismo, o favor e a tutela, é a existência e multiplicação das associações e fundações assistencialistas, ligadas a vereadores e deputados. Para alguns usuários da assistência social, no entanto, não adianta ir atrás de político: “tem um político lá perto que é Adão Eridan, mas não adianta de nada porque é por cara que ele ajuda. Não é a todo mundo que ele ajuda. Aí não adianta nem a gente ir atrás de político.” 160 Acerca do uso da SEMTAS e, sobretudo, do espaço do DAS como lugar das trocas políticas com as lideranças comunitárias, o depoimento da atual Secretária mostra que romper com tais práticas e com a forma como se deu historicamente a relação do Município com estas organizações comunitárias, não tem sito fácil. A gente tem procurado pautar essa relação de uma forma bem transparente. A gente tem pontuado a forma que a gente trabalha, temos dito às lideranças comunitárias que aqui a gente não vai 157 Janete Aquino Silva. Usuária do Plantão Social. Entrevista realizada aos 06 de agosto de 2004. Ilsamar Silva Pereira. Assistente Social. Coordenadora do Departamento de Assistência Social e do Plantão Social da SEMTAS. Entrevista realizada aos 04 de agosto de 2004. 159 Idem. 160 Janete Aquino Silva. Usuária do Plantão Social. Entrevista realizada aos 06 de agosto de 2004. 158 249 construir isso, não vai construir aquilo, que o recurso público é para investimento em bens públicos. Quando a gente vai para as comunidades a gente fala... aí a gente procura alternativas juntos entendeu? Eu tenho procurado muito, como aqui é a secretaria de trabalho também, eu tenho procurado muito empreender esses espaços. A gente fez a parceria com o SEBRAE pra trabalhar os cursos de empreendedorismo que para eles serem entidades autônomas, independentes. Eu digo muito: isso é esmola minha gente? Vocês vão viver a vida toda de esmola, pedindo? Vocês têm que querer ser independente..... a gente vai tentando imprimir isso. Mas, não é fácil. Não é fácil mesmo, mas a gente não abre mão. A gente coloca o que é possível fazer dentro da legalidade. [...]. Agora não querem... muitas reclamam muito. Teve uma liderança que cuspiu Albanisa. Eles não aceitam, ameaçam, na época da campanha diziam que eu não era política, que eu não iria ajudá-los. Tem liderança comunitária que se cruzar comigo numa rua, passa para o outro lado. A gente fez aqui realmente.... mudou algumas coisas.... tinha que ser! Mudou a forma de relação, tinha que ser, principalmente no DAS [Departamento de Assistência Social]. Porque a atuação do DAS antes era uma atuação com as lideranças comunitárias, com os currais dessas lideranças e como tudo isso acontecia. Acho que tinha uma coisa bem eleitoreira, de alguns políticos que criam esses currais, é fácil para eles se elegerem dessa forma. É uma coisa assim, que preocupa muito a gente enquanto gestor por entender o significado do que é estar aqui nesse lugar, do que você vai deixar, virão os filhos da gente, outras gerações... preocupa muito a qualidade. O que a gente pode fazer a gente faz, mas a gente 161 não pode ir além desse limite. Mas a relação de troca entre lideranças políticas e lideranças comunitárias continua acontecendo, sobretudo, em momentos eleitorais: Num dia de chuva, na campanha de Márcia [Márcia Maia], lá na Ribeira, a gente botou [reuniu] 464 pessoas. Chovendo toró! A gente mostrou que se ela tivesse um trabalho social teria retorno político. Distribuí senha aqui [no Bairro de Brasília Teimosa], dizendo: vamos ajudar nossa amiga Márcia! Ah! levaram foi vizinho, os amigos e tudo! Era coisa planejada pra 150 pessoas. 162 Foi um negócio fantástico! Se, na sociedade civil organizada, é cada vez mais presente a existência de sujeitos que “se fazem ver” que “se pronunciam entre o justo e o injusto”, que “comparecem na cena política como sujeitos portadores de uma palavra que exige o seu reconhecimento” (TELLES, 1999, p. 180), como é o caso dos Sem 161 Andréa Ramalho Pereira Alves. Atual Secretária Municipal de Assistência Social de Natal. Entrevista realizada aos 22 de dezembro de 2004. 162 Luiz Antônio. Coordenador do Núcleo de Ação Social de Brasília Teimosa. Entrevista realizada aos 15 de julho de 2004. 250 Teto, Sem Terra, Negros, Indígenas, Mulheres, e tantos outros grupos que se organizam, conseguem se expressar e lutar por direitos, no âmbito da assistência social, os usuários (muitos deles também mulheres, indígenas, sem teto etc) não só ainda não conseguem comparecer na cena política, como também desconhecem qualquer informação sobre direitos os já conquistados. Esta é inclusive uma das constatações cotidianas da atual coordenação do DAS na SEMTAS: [...] uma boa parte dos nossos usuários não sabe a que tem direito. Essa questão do BPC [Benefício de Prestação Continuada], da aposentadoria. Essa questão de ¼ do salário mínimo como per capita é um critério absurdo para a concessão do BPC. Na minha dissertação eu contactei pessoas que sobreviviam com 0,30 centavos/dia. Isso é miséria absoluta. E aqui não está distante disso não. Você pega 260,00 e divida isso por 10 pessoas dentro de casa. Dá R$ 26,00. Se dividir isso por 30 dias! A exclusão da renda é objetiva. Mas, a questão do conhecimento, da falta de acesso à informação é também muito séria.163 Para uma das assistentes sociais que trabalham no atendimento do DAS o que predominou no setor até recentemente foi, efetivamente, assistencialismo. A idéia predominante no DAS era da assistência social como ajuda, assistencialismo mesmo. Não havia essa preocupação e ação que temos hoje de tentar possibilitar o acesso dos usuários a outros programas e serviços, de encaminhamento, de ouvir o usuário, elaboração de relatório. Não havia essa prática. Hoje em dia essa população nos procura pedindo para fazer um cadastro para ter direito a receber um sacolão [cesta básica]. Porque era só 164 isso que este setor fazia. No caso do programa com Idoso, a divulgação e o acesso destes à informação sobre direitos não tem sido uma preocupação do trabalho realizado junto aos grupos, pela ATIVA. Até mesmo a divulgação dos serviços existentes como o S.O.S Idoso e o Centro de Referência e Atenção ao Idoso – CRIAI, é feita de forma deficitária. O acesso dos Grupos de Idosos ao programa é simples: basta que o grupo esteja em funcionamento, “registra o grupo na ATIVA. A partir 163 Ilsamar Silva Pereira. Assistente Social. Coordenadora do Departamento de Assistência Social e do Plantão Social da SEMTAS. Entrevista realizada aos 04 de agosto de 2004. 164 Andréa Cavalcante. Assistente Social do Plantão Social. Entrevista realizada aos 04 de agosto de 2004. 251 disso, recebe o lanche e o acompanhamento técnico.” 165 Para os grupos esse acompanhamento, mesmo precário, ineficiente tem uma grande importância. [...] para muitas lideranças comunitárias, formar um grupo de idosos dá destaque junto a ATIVA e a SEMTAS, porque são coordenadores voluntários, geralmente políticos de base. Normalmente esses grupos têm um político por traz. [...] Geralmente, um Grupo de Idoso, ele sempre tem um padrinho político. A maioria. É raro não ter. Tem sempre aquele político que vem visitar no dia dos pais, no dia das mães, ajuda no presente do dia das mães....166 Eu fiquei um ano sem ir lá na ATIVA desde que o grupo foi criado. Doutor Franklin167 também não sabia. Eu pensava que só tinha direito quem fosse de grupos. Não sabia que grupos de pastoral tinha direito. Aí a Dra. Márcia [Maia] é uma pessoa muito conhecida minha. Conheço Vilma [de Faria] de muitos anos. Lá em Mossoró a gente se conhece de muitos anos. Aí Doutor Franklin disse Júlia, vamos tentar colocar a pastoral na ATIVA para ganhar o lanche, ganhar professores.... Nós fomos lá e conseguimos e aí vieram todos os direitos.168 O acesso ao PETI, em tese, atende aos critérios voltados para as finalidades deste programa. O seu coordenador, na época da realização da coleta de dados, contudo, não omitiu o fato de que há uma demanda dos conselhos comunitários pela inclusão de crianças no programa: Chega muito pedido de inclusão de crianças por parte dos conselhos comunitários. Mas, a gente só atende aqui aquelas crianças que atende aos critérios do PETI: tem que estar realizando alguma atividade laboral, tem que estar na faixa etária do PETI etc. Além do que temos que respeitar a lista de espera. A gente só dá prioridade para dois órgãos: Delegacia Regional do Trabalho e o Conselho Tutelar. A DRT, eles não fazem a fiscalização que deveriam fazer porque a quantidade de fiscais é pequena, pra você ter uma idéia o grupo especial de combate ao trabalho infantil da DRT tem 3 fiscais pra Natal toda. Quando eles mandam é porque já pegaram aquela criança na rua exercendo atividade laboral. Quando chega aqui, mesmo não tendo a vaga, a gente deixa ele na fila mas com uma prioridade. E o Conselho tutelar. A gente sempre dá uma prioridade para o Conselho Tutelar, mas sempre dando uma investigada. Porque no caso do 165 Francisca Laíres Rodrigues de Oliveira. Assistente Social do Programa de Atenção ao Idoso (ATIVA). Entrevista realizada aos 11 de agosto de 2004. 166 Idem. 167 Refere-se a Franklin Capistrano, médico e vereador pelo PSB em Natal. 168 Júlia Alves da Silva. Coordenadora do Grupo de Pastoral do Idoso da Igreja São Sebastião (Alecrim). Assessora de Gabinete do Vereador Franklin Capistrano (PSB). Entrevista realizada em 22 de julho de 2004. 252 Conselho Tutelar, muitas vezes é a família quem procura o Conselho Tutelar para pedir que aquela criança seja inserida no PETI. O Conselho Tutelar não vai fazer um trabalho investigativo pra olhar se aquela criança está dentro dos critérios, se a faixa salarial que ela declarou é aquela mesma... tem casos aqui, que eu já vi, de gente chegar aqui pra pedir inclusão no PETI que a gente olha e diz logo: essa pessoa é carente! Fica ali, maltrapilho, mas acontece que a gente vai à comunidade e encontra a pessoa super bem da vida. Então, o Conselho Tutelar a gente atende, agora, a gente dá uma olhada, dá uma verificada pra ver se aqueles dados são realmente verdadeiros. No caso da DRT a gente acata porque sabe que aquela criança ela foi abordada no meio da rua, ou então quando é enviada pelo nosso programa “Canteiros da Cidadania”.169 Os relatos de alguns usuários confirmam a forma de acesso ressaltada pela coordenação do programa: Meu menino vivia na rua e a ronda foi pegou ele. Aí eu fui na SEMTAS, falei com Sandro e consegui botar ele aqui.170 Eu trabalhava lá em cima, no lixo. Só que na época meu menino não tinha idade. Quando a minha menina completou 7 anos, eu fui chamada e coloquei. Isso mudou bastante, tanto a vida dela como a minha. Eu não levava ela para o lixão, mas ela ficava em casa e tinha responsabilidades de adulto, porque ela que cuidava da casa, fica ali, controlando até eu chegar. Quando veio pra cá ela passou a brincar, foi ficando esperta nos estudos, passou a viver a vida de criança que é o que realmente ela é. Depois eu coloquei o outro menino e quando foi esse ano eu completei o sonho totalmente de colocar os três aqui. Aí eu trabalho tranqüila. Nesse horário vem todos três pra cá. 171 Eu acho que isso já mudou muito. Não há mais aquela coisa do padrinho não. No público que eu trabalho aqui não há aquela coisa do apadrinhamento. A pessoa que chega aqui tanto faz, ser abordada pelo Programa Canteiros da Cidadania, como pela DRT ou Conselho Tutelar. 172 Entretanto, o acesso ao PETI também pode ocorrer pela via das relações de amizade e “conhecimento”: “entrei por conhecimento. Porque a mãe da minha nora trabalha na SEMTAS, aí conseguiu botar o meu menino. Eu estava numa 169 Sandro Sergio Trigueiro da Costa. Teólogo. Coordenador do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. Entrevista realizada em 01 de junho de 2004. 170 Eliene Lima Andrade. Usuária do PETI. NAS Cidade da Esperança. Entrevista realizada em 30 de julho de 2004. 171 Damiana dos Santos. Usuária do PETI. Núcleo de Ação Social - NAS Cidade Nova. Entrevista realizada aos 19 de julho de 2004. 172 Lucila Dantas. Coordenadora do NAS Estação do Futuro, Cidade da Esperança. Entrevista realizada aos 07 de julho de 2004. 253 situação difícil, ela comentou com a mãe, aí me chamaram pra mim fazer o cadastro e aí eu consegui.”173 Outro exemplo em que a execução de um determinado serviço ocorre pela via das relações clientelistas e não do direito, foi a forma como ocorreu a instalação de um Núcleo do PETI em Brasília Teimosa. A liderança comunitária, no entanto, considera a negociação realizada com o poder público, neste caso, uma superação de práticas anteriores, que segundo ela, havia beneficiado pouco a comunidade. Afirma ainda que não negocia benefícios pessoais nem coisas pequenas, mas benefícios para a comunidade: Tem uma senhora aqui que é Zulmira Barbosa, tem 96 anos, foi do Araruna, lideranças aqui que a gente se espelhou neles. Mas eu tenho uma raiva, porque ela negociava apoio político por meia dúzia de copo para os idosos. Não era assim 10 mil reais no bolso não, você ta entendendo? Então com isso eu aprendi algumas coisas. [...] Na época eu era presidente, eu fiz uma negociação pra trazer esse projeto, mas com uma condição: se a gente administrasse. Na época foi uma negociação política. Eu tinha vindo do PT, tinha ido para o PDT, tava... na hora era me oferecido um cargo na secretaria e tal um série de coisas. Eu disse não. Eu estou saindo de um sistema político que no meu ver é de oposição e é de luta e a gente troca isso por um benefício pra comunidade. Pra alguém dizer que eu recebi dinheiro e agora estou no bem bom, não. Tem um pessoal na equipe da gente, que a gente já trabalha há muitos tempos, essa pessoas que ocupariam esse espaço, trabalhariam o lado técnico, mas o lado social é obrigação nossa com a comunidade. No dia seguinte me chamaram. Eu tinha um cargo que na época seria R$ 1.700,00. Mas com o Projeto aqui eu emprego 11 pessoas. Eu ficava com R$ 1.700,00 e a comunidade, como ficaria? Aí com isso a gente conseguiu aluguel, tudo com isso. Mas, em pleno ano político, o 174 prefeito precisando de apoio, se nega a dar uma bola! Para a subcoordenadora deste Núcleo, a população percebe as ações do PETI como obrigação do governo; como direito, mas, não tem consciência, não reconhece o trabalho feito pela liderança comunitária do bairro: Eles percebem como uma obrigação do governo. Percebem como um direito. Mas, nessa época de eleição eles votam em quem der 10 reais, uma camiseta. Isso é marcante aqui e é difícil mudar. Não tem a consciência de votar em Luís Antônio,175 porque ele 173 Roseana Dias da Silva. Usuária do PETI. NAS Zona Norte. Entrevista realizada aos 29 de julho de 2004. 174 Luís Antônio. Coordenador do NAS de Brasília Teimosa. Entrevista realizada em 15 de julho de 2004. 175 Luís Antônio é o coordenador do Núcleo e candidato a vereador. 254 mantém esse projeto, porque ele trouxe esse Núcleo pra cá (porque realmente ele trouxe), funciona pra beneficiar a comunidade, os funcionários, na maioria, são da comunidade, independente de analisar critérios, de ver se o instrutor tem ou não condições, mas pra beneficiar a comunidade. Mas o povo não tem esta visão. Já não sei quantas campanhas ele sai mas, não consegue. Se uma pessoa que não chegou a ser vereador, já trouxe algo de bom pra mim, imagine o que essa pessoa pode trazer se for eleito. Ele gastou muita gasolina pra trazer esse projeto pra cá, ele rodou muito pra atender essa comunidade. Aqui, o índice de prostituição é enorme. Prostituição e droga. Crianças que são usadas para esconder, pra vender a droga. No tocante à percepção dos usuários sobre os serviços, a constatação da coordenação do “Plantão Social” é de que muitos usuários percebem o serviço ou benefício recebido como um favor: [...] percebem como favor. Por mais que a gente explique que é um direito, que é lei, que obrigação do Estado. [...] O usuário tem na mente que isso aqui é cadastro de cesta básica, porque historicamente vieram aqui buscar cesta básica. Era isso que o plantão fazia. Tem gente que todo mês vinha aqui buscar essa cesta básica [...] Como a nossa retaguarda não funciona, aí é essa coisa: bate aqui e volta. É assistencialismo, mal feito até.176 No âmbito dos Grupos de Idosos, o que predomina é a visão dos serviços prestados pela ATIVA como um favor: “Alguns vêem como um favor. Outros, como o Inaraí, o grupo de Mirassol, o de Candelária não; vêem isso como um direito, e pronto. Mas, na Zona Norte, a maioria fica agradecida à ATIVA pelo resto da vida.” 177 É isto, por exemplo, que explicita uma coordenadora de Grupo de Idosos na Região Norte: “Acho que a gente deva apoiar a ATIVA. Eles estão com a gente toda a vida, tanto faz ser época de política, como não ser de política. Aí a gente deve apoiar mesmo.” 178 No caso do PETI, tanto a visão do usuário quanto o relato do coordenador sobre a forma como o usuário percebe o benefício e os serviços do Programa ressaltam a questão do favor. Contudo, o referido coordenador ressalta que há usuários que percebem os serviços como um direito: 176 Ilsamar Silva Pereira. Assistente Social. Coordenadora do Departamento de Assistência Social e do Plantão Social da SEMTAS. Entrevista realizada em 04 de agosto de 2004 177 Francisca Laíres Rodrigues de Oliveira. Assistente Social do Programa de Atenção ao Idoso (ATIVA). Entrevista realizada em 11 de agosto de 2004. 178 D. Francisca. Coordenadora do Grupo de Idosos N. Sra. Da Apresentação, Loteamento Vale Dourado. Entrevista realizada em 14 de junho de 2004. 255 Realmente, quando uma família é contemplada ela fica extremamente agradecida. Isso parece está entranhado no povo. Mas, já vemos também que nas reuniões mensais com os pais a gente nota que metade dos pais em cada núcleo concebe o PETI como um direito. Antes era todo usuário que achava que a gente estava fazendo um favor. Hoje a gente percebe que eles reivindicam os direitos deles. Nós temos um problema sério no PETI que é o atraso dos recursos. Para se ter uma idéia, agora em maio nós pagamos os meses de fevereiro, março e abril. E ontem eu recebi a comunicação que o dinheiro de maio já estaria chegando dia 30 de maio. Isso é uma boa notícia.179 Por outro lado, a visão de que programas sociais, e, sobretudo, programas de transferência de renda conduzem à acomodação e à preguiça, ainda é algo presente na visão de coordenadores de programas. A visão do pobre como preguiçoso, acomodado e culpado pela sua pobreza, é parte do caráter autoritário da sociedade brasileira (YAZBEK, 2004a, p. 19) e um dos elementos da “cultura do atraso”. O depoimento a seguir é ilustrativo desta visão: Um outro problema dos programas sociais é a questão da família achar que aquele benefício que ela estar recebendo é um salário e muitas vezes se acomoda. Às vezes eu faço visita e muitas vezes você chega numa casa está lá: pai e mãe dentro de casa, sem fazer nada e quando o dinheiro atrasa diz: “olha, está tudo atrasado lá em casa, a feira está atrasada!” Aí até a gente conseguir explicar para esta família que aquela bolsa é um incentivo para que a criança continue na escola e longe da atividade laboral. Muita gente entende estes programas sociais como um salário.180 Alguns dos técnicos entrevistados observam sinais de mudança em direção ao direito nas atitudes dos usuários diante dos serviços. Mas consideram necessário que os técnicos estimulem isso: “eles ainda percebem como um favor. Mas eu acho que isso está mudando, que a população está acordando para o acesso a estes serviços como um direito. E a gente precisa estimular isso.” 181 . Mas a visão dos serviços como ajuda ou favor e as atitudes de gratidão, diante dos benefícios e serviços recebidos, ainda são predominantes. Conforme a subcoordenadora do NAS de Praia do Meio “os pais recebem isso como gratidão, 179 Sandro Sergio Trigueiro da Costa. Teólogo. Coordenador do PETI. Entrevista realizada em 01 de junho de 2004. 180 Idem. 181 Andréa Cavalcante. Assistente Social do Plantão Social. Entrevista realizada em 04 de julho de 2004. 256 porque os filhos estão aqui, eles estão seguros, estão longe das drogas, não estão indo pra rua.” 182 Tal opinião é partilhada também por outros coordenadores de núcleos do PETI: Olha, elas são muito satisfeitas com o programa. Elas dizem que não sabe o que seria da vida delas se não tivesse vindo esse programa pra cá. Dizem até que a gente é a segunda mãe, o que a gente disser é lei. Porque realmente isso é dito por elas. Elas têm uma consideração, ela tem um respeito muito grande pelo projeto.183 [...] eu vou tentando desmistificar, mas tem muitos que percebem isso como ajuda. Em muitas falas você escuta: muito obrigado! Outro dia teve um rapazinho que a gente conseguiu inserir no Programa Aprendiz Cidadão, do governo do Estado, ele veio para mim: Dona Margareth, muito obrigada. Eu falei não! É conquista sua. É você que está no primeiro ano, foi você que fez o teste... Aqui mesmo na região norte, eu tenho me surpreendido. Tem pais, tem famílias que já têm uma visão mais aguçada nessa questão dos direitos. Eles já não estão tão bobos. E eu acho que a grande contribuição do Serviço Social é está fomentando essa percepção de direitos. É está motivando...184 Para alguns usuários a bolsa e os serviços recebidos são um direito e não se sentem na obrigação de votar em ninguém por conta disso. Os programas federais aparecem nos depoimentos como algo isento da relação de troca: [...] isso é uma coisa que vem do presidente, não tem nada a ver com vereador, prefeito. Agora, eles é que fazem a vez do presidente. Muitas vezes eles ameaçam a gente: você vai votar em mim, fui eu que fiz isso, fiz aquilo. Mas eu acho que isso não tem nada a ver não. Porque eu acho que é um direito das crianças não é? Hoje tem poucas crianças na rua. As mães estão satisfeitas com as crianças aqui. 185 Esta visão, no entanto, não é predominante. Ao lado dos usuários que percebem os serviços como direito, há os que acham que podem perder a bolsa se não votarem nos candidatos ligados do prefeito ou prefeita e aqueles para 182 Rosa Gerusa Lopes. Subcoordenadora do NAS de Praia do Meio. Entrevista realizada em 14 de julho de 2004 183 Ivanise Laurentino da Silva. Assistente Social do NAS Cidade Nova. Entrevista realizada em 09 de julho de 2004. 184 Margareth Ferraz. Assistente social, coordenadora do NAS Zona Norte. Entrevista realizada em 20 de julho de 2004. 185 Irma Alves de Paiva. Usuária do PETI, NAS de Praia do Meio. Entrevista realizada em 30 de julho de 2004. 257 quem o voto nos que ocupam o governo e, sobretudo, o voto em Vilma já é algo permanente. “Eu sempre voto no Prefeito. Meu voto é daqui de Natal. Eu votei em Dona Vilma pra ela ser prefeita e votei nela pra ser governo.” 186 5.5 A questão da qualidade dos serviços prestados Tem sido historicamente uma marca da assistência social, ser uma política pobre para os pobres, fundamentada na idéia de que “para pobre qualquer coisa serve.” Assim, a escola de baixíssima qualidade, com professores desqualificados e insuficientes, sem laboratórios, sem bibliotecas e com merenda escolar que serve qualquer coisa; a saúde com atenção precária; a pavimentação que não resiste às primeiras chuvas; a assistência social como ação pontual, descontínua, sem nunca se constituir responsabilidade pública; e assim por diante. Dessa forma, políticas sociais públicas que deveriam atender a necessidades sociais, reduzem-se a políticas para necessitados. No Plano Municipal de Assistência Social de São Paulo, a então secretária Aldaíza Sposati ressalta que “isto não deixa de ser uma forma de apartação social” e uma perspectiva discriminatória que transforma o Estado em “socorrista dos necessitados” ao invés de “provedor de necessidades sociais” (SÃO PAULO..., 2003, p. 7). A LOAS rompe com estas práticas, quando define em seu Artigo 4º que um dos princípios desta política é o “respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade” (BRASIL..., 2004a). No caso da execução desta política em Natal, não há, no órgão gestor, definição quanto a padrões de qualidade, seja nos serviços prestados em rede própria, seja naqueles prestados pela rede privada-filantrópica. A atenção de qualidade, quando existe, independe de iniciativas do órgão gestor nesta direção. Entre os programas visitados, os depoimentos sobre a baixa qualidade dos serviços e a falta de condições de trabalho são predominantes. 186 Maria de Lourdes Silva dos Santos. Usuária do PETI. NAS da Zona Norte. Entrevista realizada em 29 de julho de 2004. 258 No caso do Programa de Atenção ao Idoso executado pela ATIVA, destaca-se no relato dos entrevistados sobre o assunto: a baixa qualidade da alimentação, a falta de profissionais, de equipamentos e de material para trabalhos manuais. Um coordenador de Grupo de Idosos enfatizou a questão da qualidade do lanche oferecido: “O lanche deveria ser orientado por nutricionista, porque também não atende muito não. Muitas vezes mandam papa, ou um sopão que era sal puro, quando o lanche é deficitário a gente tem que complementar ou substituir.” 187 Uma coordenadora ressaltou a falta de professores e de material: “falta professores de trabalhos manuais. Falta material. Às vezes mandam professor de trabalhos manuais mas não mandam material. Aqui é muito carente. Às vezes eu compro do meu dinheiro, mas não dá pra atender todo mundo.” 188 Assim, a precariedade da atenção nos Grupos de Idosos, de uma forma geral é muito presente. Não adianta dizer assim: tem o instrutor, mas quando chega aí, cadê o material para ele trabalhar? Muitos idosos não vem porque não tem nada pra ele fazer. Quando chegam aqui diz assim: se não tiver um forró, se não tiver brincadeira eu não venho mais. [...] Eu vou atrás de um ônibus, às vezes quando chega aqui é maior dificuldade. Até pra conseguir um ônibus é uma dificuldade. E eu ainda faço uma cotinha para agradar o motorista, porque quando ele vem fica na responsabilidade da gente, de uma hora pra outra pode acontecer qualquer coisa com qualquer uma e o ônibus está ali e a gente vem embora.189 Porque a minha comunicação era com a ATIVA. Bom, aí comecei a fazer reuniões com eles. As meninas vinham fazer os trabalhos manuais, atividades com eles. Consegui escola pra eles, através de um projeto em parceria com a universidade (trata-se do programa de elevação de escolaridade). Eu levo eles para passeios. A ATIVA se responsabiliza pelo ônibus para vir pegar eles. Tem a merenda pra eles todo dia de reunião, a ATIVA manda deixar. Quando um adoece eu vou procurar um médico, faço uma festinha, tudo o que eu faço é com eles. Eu estou muito feliz. E outra, quando não tem um local pra botar o grupo, eu me preocupo muito com eles. Aí eu luto, batalho. Já teve um tempo de ficar sem um local pra escola e para o grupo. O Conselho [Comunitário] de Jardim Primavera construiu uma sede dizendo que era para os idosos. Quando terminou, que eu procurei, disseram não. Isso aqui não é para os idosos. Aí eu fiquei 187 Carlos Magno. Coordenador do Grupo Inaraí. Centro da Cidade. Entrevista concedida em 30 de agosto de 2004. 188 Senhora Maria José. Coordenadora do grupo de idosos Encontro de Irmãos no bairro das Quintas. Entrevista realizada no dia 23 de julho de 2004. 189 Senhora Maria Eunice. Coordenadora do Grupo de Idosos “Flor de Lírio” no Conjunto Pajuçara. Entrevista realizada aos 15 de julho de 2004. 259 batalhando. A universidade alugou o prédio para funcionar a escola e o grupo de idosos. Aí o ano passado a universidade parou. Aí eu fiquei sem um local pra gente ficar. Graças a Deus teve uma pessoa que me ajudou muito. Foi Júnior. Ele foi cedeu esse prédio. A gente não paga aluguel. Disse pode ficar funcionando aí a escola e o grupo. Botou uma freezer. Quer dizer, estão apoiando o grupo. A pessoa que cedeu esse prédio é Júnior Rodoviário [vereador pelo Partido dos Trabalhadores e Presidente do Sindicato dos Rodoviários]. Rafael é meu genro, ele trabalha no sindicato [Sindicato dos Rodoviários], aí eu falando pra ele, ele falou com Júnior e ele foi e cedeu. A ATIVA não tinha condições de pagar aluguel. A universidade [Federal do RN] também falou que não iria mais pagar aluguel.190 Para o coordenador do PETI há sim uma preocupação do órgão gestor com a qualidade do serviço prestado: Se existe uma questão que Andréa bate o pé e não abre mão é com relação a qualidade. A gente tem tentado romper as barreiras financeiras. A gente tem uma barreira financeira. A gente aqui no DACA [Departamento de Atenção à Criança e ao Adolescente] tem tentado imprimir uma qualidade em todos os nossos departamentos: creches, núcleos de ação social, casas de passagem, para que sejam coisas de qualidade [...]. Eu diria que as condições de trabalho no PETI são relativamente boas. Se você visitar nossos seis núcleos você vai ver. Nós temos 79 educadores, 90% deles têm nível superior completo ou em andamento. Tem alguns que têm magistério, mas o pessoal que está trabalhando na ponta com a criança, no reforço escolar e em boa parte das oficinas, é o pessoal que tem nível superior, é pessoal capacitado. Aqueles que não têm nível superior, é porque é uma pessoa que tem um saber e uma experiência acumulada em determinado tipo de atividade, como por exemplo, certos trabalhos manuais. São pessoas que dominam aquilo que ensina. O ministério não toca nem nesse assunto, mas por uma questão de coerência a gente tem privilegiado essa qualidade do corpo técnico. A gente está trabalhando no limite. Se a gente tivesse oportunidade de ter mais alguém seria ótimo.191 Os relatos de assistentes sociais ou coordenadores de Núcleos do PETI apresentados anteriormente no entanto, contradiz a argumentação do coordenador, de que há uma preocupação do órgão gestor para com a qualidade dos serviços. A exceção fica apenas por conta da alimentação, que para a maioria é de qualidade, e recebida em quantidade suficiente para atender às 190 Senhora Francisca. Coordenador do Grupo de Idosos N. Sra. Da Apresentação, Loteamento Vale Dourado. Entrevista realizada aos 14 de junho de 2004. 191 Sandro Sergio Trigueiro da Costa. Teólogo. Coordenador do PETI. Entrevista realizada a 01 de junho de 2004. 260 necessidades dos usuários. Além do que já foi exposto, os depoimentos a seguir também ressaltam as dificuldades enfrentadas nos Núcleos: Essa casa aqui foi conseguida através de muita luta, porque aqui não tinha um espaço físico que oferecesse conforto, tem as salas que a gente precisa. A casa funciona com uma infra-estrutura regular, é uma das melhores que tem. Lógico que ainda falta muita coisa. A casa é alugada e tudo vem da secretaria: alimentação, funcionário, material pedagógico, mobília. Tudo vem da secretaria, o governo federal só paga unicamente a bolsa. Mas, nós temos aqui alguns bolsistas que recebem pelo PETI também, o salário deles sai de acordo com o salário dos meninos. Mas a casa, ela é totalmente sustentada pela secretaria.192 Uma dificuldade é a questão de material e que a gente não consegue avançar no trabalho técnico, no sentido de sistematização, de produção de relatórios, de supervisões técnicas. A gente só tem supervisão aqui que chega na hora do aperto. Na hora de uma reunião, na hora de uma festa. A nutrição consegue vir aqui um pouco. A alimentação tem atendido a necessidade, a alimentação não tem faltado. Tem uma turma que toma duas refeições que é essa da manhã cedo. Ao todo são cinco refeições por dia. A primeira turma toma café e almoça antes de ir pra casa, segunda turma almoça também...193 Ainda no caso do PETI, a baixa qualidade dos serviços é sentida pelos usuários, de diferentes formas: pelo atraso no pagamento das bolsas, um dos aspectos da qualidade que mais prejudica o seu dia-dia; o fato de alguns núcleos não servirem refeição, mas apenas lanche; e a falta de ações de apoio às famílias com vistas à sua inserção no mercado de trabalho. Estes usuários querem viver com dignidade e o trabalho é o que pode lhe assegurar isto. Seus depoimentos revelam o que já foi ressaltado por Yazbek (1993, p. 167) ao mostrar que os usuários da assistência social resistem ser nivelados “como assistidos, condição plena de estigmas e desqualificações.” É R$ 40,00 e passa três meses pra sair, se fosse depender desse dinheiro? Se fosse pouco mas saísse todo mês a gente tinha uma base do que ia fazer. Esse negócio do Vale-Gás. Sai um mês e outro não. O governo sabe, a prefeitura sabe, os políticos sabe, todo mundo sabe que a gente não come um mês e outro não. E o gás a gente não compra um mês e outro não. Todo mês a gente tem que está com o dinheirinho do gás. Se eu não tiver o dinheiro 192 Rosa Gerusa Lopes. Subcoordenadora do NAS de Praia do Meio. Entrevista realizada aos 14 de julho de 2004. 193 Margareth Ferraz. Assistente Social, coordenadora do NAS Zona Norte. Entrevista realizada aos 20 de julho de 2004 261 da minha faxina pra comprar o gás, pra pagar uma água, pra pagar uma luz, pra comprar uma mistura.... comida é o custo mais caro que tem. Disso aí tudo o que é mais caro é a comida, todo dia você tem que comer. Hoje melhorou, mas teve dia lá em casa 194 de não ter nem um pão. Os serviços prestados às famílias vinculadas ao PETI, como a qualificação profissional, não atende a realidade dos usuários: Aqui eu fiz curso de doces e salgados, camareira, corte e costura, bolos e tortas. Mas, eu faço pra mim mesmo. Mas, pra aumentar a renda, pra trabalhar não. Pra aumentar a renda, num negócio desse é preciso investir muito. [...] Eu tenho vontade de botar um churrasco. Não é esse churrasco que tem aí em todo canto. É um churrasco diferente, que eu tenho na mente. Mas, eu não tenho condição, porque só a máquina é uma danação de dinheiro. Se eu tivesse uma ajuda, eu estaria trabalhando aí nessa beira de praia que é enorme. Não precisava estar lavando roupa ou fazendo faxina. Estaria trabalhando e ganhando meu dinheirinho. Essa beira de praia não tem dono. O dono somos nós que somos os trabalhadores. Qualquer coisa que você bote aí nessa beira de praia vende. O dinheiro que eu pego é pouco. Não vou dizer a senhora que é muito porque não é. Quando não é pra comida, é 195 pra ajeitar um fogão, comprar uma panela. Eu comecei o curso de televisão, mas devido as dificuldades financeiras eu não terminei. Eu trabalho só com quê? Concertando rádio, concertando som, aquelas coisas mais simples. Se tivesse o curso de eletrônica eu concertava até vídeo, 196 televisão... Tem particular, mas custa caro. Devia servir refeição. Se tem uma parte aqui que tem o que comer em casa, eu tenho certeza que 50% das crianças que estão aqui não têm o que comer em casa. Dava pra prefeitura dar uma refeição. Café, almoço e janta. Dificuldade também de não ajudar 197 a pessoa a botar o seu próprio negócio. Até mesmo na própria sede da SEMTAS, a precariedade das condições de trabalho e de atendimento ao usuário se faz presente. No caso do Plantão Social, as condições de trabalho são as piores possíveis, conforme o relato de uma assistente social: 194 Irma Alves de Paiva. Usuária do PETI, NAS Praia do Meio. Entrevista realizada aos 30 de julho de 2004. 195 Idem. 196 Senhor Armando. Usuário do PETI. NAS Praia do Meio. Entrevista realizada aos 30 de julho de 2004. 197 Irma Alves de Paiva. Usuária do PETI, NAS Praia do Meio. Entrevista realizada aos 30 de julho de 2004. 262 O espaço físico precisa melhorar. Isso aqui na verdade, é um armazém que foi transformado em secretaria. Nós atendemos 40 pessoas por dia. Toda a população que nos procura fica aqui, junto com o cadastro único, nesta sala de espera. O barulho é muito grande. Acho que precisa de salas mais reservadas para o plantão. As pessoas ficam expondo seus problemas publicamente porque não há como garantir o sigilo nestas condições físicas. Para elaboração do relatório não há como a gente ter 198 concentração com o barulho e a movimentação na sala. Mas não é só nas condições de trabalho que se revela a precariedade dos serviços prestados. A permanência de uma assistência social como atenção provisória e incapaz de resolver as necessidades dos que a ela recorrem é outro problema desta política em Natal destacado pela Coordenação do DAS: [...] O sujeito não pode parar aqui no DAS, solicitar e voltar sem nenhuma orientação. Ou então a gente encaminhar para outros programas: programa de creche, PETI, Agente Jovem e aí não aceitarem. Não tem vaga! Não tem vaga!...Que atendimento a gente está dando a estas famílias?! Uma mera cesta básica?! Daqui a três semanas ele está aqui de novo para pedir outra cesta básica. Apesar de reconhecer a importância da cesta básica para situações emergenciais, se a gente está aumentando este benefício isso mostra a fragilidade dos demais programas, porque era para a gente diminuir as cestas básicas e aumentar as metas dos programas e dos serviços continuados, não é verdade? Como há essa dificuldade... uma das coisas que a SEMTAS tem que está discutindo com as diversas esferas do Estado é a sua demanda. Se temos o dado de que 57,8% da população de Natal tem um per capita de até oitenta reais, são pessoas indigentes. Se consideramos uma população de 740 mil habitantes, isso implica em mais de 300 mil pessoas necessitando da assistência social para sobreviver. Esse é o nosso público alvo. E aí, essas metas 199 representam o quê? Do ponto de vista dos gestores, uma oficina de planejamento estratégico apontou como problemas relacionados à questão da qualidade dos serviços a falta de equipamentos sociais, a inexistência de mecanismos e instrumentos de monitoramento de avaliação das ações e a significativa demanda reprimida (NATAL..., 2005, p. 10). 198 Andréa Cavalcante. Assistente Social do Plantão Social. Entrevista realizada aos 4 de agosto de 2004. O DAS possui uma única sala para todo o atendimento das ações ligadas a este departamento – Plantão Social, SOS Idoso, Programa de Atenção Integral à Família – são cerca de 5 a 6 pessoas profissionais atendendo numa única sala. Há uma outra sala para a coordenação e vice-coordenação do setor. 199 Ilsamar Silva Pereira. Assistente Social. Coordenadora do Departamento de Assistência Social e do Plantão Social da SEMTAS. Entrevista realizada aos 04 de agosto de 2004. 263 5.6 O lugar da assistência social no enfrentamento das necessidades sociais para os usuários Conforme ressalta Sposati (2004b, p. 40-41) a assistência social como seguridade social “é particularidade brasileira.” Como campo da seguridade social, ela é “proteção” e “deve operar preventiva e protetivamente nas situações de risco social.” Conforme a autora, é política pública que “deve ofertar a provisão de necessidades fora do mercado, isto é sustentadas pelo orçamento público na qualidade de garantia social.” Mas, na realidade concreta dos municípios e da vida dos usuários da assistência social, esta política ainda não parece ser uma referência para enfrentar problemas, como: os baixos rendimentos que não chegam se quer a assegurar a alimentação diária; o desemprego ou uma vida inteira fazendo bicos para sobreviver; o analfabetismo ou os baixos níveis de escolaridade que mal lhes assegura assinar o nome; a instabilidade familiar; a habitação precária; as doenças; o alcoolismo e a dependência de outras drogas. Na vida dos usuários, somente em último caso, a assistência social aparece como alternativa. A família e os amigos aparecem, para os usuários entrevistados, como o lugar onde primeiro se busca meios para sobreviver. Os serviços sociais públicos, ao invés de referência, são, para estas pessoas, espaços de humilhação: Na hora que não tem nada pra comer, na hora das dificuldades, recorro a minha irmã. Ela me ajuda, dá um quilo de feijão, de 200 arroz. [...] recorro as pessoas que me consideram há muitos anos. A esses órgãos eu nunca fui, porque a gente chega lá, nunca tem, não tem, a gente sai mais humilhado. Recorro as pessoas da minha família, aos amigos. As vezes peço emprestado dinheiro e 201 quando vou pagar, diz: deixa pra lá. Às vezes a meu pai. Ele trabalha na prefeitura, as vezes ele me 202 ajuda. Mas agora ele está numa condição difícil. 200 Irma Alves de Paiva. Usuária do PETI, NAS Praia do Meio. Entrevista realizada aos 30 de julho de 2004. 201 Sr. Armando Cláudio. Usuário do PETI, NAS Praia do Meio. Entrevista realizada aos 30 de julho de 2004. 202 Maria de Jesus. Usuária do Plantão Social. Entrevista realizada aos 06 de agosto de 2004. 264 No processo de coleta de dados, tanto junto a Grupos de Idosos, quanto no contato com usuários do PETI, como nestes casos, cujos depoimentos foram transcritos; e ainda, entre os usuários do Plantão Social, o sentimento de humilhação ao procurar a assistência social apareceu com muita freqüência. Isto talvez porque, para estes, não sendo direito, a assistência é ajuda; e, como tal, estigmatiza e humilha. Conforme já ressaltado por Yazbek (1993, p. 168), “estigmatizados pelos sinais exteriores de sua condição social vivem em relação à assistência social uma experiência ambígua e muitas vezes constrangedora que se caracteriza pela necessidade de ‘ter que pedir’.” Assim, os usuários da assistência social, conforme a autora, expressam por um lado humilhação e ressentimento por não conseguirem prover por si próprios sua subsistência, e, por outro, revelam uma visão crítica da condição em que vivem e da precariedade e insuficiência das respostas do Estado às suas necessidades e demandas no campo social (YAZBEK, 1993, p. 168). 5.7 Considerações sobre a gestão da assistência social em Natal Freqüentemente vista como uma não-política “como prática secundária, em geral adstrita às atividades do plantão social, de atenções em emergências e distribuição de auxílios financeiros” (YAZBEK, 2004a, p. 15), a gestão da assistência social de um modo geral e em Natal, tem sido marcada também pela incerteza; pela provisoriedade; pela precariedade das condições de trabalho; pela falta de transparência; pela ausência de mecanismos de diálogo com a sociedade civil; por relações meramente legais, burocráticas e rotineiras com o Conselho; pela ausência de sistemas informatizados de informações; pela não definição de padrões de qualidade; e pela falta de recursos humanos com qualificação e competência técnica para atuação na área. A nova Política Nacional de Assistência Social (BRASIL..., 2004b, p. 4748), reconhece que a questão dos recursos humanos “não tem sido matéria prioritária de debate e formulações”, o que contribui para dificultar a compreensão acerca do perfil do servidor da assistência social. Ao mesmo tempo, o documento 265 argumenta a necessidade de se efetivar uma política de recursos humanos com qualificação “sistemática, continuada, sustentável, participativa, nacionalizada, descentralizada”, para trabalhadores públicos, privados e conselheiros. Além disso, um dos grandes problemas da área é a efetivação de uma política de recursos humanos num contexto de minimização do Estado e do enxugamento da máquina estatal, que privilegia os contratos precários e temporários, ao invés da contratação de pessoal por concurso público e da criação de planos de carreira. Em Natal, por exemplo, nunca houve concurso público para a assistência social. O resultado é a existência de uma secretaria com um quadro de pessoal, na sua maioria, contratado de acordo os interesses de quem ocupa o Governo municipal. A problemática dos recursos humanos é algo bastante delicado na gestão da assistência social em Natal. Conforme o relatório de uma oficina de planejamento estratégico da SEMTAS (NATAL..., 2005, p. 09), que reuniu os principais responsáveis por todos os programas, projetos e serviços. Estes apontaram como principais problemas: falta de consciência do servidor quanto ao seu papel no serviço público; desconhecimento por parte destes quanto aos aspectos técnicos, administrativos e financeiros das políticas públicas com as quais trabalham; inadequação do perfil de alguns servidores técnico- administrativos para a função que exercem; inexistência de um plano de cargos, carreira e salários. Na opinião da atual Secretária, Andréa Ramalho, falta capacitação em recursos humanos e falta a constituição de um quadro de pessoal efetivo da SEMTAS. Mas, a ausência de pessoal do quadro efetivo do Município não é um problema apenas da SEMTAS, mas de grande parte da máquina administrativa municipal. Apenas a saúde e a educação contam com pessoal contratado por concurso público. Na grande maioria das secretarias o quadro de pessoal é composto por cargos comissionados. Assim, afirma a secretária: Eu acho que é fundamental ter um corpo técnico capacitado, de forma permanente, capacitação continuada, porém, como eu lhe disse no início: o primeiro ano foi um ano de diagnóstico. Em 2003 nós não poderíamos fazer concurso público; a prefeitura teria que priorizar que áreas estavam necessitando mais de concurso e aí a mais urgente foi a saúde. [...] Em 2004, dentro das nossas possibilidades, partindo do real, nós trouxemos pessoas que tinham competência, que tinha capacidade técnica... eu acho 266 assim, que com relação a equipe, houve um salto qualitativo, porém é fundamental a questão do concurso para que, o cargo comissionado, a gestão muda, daqui a 4 anos é outra eleição, é fundamental esse corpo técnico, para que a ação continue. [...] É fundamental contar com um corpo técnico qualificado na prefeitura toda. A questão fundamental passa pelo desenvolvimento de recursos humanos. Falta isso e isso a gente tem que fazer por etapas. No plano integrado de ações municipais que nós fizemos para esse ano está colocado isso de forma assim bem legal. Começaria pelas secretarias que tem um contingente de pessoal maior. A própria secretaria de administração e recursos humanos tem que ser o coração, tem que partir dali. Acho que essa é a maior dificuldade: pessoal. 203 Para a secretária, no âmbito dos recursos humanos é preciso ainda considerar a existência da cultura do servidor público, como aquele que não trabalha; e do Estado, como quem existe para financiar interesses particulares: Tem a questão da própria cultura, do que é serviço publico, do que é ser servidor público. Aquela idéia de que servidor público não trabalha, não faz nada, não quer trabalhar, não tem compromisso... acho que isso é outro problema. Essa cultura... Por isso que eu falo que isso é uma cultura, porque a sociedade tem essa cultura... serviço público é pra vir aqui e... o governo paga, o município paga... as instituições... olha, eu estou com meu conselho comunitário para ser construído, aí vem aqui e quer 204 construir o conselho. Se para o usuário da assistência social, o acesso à informação é uma condição essencial para o acesso a direitos, é necessário a quem presta serviços públicos ter acesso à informação sobre o programa, o serviço, o benefício com o qual trabalha. Conforme o relato a seguir, esta foi uma das grandes lacunas da gestão da assistência social em Natal historicamente: a falta de comunicação entre o nível central e quem se encontra na ponta do serviço: A relação institucional é muito difícil. Se você tem um programa, se você tem uma base onde isso é executado, não precisa que a base esteja lá pedindo que sejam dadas as informações. Isso tem que ser trabalhado direto. Para você ter uma idéia, a gente pra receber o Manual do PETI, depois de 2 anos, a gente conseguiu pegar o manual através de uma visita que a gente recebeu de outro município. Eu não sabia que existia o manual. Aí a visita veio com o manual na mão. Aí eu pedi para ver e ela disse: pode 203 Andréa Ramalho Pereira Alves. Atual Secretária Municipal de Assistência Social de Natal. Entrevista realizada aos 22 de dezembro de 2004. 204 Andréa Ramalho Pereira Alves. Atual Secretária Municipal de Assistência Social de Natal. Entrevista realizada aos 22 de dezembro de 2004. 267 ficar pra você. Foi quando eu fui ver o que o manual do PETI dizia. O recurso do pagamento do PETI, as mães ficam cobrando da gente.... tem coisas que a gente não entende, eu tenho mães aqui que recebem benefício no Banco do Brasil, tem mães que recebem na Caixa Econômica, mães que têm cartão que recebe o auxílio gás e outras que não têm cartão e não recebe... e fica uma coisa que a gente não consegue dar a informação devida aos usuários, porque também a gente não recebe as informações. Elas só vêm depois de uma dificuldade. Então não há repasse de informação, em termos técnicos, de preparação também não há.205 A dificuldade de articulação e circulação de informações não é só entre o nível central e o funcionário que desenvolve atividades nos equipamentos sociais dos bairros. Ela começa dentro da própria SEMTAS: Na SEMTAS, cada departamento é um mundo, é como se fosse uma ilha. O DAS é o lugar dos problemas. Mas esses problemas precisam ser resolvidos, encaminhados para algum canto. Se a gente continuar cada departamento fazendo seu trabalho e evitando problemas... Se surge uma família com problema aí chega pra mim: Oh! Ilsamar, esse problema é pra você. Eu não acho que seja pra mim. Eu vejo como um problema da SEMTAS. Eu atendo e vou buscar solução nos outros departamentos, por exemplo, vou voltar ao DACA pedindo vaga para creche etc. Vou retornar ao DAT [Departamento de Ações para o Trabalho] para incluir no mercado de trabalho. [...] Mas, é como eu estou lhe dizendo: cada departamento tem o seu mundo, a sua ilha achando que por si só vai conseguir resolver os problemas. Isso é complicado. A SEMTAS precisa de uma verdadeira reestruturação, de qualificação dos profissionais, porque também os profissionais de Serviço Social estão perdidos, não sabe para onde encaminhar, como encaminhar, não sabe fazer um parecer social, desconhecem a legislação. Depois que chegamos aqui, as meninas foram fazer um curso na previdência e eu falei: façam um levantamento de tudo que tem lá. Mas, não é fácil ter essas informações. Se você chegar aqui na SEMTAS e quiser saber quais os programas, serviços existentes, não tem um material que informe. A gente está produzindo esse material. Como é que eu vou me apresentar a outra instituição? Isso é uma dificuldade de todas as instituições. Na área de assistência social é paupérrimo. É tudo muito solto... é necessário sistematizar isso para saber qual é a rede de serviços assistenciais dessa Cidade! 206 A esse respeito uma consultoria realizada para construir uma proposta orçamentária da SEMTAS para 2005 (DUARTE, 2004, p. 25-26) constatou “uma 205 Ivanise Laurentino da Silva. Assistente Social do Núcleo de Ação Social de Cidade Nova. Entrevista realizada aos 09 de julho de 2004. 206 Ilsamar Silva Pereira. Assistente Social. Coordenadora do Departamento de Assistência Social e do Plantão Social da SEMTAS. Entrevista realizada aos 04 de agosto de 2004. 268 dispersão absoluta das ações dos dirigentes” gerando pulverização das ações e “descompasso nas escolhas dos dirigentes com relação aos pressupostos gerais da SEMTAS.” Para o consultor, este quadro tem consolidado nos dirigentes “a percepção de que lhe basta a ação individual para o sucesso do todo.” Diante disso, predomina nos sujeitos responsáveis pela execução da política no Município, posturas individualistas, ausência de uma visão processual e de conjunto, e, diante disso, “as avaliações rotineiras tornam-se inócuas”. Ressalta ainda “um distanciamento entre os departamentos e os Programas, havendo superposição de ações.” O cotidiano do Plantão Social e do DAS como um todo é bem revelador da problemática apontada pelo consultor. A coordenadora do DAS ressalta como um dos maiores problemas, a desarticulação e a falta de integração dos programas no interior da SEMTAS e os equívocos aí existentes na visão do que seja assistência social: Aqui nós temos o Plantão Social que é o carro chefe do DAS. Mas, aqui dentro da SEMTAS tanto há uma fragmentação dos programas como muitos dos programas existentes não são concebidos como de assistência social. Para muita gente assistência social é somente o DAS. No entanto o Departamento da Criança e do Adolescente, DACA, é assistência! Ele tem que dar respaldo ao usuário que nos procura solicitando esses serviços. Mas são vistos como departamentos estanques.207 Não só cada departamento da SEMTAS é uma ilha, como não há integração e articulação entre as secretarias do Município. [...] tem que haver também uma integração com as demais secretarias e serviços do município. Por exemplo, existe uma demanda muito grande aqui por remédio. Não compete aqui a SEMTAS comprar medicamentos e nós temos a secretaria municipal de saúde e farmácias nos postos de saúde para fornecer medicamentos. Não tem sentido a gente comprar medicamentos. Mas isso historicamente foi feito aqui na SEMTAS. Nós estamos fazendo um trabalho pra mostrar o que é competência da SEMTAS, o que é competência do município, o que é competência do Estado ou do Governo Federal e encaminhando estas pessoas. Mas encaminhando corretamente. Sabendo onde é que ele pode buscar o serviço que precisa, o que é necessário ele levar, porque estas pessoas têm dificuldade até 207 Ilsamar Silva Pereira. Assistente Social. Coordenadora do Departamento de Assistência Social e do Plantão Social da SEMTAS. Entrevista realizada aos 04 de agosto de 2004 269 de chegar aqui. Às vezes chegam aqui e pedem o vale transporte pra voltar, quer dizer, vai sair por aí se batendo? Se nem o vale transporte ele têm? Pra você perceber que realmente a população que a gente assiste ela ainda não tem esta dimensão da 208 assistência enquanto direito. Outro problema enfrentado na gestão da assistência social em Natal é o fato do órgão gestor reunir três pastas: assistência social, trabalho e habitação. Contudo, observa-se que apesar de serem três pastas, todas desenvolvem ações pontuais e voltadas para a população mais pobre. Realiza-se, neste caso, uma “concepção inespecífica de assistência social, na qual ela é compreendida como processante de outras políticas sociais” atendendo necessidades dos excluídos do mercado e das demais políticas sociais básicas (SPOSATI, 2004b, p. 38, grifos da autora). Assim, a habitação executa o projeto Habitar Brasil, urbanização de favelas e um programa de arrendamento residencial. O Departamento de Ações para o Trabalho – DAT executa o Programa Ser. As ações deste programa são praticamente as únicas ações dessa pasta “Trabalho”. Diante disso, a atual Secretária Andréa Ramalho, sinaliza para uma reestruturação do Órgão e com a criação de uma secretaria adjunta de assistência social, conforme explicita no depoimento a seguir: A máquina, a burocracia é coisa que leva tempo para você dominá-la. A cultura que permeia... então assim: em 2003 nós chegamos, fizemos algumas mudanças. Em 2004 começaram a chegar algumas pessoas... é proposta nossa um novo organograma. Essa secretaria é muito grande. Habitação, Trabalho e Assistência Social e só um secretário e um adjunto. É muito pouco, é muito incêndio para pouco bombeiro. Então a proposta é ter uma secretaria adjunta de assistência, uma de trabalho e uma de habitação. Não sei se nós vamos conseguir aprovar por questões orçamentárias, mas, pelo menos a 209 secretaria adjunta de assistência, nós vamos conseguir. Além dos problemas destacados no relato dos entrevistados, a oficina de planejamento estratégico apontou ainda a necessidade de uma reorganização institucional da SEMTAS. Segundo os participantes, há uma “inadequação organizacional e indefinição de competências e atribuições dos departamentos e setores.” Há limitações do próprio prédio da secretaria, a insuficiência de 208 Idem. Andréa Ramalho Pereira Alves. Atual Secretária Municipal de Assistência Social de Natal. Entrevista realizada aos 22 de dezembro de 2004. 209 270 equipamentos, a falta de um sistema de informações gerenciais, a centralização do atendimento ao usuário, quase que exclusivamente no prédio da SEMTAS, sem atendimento nas regiões administrativas (NATAL..., 2005, p. 07-08). No âmbito da gestão descentralizada e participativa, os problemas apontados pelos servidores envolvem: a falta de visibilidade dos serviços; o desempenho parcial do FUMAS em decorrência da centralização da execução orçamentária no setor financeiro; a desarticulação entre o FUMAS, o setor financeiro e os coordenadores de programas; a falta de monitoramento dos processos licitatórios e contratos; e a falta de alocação de recursos financeiros para os subprogramas (NATAL..., 2005, p. 11). Assim, do ponto de vista dos aspectos aqui considerados no processo de implementação da assistência social, a afirmação de uma cultura de direitos parece algo ainda no campo das possibilidades, apesar de ser possível identificar algumas iniciativas pontuais no sentido de afirmar direitos. Contudo, nos vários aspectos abordados, os entrevistados ressaltam práticas que favorecem a reprodução do assistencialismo, da não-política, da “cultura do atraso”, da negação de direitos. 271 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho procurou apreender e analisar a política de assistência social em Natal a partir da implantação da Lei Orgânica de Assistência social – LOAS (1995), privilegiando o estudo de como têm se efetivado os princípios e diretrizes da referida lei, no âmbito desta política pública no Município, assim como a reprodução ou não de práticas baseadas na cultura do favor, do clientelismo e do assistencialismo, que historicamente marcaram a trajetória da assistência social. Ao mesmo tempo, buscou afirmá-la como política de seguridade social, direito do cidadão e dever do Estado; e, como tal, podendo contribuir na construção de uma cultura de direitos nesta área de política pública. Numa sociedade marcada por profundas desigualdades sociais e por uma “cultura política do atraso”, a afirmação de direitos pode significar, para uma ampla parcela da população brasileira, secularmente excluída dos resultados do desenvolvimento econômico, social e político, o primeiro passo em direção a sua emancipação. Neste sentido, a assistência social, tal como proposta na LOAS, pode contribuir na devolução da dignidade a essas pessoas, e criar as condições para que elas possam expressar-se, se organizar e lutar por direitos. Conforme ressaltado no capítulo 2, mesmo considerando as disparidades nas análises estatísticas sobre pobreza e indigência no Brasil, um fato inegável da realidade do país é a escandalosa desigualdade social. Dependendo do indicador e da fonte utilizada, os números podem se diferenciar, mas não tem sido possível omitir que este é um país extremamente desigual. Com uma população de mais de 170 milhões de habitantes, possui, segundo o estudo recente do IPEA, 53,9 milhões de pessoas pobres, e 21,9 milhões de pessoas indigentes. Ao lado disso, a parcela de 1% mais rico se apropria de 13% da renda nacional, enquanto a dos 50% mais pobres fica com 13,3% desta renda (INSTITUTO..., 2005, p. 50-53). 272 Esta escandalosa desigualdade social tem se aprofundado com as políticas de ajuste neoliberal e com a submissão da política social à política econômica. No contexto neoliberal, conforme Brie (2005, p. 01), impõem-se cada vez mais os privilégios de classe por um lado e a expropriação e privação de direitos por outro. A superação desse quadro não será produto das ações de uma, ou de um conjunto de políticas públicas. Contudo, a garantia de direitos universais é um passo importante na luta pela superação da ordem atual. Talvez, reconhecendo o potencial, a radicalidade e a politização que a luta por direitos contém no contexto atual, o Grito dos Excluídos,210 realizado anualmente no mês de setembro, no Brasil, está levantando, neste ano de 2005, a discussão sobre a questão dos direitos civis, econômicos, sociais, políticos e culturais; bem como a necessidade da luta por uma cultura dos direitos, da ética e da justiça. Frente à insuficiência e à incerteza de programas de transferência de renda temporários, que não se constituem em direitos, o Grito dos Excluídos reafirma a luta pelo que chama de “direitos fundamentais definitivos.” As reflexões desenvolvidas ao longo do trabalho acerca do processo de implementação da política de assistência social em Natal, e a possibilidade de se afirmar nesta área uma cultura de direitos revelaram que alguns elementos centrais das questões que nortearam a pesquisa se confirmam, ao mesmo tempo em que há questões a partir das quais o real revelou uma outra configuração, diferente da que se havia apontado no início da investigação; e outras, que o trabalho não conseguiu desvendar e que permanecem como caminhos para novos estudos. A formação social, política e econômica de Natal, a forma como esta cidade tem se inserido no contexto social e econômico do Nordeste brasileiro, a configuração das forças políticas dominantes que ocuparam o governo municipal nos últimos 35 anos, o modo como se constituíram os movimentos de bairro e as organizações comunitárias, isso tudo tem resultado em determinadas marcas ou especificidades no modo como se efetivam, nesta realidade, as conquistas da 210 O Grito dos Excluídos surgiu em 1994, como uma iniciativa da Igreja Católica por meio das pastorais sociais, contando com o apoio e o envolvimento direto de movimentos populares e da Central de Movimentos Populares, entre outras organizações da sociedade civil. Nos últimos dez anos, já mobilizou milhões de pessoas em torno de questões como a Área de Livre Comércio das Américas – ALCA, a questão agrária e o desemprego. 273 democratização, da participação popular e as políticas de enfrentamento à pobreza na Cidade. O exame das forças políticas que ocuparam o Governo municipal no período analisado revelou a predominância de uma única força política no poder: o grupo Maia e seus aliados. Mesmo que nas eleições de 2002 tenha havido um rompimento de Vilma de Faria (antes Vilma Maia) com o Senador José Agripino Maia (PFL), mesmo filiada a partidos de centro-esquerda, como PDT e PSB, quase sempre contou com o apoio e a participação do PFL nos processos eleitorais aos quais se submeteu; e na sua base de apoio, tanto na Câmara Municipal, enquanto esteve à frente da Prefeitura de Natal, como atualmente, na Assembléia Legislativa, como governadora. Conforme analisa Spinelli (2005, p. 16), a imprensa local e alguns estudos acadêmicos sobre as forças políticas em Natal e no RN tem identificado Vilma de Faria como “representante de uma terceira força política no Rio Grande do Norte.” Esta terceira força estaria cumprindo o papel histórico de quebrar “a polarização tradicional da política potiguar, marcada desde os anos 50 pelas disputas entre clãs patriarcais: de um lado o ‘dinartismo’, sob a liderança de Dinarte Mariz; de outro, o aluisismo sob a liderança de Aluízio Alves.” Disputa esta que, nas décadas de 1980 e 1990, configurou-se entre Alves e Maias e em termos partidários, entre PMDB e PFL. Os Maias, conforme demonstrado anteriormente, surgiram na vida política do RN a partir da ditadura. Se Aluízio Alves representou a modernização industrial e constituiu uma “oligarquia moderna”, tendo como base principal o mercado da comunicação, os Maias, mesmo reunindo os setores mais atrasados e conservadores da política estadual, até então representados por Dinarte Mariz, também se apresentam como renovação. Em Natal, conforme Lima (2001, p. 107), a gestão de José Agripino Maia à frente da Prefeitura (1979-1983) consolidou o poder desse grupo. Uma das pessoas que melhor contribuiu para consolidar o poder dos Maias foi, sem dúvida, Vilma de Faria, cuja liderança política não pode deixar de ser destacada. Spinelli (2005, p. 14) mostra que “em cinco eleições para a prefeitura de Natal desde 1988 ela venceu diretamente três em 1988, 1996 e 2000, e elegeu dois candidatos, Aldo Tinoco, em 1992 e, agora em 2004, Carlos Eduardo Alves.” 274 Hoje, como governadora, Vilma de Faria conseguiu reunir no PSB os setores mais conservadores da política estadual, que até então estiveram sob a liderança de José Agripino Maia, do PFL. Este, por sua vez, apesar de uma certa visibilidade no Senado Federal em nível nacional, enquanto liderança do PFL e oposição ao Governo federal, tem sido considerado por algumas lideranças políticas do RN como um “general sem exército”.211 Após romper com Vilma de Faria nas eleições de 2004, entre outras razões, por não conseguir indicar o vice na chapa de Carlos Eduardo Alves, o seu PFL lançou um candidato próprio, que ficou em 5º lugar na disputa municipal, com 21.115 votos. Conforme o jornal Diário de Natal, de 1º de outubro de 2004, para a Governadora Vilma de Faria “o PFL cometeu um ‘erro estratégico’ ao romper com o PSB e lançar um ‘candidato de última hora sem preparar o seu eleitorado’. Na avaliação da líder do PSB, isso foi o que selou o fracasso dos pefelistas na capital.” Ainda conforme o jornal citado, com a vitória do PSB nas eleições municipais de Natal, Vilma de Faria estaria contabilizando mais uma vitória na sua batalha contra José Agripino Maia “para conquista do sistema político que, outrora, foi comandado por Dinarte Mariz e por Tarcísio Maia, pai do líder pefelista” (AZEVEDO, 2004b, p. 4). Mas, a trajetória de Vilma de Faria descrita anteriormente, seu estilo de governar e as estratégias utilizadas por ela para se manter no poder não permitem identificar uma renovação no seu modo de fazer política em relação ao dos grupos tradicionais. O padrão de relação entre os governantes e os movimentos de bairro, inaugurado por José Agripino Maia e por ela em Natal, conforme já ressaltado, pode ser definido como uma espécie de “transformismo”, dada a incorporação e a cooptação de um número significativo de lideranças do movimento comunitário que resulta de tal prática. Uma análise atenta da prática política de Vilma de Faria revela, conforme Spinelli (2005, p. 19), “a imposição de uma liderança personalista de corte autoritário, uso da patronagem como moeda de troca política, assistencialismo e clientelismo como estilo de relacionamento com as camadas subalternas da população.” 211 O Diário de Natal de 30 de setembro de 2004, destaca uma polêmica entre o Secretário Estadual de Educação, Wober Júnior (PPS) e os deputados Augusto Carlos Viveiros e José Adécio (PFL), na qual o primeiro questiona o poder de fogo do Senador José Agripino e afirma que ele pode se tornar um “general sem exército” (AZEVEDO, 2004a, p. 4). 275 Este quadro integra o cenário no qual se construiu a história recente da política de assistência social em Natal. A análise empreendida permitiu identificar que, assim como na maioria dos municípios com gestão municipal,212 há em Natal, algumas mudanças em direção a construção da assistência social como política pública,213 entretanto, tais mudanças se originam muito mais das necessidades impostas pela própria legislação do que de uma decisão e opção política dos governantes. As principais “inovações” em relação à assistência social existente até 1995, residem na criação de um órgão gestor, no funcionamento de instrumentos de controle social, na incorporação do planejamento como instrumento de gestão explicitado, na elaboração de planos municipais, na realização periódica de conferências municipais, na existência de iniciativas do Município na formulação da política e na destinação de recursos do orçamento municipal para a assistência como política pública. Entretanto, se tais “inovações”, em tese, podem sinalizar avanços, o modo como se efetivam, pode constituir uma mera formalidade; e, ao seu lado, a “cultura do atraso” pode continuar se reproduzindo. Neste sentido, o projeto político dos que ocupam o Governo municipal tem papel importante na efetivação de direitos ou na sua negação. As administrações municipais que fazem opção pela efetivação da participação popular, pela garantia do direito à informação e à participação aos habitantes da Cidade, pela transparência administrativa e pela prestação de serviços públicos, pautados na relação de direitos e não de favor, podem favorecer uma “cultura política de direitos” conforme ressaltado por Celso Daniel (1991, p. 16-19). A pesquisa permitiu observar que em Natal, no período analisado, além de não se contar com governantes comprometidos com a construção de uma 212 Conforme a Norma Operacional Básica – NOB (BRASIL, 2001, p. 96) em vigor no período analisado, a implementação do sistema descentralizado e participativo da Política de Assistência Social se efetiva a partir de dois níveis de gestão: gestão municipal e gestão estadual e do Distrito Federal. No nível de “gestão municipal”, a NOB define que “a gestão dos serviços assistenciais será prioritariamente, de responsabilidade dos governos municipais. Para tanto, serão transferidos recursos financeiros diretamente do Fundo Nacional de Assistência Social para os fundos municipais daqueles municípios que se habilitarem [...] Os municípios terão autonomia de gestão desses recursos, segundo a realidade local e as prioridades estabelecidas no Plano Municipal de Assistência Social, aprovado pelo Conselho, desde que atendam aos destinatários da Política nas respectivas redes já existentes, e que a qualidade do atendimento seja compatível com as diretrizes desta NOB.” 213 Ver, por exemplo, BOSCHETTI (2003a). 276 cultura de direitos e com a efetivação da participação popular em termos da administração como um todo, a assistência social também não tem sido uma área prioritária nas ações de combate à pobreza, no projeto político dos governantes. Em termos de projetos prioritários, teve maior importância ações, cuja gestão não estavam diretamente sob a responsabilidade da assistência social: o Projeto Nosso Bairro Cidadão; o Programa SER; e o Programa Tributo à Criança. Contudo, os impactos dessas ações no atendimento às necessidades sociais dos usuários e no rompimento com a “cultura do atraso” não foi objeto de análise. Nesse sentido, uma das questões observadas foi a existência de uma disputa cotidiana entre duas concepções de assistência, no interior do órgão gestor como um todo, e na execução das ações analisadas: uma, que a concebe como ajuda e a mantém como política pobre, com ações pontuais e precárias para os mais pobres, espaço da troca de favores; a outra, ainda muito tímida, que a afirma como um direito e se explicita em iniciativas no âmbito do controle social, da qualidade dos serviços, na abertura de canais universais de acesso do usuário aos serviços, na preocupação com o acesso à informação etc. Desta forma, a assistência social tem transitado de ação pontual e precária para os mais pobres convivendo ao lado de uma legislação e de práticas que a afirmam como política pública. Do ponto de vista legal e institucional, é possível identificar avanços, sobretudo a partir de 1998. Todavia, tais avanços ocorrem, por exemplo, ao lado da criação da ATIVA, uma ONG com funções concorrentes e paralelas às do órgão gestor. A sua existência e o lugar de destaque que tem ocupado, desde a sua criação, no processo de implementação da assistência social no Município, revela a dificuldade para a afirmação desta área como política pública. Se, por um lado, há na SEMTAS hoje um esforço de renovação de quadros técnicos e de questionamento ao tipo de relação que, enquanto órgão gestor da assistência no Município, mantém com a ATIVA, isto não tem implicado numa redefinição de tais relações. A ATIVA continua sendo uma dos principais prestadoras de serviços de assistência social no município e a entidade que contrata a grande maioria dos recursos humanos que executa a política de assistência social. A ausência de um quadro técnico qualificado e comprometido com a assistência social na perspectiva do direito é outra grande fragilidade desta 277 política pública em Natal. Se, em outras áreas, como a saúde e a educação tem havido concursos públicos para preenchimento de cargos, há planos de cargos, carreiras e salários, na assistência social essas conquistas não existem. A quase totalidade dos recursos humanos da área é formada por técnicos de nível superior ou de nível médio, contratados pela ATIVA, com contratos temporários e precários; muitas vezes, sem a formação necessária ao desempenho de funções nessa área. Mas, a ausência de debate e de prioridade para como tema dos recursos humanos não é exclusividade da gestão desta política pública em Natal. A atual Política Nacional de Assistência Social reconhece que o assunto não tem sido matéria prioritária de debate e formulações no nível federal e nos demais níveis de governo em todo o país, com sérias implicações na efetivação desta política. Conforme o documento, “a inexistência de debate sobre os recursos humanos tem dificultado também a compreensão acerca do perfil do servidor da assistência social” assim como a formação de equipes e a definição de quais são os atributos e qualificações necessárias ao atendimento ao usuário (BRASIL, 2004, p. 36). Enquanto não se efetiva uma política de recursos humanos, as contratações de pessoal, inclusive as mais recentes, realizadas no âmbito de programas do Governo federal, como o PAIF, por exemplo, são realizadas com contratos temporários de até um ano de duração, o que obriga o usuário a conviver com o constante recomeço no cotidiano dos serviços. Ao mesmo tempo, no interior do órgão gestor, a política do favor, as relações clientelistas e de controle dos subalternos, o assistencialismo e outras práticas que conformam a “cultura do atraso” na assistência social, vêm-se reproduzindo a partir de práticas identificadas na pesquisa, como por exemplo: no uso político do Plantão Social para favorecer lideranças políticas e/ou comunitárias; na permanência da ATIVA como organização paralela e concorrente, além de desenvolver ações de caráter assistencialista e de controle de grupos subalternos; na precariedade e na baixa qualidade dos serviços prestados em muitos programas; e no acesso do usuário a programas e serviços pela via do “conhecimento” ou das relações de amizade com servidores municipais e não por critérios técnicos pautados no direito. Além destas questões, outras fragilidades do cotidiano da implementação da política de assistência social impedem a sua efetivação tal como proposta na 278 LOAS. Uma delas reside no modo como a política é concebida, tanto na prevalência entre os usuários da visão dos serviços como ajuda; quanto o fato de ser concebida por mais de 40% dos técnicos e coordenadores entrevistados como promoção social ou ajuda, enquanto expressão de uma certa solidariedade para com os mais carentes. Alia-se a essa noção equivocada da política a desinformação e a falta de qualificação. Outra fragilidade diz respeito à questão da primazia da responsabilidade do Estado, a qual se realiza estritamente dentro do cumprimento das formalidades burocráticas. O que não tem avançado no sentido de ampliar o grau de compromisso e de responsabilidade pública com a assistência social. Ao contrário, mantém-se uma forte presença da rede privada filantrópica, sem que o Município exerça sobre esta um papel regulador e de direção com vistas à garantia do caráter público desta política. Ao mesmo tempo, as ações de execução direta são caracterizadas pela baixa qualidade e pela precariedade, reproduzindo a velha lógica de que “para pobre qualquer coisa serve.” 214 Conforme Sposati (2001a, p. 75) “o vínculo com a sociedade civil é parte inerente da especificidade da assistência social como política pública.” Mas, com a LOAS, esse vínculo deixou de ser “território de práticas subvencionadas ad hoc pelo Estado” e conquista estatuto público, o qual exige “relações de parceria com a sociedade civil.” Mas, “a relação entre assistência social e filantropia permite pontuar uma das principais questões que demarcam as distâncias entre o paradigma tradicional, conservador na assistência social e o paradigma progressista.” Para a autora, somente este último, “fundado na justiça social, na leitura crítica das desigualdades sociais; no processo redistributivo das riquezas sociais [....] é que permite referenciar a assistência social como uma política de direitos.” 215 Outro aspecto importante no caráter do direito de uma determinada política social pública é a qualidade dos serviços. O que se observou foi a existência de serviços precários e de baixa qualidade, além de condições de 214 Não foi objeto de estudo desta pesquisa as relações do órgão gestor com as organizações filantrópicas integrantes da rede de assistência social do Município e como vem sendo assegurado ou não a qualidade e o caráter público dos serviços prestados por estas organizações. 215 O paradigma conservador, conforme Sposati (2001, p. 76), “trata o Estado como uma grande família, na qual as esposas dos governantes, as primeiras damas, é que cuidam dos ‘coitados’. É o paradigma do não-direito, da reiteração da subalternidade, assentado no modelo do Estado patrimonial.” Neste modelo, afirma a autora, a assistência social “é entendida como espaço de reconhecimento dos necessitados e não de necessidades sociais.” 279 trabalho também precárias. Um exemplo do pouco comprometimento público para com a qualidade dos serviços é o espaço físico da rede de serviços executados diretamente pela SEMTAS, em que 90% destes são realizados em prédios alugados. Outro exemplo, nesse âmbito, é que o município não possui, até hoje, nenhum abrigo para adultos. A efetivação da segurança da “Acolhida”, tal como propõe a atual Política Nacional de Assistência Social, encontra sérios limites para se efetivar,216 tendo em vista que a Cidade não possui um sistema de abrigos em condições de acolher adultos e idosos que enfrentem situações de abandono. No que diz respeito ao usuário, o estudo mostrou também que a assistência como ajuda, com assistencialismo, nem sempre é aceita por estes, conforme posicionamento de alguns usuários entrevistados. A assistência como ajuda é considerada humilhante e contribui para reduzir a dignidade destes como pessoa, como ser humano. Por isso, frente às inúmeras necessidades sociais, a busca da solidariedade na família e na vizinhança, e junto aos amigos, aparece como alternativa preferencial, ao invés da procura por um órgão público, o que acaba contribuindo para reforçar um retrocesso imposto pelas políticas neoliberais, que é o de relegar a proteção social à família e à solidariedade privada. Vivendo uma história de vida marcada pela pobreza, os usuários tanto revelam conformismo quanto reinventam alternativas de sobrevivência, mesmo de forma individual. Mas, a busca de saídas coletivas, via movimento popular não foram identificadas. Contudo, é necessário registrar que o usuário é o grande ausente das decisões, dos debates e das formulações desta política, talvez porque o seu usuário potencial seja majoritariamente os desorganizados e os excluídos de tudo. Com freqüência, outros falam em seu nome. Frente a este usuário, a assistência social possui a possibilidade de favorecer as condições 216 A atual Política Nacional de Assistência Social afirma a organização do Sistema Único de Assistência Social contemplando, na proteção social básica e especial as seguranças de “Sobrevivência”, “Acolhida” e “Convívio”. A segurança da “Acolhida”, por exemplo, exige “ações, cuidados, serviços e projetos operados em rede [...] destinada a proteger e recuperar as situações de abandono e isolamento de crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos, restaurando sua autonomia, capacidade de convívio e protagonismo mediante a oferta de condições materiais de abrigo, repouso, alimentação, higienização, vestuário e aquisições pessoais desenvolvidas através de acesso a trabalho sócio-educativo” (BRASIL, 2004, p. 24). 280 para a recuperação da dignidade destas pessoas e para criar as condições para o despertar da cidadania ativa entre elas. A gestão municipal de uma dada política social na perspectiva do direito e da afirmação da responsabilidade pública depende de inúmeros fatores. Um deles é a decisão política de assumir essa gestão de modo a afirmar o compromisso com a qualidade dos serviços e a garantia de direitos. Do ponto de vista normativo e institucional há grandes avanços em Natal. Contudo, há uma visível falta de iniciativa do município na formulação da política. Se por um lado há o predomínio da implementação de programas federais, o que acaba por se constituir num desrespeito ao princípio do reconhecimento e atendimento às necessidades locais (BOSCHETTI, 2003b, p. 167), falta protagonismo, iniciativa, compromisso público do município no sentido de planejar localmente as respostas às demandas da realidade da cidade. O exame dos relatórios das Conferências Municipais de Assistência social realizadas em Natal revelou a preponderância de reivindicações dirigidas ao governo federal e pouquíssimas formulações, indicações ou reivindicações dirigidas ao município. Este fato revela que o predomínio de ações formuladas pelo governo federal pode não ser um problema apenas da falta de compromisso público do gestor, mas uma visão que também perpassa outros sujeitos envolvidos com a implementação da política: usuários, organizações da sociedade civil prestadoras de serviços, trabalhadores da área, etc. Assim, parece que a implementação da assistência social em Natal revela que ela ainda não foi capaz de se afirmar como política pública. Ela ainda é uma política inscrita no campo das possibilidades. Contribui para isso, por um lado o aprofundamento das desigualdades sociais resultado de um processo de crescimento que exclui do progresso e dos avanços do desenvolvimento a grande maioria da sua população, o uso do transformismo, pelo grupo no poder, para construir a sua hegemonia e se antecipar ao surgimento de movimentos populares autônomos em relação ao poder público e as práticas políticas conservadoras que marcam a relação de lideranças políticas com as organizações comunitárias na história recente da vida política da cidade. Contudo, se por um lado, os anos de implementação da LOAS ainda não foram capazes de romper com a lógica da ajuda, do favor, do assistencialismo, da incerteza, da precariedade nesta área, estas práticas, contudo, não ocorrem sem 281 resistências. Ao seu lado há iniciativas e formas de apreender a assistência social na perspectiva do direito que aparecem na prática cotidiana de alguns técnicos, na postura de usuários que começam a procurar os serviços, benefícios, programas e projetos como direito, na atitude crítica de alguns conselheiros e do Conselho Municipal de Assistência Social. Estas novas práticas podem sinalizar que, dada a ausência de uma cultura de direitos no Brasil, a assistência social, se implementada conforme propõe a LOAS, poderá contribuir com a sua construção. Para isso é preciso que os sujeitos envolvidos com esta política tenham acesso a informação e que ela ocupe a agenda dos movimentos populares e de outros sujeitos coletivos envolvidos na luta por direitos e pela efetivação da seguridade social no Brasil. Sem isso ela poderá continuar como uma política extremamente avançada legal e institucionalmente, mas ao mesmo tempo como um campo da “cultura do atraso” onde prevalecem ações pobres, precárias, pontuais, incertas, de baixa qualidade, destinadas a minorar o sofrimento daqueles cuja pobreza ultrapassou todos os limites. 282 REFERÊNCIAS A STBS volta a atuar. Nova Gente. Natal: PJMP, n. 40, p. 5, agos.-set. 1986. (Boletim Informativo da Pastoral da Juventude do Meio Popular). ABRAMO, Perseu. Proibido ficar perplexo. Teoria e Debate, São Paulo, ano 1, n. 3, p. 2-6, jun. 1988. ALMEIDA, Lindijane de Souza Bento. Política e governo: a trajetória de Vilma de Faria na Prefeitura de Natal. (Dissertação de Mestrado). UFRN. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Natal. 2001. 114f. ALVES, Andréa Ramalho Pereira de Araújo. A política de assistência social em Natal: exposição junto a Comissão de Legislação, Constituição, Justiça e Redação Final da Câmara Municipal de Natal. 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