UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO – UFPE CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS­GRADUAÇÃO EM LETRAS A Sintaxe por Subordinação no Português do Brasil: Uma Análise Funcional das Cláusulas de Complementação Verbal Emanuel Cordeiro da Silva RECIFE 2010 2 EMANUEL CORDEIRO DA SILVA A Sintaxe por Subordinação no Português do Brasil: Uma Análise Funcional das Cláusulas de Complementação Verbal Dissertação apresentada ao Programa de Pós­graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Linguística. Orientador: Profª. Drª. Stella Virgínia Telles de Araújo Pereira Lima Co­orientador: Profª. Drª. Maria Angélica Furtado da Cunha RECIFE 2010 3 Silva, Emanuel Cordeiro da A sintaxe por subordinação no português do Brasil: uma análise funcional das cláusulas de complementação verbal / Emanuel Cordeiro da Silva. – Recife: O Autor, 2010. 105 folhas: il., fig., tab., gráf., quadros. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CAC. Letras, 2010. Inclui bibliografia. 1. Funcionalismo (Linguística). 2. Língua portuguesa – Sintaxe. 3. Língua portuguesa – Orações subordinadas. I. Título. 801 410 CDU (2.ed.) CDD (22.ed.) UFPE CAC2010­64 4 5 Aos três grandes amores da minha vida, Val, minha mãe, Ciroca (in memoriam), minha tia­avó, e Ceci, minha irmã. 6 AGRADECIMENTOS Ao criador de tudo, por sempre estar comigo; À minha mãe, por apoiar­me em tudo; À minha tia­avó (in memoriam), pelo seu eterno e incondicional amor por mim; À minha irmã, por sempre me socorrer nos momentos de dificuldade; Ao Eduardo Fragoso, o Du, pelo ser humano que é e por fazer parte da minha vida; Ao meu cunhado, Wellington Pinheiro, pela valiosa ajuda no tratamento estatístico dos dados; À professora Stella Telles, por ter, um dia, dito que acreditava no meu potencial e que, além de orientadora, era, sobretudo, minha amiga, certamente as melhores coisas que ouvi na academia; À professora Stella Telles mais uma vez, pela atenção que me dedicou como orientadora; À professora Maria Angélica, por ter aceitado ser minha co­orientadora e por ter estado sempre disposta a ajudar­me nos momentos em que precisei; Ao professor Marlos, por ter aceitado compor a minha banca; À professora Beth Christiano, pelas valiosas sugestões; Aos Professores Luiz Antônio Marcuschi e Judith Hoffnagel, pelo valioso aprendizado durante a iniciação científica; À Thaís Ludmila e ao Cleidson Jacinto, o Jambo, por terem me permitido, na universidade, não encontrar somente colegas e amigos, mas também dois irmãos; Ao Cleber Ataíde, pela amizade e por ter acreditado na minha capacidade como profissional; Ao Adriano Dias, o Drico, pelo companheirismo e amizade desde a graduação; Ao Cláudio André, companheiro de graduação, por, apesar do pouco contato, ter sempre me recebido como amigo; Ao Márcio Queiroz, pela amizade, apesar da distância; Ao Mário e ao Marcelo, coordenadores do Curso CDF, por todas as manifestações de reconhecimento do meu profissionalismo; 7 Ao Eduardo Costa, o Duca, por, através da sua forma de encarar a realidade, mostrar­me que o grande barato da vida é vivê­la; À Danielle, a Dani, por entender meus momentos de ausência e por todo o carinho que tem por mim; A todos os colegas de turma do mestrado, pelas boas discussões acadêmicas; À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES, pela bolsa de mestrado que me foi concedida; Ao Programa de Pós­graduação em Letras da UFPE, pela oportunidade de realização do curso de mestrado. 8 Eu só sei calar Quando a voz da tua pele Me pede assim: – Navega em mim, Que eu sinto os prazeres do mar Jorge Vercilo 9 RESUMO Na sintaxe da complementação verbal, o sistema de muitas línguas do mundo autoriza que estruturas sentenciais ocupem a posição reservada sintaticamente ao objeto. A esse tipo de preenchimento sintático, subjazem correlações entre os domínios da sintaxe, da semântica, da pragmática e da cognição. Haja vista o português pertencer ao rol das línguas cujos verbos tomam cláusulas­complemento, o presente trabalho objetiva realizar uma análise funcional dos processos de encaixamento sintático­semântico em construções complexas por subordinação do português falado e escrito no Brasil. Para tanto, são tomados como corpus da investigação dados de fala e de escrita coletados na cidade do Natal/RN. O material integra um corpus maior do grupo de pesquisa D&G (Discurso & Gramática), que coletou dados de fala e de escrita nas cidades do Rio de Janeiro, do Natal, do Rio Grande e de Juiz de Fora. Os textos da cidade do Natal, que são aqui postos sob estudo, correspondem a 120 produções de um total de 12 informantes igualmente distribuídos por três níveis de escolaridade: fundamental II, médio e superior. Como foram adotados cinco tipos textuais (narrativa de experiência pessoal, narrativa recontada, descrição de local, relato de procedimento e relato de opinião), cada informante produziu 10 textos, sendo 5 na modalidade falada e 5 na modalidade escrita. No que tange à fundamentação das análises, são adotadas as bases teóricas da Linguística Funcional norte­americana, dentre as quais destacamos a teoria da prototipicidade, o princípio da iconicidade e a perspectiva escalar da combinação de cláusulas. Por fim, as ocorrências do fenômeno são submetidas a um tratamento estatístico em vista a confrontar os dados de fala e os de escrita. A principal necessidade do confronto é a confirmação ou a negação da bastante difundida visão de que o âmbito da escrita é mais propício à ocorrência do fenômeno da subordinação do que o da fala. Palavras­chave: sintaxe; subordinação; cláusulas­complemento; iconicidade. 10 ABSTRACT Considering the syntax of verbal complementation, the systems of several languages in the world allow sentence structures to occupy positions syntactically reserved to the object. It is possible to affirm there are correlations between the domains of syntax, semantics, pragmatics, and cognition implicit to this syntactic replacement. Once Portuguese belongs to the set of languages whose verbs take complement clauses, this work presents a functional analysis of the processes of syntactic­ semantic combination in complex constructions made by subordination in spoken and written Portuguese of Brazil. In order to perform such an analysis we used an investigative corpus composed by spoken and written data collected in the city of Natal, RN. These data are part of a bigger investigative corpus constructed by the research group D&G (Discourse & Grammar) and composed by spoken and written data collected in the cities of Rio de Janeiro, Natal, Rio Grande, and Juiz de Fora. The texts we used herein this work correspond to a total of 120 productions generated by 12 informers equally distributed according to their Brazilian scholar levels (Fundamental II, Mean, and Superior). We adopted five textual categories: narrative of personal experience, retold narrative, description of local, proceeding report, and opinion report). Each informer produced 10 texts, where 5 are spoken and other 5 are written. Our analyses were performed according to the theoretical bases of the North­American Functional Linguistics, emphasizing the Theory of Prototypicality, the Principle of Iconicity, and the Scalar Perspective of Clause Combining. In order to find the correlation between spoken and written data, the occurrences of the phenomena were submitted to a statistical analysis. Such an analysis was performed to verify or reject the hypothesis that the phenomena of subordination is more probable to occur when we are dealing with the written language than with the spoken communication. Key­words: syntax; subordination; complement clauses; iconicity. 11 ÍNDICE DE FIGURAS Figura (1): Continuum deôntico­epistêmico................................................................44 Figura (2): Dimensão inter­escalar.............................................................................86 ÍNDICE DE TABELAS Tabela (1): Distribuição dos informantes por série e idade........................................37 ÍNDICE DE QUADROS Quadro (1): Modais implicativos por subcategorias...................................................55 Quadro (2): Modais não­implicativos positivos...........................................................58 Quadro (3): Continuum modal­cognição....................................................................60 Quadro (4): Continuum cognição­enunciação/informação.........................................74 Quadro (5): Continuum enunciação/informação­manipulação...................................77 Quadro (6): Verbos de manipulação..........................................................................78 ÍNDICE DE GRÁFICOS Gráfico (1): Distribuição das ocorrências por categorias............................................42 Gráfico (2): Ocorrências por página: Fundamental II.................................................91 Gráfico (3): Ocorrências por página: Médio...............................................................92 Gráfico (4): Ocorrências por página: Superior............................................................93 Gráfico (5): Total de ocorrências por página..............................................................94 Gráfico (6): Semelhança percentual entre número de ocorrências por página..........95 Gráfico (7): Ocorrências por tipo textual: Fundamental II – Fala................................96 Gráfico (8): Ocorrências por tipo textual: Fundamental II – Escrita............................96 Gráfico (9): Ocorrências por tipo textual: Médio – Fala..............................................97 Gráfico (10): Ocorrências por tipo textual: Médio – Escrita........................................97 Gráfico (11): Ocorrências por tipo textual: Superior – Fala........................................98 Gráfico (12): Ocorrências por tipo textual: Superior – Escrita....................................99 Gráfico (13): Total de ocorrências por tipo textual – Fala........................................100 Gráfico (14): Total de ocorrências por tipo textual – Escrita....................................100 12 SUMÁRIO CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO .................................................................................12 CAPÍTULO 2 – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO­METODOLÓGICA .......................14 2.1 Teoria...................................................................................................................14 2.1.1 Língua, comunicação e cognição...................................................................14 2.1.2 Sintaxe e iconicidade .....................................................................................18 2.1.3 A cláusula de complementação verbal...........................................................27 2.1.4 A combinação de cláusulas............................................................................32 2.1.4.1 A visão da Gramática Tradicional.............................................................32 2.1.4.2 A perspectiva funcional............................................................................34 2.2 Metodologia..........................................................................................................37 CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DOS DADOS....................................................................40 3.1 A cláusula­complemento......................................................................................40 3.2 Propriedades semânticas do encaixamento.........................................................41 3.2.1 Verbos que tomam complementos clausais...................................................41 3.2.1.1 Verbos modais..........................................................................................42 3.2.1.2 Verbos de cognição..................................................................................62 3.2.1.3 Verbos de enunciação/informação...........................................................71 3.2.1.4 Verbos de manipulação............................................................................77 3.2.2 Sobreposição semântica...............................................................................80 3.2.3 Gradiente de encaixamento..........................................................................87 3.3 As cláusulas­complemento entre o falado e o escrito..........................................91 CAPÍTULO 4 – CONCLUSÃO.................................................................................102 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................104 13 CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO Ao longo dos últimos quase 40 anos, em decorrência do advento da ciência Linguística às universidades do país, foram desenvolvidos, sob as mais variadas orientações teóricas, inúmeros estudos com propósitos descritivos da realidade do português falado e escrito no Brasil. Certamente, dentre tais estudos, destacam­se os abrigados pelos projetos coletivos NURC (norma urbana culta) e Censo linguístico do Rio de Janeiro, ambos projetos implantados na década de 70. Todavia, uma vez que não podia ser diferente, haja vista a complexidade inerente à sistematicidade de qualquer língua natural, muitos aspectos estruturais da língua portuguesa do Brasil ainda carecem de trabalhos investigativos mais aprofundados, como é o caso das cláusulas de complementação verbal . Pouco se sabe sobre os funcionamentos sintático e semântico­pragmático dessas estruturas e, menos ainda, sobre as correlações sistemáticas existentes entre as duas referidas formas de funcionamento. Ademais, os parcos estudos realizados até agora limitam seus olhares à sintaxe da língua, pois observam o fenômeno apenas no âmbito da configuração sintagmática do enunciado. Haja vista esse cenário de escassas investigações sobre a temática e com propósitos investigativos para além dos limites da sintaxe, o presente trabalho objetiva realizar uma análise do funcionamento sintático e discursivo das cláusulas de complementação verbal no português do Brasil. Essas estruturas, como aqui são concebidas, correspondem a complementos sentenciais ocupantes da posição de objeto de uma predicação. Em decorrência de tal propriedade sintática, são, frequentemente, analisadas sob uma perspectiva limitada ao nível estrutural do enunciado e assentada na aplicação de padrões analíticos desenvolvidos para o tratamento de construções do tipo simples. A adoção da referida perspectiva tem se mostrado pouco profícua, uma vez que não dá conta da complexidade do fenômeno da complementação verbal. As cláusulas completivas, embora ocupem um espaço reservado a sintagmas nominais, não podem ser tomadas como tal, porque, como bem ressalta Givón (2001:39), “a semelhança entre complementos verbais e argumentos nominais é apenas parcial, e muitas línguas distinguem sintaticamente os dois tipos de construção.” Muitas são as evidências de que a cláusula­complemento não é um objeto. Entre elas, por exemplo, destacamos a gramática de casos e a transitividade. Com relação à 14 primeira, diferentemente do que ocorre com sintagmas nominais, aos complementos sentenciais em posição de objeto não são atribuídos papéis semânticos, e, com relação à segunda, é perceptível que verbos muito transitivos rejeitam complemento clausal. Sendo assim, aqui é apresentada como proposta investigativa uma análise da sintaxe da complementação sob uma perspectiva funcional. Para tanto, a observação do fenômeno ocorrerá a partir de suas ocorrências em textos de uso real da língua portuguesa coletados na cidade do Natal­RN. Os textos compõem o corpus do grupo de pesquisa D&G (Discurso & Gramática) e contemplam tanto a modalidade falada quanto a escrita. Para a fundamentação das análises realizadas, será adotado o aparato teórico da Linguística funcional norte­americana. Inserida nesse domínio teórico, a pesquisa conceberá a língua enquanto instrumento de interação social e a gramática como emergente das realizações discursivas. Partindo do pressuposto de que forma e função correlacionam­se, à investigação interessarão não somente mapear o funcionamento da cláusula­complemento no âmbito do discurso, como também desvendar os “mistérios” subjacentes às regularidades que envolvem os processos de subordinação sintática. 15 CAPÍTULO 2 – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO­METODOLÓGICA 2.1 Teoria 2.1.1 Língua, comunicação e cognição Circunscrito ao domínio teórico da Linguística funcional norte­americana, o presente estudo adota uma concepção de língua enquanto instrumento de interação social. Daí decorre que, em discordância de abordagens formalistas, é admitida a comunicação como a função precípua da língua, e não a mera possibilidade de expressão de pensamentos por meio de um sistema abstrato, arbitrário e autônomo. Conquanto a orientação teórica adotada ponha em relevo a comunicação, ela não nega a existência do sistema linguístico nem o fato de que, através dele, aos indivíduos é permitida a exteriorização de ideias. Afinal de contas, criar o objeto língua sob o ponto de vista de um paradigma funcional e negar a capacidade de expressão do pensamento por meio da linguagem é, sem dúvida, incorrer num posicionamento por demais contraditório. Indiscutivelmente, dentro dos cotidianos atos de comunicação, ao fazermos uso de um sistema de sinais, realizamos associações entre formas e conteúdos, sendo esses últimos nossos pensamentos (sentimentos ou ideias), que ao outro precisamos ou queremos transmiti­los; logo, a língua serve­nos também à exteriorização do pensamento. Contudo, no paradigma funcional, o termo “comunicação” ganha um sentido especial, uma vez que o ato de comunicar transcende o ato de (de)codificar. Em outras palavras, enquanto participantes de eventos comunicativos não apenas realizamos associações entre estruturas linguísticas e significados em vista à transmissão e à recepção de informações meramente factuais, pois a comunicação constitui­se como “um padrão interativo dinâmico de atividades através das quais os usuários efetuam certas mudanças na informação pragmática de seus parceiros (NEVES, 1997:44).” Desse entendimento, resulta uma visão de comunicação que ultrapassa os limites da codificação e desemboca em ações interativas. O comunicar­se passa, então, a ser concebido como somente realizável mediante estratégias de codificação, mas que não se resume a tais estratégias. Conceber a adesão entre forma e significado – a codificação – como situada dentro de um processo mais amplo, que é a comunicação, é inquestionavelmente um avanço quanto à abertura de novos caminhos para a investigação da língua em 16 relação ao seu funcionamento. Todavia, também se faz necessária uma ampliação dos horizontes acerca da relação entre língua e pensamento. Tal qual a comunicação, a relação língua/pensamento não se restringe à exteriorização de pensamentos via códigos. É fato que os indivíduos, para comunicarem­se, recorrem não somente ao repertório de formas linguísticas disponíveis, bem como a paradigmas de organização de sentenças. Por mais simples e natural que possa a um falante nativo parecer, a montagem de qualquer enunciado exige a realização de tarefas complexas, tais como: escolha de itens lexicais, associações léxico/significado e domínio de padrões sistêmicos de linearização. Porém, os enunciados não são apenas um conjunto de palavras linearmente bem organizadas por meio das quais nossos interlocutores têm acesso a nossos pensamentos. Em ações comunicativas, quando os falentes/escreventes de uma língua produzem sentenças, eles fazem mais do que comunicar de acordo com possibilidades de estruturação sintática previstas por um sistema. A relação língua/pensamento insere­ se no plano da cognição humana. Não podemos negligenciar o fato de que, como qualquer sistema de comunicação, a língua origina­se dentro sistemas mais amplos: as culturas, e que, por isso, traz, em sua organização interna, reflexos da visão de mundo daqueles que a falam ou a escrevem. Em defesa da submissão da língua à cultura, essa última sendo tomada como categorias conceptuais, Delbecque (2006:17) diz que A língua não é simplesmente uma ferramenta de comunicação, ela também reflete a percepção de mundo vigente em dada comunidade cultural. Esse universo conceptual comporta muito mais noções – ou categorias conceptuais – do que as que encontramos na língua. A comunicação, vista pela ótica da interação, e a relação língua/pensamento, vista pela ótica da cognição, não somente compõem a nossa concepção de língua enquanto instrumento de interação social, como também são as vigas­mestra da perspectiva funcionalista aqui adotada. É importante ressaltar que definir língua enquanto instrumento de interação social não é o mesmo que dizer que língua é interação social. Enquanto na segunda definição língua se resume a ato interativo; na primeira, a palavra instrumento como núcleo do sintagma instrumento de interação social, mesmo de modo um tanto vago, referencia algo que não se confunde com interação, mas, sim, a algo que serve a tal fim. Finalmente, que instrumento é esse de que estamos falando? Há pouco, dissemos que, entre as 17 exigências à montagem de um simples enunciado, está o domínio de padrões sistêmicos de linearização. Embora, em muitos casos, seja possível nos comunicarmos através de um único item lexical, isso não é o normal, pois a participação dos indivíduos em atos de comunicação comumente demanda a utilização de um grande número de palavras. No entanto, em situações desse segundo tipo, os itens lexicais não são falados nem escritos dentro de uma sequência aleatória. Somos compelidos a organizá­los de acordo com regras que lhes determinam a combinatória; regras essas que compõem os referidos padrões sistêmicos, ou melhor: a gramática1 da língua. Diferentemente da normativa, que é aprendida no processo de escolarização, a gramática a que estamos nos referindo não é aprendida, mas, sim, naturalmente adquirida. Trata­se de uma gramática internalizada na mente dos usuários da língua. Delbecque (2006:115) afirma que A gramática da língua é constituída pela combinação daquilo que sabemos das categorias e dos esquemas de construção em que elas podem aparecer (...). Esta abordagem permite dizer que qualquer locutor tem a gramática <<na cabeça>>; ela inclui o conjunto das componentes da estrutura linguística: a lexicologia, a morfologia e a sintaxe, bem como a fonética e a fonologia, (...). Definida a noção de padrões sistêmicos, retornemos ao termo instrumento. Quando dizemos que a língua é um instrumento de interação social, a palavra instrumento deve ser entendida como o somatório entre o conjunto de itens lexicais da língua e sua gramática. Sendo assim, fica claro que a concepção de língua adotada não nega a existência de um sistema linguístico, mas difere de abordagens formalistas, na medida em que não compactua com a ideia de língua enquanto um sistema fechado em si mesmo. Conceber língua como um instrumento de interação social é entender que tanto suas unidades léxicas quanto sua gramática originam­se e realizam­se em atendimento às necessidades comunicativas de seus usuários. Daí decorre que, se o sistema gramatical é parte da língua, e ela é indissociável da cultura, conforme já afirmado, e também dos processos de interação social, certamente, muitos de seus aspectos formais podem ser explicados em vista à comunicação e, sobretudo, à cognição. Nesse sentido, a primazia que atribuímos à comunicação é consequência da necessidade de uma ampliação do foco dos 1 Por tratar­se de um trabalho em sintaxe, optamos por uma definição de gramática, relacionando a noção de sistema à combinatória de itens lexicais, porém a sistematicidade da língua também atua sobre a organização interna das palavras, determinando­lhes características fonológicas e morfológicas. 18 estudos para além dos limites do sistema, já que muitos aspectos relativos à organização interna das línguas naturais só podem ser explicados com base em fatores extralinguísticos componentes dos eventos discursivos nos quais a interação ocorre. Sobre a gramática vista no processo de interação, Givón (1984:10) diz que “a comunicação humana é multi­proposicional, pois tanto o contexto discursivo imediato quanto o contexto temático global controlam a escolha e o uso de muitos mecanismos gramaticais.” Quanto à base cognitiva da linguagem, Givón (1984:11) defende que “a língua e sua organização nocional/funcional e estrutural está intimamente ligada à estrutura da cognição humana, (...) e é por ela motivada”. Uma vez correspondendo ao fim a que se destinam os usos de uma língua, a interação constitui­se, por excelência, como o lócus do qual emerge a sistematicidade linguística. Em nenhuma das línguas naturais do mundo, o sistema foi configurado previamente às ações comunicativas por meio das quais se realiza; ele não tem, pois, existência em si mesmo. Como as necessidades de comunicação não são estanques, a gramática, na condição de por elas determinada, também não pode ser estanque. Isso implica dizer que a forma da língua possui estabilidade relativa, já que não somente se origina nos processos de interação, como também através dele remodela­se de acordo com diferentes necessidades de comunicação. É em decorrência dessa fluidez da sistematização das línguas naturais que é postulada a noção de gramática emergente (HOPPER, 1987). Posto assim, a gramática da língua é aqui tomada como um constructo relativamente estável, pois os usos não apenas sedimentam padrões de regularidade, bem como os desgastam. À admissão da noção de gramática emergente está aqui implicada a refutação dos princípios da autonomia e da arbitrariedade tão defendidos por correntes formalistas. Portanto, ao fazermos opção por uma perspectiva funcionalista, cujo principal aporte teórico é a negação da autonomia da língua, pressupomos que, em aspectos externos ao sistema linguístico, podemos encontrar respostas para muitos dos nossos porquês em relação à configuração interna da língua. Fato esse que nos leva a defender que a análise linguística não deve se desenvolver na imanência do objeto, já que, como bem ressaltam Votre e Naro (1989:169­170): “do uso da língua – a comunicação na situação social – origina­se a forma da língua, com as características que lhe são peculiares, inclusive diferentes graus de instabilidade associados a diferentes subsistemas. Isso supõe 19 entender a língua como um objeto maleável, probabilístico e não­ determinístico”. 2.1.2 Sintaxe e iconicidade Comecemos por onde tudo começou: o léxico. A discussão acerca da relação entre língua e mundo é muito antiga. Sempre foi de interesse dos seres humanos saber por que a língua é do jeito que é. Na antiguidade clássica, por exemplo, por meio dos diálogos do Crátilo, o filósofo grego Platão constrói uma reflexão a respeito da relação entre o nome, a ideia e a coisa. O diálogo desenvolve­se em torno da possibilidade de haver ou não algum tipo de motivação que justifique a ligação entre a forma do signo linguístico e sua referência no mundo. O diálogo é composto por três participantes: Crátilo, Hermógenes e Sócrates. Enquanto os dois primeiros defendem, respectivamente, a motivação e a arbitrariedade do signo, o terceiro assume uma postura de mediador dos argumentos prós e contras. Já, no início do século XX, ao construir as bases da ciência Linguística, Saussure retoma a discussão sobre a possível motivação do signo, negando­a e defendendo, veementemente, o principio da arbitrariedade. Apesar de todos os embates já travados sobre a relação entre as palavras e as coisas que por elas são nomeadas, não chegamos a nenhum posicionamento consensual. Se, por um lado, muitos aspectos nos levam a crer na arbitrariedade; por outro, vários aspectos evidenciam motivações para os fatos da língua. Tomemos, como exemplo, as palavras concurseiro e galágua, dois neologismos da língua portuguesa. A observação do processo de criação de ambas as palavras nos permite perceber quão questionável é a ideia da total ausência de motivações à forma dos itens lexicais. O primeiro neologismo, concurseiro, é construído por meio do acréscimo do sufixo eiro ao radical concurs 2 . Nem o radical nem o sufixo foram escolhidos por acaso. O objetivo era dar origem a uma palavra capaz de nomear não um candidato qualquer a um processo seletivo, mas, sim, aquele para quem a participação em concursos faz­se com certo grau de profissionalismo. Sendo assim, nada melhor do que os morfemas concurs , designador do evento, e o sufixo eiro , designador da ideia de profissão em tantas palavras da língua portuguesa. Fato semelhante pode ser observado no processo de composição por aglutinação 2 Estamos considerando o prefixo con parte do radical, pois, do ponto de vista sincrônico, os usuários da língua não o mais reconhecem como um outro morfema da palavra. 20 originador da palavra gelágua. Os radicais gel e água também não foram escolhidos arbitrariamente. Inegavelmente, houve uma motivação para tal escolha. Afinal de contas, a criação da palavra é fruto da necessidade de nomear­se um aparelho criado especificamente para gelar a água. Os processos de formação de palavras como essas atestam uma relativização do princípio da arbitrariedade. Sobre a construção de neologismos, como bem enfatiza Carvalho (1999:34): “Esta é a criação lexical, que se vale de termos preexistentes, ligados a determinadas noções, e utiliza em novas formações, estabelecendo uma ligação com conhecimentos anteriores.” Fora os neologismos apresentados, podemos citar ainda a palavra composta lava­a­jato, aliás, talvez seja melhor dizermos lava­jato, pois quase não se usa mais a versão anterior. Possivelmente, ao desaparecimento da preposição a subjaz uma forma de motivação. Observemos que a presença da preposição entre as palavras lava e jato, na medida em que, juntamente com o substantivo jato constrói uma expressão adverbial de modo, confere a lava a noção de atividade, acentuando seu caráter de verbo e dificultando, assim, a nominalização da expressão. Daí decorre que, como a expressão foi criada para ser nome e não verbo, é possível que haja uma motivação de natureza cognitiva ao apagamento da preposição. Quando anteriormente dissemos que nossas exemplificações atestavam um certo grau de relativização quanto ao princípio da arbitrariedade do signo, o dissemos, tendo em vista que muitos são os argumentos contrários que podem ser levantados em relação aos que aqui apresentamos. Entre eles, por exemplo, o fato de que as palavras primitivas que participaram da derivação e da composição mostradas são em suas origens arbitrárias. Assim sendo, falamos em certo grau de relativização, porque não estamos querendo negar a existência de relações arbitrárias envolvendo a língua, o que queremos, de fato, é negar que, na língua, tudo seja obra do acaso. Passemos agora à sintaxe. Tal como, durante toda a trajetória dos estudos linguísticos, por vários estudiosos pensada para a imagem sonora dos itens lexicais, a noção de arbitrariedade não pode ser atribuída a padrões sistêmicos de controle da organização interna dos enunciados. Se, no nível lexical, há várias evidências de motivação entre forma e significado, no nível da sintaxe, as evidências são ainda mais fortes. Segundo Ungerer e Schmid (1996:250­251), um dos principais méritos 21 do trabalho de Peirce reside no fato de que, em sua semiótica, ele “não restringe o uso de ‘ícone’ a expressões simbólicas de som (as quais chama de imagens). Ao contrário, ele adota uma visão bem mais larga e a estende a similaridades entre a estrutura da língua e a estrutura do mundo.” Enquanto as discussões anteriores tinham como foco a possível motivação da forma sonora das palavras, Peirce vai além, uma vez que falar em semelhanças refletidas na estrutura da língua é deslocar o olhar do léxico em direção à gramática da língua. Quando os falantes/escreventes estruturam seus enunciados, a estruturação dada, mesmo que de modo inconsciente, é normalmente guiada sob a interdependência entre sintaxe e fatores de natureza semântica, pragmática e, sobretudo, cognitiva. Observemos os dois seguintes trechos: (a) era bem pequenininho ... aí chegaram na ... na ... na .... e gritaram pelo menino e o menino muito cri/ muito ... muito acriançado ... num entendeu foi nada ... aí atravessou a rua e a carreta pegou ele né ... aí matou ... aí o cara ficou doido né ... todo mundo ficou doido ... a menina chorou muito também ... a irmã dele ... aí ele ... aí enterrou ... enterrou lá no cemitério mesmo ... (corpus D&G/Natal – fala: narrativa recontada, p.12) (b) e tem o espiritismo ... que esse eu acho muito parecido com a igreja católica ... a única diferença que existe é que o espiritismo consegue explicar questionamentos que a igreja católica não consegue ... ela apenas faz ... ela joga as idéias ... que Deus é isso ... isso ... isso ... isso ... mas quando você se questiona se Deus é isso ... ela não consegue explicar ... porque ela não aceita esse questionamento ... (corpus D&G/Natal – fala: relato de opinião, p.28) No trecho (a), a parte do filme é recontada através da seguinte sequência de eventos: pessoas chegam e gritam, no entanto a criança, por não perceber o chamado, tenta atravessar a rua sozinha e acaba sendo morta por atropelamento. Em decorrência da fatalidade, vêm o desespero e o choro dos familiares e, em seguida, o enterro da criança. Podemos perceber que a estruturação sintática não se dá de forma aleatória, mas que obedece à ordem dos acontecimentos. As sentenças destacadas não poderiam aparecer em posições diferentes daquelas em que se encontram, uma vez que inversões provocariam um desordenamento das ideias. O ordenamento sintático das sentenças em (a) é um reflexo da forma como os acontecimentos narrados não somente ocorreram na realidade, mas também de como eles estão organizados na mente do falante, o que evidencia uma relação entre sintaxe e cognição. No trecho (b), a repetição do pronome isso também é motivada. É importante notarmos que o isso , por meio de um verbo de cópula, aparece ligado ao nome Deus , predicando­o e que tal predicação corresponde a 22 uma concepção sob a ótica do catolicismo. A repetição do pronome, além de representar, mesmo de modo indefinido, as características definidoras da visão católica acerca de Deus, é ainda o meio pelo qual o falante codifica as noções de intransigência e de imposição subjacentes ao dogmatismo católico. Podemos, então, dizer que, em (b), a forma como a predição analisada foi sintaticamente construída atende a motivações de natureza pragmática e cognitiva. Tendo em vista as várias evidências acerca da existência de motivações para a codificação sintática da língua, em oposição aos princípios formalistas da autonomia e da arbitrariedade da sintaxe, advogamos o princípio da iconicidade, de acordo com o qual, há isomorfismo nas relações entre a sintaxe e os componentes semântico­pragmático e, principalmente, cognitivo. Pondo em contraste as perspectivas formalista e funcionalista, Givón (1979:208) diz que ao invés de defendermos um nível de organização estrutural independente, formal e autônomo, acreditamos, realmente, ser a sintaxe uma entidade funcionalmente motivada, cujas propriedades formais refletem – talvez não completamente, mas quase isso – as propriedades de parâmetros explanatórios que motivam sua origem. Por meio do principio da iconicidade, o estudo da sintaxe ganha um outro viés, possibilitando uma nova forma de conceber a gramática das línguas naturais. A sistematicidade inerente às línguas passa a ser vista não mais apenas como subordinante do discurso, mas, sim, como a ele subordinado. Ocorre que, vista por esse ângulo, a gramática não é mais um sistema acabado, mas que, através do discurso, renova­se constantemente a fim de dar conta de novas necessidades comunicativas. Wilson e Martelotta (2009:81) ressaltam que Como os estudos funcionalistas, contrariamente aos estudos formalistas, privilegiam a função sobre a forma, observando a língua do ponto de vista do contexto lingüístico e da situação extralingüística, o princípio de iconicidade tornou­se fundamental para a observação e interpretação da relação ente forma e função e para a concepção de gramática das línguas. Haja vista que a forma é modelada em atendimento a necessidades comunicativas, a sintaxe, enquanto nível estrutural, desenvolve­se, ao longo do tempo, por meio de conversões de estruturas discursivas paratáticas e pragmáticas em estruturas sintáticas gramaticalizadas (GIVÓN, 1979). Podemos, então, dizer que a estrutura da língua deriva de processos de gramaticalização de estruturas emergentes nas ações discursivas, que, num momento anterior, apresentavam­se irregulares e foram, com o passar do tempo, sistematizadas, migrando para a gramática da 23 língua. DeLancey (s/d:90) também corrobora com tal posicionamento. Segundo o autor, a especialização funcional é um pré­requisito à gramaticalização, pois “a pré­ condição essencial para a gramaticalização é que uma forma lexical tenha algum status especial e funcional que a distinga de outros membros de sua categoria sintática.” Desse modo, concebemos a gramática não como uma obra do acaso, como acontece quando tomada sob a perspectiva da arbitrariedade, mas, sim, como resultado de processos discursivos; estando, assim, subordinada aos usos que da língua são feitos. Em consequência disso, a sintaxe é aqui vista como um sistema permeado por motivações icônicas, mesmo que, em muitos casos, apresente opacidade quanto à identificação de tais motivações. Valin e LaPolla (1997:11), de modo genérico, chamam esse ponto de vista de perspectiva da comunicação­e­ cognição e afirmam que, nele, “(...) A língua é vista como um sistema abstrato, o qual, no entanto, está firmemente assentando na comunicação e cognição humanas”. É sob essa perspectiva que se dá a ampliação do foco do estudo para além dos limites da organização estrutural da língua. As regularidades do sistema passam a ser investigadas em relação à cognição e às funções discursivas que desempenham, e não encerradas em si mesmas. É importante salientar que, visto como o espaço de emersão da sistematicidade inerente a qualquer língua, o discurso não aqui é definido com base em aspectos sócio­históricos, culturais ou ideológicos associados à produção de sentido de um texto. Ele é concebido como situações reais de uso da língua, para as quais convergem fatores semântico­pragmáticos e cognitivos determinantes de muitas das características da codificação sintática dos enunciados e, por consequência, da gramática da língua. Conforme ressalta Votre et al (1998:46), o discurso é entendido “como um conjunto de estratégias que caracteriza o processamento da cadeia verbal em uma determinada situação de comunicação.” O princípio da iconicidade é subdividido nos três seguintes subprincípios: o da quantidade, o da integração e o da ordenação linear. O primeiro tem a ver com a relação entre a quantidade de informação e a quantidade de material linguísitico. De acordo com esse subprincípio, a quantidade de formas e a quantidade de significados são diretamente proporcionais. Durante o processo de codificação sintática, do mesmo modo que há uma tendência a associar­se um maior número de significados a um maior número de códigos, também há uma tendência a associar­ 24 se um menor número de códigos a um menor número de significados. Por esse subprincípío, explica­se a repetição do pronome isso no exemplo (b) já analisado. O falante tem em mente que o conceito católico de Deus corresponde a um conjunto de características, e essa noção aparece refletida na repetição do pronome. O segundo subprincípio diz respeito ao distanciamento entre os elementos no encadeamento sintático. Por ele, é admitido que a distância entre os signos é um reflexo do elo mental entre as ideias expressas. Sendo assim, quanto mais representativos de idéias mentalmente próximas, mais integrados aparecerão os elementos no encadeamento sintático. O terceiro subprincípio, como o próprio nome já sugere, está ligado à sequencialidade da organização sintática. De acordo com ele, no processo de codificação sintática, a ordenação linear dos elementos reflete a nossa organização mental das ideias expressas. Esse subprincípio pode ser verificado no exemplo (a). Conforme já o analisamos, (a) apresenta uma organização sintática guiada pela ordem temporal dos acontecimentos, não podendo ter as sentenças em posições invertidas. As correlações entre sintaxe e cognição não ocorrem somente por meio dos subprincípios apresentados. Elas também estão presentes nas inter­relações entre esquemas mentais. Tais esquemas são construídos no contato dos seres humanos com o universo que os cerca. As coisas não existem independentemente de nossas concepções acerca delas. Quando alguém nos mostra algo que nos seja completamente desconhecido e, logo em seguida, pergunta­nos o que é, não respondemos à pergunta apenas com base no que estamos vendo. Em situações como essa, buscamos sempre, por uma relação de semelhança, definir a coisa vista, aplicando­lhe um conceito mentalmente já estruturado, ou seja, aquilo que nos foi mostrado existirá para nós da forma como conseguirmos concebê­lo; talvez como uma laranja, um brinquedo, uma ferramenta... Até coisas, tipo carnaval, praia e mamífero, que são normalmente conhecidas, não existem de modo igual para todos. O conceito de Carnaval do pernambucano difere bastante do do carioca. Da mesma forma, a concepção de praia e de mamífero das pessoas comuns não corresponde, por exemplo, à visão de um geógrafo e de um biólogo, respectivamente, a respeito de tais coisas. Delbecque (2006:35) diz que o mundo não é uma realidade objectiva que existe em e por si mesma. Ela aparece­nos sempre de uma forma ou de outra por meio da nossa actividade que consiste em categorizar com base na nossa percepção, nos 25 nossos conhecimentos, no nosso estado de espírito; em suma, a partir de nossa condição humana. Essa noção de realidade enquanto construção mental também está em Martelotta e Palomanes (2009:183). Segundo eles, sob a ótica da cognição, “Toda informação é posicionada, no sentido de que, normalmente, não falamos a respeito do que o mundo é, mas da visão que temos dele.” Os conceitos pelos quais vemos o mundo são modelos cognitivos idealizados e correspondem a nossas categorias conceptuais . As categorias conceptuais que construímos dizem respeito tanto a coisas individuais quanto a conjunto de coisas. Assim como temos um conceito de cavalo, temos também um conceito de mamífero, dentro do qual a noção de cavalo se insere. No entanto, ambas as formas de categorização englobam um conjunto de elementos. Não é apenas o termo mamífero que abarca uma variedade de seres reunidos em um mesmo grupo. O substantivo cavalo também funciona como uma espécie de guarda­sol debaixo do qual vários elementos são postos. O cavalo pode ser um pônei, um cavalinho de brinquedo ou até mesmo um cavalo­marinho. O fato de as categorias conceptuais agruparem elementos com características tão diversas, mas que mesmo assim são percebidos como pertencentes ao mesmo grupo, é possível, porque, apesar de diferirem quanto a determinadas características, os membros da categoria compartilham outras que lhes permitem ser agrupados sob o mesmo rótulo. Entretanto, todos os membros não são igualmente representativos da categoria na qual se encontram inseridos. Não categorizamos as coisas aleatoriamente. Toda categoria é construída com base na combinação de determinadas características, e algum elemento só é visto como membro do grupo, se reuni, em si, total ou parcialmente as características pelas quais o grupo é definido. Quando os elementos apresentam todas as características definidoras do grupo, “eles são os membros “mais típicos” da categoria, seu protótipo ” (GIVÓN,1984:15). Haja vista que o protótipo é uma representação mental, ele não deve ser pensado de forma dicotômica. Nesse sentido, o ideal é que os elementos sejam tomados dentro de um continuum de prototipicidade. Uma categoria sempre agrupa membros que apresentam maior ou menor grau de prototipicidade. Dentro da categoria cavalo, por exemplo, o pônei, embora não seja o protótipo de cavalo, ele é, sem dúvida, mais prototípico do que um cavalinho de brinquedo ou do que um cavalo­marinho. Outro aspecto não menos relevante que a noção de protótipo, é a 26 noção de que, em nossa mente, as categorias conceptuais não se encontram isoladamente organizadas. É uma tarefa bastante difícil, ou até mesmo impossível, traçarmos os limites de categorias conceptuais. Elas não apresentam fronteiras bem delineadas, uma vez que se interseccionam em vários pontos. As regiões de intersecção entre categorias conceptuais correspondem a zonas abstratas em que elementos com baixo grau de prototipicidade se encontram situados. O protótipo, na medida em que é a representação mental típica, ocupa uma posição central dentro do domínio categorizado. Já os elementos com baixo grau de prototipicidade encontram­se deslocados para um ponto mais marginal, posicionando­se, muitas vezes, numa zona de intersecção, ou seja, numa área onde uma categoria conceptual se sobrepõe a outra. Retomemos a categoria mamífero. Nela, enquanto o nosso conceito de cavalo ocupa uma posição mais central, conceitos outros, tais como o de baleia e o de morcego, ocupam posições mais periféricas, de modo que se situam em zonas de interface entre diferentes categorias conceptuais. Não vemos a baleia e o morcego como elementos prototípicos dentro da categoria na qual são biologicamente enquadrados. O conceito de baleia situa­se numa zona em que as categorias mamífero e peixe sobrepõem­se, e o conceito de morcego fica na zona de sobreposição entre as categorias mamífero e ave. Na medida em que, na nossa mente, o conhecimento linguístico não se encontra separado de outros tipos de conhecimento, os falantes/escreventes lidam com categorias linguísticas de maneira semelhante ao que fazem como outros tipos de categorias, o que implica a existência de correlações entre sintaxe e cognição. Quando construímos, por exemplo, uma expressão como de segunda a sábado , embora ela pertença a nossa categoria conceptual de tempo, aplicamos a ela o mesmo tipo de estruturação sintática que é usada em expressão com significado de espaço. Enquanto a preposição de indica ponto de partida, a preposição a indica ponto de chagada, coisa semelhante ao que acontece com a expressão de Recife a Salvador . Isso é uma evidência de que as categorias conceptuais de espaço e de tampo se interseccionam, apresentando reflexos na gramática da língua. Para o trato dos verbos que tomam cláusulas­complemento, adotamos a categorização apresentada em Givón (1984:117­125), segundo quem esse grupo de verbos pode ser subdividido nos seguintes subgrupos: modais, de cognição, de enunciação, de informação e de manipulação. Contudo, conforme já dito, entendemos que 27 categorias linguísticas são também esquemas mentais, logo concebemos os referidos subgrupos como categorias conceptuais. Daí decorre que eles, além de não serem categorias discretas, agrupam verbos com diferentes graus de prototipicidade. Em Givón (1984:117­125), é ainda apresentada a subdivisão implicativo/não­implicativo, que pode ser aplicada a apenas alguns desses subgrupos verbais. Essa subdivisão é não somente por nós adotada, como também concebida enquanto um processo de categorização com todas as suas implicações. Consoante acabamos de afirmar, os subgrupos verbais são categorias mentais entre as quais não há separação, e seus verbos podem apresentar comportamento mais ou menos prototípico. Todavia, é necessário que essa forma de conceber os subgrupos verbais seja relacionada ao contexto discursivo em que os verbos aparecem. Diferentemente da categorização das coisas concretas, a categorização de elementos da língua nem sempre pode se apoiar em características físicas. O comum é que o processo de construção de categorias linguísticas se dê com base na significação, como é o caso das categorias verbais que aqui se apresentam. Porém, sabemos que, a semântica de qualquer língua do mundo é um domínio fluido, pois, a depender da situação discursiva, as palavras significam coisas bastante diferentes. Nesse sentido, a categorização dos verbos, por ser de base semântica, permite que eles, em muitos casos, flutuem entre os subgrupos pelos quais são distribuídos. Para tanto, passam por um processo de extensão metafórica. É importante ressaltar que, sob a ótica cognitivista, as metáforas “não parecem metáforas, no sentido tradicional (de uma figura de linguagem deliberada, usada para enfeitar, para fazer um truque de linguagem) (SARDINHA, 2007:33).” O processo de extensão metafórica tem a ver com a noção de protótipo. Como o que define o grau de prototipicidade é uma relação de semelhança com o elemento mais prototípico da categoria, a polissemia pode levar um verbo de uma categoria a assumir características semânticas do verbo prototípico da outra, fazendo­o deslizar entre os subgrupos. Givón (1984:17) afirma que “a noção de semelhança/similaridade é então crucial para formar categorias naturais. E é também crucial para definir o processo pelo qual a associação à categoria – e eventualmente o protótipo em si – é estendido. Esse processo é chamado de metáfora ou analogia. Essa noção de metáfora possibilita, dentro do discurso, uma melhor investigação do comportamento sintático­semântico dos verbos em relação às suas categorias. 28 2.1.3 A cláusula de complementação verbal Normalmente, os verbos referenciam situações que demandam a presença de participantes nominais ou nominalizados (doravante SN, de Sintagma Nominal) aos quais são atribuídos determinados papéis semânticos. Em decorrência disso, com base em uma perspectiva configuracional hierarquizada da sintaxe, os verbos são concebidos como formas nucleares regentes de SNs, e, na condição de formas regidas, tais SNs têm sido larga e tradicionalmente estudados na literatura sob os rótulos de sujeito e de objeto. Esses rótulos também são estendidos às cláusulas 3 de complementação verbal, pois elas são vistas como complementos sentenciais. Nas construções complexas 4 , as cláusulas de complementação verbal correspondem às sentenças ocupantes das posições de sujeito e de objeto do verbo de uma cláusula matriz. Daí, a aplicação à construção complexa da mesma rotulação usada para a construção simples. Noonan (in Shopen, 1985:42), define, formalmente, a complementação sentencial, dizendo: por complementação sentencial, referimo­nos à situação sintática originada quando uma sentença nocional ou predicação é um argumento de um predicado. Para nossos propósitos, a predicação pode ser vista como um argumento de um predicado, se funciona como sujeito ou objeto daquele predicado. No entanto, ressaltamos que, como à nossa pesquisa apenas interessa as estruturas ocupantes da posição de objeto, da denominação cláusula de complementação verbal é aqui excluída as estruturas ocupantes da posição de sujeito. Sendo assim, em nosso estudo, tomamos por cláusulas de complementação verbal somente aquelas que servem à função sintática de objeto. A aplicação do rótulo de objeto à cláusula­completiva parece um tanto problemática, haja vista o fato de SNs e cláusulas verbais na posição de SNs não compartilharem exatamente as mesmas propriedades sintático­semânticas. Ao tratar desse aspecto, mais especificamente no tocante às cláusulas verbais que ocupam a posição do objeto, Givón (2001:39) afirma que “(...) a semelhança entre complementos verbais e argumentos nominais é apenas parcial, e muitas línguas 3 Embora, de modo genérico, o termo cláusula possa ser empregado tanto para sintagmas nominais quanto verbais, ele é aqui tomado apenas em referência a sintagmas do tipo verbal, isto é, corresponde às chamadas sentenças. 4 Enquanto as construções simples são períodos formados por somente uma cláusula, as construções complexas são períodos compostos por mais de uma. 29 distinguem sintaticamente os dois tipos de construção.” Embora as cláusulas de complementação verbal ocupem, dentro das sentenças, a posição reservada ao objeto, elas não correspondem, de fato, a objetos. A extensão do rótulo de objeto a cláusulas­complemento é consequência do tipo de análise empregada ao estudo das construções complexas. Elas, além de serem observadas fora da atividade discursiva, são sintaticamente tratadas como meras projeções de um tipo de constituinte nominal da construção simples. Essa forma de tratamento corresponde a uma observação restrita ao âmbito da configuração sintagmática, de modo que o mesmo padrão analítico aplicado ao tratamento das construções simples é usado na análise das construções complexas. Contudo, por vários motivos, esse tipo de espelhamento tem se mostrado ineficaz. Uma construção complexa não é uma mera ampliação de uma construção simples, pois os dois tipos estruturais diferem quanto a várias propriedades sintático­semânticas, pragmáticas e cognitivas através das quais são internamente organizados. Com base na análise de dados de conversações em inglês, Thompson (2002:129) critica a definição de Noonan (op. cit.) acerca dos complementos sentenciais. A autora diz que “a visão padrão de complementos como cláusulas subordinadas numa relação gramatical com predicados que tomam complementos não é confirmada pelos dados.” No que diz respeito à gramática de casos, por exemplo, enquanto, nas construções simples, aos sintagmas nominais ocupantes das valências sintáticas são delegados determinados papéis semânticos, o mesmo não ocorre com complementos sentenciais em igual posição. Acerca dessa relação conceitual entre verbo e nome na construção simples, Borba (1996:52) diz: “Assim, são as características das estruturas conceituais de um verbo que, associadas às de um nome, resultam num papel semântico que se apresenta sob a forma de um caso.” A mesma noção de papéis semânticos resultantes da relação verbo­nome também está presente na definição de Andrews (in Shopen, 1992:66). Assim o autor define papéis semânticos: “Eu usarei o termo papel semântico para referir­me a ambos os papéis semânticos impostos a frases nominais por um dado predicado, tais como assassino e assassinado, e para classes de papéis mais gerais, tais como agente e paciente.” Observemos que, em sua definição, Andrews traça os papéis semânticos como sendo decorrentes de uma imposição da predicação à frase nominal. Ora, na medida em que as relações de sentido estabelecidas entre o verbo da cláusula 30 matriz e a completiva não implicam papéis semânticos para essa última, a teoria da gramática de casos não dá conta das construções complexas, o que já demonstra uma acentuada assimetria entre construções simples e complexas. O sistema de transitividade da língua também se apresenta entre os vários aspectos pelos quais as construções complexas não podem ser tratadas como ampliações especulares de construções simples. Concebida tal como proposta por Givón (1984:98), a “transitividade é uma questão de grau, em parte porque a óbvia mudança do objeto é uma questão de grau, e em parte porque depende de mais do que uma propriedade.” O processo de encaixamento sintático entre uma cláusula de complementação verbal e o verbo de uma cláusula principal não está plenamente ancorado no sistema de transitividade da língua. Vista sob uma perspectiva escalar, a transitividade, enquanto diferenciados graus de afetamento do objeto, leva­nos à verificação de que quanto mais prototipicamente transitivo, menos susceptível à admissão de complementos sentenciais será o verbo. Embora entendamos que a transitividade deva ser analisada como um fenômeno da cláusula como um todo, e não como um fenômeno particular do verbo, se tomarmos do português, como exemplos, verbos que frequentemente apresentam elevado grau de transitividade, tais como quebrar e matar, seremos capazes de, facilmente, perceber que rejeitam complementos sentenciais. Thompson e Hopper apud Thompson (op. cit., p.130) veem na transitividade um dos aspectos pelos quais as cláusulas de complementação verbal não podem ser tratadas como objetos. Vale ressaltar que, embora tenhamos aqui apresentado a definição de Noonan (op. cit.) acerca dos complementos sentenciais, não a aceitamos na íntegra, pois não corroboramos com a ideia de que a cláusula de complementação verbal é uma estrutura exercedora da função de objeto. Concordamos apenas com o fato de que essas estruturas se assemelham a SNs quanto à capacidade de ocupação da valência sintática de objeto. Em outras palavras, as cláusulas­complemento não são objetos dos verbos, e, sim, estruturas sintaticamente autorizadas a ocuparem tal posição. A partir da adoção dessa perspectiva escalar do fenômeno da transitividade, acreditamos que uma distinção entre objetos afetados e efetuados seja mais apropriada ao estudo da complementação sentencial no português. Ambos os tipos são capazes de ocupar, na cadeia sintática, a mesma posição, porém diferem quanto a aspectos de natureza gramatical. Como bem ressalta Cunha (s.d.:10): 31 Objetos afetados e efetuados compartilham a propriedade gramatical de ocupar a mesma posição sintática reservada para os objetos, mas eles se distinguem em outros traços gramaticais, como (i) sua contribuição para o grau de transitividade oracional (objetos efetuados são menos transitivos do que objetos afetados), e (ii) a referencialidade do objeto (objetos efetuados geralmente são não­referenciais). Para além do rótulo de objeto e de todas as propriedades gramaticais que o definem, na língua, as completivas correspondem a um conjunto de estratégias disponíveis à produção de sentidos. Consoante a concepção de gramática emergente adotada, entendemos que a regularização de mecanismos gramaticais dá­se como um processo natural tendo em vista as necessidades comunicativas dos usuários da língua. O sistema não é sintatizado em vista a atender à rotulação da teoria linguística, pois para a grande massa de falantes a terminologia científica nem sequer é conhecida. Na medida em que, em muitos casos, cabe à cláusula principal o papel de codificar, em relação ao conteúdo da completiva, impressões do falante/escrevente ancoradas nas realidades física e cognitiva, acreditamos que a investigação dos reflexos icônicos em tais estruturas pode ser reveladora de muitas das propriedades sintático­semânticas que envolvem a sintaxe da complementação verbal na língua portuguesa. Há fortes evidências, nas línguas do mundo, de que as modalizações codificadas através da sintaxe da complementação verbal ajustam­se em mecanismos gramaticais. A respeito de tais evidências, Ransom (1986:23) assim se manifesta: Temos visto um breve resumo de evidências de que construções completivas consistem de uma combinação de dois tipos de sentido de modalidades, as de informação e as modalidades de avaliação, ambas as quais têm consequências para o conteúdo proposicional do complemento e sua co­ocorrência com diferentes significados e formas. Tradicionalmente, nas línguas do mundo, as relações semânticas entre a cláusula matriz e a completiva foram investigadas dentro de um mapeamento de relações lógico­semânticas baseadas, sobretudo, nos princípios da factividade e da implicatividade. Na maioria dos casos, com a aplicação de ambos os princípios dentro de um modelo analítico binário e discreto. Em nossa investigação, adotamos tais princípios, contudo não são vistos de forma binária nem discreta. Ademais, acreditamos ser tal adoção profícua, se associada a uma perspectiva escalar da modalização e à teoria da prototipicidade. Segundo Neves (in Koch, 1996:178), “a avaliação epistêmica se situa em algum ponto do continuum que, a partir de um limite preciso, onde está o (absolutamente) certo, se estende pelos limites e 32 indefinidos graus do possível.” No que tange à prototipicidade, conforme já dito, concebemos o protótipo como uma representação mental originada a partir de um ponto de referência cognitiva (UNGERER e SCHMID, 1996). Nesse sentido, para o aprofundamento investigativo das relações isomórficas subjacentes à sintaxe da complementação verbal, faz­se necessário que as modalidades codificadas através de estratégias de subordinação não sejam tomadas como discretas, mas que sejam analisadas dentro de um complexo quadro de escalas semânticas inter­relacionadas (GIVÓN, 1980). Dentre as referidas escalas, destacamos, como principais para o nosso estudo, a da implicatividade, a da epistemicidade e a da deonticidade. Para o trabalho investigativo, julgamos também ser bastante relevante o entendimento de que por trás das relações sintáticas, é comum a existência de um sistema de marcação de propriedades gramaticais. A respeito das propriedades gramaticais que chama de categorias especificáveis, Schachter (in Shopen, 1992:10) diz: “as categorias para as quais verbos podem ser especificados incluem tempo, aspecto, modo, voz e polaridade. Como no caso dos substantivos, a categorização pode ser manifestada tanto morfologicamente quanto sintaticamente.” Tendo em vista a indissociabilidade entre os níveis discursivo e estrutural, é, por meio do estudo das correlações entre o sistema sintático da língua e os componentes semântico­pragmático e cognitivo, que a sintaxe da complementação verbal no português do Brasil está, aqui, sendo posta sob investigação. Acreditamos que, se observadas no âmbito das correlações que a sintaxe mantém com outras componentes discursivas, as cláusulas de complementação verbal tornam­se reveladoras de vários aspectos motivadores dos processos de subordinação sintática no português. Numa perspectiva tipológico­funcional, Haiman (1985a,b) e Givón (1991a) apud Givón (2001:39) dizem que “realmente, a gramática da complementação fornece um dos melhores e, translinguisticamente mais confiáveis, exemplos de iconicidade em sintaxe.” Na complementação verbal, os processos de encaixamento sintático são fortemente influenciados pela semântica dos verbos que de tais processos se permitem ser participantes. É perceptível a referida influência não somente sobre a (im)possibilidade da ocorrência do fenômeno da subordinação, como também sobre a arquitetura sintática da cláusula de complementação. Com base em evidências dessa isomorfia encontradas translinguisticamente, Givón (1980:333) defende a existência de “um número de correlações sistemáticas entre a 33 estrutura semântica de um verbo que toma complementos e a estrutura sintática de seus complementos.” 2.1.4 A combinação de cláusulas 2.1.4.1 A visão da Gramática Tradicional A gramática tradicional (doravante GT) classifica estruturas linguísticas com núcleo verbal de acordo com a quantidade de orações – ou cláusulas – que as compõe. Enquanto a estrutura formada apenas por uma única oração é considerada um período simples, a que possui mais de uma é considerada um período composto. A análise sintática desse segundo tipo de período é tradicionalmente realizada através da dicotomia coordenação/subordinação. Para a GT, na arquitetura de um período composto, as orações podem organizar­se de modo que, entre elas, haja uma relação de dependência ou de total autonomia. Rocha Lima (2003:260­261) assim define coordenação e subordinação: A comunicação de um pensamento em sua integridade, pela sucessão de orações gramaticalmente independentes – eis o que constitui o período composto por coordenação. [...] No período composto por subordinação, há uma oração principal, que traz presa a si, como dependente, outra ou outras. Dependentes, porque cada uma tem seu papel como um dos termos da oração principal. Na definição do autor, é perceptível que a fronteira entre os dois tipos de período está alicerçada na relação de dependência sintática que as orações podem ou não manter entre si. Ademais, ser ou não dependente não é uma questão semântica, mas, sim, meramente estrutural. A dependência das orações subordinadas é atestada com base no fato de ocuparem espaços sintaticamente reservados aos constituintes – nas palavras do autor, termos – de uma outra oração, chamada de principal. A mesma visão do fenômeno está em Cunha e Cintra (2001:594), para os quais “As orações sem autonomia gramatical, isto é, as orações que funcionam como termos essenciais, integrantes ou acessórios de uma outra oração, chamam­ se subordinadas.” No que diz respeito às categorias gramaticais, os constituintes oracionais são obrigatoriamente substantivos, adjetivos ou advérbios. Mesmo que um determinado item lexical, se visto isoladamente, não se encaixe em nenhum dos três grupos, lá, no âmbito da oração, estará morfossintaticamente substantivado, adjetivado ou adverbializado, uma vez que, só assim, será capaz de assumir posições sintaticamente reservadas a constituintes oracionais. Daí decorre a 34 tradicional subdivisão das orações ditas subordinadas em substantivas, adjetivas e adverbiais. Como as coordenadas são consideradas orações sintaticamente completas em si mesmas, já que não funcionam como constituintes sintáticos de outras, a elas não é aplicada nenhuma subclassificação de base formal. Sendo assim, orações coordenadas são consideradas independentes, porque, diferentemente das subordinadas, elas não exercem nenhum papel de constituinte sintático de uma outra oração. Na medida em que ocupam a posição do objeto, constituinte oracional de natureza nominal, as cláusulas de complementação verbal são classificadas como integrantes do grupo das orações substantivas. A essa ocupação da posição de constituintes nominais por orações, Bechara (2001:464) refere­se por transposição substantiva. Segundo ele, “A oração subordinada transposta substantiva aparece inserida na oração complexa, exercendo funções próprias de substantivo (...)”. Como na GT, o período composto é observado por meio de uma relação de paralelismo com o período simples, as cláusulas de complementação verbal, além de rotuladas de objetivas, são tomadas como subordinadas. Da maneira como é concebida na perspectiva dicotômica da GT, a combinação de cláusulas não permite ser vista como um processo escalar organizado sob diferentes níveis de encaixamento sintático­semântico. Desse modo, subordinação e coordenação passam a constituir dois grupos opostos, dentro dos quais as estruturas oracionais da língua são inseridas. Não somente do ponto de vista funcional, como veremos mais adiante, mas também do ponto de vista formal, a dicotomia da GT acerca da combinação de cláusulas mostra­se insuficiente para a descrição dos processos de organização sintática entre orações. A ideia de subordinação como uma propriedade de igual dependência sintática para estruturas de diferentes grupos oracionais é bastante problemática. Tal ideia não se sustenta nem no paralelismo estrutural estabelecido entre período simples e período composto; paralelismo esse do qual se origina a dicotomia subordinação/coordenação. Se, do ponto de vista formal, os chamados termos da oração se dividem em essenciais, acessórios e integrantes, pois possuem diferentes “pesos” sintáticos na hierarquia dos constituintes oracionais, uma oração substantiva em posição de sujeito, por exemplo, não pode possuir o mesmo nível de integração sintática que uma oração adverbial, haja vista que enquanto a do primeiro 35 tipo exerce a função de termo essencial, à do segundo tipo cabe o papel de circunstancial; sendo, pois, um termo acessório. 2.1.4.2 A perspectiva funcional Diferentemente da GT, a perspectiva funcional não concebe a combinação de cláusulas de maneira discreta. Em vez de serem tomadas como isoladas, a coordenação e a subordinação são vistas como pontos extremos de um continuum de diferentes níveis de integração sintático­semântica. Embora importante, o critério sintático não é único nem decisivo para a classificação das estruturas em coordenadas e subordinadas. A forma como as partes de uma construção complexa se relacionam é entendida como também dependente de aspectos de natureza semântica. Desse modo, o que define coordenação e subordinação não é apenas o fato de uma cláusula ocupar o lugar de um constituinte sintático de outra, mas, sim, um conjunto de enlaces sintático­semânticos que as duas mantêm entre si. Uma vez que a categorização não é puramente sintática, as cláusulas não são distribuídas por grupos homogêneos. Conforme já dito, a GT reúne debaixo do rótulo de oração subordinada estruturas substantivas, adjetivas e adverbiais. Todas elas, em oposição às coordenadas, são tratadas como sintaticamente dependentes. Já na visão funcional, autonomia e dependência é uma questão de gradiente, pois, apesar de participarem como constituintes sintáticos de uma cláusula matriz, as subordinadas substantivas, adjetivas e adverbiais não possuem o mesmo grau de vinculação em relação à cláusula subordinante. Matthiessen e Thompson (1988:10) dizem que frequentemente todas as combinações de cláusulas que não são coordenativas são tomadas como instancias de uma relação parte­todo; uma cláusula é apenas parte de outra, apenas como frases são partes de cláusulas. Chamaremos isso de encaixamento, um termo comum. O problema é que encaixamento é uma interpretação que ajuda apenas para uma parte do que tem sido chamado de subordinação. Não há binaridade na combinação de cláusulas. Tanto a coordenação quanto a subordinação inserem­se dentro de um processo escalar. As partes das construções complexas não são simplesmente autônomas ou independentes. Elas apresentam comportamentos diversificados, porque, do ponto de vista sintático­semântico, variam desde um nível mínimo até um nível máximo de dependência. A relação 36 parte­todo, aplicada como característica distintiva, não atesta mesmo grau de subordinação para estruturas substantivas, adjetivas e adverbiais. As primeiras, na medida em que ocupam posições valenciais, mostram­se mais integradas à cláusula principal do que as outras. As do segundo tipo, por sua vez, possuem grau de integração mais elevado do que as do terceiro. Nesse sentido, a combinação de cláusulas dá­se por meio de um continuum de graus de interdependência. Com base em Hopper e Traugott (1993:171), apresentamos a seguinte esquematização: Parataxe Hipotaxe Hipertaxe (independência) (interdependência) (dependência) núcleo ­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­ margem integração mínima ­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­ integração máxima ligação explícita máxima ­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­ ligação explícita mínima Como podemos observar, na proposta dos autores, a coordenação (parataxe) e a subordinação (hipertaxe) não são isoláveis; entre elas, há níveis intermediários de dependência sintático­semântica, a chamada hipotaxe. Cláusulas substantivas ocupantes das valências de sujeito e de objeto, por exemplo, uma vez sendo estruturas prototipicamente subordinadas, ficam localizadas bem à margem direita do esquema, enquanto às adverbiais, exercedoras do papel de circustanciais, cabe uma posição mais central no esquema. Devido ao fato de as cláusulas de complementação verbal ocuparem um espaço sintaticamente reservado ao objeto, elas são julgadas como estruturas prototípicas de subordinação. Daí serem, na literatura, amplamente chamadas de estruturas encaixadas. Todavia, muitas são as evidências de que a hipertaxe é constituída sob diferentes graus de interdependência entre as partes componentes da construção complexa. Embora, dentro do grupo das subordinadas, as cláusulas de complementação verbal sejam consideradas protótipos de subordinação, elas também não compõem um grupo homogêneo. Na categoria das completivas, encontramos estruturas com diferentes características sintático­semânticas, e essa diversidade implica variação dos níveis de integração entre a completiva e a sua subordinante. Aos processos de encaixamento subjaz a dimensão semântica da integração entre os eventos expressos na cláusula­núcleo e na cláusula­ complemento. Segundo Givón (2001:40), “quanto mais forte for o laço semântico 37 entre os dois eventos, mais extensiva será a integração sintática de duas cláusulas em uma única, embora cláusula complexa.” O processo de combinação de cláusulas está relacionado a diferentes níveis de gramaticalização. O grau de integração sintático­semântica reflete padrões de regularização do sistema linguístico. Estruturas hipertáticas tendem a ser mais gramaticalizadas do que estruturas paratáticas ou hipotáticas. No que concerne às cláusulas de complementação verbal, mesmo pertencendo à mesma categoria, elas apresentam distintos níveis de gramaticalização. Como dissemos antes, sob uma perspectiva escalar da combinação de cláusulas, as completivas não formam uma categoria homogênea. Elas não somente diferem estruturalmente, como também com relação ao grau de integração sintático­semântica que mantêm com a cláusula matriz. Sendo assim, se grau de dependência entre cláusulas reflete, numa relação direta, nível de gramaticalização, podemos dizer que cláusulas­complemento mais “presas” são mais gramaticalizadas. Nas construções complexas, a gramaticalização é resultado de um processo de nominalização sofrido por uma das sentenças. Lehmann (1988:193) afirma que ela perde as propriedades de uma cláusula, é dessentencializada em graus variados. Componentes da cláusula que servem de referência para um determinado estado de coisas são descartados, o estado de coisas é tipificado. Ao mesmo tempo, a oração subordinada cada vez mais adquire propriedades nominais, tanto internamente quanto na sua distribuição. Pelo processo de dessentencialização, as cláusulas de complementação verbal são reduzidas a uma forma infinita. Dessa nominalização, decorre a perda de autonomia da estrutura dentro da construção complexa. Dessa forma, quanto mais dessentecializada, mais dependente a completiva estará em relação à cláusula principal. Dentre os aspectos evidenciadores de tal dependência, destacamos a bastante comum correferencialidade de sujeito, a marcação de tempo, modo e aspecto e o apagamento do complementizador. O primeiro aspecto tem a ver com fato de o sujeito do verbo da completiva corresponder a uma anáfora zero, ou seja, ele é identificável através da retomada de um elemento da estrutura principal. O segundo diz respeito às noções gramaticais. O verbo da completiva não traz as ideias de tempo, modo e aspecto morfologicamente marcadas. Elas lhes são atribuídas por meio do verbo da subordinante. Quanto ao terceiro aspecto, ele está relacionado à explicitude da articulação. Como seu papel é introduzir estruturas sentenciais, o complementizador torna­se desnecessário ao encaixe de completivas 38 dessentencializadas; por isso, seu apagamento nas construções com nível de gramaticalização mais elevado. 2.2 Metodologia As cláusulas de complementação verbal foram investigadas em dados de fala e de escrita coletados na cidade do Natal, no estado do Rio Grande do Norte. O material integra o corpus do grupo de pesquisa D&G (Discurso & Gramática), que coletou dados de fala e de escrita em quatro cidades brasileiras: Rio de Janeiro, Natal, Rio Grande e Juiz de Fora. Os dados correspondentes à cidade do Natal são compostos por depoimentos de 20 informantes. Cada um dos informantes produziu cinco tipos textuais, a saber: narrativa de experiência pessoal, narrativa recontada, descrição de local, relato de procedimento e relato de opinião. Como cada tipo foi produzido em ambas as modalidades de uso da língua, o material totaliza 200 registros, sendo 100 textos falados e 100 textos escritos. O corpus é estratificado, uma vez que o trabalho de coleta adotou, como critérios para seleção dos informantes, bem como para a distribuição deles por grupos, o nível de escolaridade e a idade. No que diz respeito ao nível de escolaridade, foram priorizadas as séries terminais de cada etapa do processo de escolarização. A distribuição se dá conforme tabela abaixo: Tabela (1): Distribuição dos informantes por série e idade Série alfabetização Idade 5 a 8 anos Nº de informantes 4 4ª série do primeiro grau 9 a 11 anos 4 8ª série do primeiro grau 13 a 16 anos 4 3ª série do segundo grau 18 a 20 anos 4 último ano do terceiro grau acima de 23 anos 4 Embora, em sua totalidade, o corpus seja composto por 200 registros, à nossa pesquisa não interessou a análise de todos os textos. Em vista às comparações a serem realizadas entre dados de fala e de escrita, priorizamos os informantes a partir da 8ª série do segundo grau, pois pressupúnhamos um maior 39 domínio da escrita por parte deles. Ademais, no que concerne aos informantes da alfabetização, julgamos a quantidade de material linguístico escrito insuficiente para um confronto entre fala e escrita. Muitos dos textos escritos por esse grupo não possuem mais de uma linha. Assim sendo, trabalhamos com dados produzidos por 12 informantes, o que totaliza 120 textos, sendo 60 de fala e 60 de escrita. Quanto à tipologia textual, não foi aplicada nenhuma restrição, todos os 5 tipos produzidos foram efetivamente investigados. Para o tratamento do corpus, primeiramente, foi realizado um levantamento das ocorrências das cláusulas de complementação verbal. Com base não somente nas ocorrências identificadas, como também no propósito comunicativo, os verbos principais das construções complexas foram distribuídos por 4 categorias: verbos modais, verbos de cognição, verbos de enunciação/informação e verbos de manipulação. A categorização adotada é baseada nos sub­grupos apresentados por Givón (1984:117­126). Embora o autor trate enunciação e informação como duas categorias distintas, optamos por fundi­las, haja vista a semelhança de características sintáticas e semânticas, o que impossibilita uma clara distinção entre as duas categorias. Em seguida, os dados de ocorrência foram submetidos a uma análise estatística para a observação do comportamento do fenômeno em relação ao nível de escolaridade dos informantes e em relação aos tipos textuais por nível de escolaridade. O comportamento do fenômeno também foi observado de modo geral, tendo em vista o confronto de dados entre categorias verbais e entre tipos textuais. Para esses dois casos específicos, foi desconsiderado o nível de escolaridade. Em todos os cálculos estatísticos, foram respeitadas a divisão fala/escrita e a distribuição dos verbos por categorias. O grau de semelhança entre fala e escrita, no que tange ao número de ocorrências do fenômeno sob estudo, foi mensurado por meio das seguintes equações matemáticas: 1 1 æ 4 ö 2 æ 4 ö 2 ç å ( h F , i - h E , i ) 2 ÷ ç å ( h F , i - h E , i ) 2 ÷ ÷ ; S = 1 - ç i =1 ÷ S F , E = 1 - ç i =1 4 E , F 4 ç ÷ ç ÷ h E , i 2 h F , i 2 ç ÷ ç ÷ å å i =1 è i =1 ø è ø onde S F , E é a similaridade entre as ocorrências por página de fala e de escrita; S E , F é a similaridade entre as ocorrências por página de escrita e de fala; h F ,1 é o número de ocorrências por página da categoria verbal “modal” em texto falado; h E ,1 é o 40 número de ocorrências por página da categoria verbal “modal” em texto escrito; h F , 2 é o número de ocorrências por página da categoria “cognição” em texto falado; h E , 2 é o número de ocorrências por página da categoria “cognição” em texto escrito; h F , 3 é o número de ocorrências por página da categoria verbal “manipulação” em texto falado; h E , 3 é o número de ocorrências por página da categoria “manipulação” em texto escrito; h F , 4 é o número de ocorrências por página da categoria verbal “enunciação/informação” em texto falado; h E , 4 é o número de ocorrências por página da categoria “enunciação/informação” em texto escrito. Os índices de similaridade S F , E e S E , F são grandezas adimensionais que variam de 0 a 1 e, portanto, podem ser exibidos na forma de percentuais. Como os textos diferem quanto à extensão, o número de páginas foi adotado como uma variável estatística de equilíbrio. Tomamos, por uma página, cada pedaço de texto dentro das seguintes características de formatação: papel tamanho carta, 21,59 cm de largura por 27,94 cm de altura, com margens superior e inferior de 2,54 cm e margens esquerda e direita de 3,17 cm, com 50 linhas em espaçamento simples. Apesar da importância das análises quantitativas realizadas, é importante ressaltar que a pesquisa não se prendeu a dados estatísticos num sentido mais estrito, pois como bem enfatizam Braga e Naro (1994:61): do ponto de vista da precisão ou confiabilidade dos resultados obtidos não importa quantos falantes foram relegados ao esquecimento. Importa, sim, o número dos que foram efetivamente estudados, bem como sua distribuição, isto é, se são representativos do grupo, não sendo apenas casos extremos ou pouco comuns. A observação das quantidades fez­se importante, porque possibilitou uma visão panorâmica do fenômeno e, sobretudo, confirmar ou negar a bastante difundida noção de que a fala não é um espaço muito propício ao aparecimento de construções sintaticamente subordinadas. O funcionamento cognitivo­discursivo e as correlações entre forma e função constituíram o propósito investigativo maior da pesquisa. Desse modo, as estruturas linguísticas foram estudadas no âmbito das interrelações entre os domínios sintático, semântico­pragmático e cognitivo determinantes da sintaxe da complementação verbal. 41 CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DOS DADOS: AS CLÁUSULAS DE COMPLEMENTAÇÃO VERBAL Neste capítulo, primeiramente, faremos uma síntese do que entendemos por cláusula­complemento para, em seguida, passarmos à análise linguística com base nos dados investigados. No que tange à análise, ela será apresentada em duas partes: uma acerca das propriedades semânticas do fenômeno estudado; outra, do tratamento estatístico das ocorrências nas duas modalidades de uso da língua: a fala e a escrita. Como o trabalho é realizado sob uma perspectiva funcionalista, não achamos conveniente a criação de tópicos distintos para a observação de aspectos pragmáticos e cognitivos, eles serão analisados dentro do espaço reservado à semântica. 3.1 A cláusula­complemento A natureza sintagmática das cláusulas simples, quando constituídas por verbo valencial e primário 5 , emerge de propriedades sintático­semânticas implicativas de valores relacionais. Vistas como sintagmas do tipo verbal, as cláusulas simples apresentam, inserido em sua arquitetura, verbo requerente de componentes nominais ou nominalizados capazes de realizarem o preenchimento da(s) valência(s) por ele aberta(s). Sendo assim, na medida em que a sua presença ou a sua ausência é comumente determinada pela semântica do verbo regente, os SNs são largamente concebidos, nas teorias da sintaxe, como estruturas dependentes de uma forma verbal nuclear. Essa relação de dependência entre o verbo e seus SNs, pelo elevado grau de integração sintático­semântica apresentado, configura­se, sob uma perspectiva escalar da integração dos constituintes clausais, como a subordinação sintática prototípica. Daí decorre que, através de analogias, sendo a arquitetura das cláusulas simples tida como referencial para a caracterização das chamadas construções complexas, as cláusulas verbais que ocupam os espaços reservados aos SNs são consideradas, sob os rótulos de subjetivas e de objetivas, estruturas de função 5 O termo primário está empregado no sentido de Dixon (2002). O autor chama de primários verbos que só admitem argumentos nominais e de secundários, aqueles que admitem tanto argumentos nominais como clausais. No entanto, com base em nossos dados, temos consciência de que a polissemia verbal torna a fronteira entre essas duas categorias, em algumas situações, muito tênue. 42 argumental subordinadas ao verbo de uma cláusula matriz. Desse modo, as cláusulas­complemento, que constituem o foco de nossa investigação, são aqui tomadas como construções encaixadas ocupantes da função sintática de objeto. É importante ressaltar que, embora estejamos fazendo opção por uma definição mais formal, não concebemos as cláusulas­complemento como objetos dos verbos, pois, como já dito na seção 2.1.3, há fortes evidências de que tais estruturas, apesar de ocuparem o mesmo espaço sintático, diferem, em muitos aspectos, dos SNs objetivos. 3.2 Propriedades semânticas do encaixamento 3.2.1 Verbos que tomam complementos clausais Nas línguas do mundo, nem todos os verbos tomam complementos em forma de cláusulas. Cada língua possui um determinado conjunto de verbos que admite que o espaço sintático destinado à função de objeto seja ocupado por uma estrutura não­nominal. Assim, os domínios sintático e semântico mostram­se interdependentes, já que é a semântica do verbo­núcleo da cláusula matriz que atua como mecanismo controlador desse tipo de processo de encaixamento sintático. O controle não fica apenas restrito à admissão ou não da complementação em forma de cláusula, mas, sobretudo, modela a morfologia da estrutura admitida. Conforme mostrado no capítulo II, Givón (1984) apresenta cinco categorias verbais, que translinguisticamente, tomam complementos clausais: os verbos modais, os verbos de cognição, os verbos de enunciação, os verbos de manipulação e os verbos de informação. Todavia, elas não são discretas, não havendo rigidez em suas delimitações. Esse último aspecto será observado mais adiante, no tópico acerca das sobreposições semânticas. Os dados analisados confirmam, para a língua portuguesa, a aplicabilidade das referidas categorias, embora, em muitos casos, a opacidade de determinados verbos implique dificuldades a anseios por categorizações mais precisas. Apesar de apresentar­se como uma boa ferramenta de análise, a categorização não deve ser tratada como compartimentalização das formas verbais, podendo até, a depender do entendimento do pesquisador, apresentar oscilações interpretativas na distribuição de determinados verbos por determinadas categorias. O gráfico (1) a seguir, 43 incluindo tanto as ocorrências na fala quanto as na escrita, fornece, em termos quantitativos, um panorama da distribuição das ocorrências no corpus através das categorias mencionadas: Gráfico (1): Distribuição das ocorrências por categorias Verbos por Categorias 294; 13% 48; 2% 563; 24% Manipulação Cognição Modal Enunciação / Informação 1433; 61% 3.2.1.1 Verbos modais Em português, enquanto os modos verbais aparecem expressos na morfologia do próprio verbo, as modalidades são expressas por recursos linguísticos a ele externos. Entre esses recursos, estão outros verbos, os chamados verbos modais. Os modos verbais correspondem às características de indicativo, subjuntivo e imperativo; já as modalidades, à atitude do enunciador sobre o enunciado produzido. No âmbito do discurso, o conteúdo proposicional não é apenas factual. A língua, uma vez que intermedeia as relações entre o falante/escrevente e todo um universo exterior, codifica significações vinculadas a dois mundos distintos, porém unidos pela própria natureza da atividade discursiva. O ato de falar ou o de escrever se dão por meio de codificações linguísticas que não só se voltam para a realidade referida, mas que também carregam, nessa codificação, as marcas avaliativas do indivíduo acerca daquilo que fala ou daquilo que escreve. É, com essas marcas, que 44 o usuário da língua modaliza o seu discurso, isto é, constrói modos de dizer. Assim, o dictum não se realiza livremente, mas, sim, de forma monitorada, com marcações explícitas do monitoramento. Neste exemplo (1), (1) é ... bom ... eu acho que ... a culpa não está no ... no ... no ... no ... na comissão técnica ... no ... do futebol apresentado pelo ... no Brasil atualmente né ...eu acho que vem de ... vem de cima né ... se ... se num houvesse essa politicagem toda né ... que há né ... em torno do ... do ... do futebol ... se cada um num ... num tivesse seu ... seu jogador na ... na ... na cabeça ... porque quem tá ... quem tá escalando o time não é o técnico ... da seleção ... quem tá escalando o time são os ... é são as pessoas que estão por fora né? ((barulho de carro)) quando eu digo por fora o próprio presidente da ... da ... da CBF né ... até pode ser até o ... o presidente da FIFA também ... o João Havelange também ... deve tá envolvido nisso aí ... cada um tem seu jogador na mente e impõe ao técnico que ... que deve ... deve convocar aquele ou aquele outro jogador né ... aí se o jogador tivesse ... é:: é ... liberdade pra convocar o time ... seria tudo ... be/ mais fácil né? mais organizado né? (fala: relato de opinião, p.18) o falante, em seu discurso sobre a situação da Seleção Brasileira de Futebol, não somente demonstra a sua insatisfação, como também tenta explicar o mau desempenho da equipe. No entanto, como a explicação dada levanta questionamentos a respeito da postura ética de importantes nomes ligados ao futebol, tratando­se, desse modo, de uma acusação grave, o falante recorre aos verbos modais poder e dever, amenizando o grau de seu comprometimento com o conteúdo das assertivas. Conforme pode ser facilmente observado no gráfico (1), entre os verbos que tomam complementos clausais, os modais são os mais recorrentes. Talvez, essa primazia deles em relação a outros tipos de verbos se deva pelos valores semântico­ pragmáticos a que estão atrelados. Os verbos modais, por atuarem como marcas do referido monitoramento, constituem­se, no repertorio de códigos da língua, como importantes mecanismos de modalização. Observemos que, em (1), a codificação dos verbos poder e dever não se faz por uma exigência da sintaxe da estrutura, e, sim, por motivações semântico­pragmáticas. Do ponto de vista sintático, as completivas ser até o ... o presidente da FIFA e tá6 envolvido nisso aí ... não requerem a condição de construções subordinadas a um verbo de uma cláusula matriz. A correferencialide entre os sujeitos dos verbos poder/ser e dever/estar 6 Na construção deve tá, consideramos o tá uma forma infinita, pois a transformação da forma estar não ocorreu por motivações sintáticas, mas, sim, fonético­fonológicas, às quais subjazem necessidades pragmáticas de economia, já que é um item bastante recorrente. 45 possibilita a flexão para formas finitas diretamente relacionadas com seus sujeitos o próprio presidente da CBF e o João Havelange, respectivamente. Porém, passaríamos a asserções de valor bastante categórico, coisa que o falante quis evitar ao monitorar seu discurso através do emprego dos verbos modais, o que aponta para motivações semântico­pragmáticas, e não sintáticas, do aparecimento das formas pode e deve nessas codificações sintáticas. As modalizações estabelecidas pelos verbos modais codificam, nas asserções, diferenciadas gradações entre o permitido e o obrigatório, no plano deôntico, e entre o possível e o certo, no plano epistêmico. Enquanto as modalidades deônticas estão ancoradas no mundo realis, a modalidades epistêmicas estão ancoradas no mundo irrealis, ou seja, as primeiras expressam conteúdos cuja localização está no espaço social e físico; já as segundas, conteúdos cuja localização está na cognição do falante/escrevente. Quando o usuário da língua modaliza seus enunciados com base na realidade, expressa habilidades, possibilidades, certezas, obrigações, entre outros aspectos, de modo factual. Nesse caso, parte­se do “observável” para a abstração contida na modalização. Contudo, quando o usuário da língua modaliza com base na epistemicidade, ele expressa habilidades, possibilidades, certezas, crenças, entre outros aspectos, de modo não­ factual. Aqui, parte­se do que é intrínseco à mente do falante/escrevente, do “não­ observável”, isto é, o ato de modalizar passa por um percurso cognitivo que vai das abstrações mentais do indivíduo às abstrações contidas nas modalizações. A figura (1) abaixo tenta sintetizar os processos descritos: Figura (1): Continuum deôntico­epistêmico D E modais 46 enquanto D representa o mundo deôntico em que o indivíduo está inserido, E representa o mundo espistêmico, interno à mente do falante. Porém, esses dois mundos não são construídos isoladamente. E insere­se em D, uma vez que a epistemicidade, mesmo subjetiva, constrói­se sócio­cognitivamente; afinal, é, no contato com o espaço sócio­físico, que construímos a maior parte de nossos esquemas mentais. Os verbos modais atuam, de forma escalar, entre esses dois mundos, ora codificando modalizações deônticas, ora espistêmicas e, muitas vezes, modalizações em áreas de interface. (2) No final do filme seu amigo morre e os homens que mataram ele. E sua noiva consegui se comunicar livremente com ele através de um espirita e logo após ele se vai de uma forma muito bonita. (fala: relato de opinião, p.18) (3) A partir do momento em que eu amplio um determinado desenho eu consigo repeti­lo varias vezes sem dificuldade (escrita: narrativa recontada, p. 134) (4) não ... mas pelo menos vai morrendo aos poucos ... é o que ... o melhor é esse ... é morrendo aos poucos ((riso)) ... é ... tem que ser assim ... ele matou num foi aos poucos ... né? porque matam ... uma violência mesmo ... mas ele tem que morrer aos poucos ... pra sentir ... sabe? (fala: relato de opinião, p. 124) (5) Marcos ... é ele ... Jorge tinha ... foi pra Recife com a família né ... ele trabalhava com um pessoal ... ele trabalhava com um pessoal ... são muito rico aqui de Natal ... muito influente ... então ele ... ele era rapaz pobre de família ... de família bem humilde e ele um dia ... seu ... seu Jorge ... seu Carrilho ... chamou ele para acompanhá­lo numa viagem a Recife e eles tiveram que ... o Jorge teve que ir num carro super é ... conversível né ... aqueles carros é ... bem transados ... bem ... bem luxuosos e Jorge como era amigo da família e trabalhava há muitos anos pra eles ... (fala: narrativa recontada, p. 52) (6) eu acho que ... ultimamente ... assim pelo que a gente vê no pessoal ... as pessoas têm um certo medo ... sabe? quanto à religião ... mas ... pelas coisas que acontecem às vezes a gente ouve tantos ... tantos escândalos ... tantas conversas ... críticas sabe? o pessoal tem um pouco de medo de se chegar um pouco à religião ... eles ... às vezes prefere ... porque na verdade a gente ... confia mesmo em quem nós devemos confiar ... devemos crer né ... e seguir é Jesus ... (fala: relato de opinião, p. 145) Nos exemplos (3) e (4), os verbos conseguir e ter codificam modalizações epistêmicas. Em (3), quando o informante emprega o verbo conseguir como núcleo de uma cláusula matriz à qual se subordina a completiva repeti­lo várias vezes , ele o faz no intuito de modalizar uma capacidade, que lhe é intrínseca como desenhista. De forma semelhante, em (4), procede o outro informante que, ao emitir sua opinião 47 sobre a pena de morte, emprega a construção morrer aos poucos como uma completiva subordinada ao verbo ter, o qual, nessa situação, não expressa a ideia de posse, mas, sim, a de obrigatoriedade. Observemos que tanto a capacidade quanto a obrigatoriedade modalizadas estão relacionadas a mundos epistêmicos, isto é, às mentes dos respectivos usuários da língua. A obrigatoriedade codificada em (4) e a capacidade codificada em (3) não são frutos de fatores próprios do mundo sócio­físico no qual os indivíduos se inserem. Elas correspondem a duas modalizações que estão ancoradas na subjetividade do enunciador, pois a primeira surge a partir de uma referência a um desejo; e a segunda, de uma referência a uma habilidade, ambas as duas ligadas à cognição dos informantes. Já nos exemplos (2) e (5), os verbos conseguir e ter codificam modalizações deônticas. Em (2), o informante emprega o verbo conseguir como modalizador da estrutura completiva se comunicar livremente com ele através de um espirita. A capacidade a que o informante se refere por meio do verbo modal não está relacionada a uma habilidade pessoal. A cena mencionada, durante a narrativa recontada, trata­se de um momento em que a personagem de um filme, por meio de uma espírita, consegue conversar com o namorado já falecido. Ora, conversar com pessoas mortas é algo que rompe com as leis naturais do mundo físico, logo o informante, ao usar o modal conseguir busca, em sua proposição, imprimir certo grau de possibilidade à ruptura dessas leis, o que faz com que a modalização codificada esteja ancorada em algo que lhe é extrínseco. O modal ter que aparece em (5), do mesmo modo daquele que aparece em (4), codifica a ideia de obrigatoriedade em relação ao conteúdo proposicional da cláusula subordinada, no entanto há uma diferença entre os locais donde emergem as duas ideias. Enquanto em (4), a obrigatoriedade surge a partir de um desejo do informante, ela, em (5), é contextual. Nesse último caso, o informante diz que o Jorge, personagem de sua narrativa recontada, apesar de ser um a pessoa bastante humilde, numa determinada situação precisa viajar a Recife com o patrão, que é muito rico, e se vê, dentro do contexto da viagem, obrigado a fazê­la em um carro de luxo, situação essa com a qual não tem tanta intimidade. Assim sendo, observemos que a obrigatoriedade que é modalizada em (5), diferentemente da em (4), não tem a ver com a subjetividade do enunciador, ela está ancorada no contexto em que o personagem Jorge estava inserido. 48 Todavia, os verbos modais, acerca das modalizações que codificam, não devem ser tomados sob uma visão dicotômica. Na figura (1), as duas pontas da seta demonstram que há uma relação escalar entre as modalizações codificadas por tais verbos. Em determinadas asserções, nem sempre é tão clara a identificação da ancoragem de um verbo modal: seja no plano epistêmico, seja no plano deôntico. A codificação realizada pelo verbo modal pode gerar dubiedade interpretativa para o pesquisador. Se, na análise de casos como (2), (3), (4) e (5), o pesquisador não encontra tanta opacidade, o mesmo não ocorre na análise de casos como o exemplificado em (6). A obrigatoriedade codificada pelo verbo dever em (6), se analisada juntamente com o conteúdo das cláusulas subordinadas crer né e seguir é Jesus não apresenta clareza quanto a sua ancoragem no plano deôntico ou no epistêmico. Afinal de contas, embora haja um certo grau de subjetividade na obrigatoriedade modalizada, há também um certo grau de deonticidade. Nesse caso, ao mesmo tempo em que a obrigatoriedade modalizada emerge a partir de um sentimento religioso subjetivo, ela também emerge a partir de valores religiosos sociais. Estando inserida numa sociedade com uma cultura religiosa fortemente cristã e sendo dela originária, o informante modaliza, por meio do modal dever, uma ideia de obrigatoriedade sobre a qual não podemos, categoricamente, assumir que se trata de um vínculo deôntico, nem sequer de um vínculo epistêmico. Retomando a figura (1), o que podemos afirmar é que o modal dever, em (6), produz uma modalização que não se situa numa ou noutra ponta da reta que perpassa as esferas D e E, mas, sim, uma modalização situada num ponto intermediário da reta, o que significa que, do ponto de vista semântico­pragmático, a modalização codificada localiza­se numa zona de interface entre os mundos deôntico e epistêmico. Não somente às escalas do possível ao certo ou do permitido e ao obrigatório restringe­se a semântica dos verbos modais. Além de exercerem importantes funções semântico­pragmáticas no tocante à codificação das modalizações, eles também atuam sobre a semântica dos verbos das cláusulas completivas, definindo valores semânticos relacionados às características de aspecto verbal (GIVÓN, 2001:55). Embora o sistema da língua portuguesa possibilite que, na morfologia do próprio verbo, o usuário do português marque características de tempo em relação à duração do processo verbal, frequentemente, as marcações são realizadas através 49 de elementos externos ao verbo. É, por, em muitos casos, comportarem­se nesse sentido que os verbos modais constituem, no repertório de códigos da língua, um conjunto de recursos lingüísticos disponíveis à codificação morfossintática dos significados aspectuais de início, término e iteratividade. No exemplo (7), (7) e o diretor sabia que era mentira minha ... mas ele não podia fazer nada porque estava todo ... toda aquela classe que trabalhava na escola ... do meu lado ... super ... brigando ... porque ... olha ... eu doente ... como é que eu doente ia assistir um negócio desse no auditório ... só sei que aí começaram ... eu comecei a chorar e era tanto choro ... eu chorando ... (fala: narrativa de experiência pessoal, p. 23) o entrevistado narra uma experiência como estudante, na qual ele dissimulou estar sentindo uma forte dor a fim de, juntamente com as colegas, saírem mais cedo da escola, deixando de participarem de um evento que lá acontecia. Durante a narrativa, no momento em que se refere ao choro usado como estratégia de convencimento das pessoas acerca da suposta dor, o entrevistado enuncia a ação verbal através da forma verbal infinita chorar como completiva da forma verbal finita comecei , formatando, assim, uma construção complexa, em que a estrutura a chorar assume a função sintática de cláusula de complementação verbal da estrutura principal eu comecei . Nesse caso, o verbo chorar , não estando flexionado, não traz consigo as características de tempo nem de aspecto, no entanto ele referencia uma ação iniciada num tempo passado. Isso se dá pelo fato de que, em situações como essa, os verbos modais não tomam o verbo no infinitivo como mero objeto, e, sim, como escopo semântico ao qual transmitem as noções de tempo e de aspecto por eles carregadas. Ainda em (7), podemos notar que, enquanto o entrevistado marcou a noção de início da ação verbal através de um processo de subordinação sintática, o mesmo não ocorreu para a noção de iteratividade que aparece, logo em seguida, morfologicamente marcada no próprio verbo, pois, em eu chorando..., o verbo chorar é pleno e apresenta, em sua estrutura interna, o morfema ndo indicativo de gerúndio. Em (8), (8) serve de inibição pro ... pra outros ... outros assaltantes num come/ num fazerem a mesma coisa né ... e num ficarem impunes por causa disso ... que de repente ... que de repente sei lá um ... por um ato de corrupção ... aí são soltos ... poucos anos depois ... num cumpre a pena inteira ... aí voltam a fazer a mesma coisa pronto vai ... aí mais ... mais alguns anos ... uns anos a mais ... uns anos a menos ... eu sou totalmente a favor ... (fala: relato de opinião, p.192) 50 o informante, ao expressar sua opinião a respeito da duração do período de reclusão imposto a um criminoso, emprega a forma verbal voltam como subordinante da cláusula a fazer a mesma coisa, codificando também uma noção de início em relação ao verbo da completiva. Apesar de, do ponto de vista da codificação sintática, a construção complexa voltam a fazer a mesma coisa não apresentar diferenças estruturais, se comparada a do exemplo (7), semanticamente, não são análogas. Em alguns casos, as noções de aspecto não acontecem apenas por meio de projeções semânticas do verbo da cláusula matriz em direção ao verbo da cláusula completiva, uma vez que a marcação de tais noções requer maior grau de envolvimento semântico entre as partes. Em (7), independentemente da estrutura situada na posição de objeto, o verbo principal significará início, na medida em que ele já carrega, em sua natureza semântica, a noção de inicialização. Mesmo que a sua valência sintática de objeto seja preenchida por um SN, o verbo comecei ainda assim continuará referenciando início, como, por exemplo, em comecei o jogo ou comecei um curso . O mesmo não ocorre em (8). Em situações em que o verbo voltar é complementado por um SN locativo, referencia uma ação de retorno. Porém, em (8), ele serve à marcação de aspecto que surge em voltam a fazer a mesma coisa. Essa marcação só se faz, porque o verbo fazer não se mantém passivamente como escopo semântico para o verbo principal, pois, por não expressar valor locativo, exerce forte influência sobre a semântica do verbo principal, implicando um processo metafórico para que se dê a relação aspectual. Aqui, a noção de início surge a partir de um cálculo semântico­cognitivo mais complexo. Voltar a um lugar significa regressar a um ponto que outrora foi de partida e, assim, é através de uma espécie de extensão semântico­cognitiva, que passamos, então, ao entendimento de que voltar a uma ação é não somente praticá­la novamente, mas, sobretudo, reinicializá­la. Em (9), (9) essa é ... essa é a:: regra ... pra fazer solo ... e isso é pra fazer solo direito ... se quiser fazer ... bem feito ... bonito ... dá gosto assim de olhar ... é pra ser com es/ com essa seguinte técnica ... que eu acabei de dizer ... (fala: relato de procedimento, p.189) ao relatar o procedimento para a realização de um solo musical, o informante cria a construção complexa subordinada eu acabei de dizer ..., na qual o verbo dizer não 51 traz nenhum morfema indicativo de término da ação que é referenciada. A marcação é realizada pelo verbo da cláusula principal. Em (10), (10) Quando Jó fez trinta anos, casou pela primeira vez e teve três filhos. O diabo fez com que a mulher de Jó adoecesse e morresse. Jó ficou muito triste com o que aconteceu, mas não deixou de crer em Deus (escrita: narrativa recontada, p.194) a noção de aspecto verbal também é marcada da mesma forma. O informante, narrando uma passagem bíblica, codifica a noção de término do verbo crer não na própria morfologia do verbo, mas, sim, de forma externa. É a forma verbal deixou que imprime essa característica aspectual ao verbo crer . Analogamente à noção de início dos exemplos (7) e (8), verificamos que a noção de término também é marcada por meio de diferentes graus de explicitude semântico­cognitiva. Em (9), por exemplo, o verbo acabar , prototipicamente, já apresenta seu valor semântico ligado à noção de término, o que pode ser comprovado através do preenchimento por qualquer SN em qualquer uma de suas valências sintáticas: seja de sujeito, seja de objeto. Mesmo não sendo constituídas por substantivos deverbais provenientes de verbos de ação, ainda assim qualquer SN subordinado ao verbo acabar terá projetado sobre si o significado de finalização/esgotamento. Em enunciados como, por exemplo, O café acabou ou Ana acabou o curso , tanto o SN o café, na posição de sujeito, quanto o SN O curso , na posição de objeto, são escopos semânticos do verbo acabar em direção aos quais é projetado o significado de finalização/esgotamento. Já o verbo deixar , embora em (10) codifique a noção de término, ele não referencia essa noção superficialmente. Certamente, nele está mais explicita a ideia de abandono que de finalização/esgotamento. Caso preenchamos suas valências sintáticas com os mesmos SNs que empregamos para o verbo acabar , teremos os seguintes enunciados: O café deixou* e Ana deixou o curso . Ora, é bastante notório o fato de que o significado de finalização/esgotamento não se faz presente em nenhum desses últimos enunciados. A montagem da estrutura O café deixou* implica a criação de um enunciado incompleto e não­natural ao falante de português, pois o verbo não é capaz de transmitir ao SN O café o significado de finalização/esgotamento, tornando­o um sujeito paciente 7 . E, em Ana deixou o curso , a montagem da estrutura deu origem a um enunciado completo e bastante 7 A terminologia sujeito paciente deve ser entendida de acordo com a teoria da gramática de casos. 52 natural ao falante de português, no entanto o verbo, diferentemente de em Ana acabou o curso , não codifica o significado de finalização/esgotamento, mas, sim, de abandono. Sendo assim, podemos perceber que a noção de término referenciada pelo verbo acabar , em (9), está presente em sua semântica de modo bastante superficial, o que não ocorre com a noção codificada pelo verbo deixar , em (10), uma vez que há diferença em termos de grau de superficialidade semântica. Prototipicamente, o verbo deixar expressa abandono, contudo, no enunciado não deixou de crer em Deus , é influenciado semanticamente pelo verbo da cláusula completiva, sendo impedido de expressar tal significado. Daí decorre que a noção aspectual de término é (de)codificada com base num processamento semântico­ cognitivo vinculado ao sentido de desprendimento subjacente ao significado de abandono superficialmente presente na semântica do verbo. Nas marcações dos valores aspectuais de início e de término por meio do processo de subordinação sintática, ficam evidentes, para os verbos modais, diferenciados graus de envolvimento semântico­cognitivo entre o verbo da cláusula principal e o verbo da cláusula subordinada. Em (10), assim como em (8), a noção de aspecto verbal não é apenas projetada do verbo da cláusula matriz ao verbo da cláusula de complementação. Em casos como esses, as noções de aspecto brotam metaforicamente. Do mesmo modo que a ideia de ponto de partida presente na semântica do verbo voltar lhe possibilita marcar início, é que, através de um processo metafórico semelhante, deixar passa a codificar o significado de encerramento em relação a outro verbo. No que tange à noção aspectual de iteratividade, na língua portuguesa, ela também pode ser marcada através de estratégias de subordinação sintática. No exemplo (11), (11) Depois de alguns dias, o homem estava dormindo, quando ouviu a mesma voz do menino, abrio os olhos e viu o menino na porta do quarto, dizendo a mesma frase, foi dormir e no dia seguinte foi a casa do velho que costumava beber umas cervejas e contou tudo o que vinha acontecendo (escrita: narrativa recontada, p.19) a cláusula beber umas cervejas aparece como uma estrutura subordinada à cláusula que costumava, possibilitando a marcação da ideia de iteratividade. O verbo costumar participa de uma configuração sintática, na qual projeta seu valor apectual de iteratividade sobre o verbo da cláusula de complementação. O 53 informante, ao realizar a narrativa recontada de um filme a que havia assistido, necessita adjetivar um personagem a que se refere, o velho, e o faz por meio de uma construção complexa subordinada com valor de adjetivo em relação ao substantivo velho. Observemos que, sendo denotativo de ação e, por isso, apresentando pouca estabilidade temporal, o verbo beber parece levar o informante a sentir a necessidade de marcá­lo com a noção de iteratividade, já que as características possuem maior estabilidade temporal que as ações. Em (12), (12) Ela, como a maioria dos jovens de suas redondezas, trabalhava numa cidade maior, Novo Hamburgo. Segundo ela, chega uma idade em que o jovem tem que decidir se continua a morar com os pais tendo como futuro ser um agricultor ou se vai para uma cidade mais desenvolvida tentar estudar e trabalhar. (escrita: narrativa de experiência pessoal, p. 82) o informante relata o fato de uma jovem natural de uma pequena cidade gaúcha, por ele conhecida durante uma viagem ao Rio Grande do Sul, ter, tal como a maioria dos jovens da localidade, de decidir entre a vida rural ou a urbana. No momento em que faz o relato, ele marca a noção de iteratividade também de forma externa ao verbo. A cláusula subordinada a morar com os país constitui­se como completiva da cláusula principal se continua, permitindo que o verbo desta transmita ao verbo daquela a noção aspectual de iteratividade. Em nosso corpus, não encontramos nenhuma evidência de que o valor aspectual de iteratividade se realize, assim como os valores aspectuais de início e de término, por meio de relações metafóricas. Os verbos encontrados que tomam cláusulas de complementação, imprimindo ao verbo da estrutura completiva a noção de iteratividade, carregam, de modo bastante superficial, a noção de iteratividade. Assim, parece não se fazer necessário, durante a (de)codificação da marcação de iteratividade através de verbos modais, um cálculo semântico­cognitivo com o mesmo grau de complexidade que o exigido pelos verbos modais marcadores das noções de início e de término. Esse fato pode ser observado nos exemplos (11) e (12), em que os verbos costumar e continuar , respectivamente, já carregam, superficialmente, em sua semântica, o significado de iteratividade. Nesses dois exemplos, a construção de sentido ocorre através de um processo de projeção semântica. Os verbos das cláusulas principais tomam como escopo semântico os 54 verbos das cláusulas de complementação, transferindo a eles o sentido de iteratividade. É importante ainda ressaltar que os verbos modais, tanto no caso da codificação das modalizações quanto no da codificação dos aspectos verbais, não apresentam correlação hierárquica entre os componentes sintático e semântico­ discursivo. Quando nos referimos por cláusula principal à estrutura que recebe a cláusula de complementação verbal, estamos nos pautando num critério sintático, e não semântico­discursivo. Pelo fato de ocuparem a posição de objeto de um verbo, sob uma perspectiva arquitetônica das construções complexas, as cláusulas de complementação verbal constituem­se como estruturas regidas e não como regentes, por isso são vistas como sintaticamente pertencentes a uma camada secundária. Contudo, sob uma perspectiva semântico­discursiva, para os verbos modais, constatamos que as cláusulas de complementação apresentam­se hierarquicamente superiores às chamadas cláusulas principais, uma vez que nelas é que, de fato, estão codificados conteúdos mais relevantes à progressão do tópico discursivo, ou seja, elas são mais informativas do que as principais. Com isso, não estamos, aqui, defendendo a posição de que modalizar e atribuir noções de aspecto através de verbos modais não sejam importantes para o processo de construção discursiva; muito pelo contrário, para esses casos, dentro da língua portuguesa, os verbos modais correspondem a um vasto e rico conjunto de mecanismos linguísticos disponíveis à codificação de significações semântico­cognitivas e semântico­ pragmáticas. A afirmação de que, do ponto de vista semântico­discursivo, as cláusulas sintaticamente consideradas principais passam a desempenhar um papel secundário não tem a ver com o ato discursivo, mas, sim, com o tópico discursivo. Na montagem das construções complexas com verbos modais, a distribuição dos itens lexicais revela que, (in)conscientemente, os informantes, normalmente, inserem, nas cláusulas de complementação verbal, os itens de maior “peso semântico” para o tópico discursivo. Para efeito de demonstração acerca da mencionada distribuição lexical, retomemos, aqui, alguns dos exemplos já analisados: em (2), podemos observar que, no enunciado sua noiva consegui se comunicar livremente com ele através de um espírita, a construção da cláusula de complementação verbal é realizada com a inserção dos itens lexicais se=noiva, comunicar, ele=noivo e espírita que são “palavras­chave” bastante representativas 55 do tópico discursivo, pois o informante comenta o momento do filme em que a personagem, através de uma médium, se comunica com o noivo assassinado; em (4), na construção ele tem que morrer aos poucos , a cláusula dita sintaticamente principal é formada apenas por ele=criminoso e tem, palavras que apresentam pouco “peso semântico” no que diz respeito ao conteúdo do tópico discursivo, caso comparadas a morrer e aos poucos referenciadoras diretas do tópico discursivo em questão: o tipo de penalidade a que, segundo o informante, determinados criminosos deveriam ser submetidos; e, em (7), na construção eu comecei a chorar , o verbo chorar, situado na completiva, é que possui maior “peso semântico”, já que referencia, dentro do tópico discursivo: a dissimulação de uma dor, a estratégia de convencimento empregada pelo informante no momento em que realizava a dissimulação, enquanto que a forma verbal comecei, situada na estrutura dita principal, não se liga, diretamente, ao tópico discursivo, pois atua apenas atribuindo valor aspectual ao verbo chorar. Além de início, término e iteratividade, na língua portuguesa, as noções de sucesso e falha, também consideradas aspectuais, podem ser codificadas por meio dos verbos modais. A essas noções associa­se o fato de o conteúdo expresso por um verbo realizar­se ou não. Em muitas construções complexas subordinadas, as partes mantêm entre si relações lógico­semânticas, através das quais, é sabido se o evento descrito pelo verbo da cláusula de complementação, no que tange a sua concretização, é confirmado ou é negado. Nessas construções, a confirmação ou a negação do evento da cláusula subordinada depende de propriedades de implicatividade desencadeadas pela semântica do verbo da cláusula subordinante. Dessa forma, os modais atuam codificando noções ligadas à concretude do evento referenciado pelo verbo da cláusula tomada como complemento. Eles se subdividem em implicativos positivos e implicativos negativos. Os primeiros permitem que o evento expresso pela estrutura completiva possa ser entendido como concretizado. Já os segundos se comportam de maneira inversa, codificando a noção de que o evento expresso pela completiva não veio a se concretizar. O quadro (1) abaixo mostra os modais pertencentes às duas subcategorias encontrados em nosso corpus: 56 Quadro (1): Modais implicativos por subcategorias MODAIS IMPLICATIVOS POSITIVOS começar acabar conseguir chegar vir ir passar continuar tratar fazer ficar ouvir voltar bastar NEGATIVOS impedir faltar parar esquecer No exemplo (13), (13) eles quiseram entrar em conflito agora no início do ano com a posse do novo presidente dos Estados Unidos ... e eles passavam as notícias novamente todas distorcidas ... chegaram até invadir ... jogar bomba dentro ... de novo em ... lá no [Iraque] .. (fala: relato de opinião, p. 81) o informante, durante seu relato de opinião, posiciona­se em defesa do ponto de vista de que a televisão, por preservar interesses das classes dominantes, não apresenta os fatos como verdadeiramente são, e ele cita, como exemplo de distorção televisiva da realidade, um conflito bélico ocorrido entre Estados Unidos e Iraque. Ao citar o conflito, constrói o enunciado chegaram até invadir ... jogar bomba dentro ... de novo em ... lá no [Iraque] .., em que o verbo chegar admite simultaneamente as duas cláusulas destacadas como estruturas completivas sintaticamente subordinadas. Dentro dessa construção complexa, o verbo chegar atua implicando sucesso das ações descritas pelos verbos invadir e jogar , localizados, respectivamente, na primeira e na segunda completiva. Assim sendo, a forma verbal chegaram determina positivamente os sentidos dos verbos regidos, desautorizando o entendimento de que o Iraque não tenha sido invadido e bombardeado pelos Estados Unidos. Todavia, as relações lógico­semânticas entre um modal implicativo positivo e o verbo da cláusula de complementação nem sempre culminará na concretização do conteúdo referenciado por este último. As relações lógico­semânticas entre as partes podem implicar negatividade, desde que 57 o verbo da cláusula matriz seja escopo de alguma negação. O exemplo (14) possibilita a percepção desse fenômeno, (14) nunca foram realmente cristãs ... por isso que acontece esse tipo de coisa ...nunca tiveram realmente uma transformação em suas vidas ... sabe? nunca passaram a ser cristãos verdadeiros ... podem ser crentes ... num é ... podem apenas ... saber que ... que ... existe um Deus ... (fala: relato de opinião, p. 155) pois, para expor sua opinião acerca de que a crença na existência de Deus não assegura uma verdadeira conversão ao cristianismo, o entrevistado subordina a estrutura a ser cristãos à estrutura nunca passaram , que apesar de fundamentar­ se na forma verbal passaram – considerada implicativa positiva, não resulta na confirmação do mencionado processo de conversão. Ora, tal fato se dá, porque as propriedades implicativas dos verbos modais não se restringem à semântica do verbo em si. Elas dependem do ambiente sintático em que o verbo se insere. É o que ocorre em (14), pois o verbo passar , uma vez estando adverbializado negativamente pelo nunca, fica impossibilitado de implicar uma relação lógico­ semântica com valor aspectual de sucesso ao processo verbal da completiva. Em (15), (15) minha mãe só machucou o joelho ... porque meu pai segurou ... na hora né? minha vó ... que ... que minha vó também vinha dentro do carro ... até esqueci de falar ... aí quebrou os lábios todinhos ... (fala: narrativa de experiência pessoal, p. 117) durante a narrativa de um acidente automobilístico por que sua família tinha passado, o informante enuncia até esqueci de falar ... como estratégia discursiva para acrescentar uma “personagem” do acidente à qual havia deixado de fazer menção. Observemos que, nesse caso, a forma verbal esqueci codifica o valor aspectual de falha, porque a ação referenciada pelo verbo falar não veio a se concretizar. Afinal, é bastante lógico que se o informante esqueceu de falar, ele não falou. O verbo esquecer nos conduz a uma relação lógico­semântica, da qual se extrai como resultado a não realização da ação descrita pelo verbo da cláusula de complementação. Em (16), (16) aí eu já fiquei tremendo nas bases ... aí ... é ... ele disse bem assim ... “todo mundo já sabe quem é?” aí a galera ficou calada e não sei que ... aí eu só olhei para ele e só faltei chorar ... fiquei emocionado e tudo mais ... a galera aplaudindo e tudo mais ... e eu fui lá ... receber um livro e tal ... (fala: narrativa de experiência pessoal, p. 94) 58 temos outro exemplo, onde o verbo da cláusula matriz também implica noção aspecutal de falha, pois codifica uma relação lógico­semântica de negação, envolvendo a ação referenciada pelo verbo chorar . Ao relatar a experiência de ter sido homenageado por se destacar numa atividade promovida pelo evento religioso do qual participou, o entrevistado codificou a noção aspectual de falha, negando, através de uma construção subordinada, a ação expressa pelo verbo chorar , pois se, durante a homenagem, a ação de chorar faltou, logo ela não se realizou. Nosso corpus revela ainda que, não somente no que diz respeitos às modalizações, mas também no que diz respeito aos valores aspectuais, os verbos modais não podem, na língua portuguesa, ser vistos como codificadores pertencentes a categorias semânticas discretas, na medida em que, em muitos casos, num mesmo enunciado, diferentes valores apectuais são codificados por um mesmo modal; às vezes, até associados a possíveis modalizações. Em (17), por exemplo, (17) Estava chovendo muito e a pista estava escorregadia, quando o carro começou a dançar na pista e o motorista perdeu o controle e o carro foi para a direção do outro onde um casal de namorado estavam; dessa maneira ele impediu que o carro caisse no Rio Tiete. (escrita: narrativa de experiência pessoal, p. 140) o informante, para relatar um acidente de carro por que passou, marca as noções aspectuais de início, de iteratividade e de sucesso através da forma verbal começou , situada na cláusula matriz. A estrutura subordinada, sob a influência semântica do modal, passa a expressar uma ação que, dentro de um tempo preteritus, inicia­se e realiza­se com relativa durabilidade. Essa multiplicidade de valores simultaneamente codificados pelos modais pode também ser observada em exemplos já analisados como (2), (5), (7) e (9). Como a pluralidade é inerente a todo processo de categorização, admitir uma categoria de verbos modais implicativos para a língua portuguesa significa também admitir a existência de uma categoria de verbos modais não­implicativos. Muitos verbos que se apresentam sintaticamente como verbos modais, no que concerne a suas propriedades de implicatividade semântica, não exercem influência alguma sobre o verbo da cláusula de complementação. Daí decorre que verbos modais 59 podem não implicar sucesso nem falha do evento descrito pelo verbo da estrutura subordinada. Embora não codifiquem confirmação ou negação ao que é expresso pelo verbo da completiva, os verbos modais não­implicativos, assim como os implicativos, também podem ser subcategorizados em positivos e negativos. Porém, é importante ressaltar que a subcategorização a eles aplicada limita­se a valores semânticos intrínsecos, já que não apresentam implicabilidades lógico­semânticas extrínsecas. Nenhuma ocorrência de modal não­implicativo negativo foi registrada em nosso corpus. Quanto aos positivos encontrados, eles são apresentados no quadro (2) abaixo: Quadro (2): Modais não­implicativos positivos MODAIS NÃO­IMPLICATIVOS POSITIVOS tentar pretender querer propor dar prontificar­se adorar preferir resolver planejar precisar aceitar caber procurar No exemplo (18), (18) o pai do menino resolveu ir pra cidade né ... parece que ele ia ... parece que ele ia dar um curso lá ... porque ele trabalhava na área médica ... aí ia dar um curso ... foi dar um curso de primeiros socorros assim né ... aí no dia ele dava curso de socorros ... no outro dia aconteceu um ... um ... tava havendo um jogo lá na ... na universidade lá ... aí um menino se machucou ... (fala: narrativa recontada, p. 10) quando o entrevistado narra o filme Cemitério Maldito, recontando­o, ele usa o enunciado o pai do menino resolveu ir pra cidade, que está estruturado em duas cláusulas sintaticamente subordinadas. No entanto, entre as duas partes, não há implicações lógico­semânticas que nos levem a inferir que, de fato, o pai do menino tenha ido à cidade, pois somente no decorrer da narrativa, é que o interlocutor verifica que a ação referenciada pelo verbo da completiva realmente se realiza. Em casos como esse, são outros enunciados em meio aos quais a construção complexa subordinada se insere que fornecem as pistas necessárias à confirmação da realização do evento da completiva. Ou seja, nesse sentido, as construções complexas subordinadas por verbos modais não­implicativos são mais dependentes 60 do contexto, uma vez que não apresentam em si codificadas noções de sucesso ou falha. Aqui, em (18), é o enunciado aí no dia ele dava curso de socorros ... que permite ao interlocutor inferir acerca da realização da ação descrita por ir . No exemplo (19), (19) também num entendeu isso ... sim ... aí a mulher né ... ele contou como a mulher tinha ... tinha ... sido ... tinha morrido né ... aí depois ele foi pra casa né ... ele foi pra lá depois ... combinaram também que ele também queria acabar com essa maldição ... (fala: narrativa recontada, p. 13) ainda sobre o mesmo filme, o informante codifica a construção ele também queria acabar com essa maldição ..., na qual o evento expresso pela cláusula de complementação não pode ser decodificado como concretizado, pois verbo queria, da cláusula matriz, não possui nenhuma implicação semântica sobre o verbo acabar , da completiva. Sob uma perspectiva escalar dos laços semânticos que unem a cláusula principal à completiva e, com base em nossos dados, advogamos, para a língua portuguesa, a existência de um continuum modal­cognição, dentro do qual se distribuem as seguintes categorias: verbos modais modalizadores, verbos modais aspectuais, verbos modais implicativos, verbos modais não­implicativos e verbos de cognição. Assim sendo, não acreditamos que os modais não­implicativos se constituam como uma subcategoria de modais isolada, pois nossos dados apontam para a inexistência de fronteiras rigidamente isolantes entre as referidas categorias. Tanto a ausência de propriedades implicativas, bem como a aceitabilidade de completivas de valor subjuntivo, no que diz respeito aos modais não­implicativos, não ocorrem por acaso. Eles, uma vez estando situados numa região fronteiriça entre os verbos modais e os de cognição, carregam características sintático­ semânticas dos dois grupos. Enquanto alguns verbos apresentam comportamento prototípico de modais; outros, comportamento prototípico de cognição, muitos se situam numa região de interface, como, por exemplo, os verbos modais não­ implicativos. O seguinte quadro (3) corresponde a uma síntese do continuum modal­ cognição: 61 Quadro (3): Continuum modal­cognição poder ter dever precisar caber conseguir começar acabar deixar ajudar costumar chegar levar vir dar passar continuar tornar acostumar­se parar impedir voltar esquecer jurar tentar querer achar faltar adorar saber procurar resolver pensar gostar lembrar pretender sentir propor preocupar­se prontificar­se ver notar ensinar aprender compreender tratar imaginar entender importar­se interessar planejar esperar acreditar preferir ligar sonhar crer insistir escolher conhecer aceitar combinar decidir No exemplo (20), (20) Batman o retorno ... o filme se passa ... na cidade chamada Gotan City ... o filme já ... já diz o nome ... Batman o retorno ... a segunda parte do Batman um ... o filme começa quando ... o nascimento de Pinguim ... um dos personagens do filme ... ele nasce deficiente ... a família dele com vergonha ... por pertencer a uma alta sociedade ... decide jogá­lo no rio ... é ... e joga­o no rio ... então esse rio tem uma forte correnteza e leva ele pra bem longe ... ele vai parar numa gruta ... essa gruta é habitada por pinguins ... daí os pinguins vão adotar ... vão começar a criar ele ... (fala: narrativa recontada, p. 161) em sua narrativa recontada sobre o filme Batman o retorno, o informante codifica a construção jogá­lo no rio como completiva subordinada à forma verbal decide. Porém, como o verbo decidir apresenta um comportamento não­implicativo, ele não autoriza nenhuma relação lógico­semântica que possibilite ao interlocutor inferir que o sujeito, no caso, a família dele, realmente, tenha realizado a ação planejada. Atentemos para o fato de que é a falta de implicatividade do verbo principal que leva o informante, (in)conscientemente, a, logo em seguida, construir o enunciado e joga­ o no rio , codificando a noção de sucesso para a ação referenciada anteriormente pela cláusula de complementação. Contudo, ao mesmo tempo em que ausência de implicatividade lógico­semântica corresponde, para o verbo decidir , a um traço característico de verbo modal não­implicativo, é inegável a ideia de processo mental subjacente a sua semântica, o que lhe confere também um traço característico de 62 verbo de cognição. De acordo com o continuum apresentado, dentro da categoria verbos modais, podemos tipificar os verbos como mais ou menos modais prototípicos. Verbos como poder , ter , dever são bem prototípicos, enquanto verbos como querer , decidir , preferir , entre outros, situam­se num ponto inferior no eixo de graus de prototipicidade modal. Esses últimos, por estarem numa zona de interface entre o grupo dos modais e o grupo dos verbos de cognição, assumem um comportamento sintático­semântico híbrido; ora com características dos modais, ora com características dos verbos de cognição. Tomemos como exemplos as ocorrências do verbo querer em (21) e em (22): (21) tem uma mesa redonda ... com quatro cadeiras vermelhas ... tem uma maca que a gente coloca ... coloca lá também ... coloca lá também ... e:: deixe­me ver mais ... a pia bem grande ... embaixo tem um armário ... um armário pra colocar as coisas ... material de limpeza ... o que a gente quiser colocar ... e também tem um quin/ um quintal ... bem grande também ... um pouco ... um pedaço acimentado ... o resto ... areia mesmo ... e também tem um quarto lá atrás ... que é vago ... (fala: descrição de local, p. 136) (22) eu acho que Deus quer que você realmente busque ... busque nele tudo aquilo que você precisa ... não precisa você se sacrificar para isso ... e você para agradecer basta você reconhecê­lo como tal ... isso que pra mim é religião ... religião pra mim não é a que igreja você segue ... que diretriz ... religião pra mim é a crença que eu tenho em Deus ... (escrita: relato de opinião, p. 31) Em (21), durante a descrição de uma clínica médica, para a qual trabalha como recepcionista, o informante codifica uma construção subordinada complexa, em que o verbo querer , na condição de verbo da cláusula principal, apresenta um comportamento sintático­semântico típico dos verbos modais. Nesse caso, o verbo querer modela a cláusula de complementação de modo semelhante ao que ocorre estruturalmente e semanticamente com as completivas subordinadas a verbos modais. A subordinada, além de trazer o verbo no infinitivo, apresenta correferencialidade de sujeito em relação à cláusula matriz. Já em (22), ao expor sua concepção de religião, na qual defende a ideia de que ela não se faz através de vínculos institucionais, mas somente através da crença na existência de Deus, um outro informante constrói um enunciado, em que o verbo querer , embora na condição de verbo principal, não determina para a cláusula de complementação uma modelagem sintático­semântica nos moldes do que ocorre para as cláusulas 63 completivas de verbos modais. Aqui, em (22), o nominal Deus , ocupante da valência sintática reservada ao sujeito, está referenciando um ser personificado e experienciador a quem é atribuído, por meio do verbo querer , um desejo intrínseco, e a essa ideia de desejo, certamente, subjazem noções de processamento mental que deslocam o verbo querer para um ponto inferior no eixo de prototipicidade modal, aproximando­o dos verbos de cognição. Por isso, a esse verbo, diferentemente do que acontece com modais prototípicos, é autorizado pelo sistema da língua portuguesa o encaixamento de uma cláusula de complementação introduzida por complementizador que, com verbo no subjuntivo e com sujeito não­correferencial . Portanto, apesar de pertencentes à categoria de verbos não­ implicativos, uma vez que seus significados não se traduzem em relações lógico­ semânticas que permitam inferências associadas a noções de concretude do evento descrito pela cláusula de complementação, verbos como querer não podem ser estudados sob uma análise apenas circunscrita ao campo das relações de implicatividade lógico­semântica. À medida que os modais não­implicativos se esvaziam de valores semântico­cognitivos e pragmáticos codificados pelos verbos categorizados como modais, eles caminham em direção aos verbos de cognição, possibilitando encaixamentos de cláusulas de complementação com características sintático­semânticas tanto de cláusulas completivas de modais quanto de cláusulas completivas de verbos de cognição. 3.2.1.2 Verbos de cognição Entre as línguas do mundo, há muitas delas cujos sistemas autorizam a tomada de cláusulas de complementação por verbos ditos de cognição. Os chamados verbos de cognição compõem um grupo de itens lexicais que se destina à codificação de significados atrelados a processos mentais – conhecimentos, crenças, desejos – e a percepções. A língua portuguesa faz parte do rol das línguas do mundo em que os verbos de cognição podem ter a valência sintática de objeto ocupada por uma cláusula verbal. Conforme pode ser observado no gráfico (1), em nosso corpus, os verbos de cognição correspondem, em termos de percentuais de ocorrência, ao segundo maior grupo de verbos que tomam cláusulas de complementação verbal. 64 No exemplo (23), (23) ele só volta através de uma tempestade ... que justamente é nesse dia ... que tá chovendo ... que há tempestades de raios e tudo mais ... com trovões e raios ... então ... ele:: no um ele só consegue voltar para mil novecentos e oitenta e cinco por causa desse raio ... porque eles sabiam que ia cair um raio na torre da igreja ... então eles fizeram uma canalização com ... com uma ligação elétrica lá ... né ... (fala: narrativa recontada, p. 99) para recontar o filme de volta para o futuro, o informante cria a estrutura eles sabiam que ia cair um raio na torre da igreja, na qual a parte que ia cair um raio na torre da igreja aparece codificada como uma cláusula verbal subordinada à cláusula matriz eles sabiam . Nesse caso, a forma verbal sabiam codifica conhecimento em relação ao evento referenciado pela subordinada. Na cena do filme relatada, como os personagens eram oriundos de um tempo futuro, eles já tinham conhecimento de que em determinado dia e horário a torre da igreja seria atingida por um raio. Em (24), (24) ... porque aí numa hora que você tá num sufoco danado ... você faz ... ai meu Deus ... me ajuda né ... até os próprios ateus ... ateus entre aspas ... eu acho que eles não ... não existem ... sabe ... eu acredito que eles não existem não ... os ateus ... (fala: relato de opinião, p. 153) durante seu relato de opinião sobre religiões, o entrevistado, para dizer que não concebe a existência de ateus, codifica uma completiva subordinada ao verbo acreditar . É esse verbo que, dentro do enunciado, codifica a ideia de crença em relação ao estado expresso pela estrutura completiva que eles não existem não . Quanto aos verbos codificadores de desejos/preferências, não os consideramos de cognição prototípica. Como pode ser verificado no quadro (3), eles localizam­se numa área de intersecção entre os conjuntos modais não­implicativos e cognição. O verbo principal do exemplo (25), a seguir, bem como os dos exemplos já analisados (21) e (23) carregam significados cognitivos que são codificados em relação ao que é expresso na estrutura subordinada. Observemos o que acontece em (25): (25) e pra acompanhar esse peixe o certo então é um vinho branco ... um vinho branco seco ... mas lá em casa ninguém é muito chegado a vinho ... então eu prefiro fazer uma senhora limonada ... porque não gosta de vinho ( ) ... (escrita: relato de procedimento, p. 29) nesse exemplo, o informante, ao relatar os procedimentos para a preparação de um jantar, utiliza a estrutura eu prefiro como subordinadora da estrutura de 65 complementação fazer uma senhora limonada. Nessa construção complexa, é bastante evidente o fato de que a relação entre as partes se dá por meio do significado de desejo que ao evento da completiva é impresso pelo verbo da cláusula principal. E, em (26), o verbo ver toma uma subordinada completiva sobre cujo evento codifica percepção. (26) o carro perdeu o controle ... o motorista perdeu o controle ... né ... aí na hora que ele viu o carro começou a ... do lado pro outro ... quando ele viu que o carro ia cair dentro do rio ... aí ele ... colocou o carro num:: assim ... pra cima de outro carro ... que tava um casal de namorado assim ... (fala: narrativa de experiência pessoal, p. 116) Aqui, em (26), o informante, ao relatar oralmente, a mesma experiência que em (17), emprega a cláusula ele viu como subordinante da cláusula que o carro ia cair dentro do rio . Observemos que o verbo ver , dentro dessa construção, não expressa uma ação, mas, sim, um processo mental que conduz o sujeito experienciador a uma percepção da realidade na qual está inserido, afinal de contas, não se pode ver , no sentido de “olhar”, um acidente que ainda não ocorreu. Dada à natureza semântica dos verbos de cognição, na medida em que aos seus significados subjazem processos mentais, eles são responsáveis por codificar conteúdos que emergem a partir da subjetividade do usuário da língua. Assim sendo, os verbos de cognição constituem, dentro de qualquer língua, um repertório de mecanismos linguísticos disponível ao falante/escrevente, que lhe possibilita marcar nos enunciados produzidos modalidades epistêmicas. No entanto, a categoria de verbos que rotulamos de cognição não comporta verbos de comportamento sintático­semântico padronizado. Pelo contrário, estamos diante de um grupo de itens lexicais bastante heterogêneo. Por exemplo, embora, no tocante ao protótipo semântico, a maioria dos verbos de cognição carreguem significados ancorados num mundo epistêmico, isto é, interior à mente do falante/escrevente, muitos desses verbos, sobretudo os de preferência, são menos prototípicos e não codificam epistemicidade stricto sensu. Talvez para os verbos de preferência seja mais apropriado se pensar não em epistemicidade no sentido de gradientes de certeza, e, sim, no sentido de conhecimento que o indivíduo possui sobre si mesmo. Givón (2001) chama atenção para o fato de que oscilações dos verbos de preferência entre os planos deôntico e epistêmico interferem na codificação sintática 66 das cláusulas de complementação verbal. Todavia, as ocorrências desses verbos em nosso corpus não confirmam tal fato para a língua portuguesa. O que ficou bastante evidente em nossas ocorrências foi a predileção desses verbos por completivas com verbo no infinitivo e sujeito correferencial, forma de estruturação sintática semelhante a das completivas dos verbos modais. Já, em modalizações combinadas com verbos de cognição na condição de principal, é perceptível a existência de isomorfia entre os componentes sintático e semântico, uma vez que a transição semântica entre os mundos deôntico e epistêmico implica, na cláusula de complementação verbal, transição da estrutura sintática entre os modos subjuntivo e indicativo, respectivamente. No exemplo (27), (27) Algumas pessoas acham que deveria mudar o técnico, mais pra que mudar o técnico? Se está em plena fase de classificação para a copa do mundo. Será que iria rosolver o problema? Será que mudando iria dar tempo para colocar as coisas nos eixos em tão pouco tempo de trabalho? (escrita: relato de opinião, p. 22) o mesmo informante que em (1), ao relatar, por escrito, sua opinião acerca do desempenho da Seleção Brasileira de Futebol, codifica duas modalizações combinadas, de modo que a construção complexa passa a ser estruturada por três cláusulas verbais, sendo duas delas de complementação verbal. À forma verbal acham subordina­se a completiva complexa que deveria mudar o técnico ; enquanto à forma verbal deveria, a completiva simples mudar o técnico . Apesar de o verbo achar pertencer ao grupo dos verbos prototípicos de cognição e, assim sendo, caracterizar­se como codificador de modalidades epistêmicas, aqui, em (27), ele sofre um sutil processo de transição semântica, passando a operar como um codificador de modalidade deôntica, o que faz com que o sistema da língua autorize, para tal verbo, em casos como esse, o encaixamento de uma cláusula completiva com verbo no subjuntivo. Uma vez que codificam graus de certeza, os verbos de cognição tendem a não admitir cláusulas de complementação com verbo no subjuntivo, contudo, à medida que, semanticamente, transitam de um plano mais epistêmico para um plano mais deôntico, transitam sintaticamente, no que tange à forma da cláusula completiva, do modo indicativo para o subjuntivo. Retomando a figura (1), na página 44, em Algumas pessoas acham que deveria mudar o técnico , a forma verbal acham localiza­se num ponto intermediário da seta, entre as esferas representativas dos mundos deôntico e epistêmico. Observemos que, 67 semanticamente, ela está mais para uma codificação do sentido de desejo/preferência do que para uma do sentido de certeza/conhecimento. É importante salientar que o significado do verbo da cláusula matriz não pode ser analisado de forma independente, pois a forma verbal acham apresenta­se semanticamente esvaziada de seu conteúdo epistêmico em decorrência da modalização deôntica codificada pela forma verbal deveria sobre o verbo de sua completiva mudar o técnico . Assim como em (27), no exemplo (28), (28) vivemos de modelos e ... vai se tornando ... se a televisão passa porque na minha casa não pode acontecer uma mudança dessas? eu acho que deve ser essa mentalidade que corre por aí ... para que os níveis de relação e ... e os ... e a frouxura que se existe diante do compromisso do casamento hoje em dia ... a ... as pessoas num tão encarando com tanta seriedade mais o casamento ... então já se casa na perspectiva de ... se num der certo ... (escrita: relato de opinião, p. 84) durante seu relato de opinião acerca do assunto televisão, para argumentar que a programação da televisão contribui para a desconstrução de valores sociais, principalmente, com relação à visão das pessoas sobre o casamento, o informante codifica um enunciado estruturalmente complexo, em que há duas modalizações combinadas. No entanto, nesse exemplo, o verbo achar comporta­se de modo diferente de em (27). Em eu acho que deve ser essa mentalidade que corre por aí ..., a forma verbal acho codifica em relação à cláusula de complementação uma modalização epistêmica, pois não se trata de desejo/preferência, mas, sim, de certeza/conhecimento. É importante notar que a modalização interna à completiva também é uma modalização epistêmica, porque, em deve ser essa mentalidade que corre por aí ..., a forma verbal deve não codifica sobre o verbo ser noção de obrigatoriedade, e, sim, noção de certeza. A forma do verbo de modalização localizado na cláusula complemento é determinada pela isomorfia entre sintaxe e semântica. Enquanto para verbos de modalidade deôntica é possível o encaixamento de completivas de valor indicativo ou de subjuntivo, para os verbos de modalidade epistêmica, só é possível o encaixamento de completivas de valor indicativo, o que mais uma vez reflete o princípio da iconicidade. Daí decorre que, sendo os verbos de cognição sujeitos a transições semânticas, eles podem, dentro do continuum deôntico­epistêmico, deslocarem­se entre pontos mais ou menos epistêmicos, e esse deslocamento implica aceitação ou recusa de modelos 68 estruturais da cláusula de complementação. Atentemos para o fato de que não seria possível a construção *eu acho que deveria ser essa mentalidade que corre por aí ..., já que por ser, nesse contexto, um modalizador fortemente epistêmico, o acho não pode admitir, em sua completiva, a forma verbal subjuntiva deveria8 . Verificamos ainda que as modalizações combinadas são espelhadas, pois, quando participam de modalizações combinadas, os verbos de cognição refletem o tipo de modalização que ocorre dentro da completiva. Logo, as cláusulas principais participantes de modalizações combinadas possuem mais relevância pragmático­ discursiva que sintático­semântica. Elas são inseridas na arquitetura do enunciado por uma necessidade do falante/escrevente de evidenciar graus de modalização. Outro aspecto da semântica dos verbos de cognição que também condiciona o encaixamento de completivas diz respeito a diferentes graus de certeza que são codificados dentro da esfera epistêmica. Até mesmo verbos de cognição prototípicos apresentam variações em seus conteúdos epistêmicos, e essas variações atuam, numa correlação entre sintaxe e semântica, como reguladoras da modelagem das completivas admitidas. Vale salientar que esse fenômeno é quase restrito a verbos de cognição conjugados em tempo passado, pois, no presente, independentemente do grau de certeza que codifiquem, eles tendem a tomar completivas com verbo no modo indicativo. Nosso corpus mostrou serem bastante raros os casos em que verbos de cognição no presente tomam completiva com verbo no subjuntivo, como ocorre em (29): (29) deputado por exemplo rouba o ... o ... dinheiro de alguém ... a só por causa disso o cara num vai morrer ... podia sei lá ... trabalhar forçado ou coisa assim ... ficar exilado do mundo ... não é morrer ... morrer por causa disso não ... só se for por causa desses crimes bárbaros mesmo assim ... coisa que ... sei lá ... ninguém faria ... ou ninguém pensa que possa fazer isso ... (escrita: relato de opinião, p. 203) Nesse exemplo, em que o informante defende a existência da pena de morte apenas para crimes hediondos, ele constrói um enunciado, no qual, embora o verbo da cláusula matriz seja de cognição prototípica e esteja conjugado em tempo presente, a cláusula de complementação modelada no subjuntivo pôde a ele se subordinar. É interessante notarmos que, apesar de raro, o fenômeno está de acordo com uma perspectiva escalar da epistemicidade, uma vez que o verbo pensar é menos 8 Referimo­nos ao subjuntivo sintático, e não ao morfológico. 69 epistêmico que outros de seu grupo, tais como: saber , conhecer e crer , por exemplo. Já em situações como a que será apresentada em (30), o sistema da língua não autoriza a transição sintático­semântica dos verbos das completivas para o subjuntivo. (30) porque você sabe que peixe tem uma característica própria ... um cheiro próprio e eu não gosto de colocar em todas as panelas ... né ... então eu pego essa panela e boto com óleo ... deixo esse óleo ficar bem quente ... bem quente mesmo ... então essa posta de peixe ... ela já tá pronta ... já tá sequinha ... né ... eu coloco essa posta de peixe ... eu coloco pra fritar ... (escrita: relato de procedimento, p. 28) Aqui, em (30), em seu relato de procedimento, o informante, enquanto ensina a preparar um peixe, codifica, para interagir com o entrevistador, um enunciado em que a forma verbal tem , inserida na cláusula complemento, aparece no modo indicativo. Caso quiséssemos passar essa forma verbal para o presente do subjuntivo, não conseguiríamos. A construção *você sabe que um peixe tenha uma característica própria... um cheiro próprio é agramatical. Em contextos como os a serem apresentados nos exemplos (31) e (32) a seguir, em que os verbos das cláusulas matrizes encontram­se flexionados em tempo preteritus, é bastante evidente que, mesmo sendo de cognição, determinados verbos de menor grau epistêmico não repelem completivas subjuntivas, enquanto os de maior grau tendem a fazê­lo. Em (31), (31) se o professor colocou um pouquinho ... foi aquele desfile ... imagine se eu colocasse mais ... peguei o mesmo béquer ... coloquei uma colher ... uma colher de cloreto de sódio ... foi um fogaréu tão grande ... foi uma explosão ... quebrou todo o material que estava exposto em cima da mesa ... eu branca ... eu fiquei ... olha ... eu pensei que eu fosse morrer sabe ... (escrita: narrativa de experiência pessoal, p. 23) o entrevistado narra que, quando ainda estudante, viu o professor realizar uma determinada experiência química e, por ter se encantado com o efeito do experimento, decidiu reproduzi­lo com maior quantidade de substâncias, o que ocasionou uma explosão no laboratório da escola. No enunciado eu pensei que eu fosse morrer , o verbo pensar aparece flexionado no pretérito perfeito do indicativo e complementado por cláusula com verbo no subjuntivo. Tal fato se dá, porque, mesmo sendo um prototípico verbo de cognição, o pensar apresenta, dentro da escala deôntico­epistêmico, menor grau de epistemicidade. Se o trocássemos por um verbo de maior grau de epistemicidade, a cláusula subjuntiva seria, 70 automaticamente, repelida. São um tanto estranhas construções como *eu conheci que eu fosse morrer e *eu sabia que eu fosse morrer . Em (32), (32) a Mulher Gato não teve a mesma sorte e ficou no meio da explosão ... depois que já estava tudo ... tudo calmo ... o Pinguim morreu ... então Batman saiu de dentro da cápsula e procura a Mulher Gato ... que ele já sabia que ela era aquela secretária que ele tanto amava ... e procura no meio dos escombros ... mas não consegue achá­la ... (fala: narrativa recontada, p. 161) o mesmo informante que em (20), ao recontar a narrativa do filme Batman o retorno, codifica a construção complexa ele já sabia que ela era aquela secretária que ele tanto amava, na qual pode ser observado que a cláusula­complemento obedece a processos isomórficos de base, que são determinantes de sua formatação. O verbo saber é um prototípico verbo de cognição, no entanto difere de pensar , em (31), no que diz respeito ao gradiente de epistemicidade. Dentro do continuum modal­ epistêmico, o verbo saber está situado num ponto de maior epistemicidade, se comparado ao verbo pensar , por isso repele cláusulas­complemento no modo subjuntivo. Dado ao elevado grau de certeza modalizado pela forma verbal sabia, a codificação *ele já sabia que ela fosse aquela secretária que ele tanto amava é nitidamente agramatical. Todavia, desde que o verbo da cláusula matriz tenha sua epistemicidade contextualmente enfraquecida ou seja escopo semântico de algum item lexical de valor negativo, verbos posicionados em pontos elevados da escala de epistemicidade podem tomar cláusulas­complemento introduzidas pelo complementizador se. No exemplo (33), (33) A primeira coisa que faço é pensar no cardápio. Como minha família gosta muito de peixe, normalmente escolho peixe. Vou a geladeira para saber se tem tudo o necessário, encontrando começo o trabalho. (escrita: relato de procedimento, p. 33) o mesmo entrevistado que em (25) e (30), durante relato de procedimento por escrito sobre assunto já mencionado, codifica a construção saber se tem tudo o necessário , em que ao verbo saber é encaixada uma completiva introduzida pelo complementizador se. É importante notarmos que, nesse caso, o verbo de cognição encontra­se epistemicamente enfraquecido, na medida em que o contexto no qual está inserido condiciona a noção de certeza a uma ação que deve ser previamente realizada, fazendo com que o verbo, sutilmente, adquira um valor temporal de futuro, 71 e os verbos de cognição, quando utilizados em tempo futuro, apresentam­se menos epistêmicos que quando utilizados em tempo passado e em tempo presente. Conforme já foi dito, a negação sofrida pelo modal epistêmico também o faz regredir degraus na escala de epistemicidade, uma vez que anula a noção de certeza modalizada. Desse modo, apesar de a completiva referenciar algo incerto, ainda assim o verbo principal se permitirá completar por ela. (34) a seguir exemplifica o referido encaixamento: (34) os casais de hoje num:: num tá se valorizando não ... tá se desvalorizando ... principalmente as moça ... vamo dizer ... eu nem sei se ainda existe moça ... por aqui ... assim ... aqui no Brasil todo ... eu num sei se ainda existe moças não ... é muito difícil ... porque ... assim pra encontrar uma moça ... a num sei ... eu dizer que é moça ... num sei quê ... (fala: relato de opinião, p. 190) nesse exemplo, em seu relato de opinião sobre o assunto namoro, o informante critica a pouca importância que as mulheres, atualmente, têm dado à preservação da virgindade. Observemos que o enunciado eu num sei se ainda existe moças não é composto por duas partes, sendo uma delas, a destacada, uma completiva subordinada introduzida pelo complementizador se. Na medida em que a forma verbal sei é escopo semântico da dupla negativa num/não , ela desloca­se para um ponto hierarquicamente inferior da escala de epistemicidade, podendo, assim, receber uma cláusula­complemento com valor semântico de subjuntivo. Em nosso corpus, todas as ocorrências do complementizador se estão relacionadas ao encaixamento de cláusulas de complementação a verbos prototípicos de cognição/percepção cuja transição semântica os levou à redução do gradiente de epistemicidade. Verificamos, com base nessas ocorrências, que, nesse tipo de construção sintática, o complementizador se não atua como uma mera conjunção integrante da cláusula de complementação verbal, permitindo a ela se encaixar à matriz e, muito menos, como uma espécie de conectivo condicional. Ele é um elemento gramaticalizado de codificação modal, pois marca, dentro da cláusula de complementação verbal, a noção de modo subjuntivo que não está presente na morfologia do verbo da completiva. 72 3.2.1.3 Verbos de enunciação/informação No imensurável conjunto das necessidades comunicativas universais, insere­ se o desejo de reportar discursos. Os falantes/escreventes das línguas do mundo, em frequentes contextos de comunicação, precisam reconstruir, para o interlocutor presente na cena comunicativa que se desenvolve, fragmentos discursivos produzidos por (inter)locutores participantes de atos de comunicação previamente ocorridos. Desse modo, em cada língua do mundo, emergem mecanismos linguísticos que permitem a seu usuário realizar esse desejo de dizer. É certo que tais mecanismos não são exatamente os mesmos para todas as línguas, uma vez que a efabilidade das línguas não está sujeita a processos de gramaticalização com resultados iguais para todas elas, isto é, para o atendimento de uma necessidade comunicativa universal, as línguas podem apresentar recursos particulares de codificação, conquanto muitos deles coincidam translinguisticamente. Línguas como o inglês, o espanhol e o português, entre outras, disponibilizam, como forma de codificação para discursos reportados, o encaixamento sintático entre uma cláusula­ complemento e um verbo dito de enunciação/informação. Para o português, nossos dados revelaram que embora bem menos numerosos, se comparados aos modais e aos de cognição, os verbos de enunciação/informação compõem a terceira maior categoria de verbos que tomam cláusulas de complementação verbal. Eles correspondem aos chamados verbos dicendi da língua, ou seja, os verbos de dizer, sendo responsáveis por codificarem citações de dois tipos: as diretas e as indiretas. Enquanto as do primeiro tipo são uma forma de discurso reportado em que o falante preserva as características de codificação do enunciado reportado, as do segundo tipo acontecem por meio de paráfrases, de modo que o falante/escrevente toma para si a responsabilidade da autoria do enunciado. No exemplo (35) a seguir, é bastante evidente o uso dos dois referidos tipos de discurso. (35) tenho ... a de Maceió que eu fui pra excursão ... aí eu gostei ... foi divertido ... mas até que assim eu num tava querendo ir sabe? aí quando foi ... minha mãe trouxe ... trouxe ... biquini e essas coisa ... maiô ... num sabe? ela trouxe maiô aí disse ... “ ei ... você vai?” aí ... eu não disse a ela que tinha prova ... eu ia começar as prova ... aí eu disse ... “ não ... num vou não” ... aí ... ela ficou assim ... eu vi que ela ficou assim com raiva ... sabe? mas quase que eu num ia ... aí eu disse ... “ não ... eu vou” ... aí ela disse ... “ qual é a primeira ... qual é a primeira assim ... qual é a primeira ... a primeira ... a primeira prova?” (fala: narrativa de experiência pessoal, p. 179) 73 Durante sua narrativa de experiência pessoal, o informante fala de um conflito experienciado, no qual se sentiu pressionado, pela mãe, a aceitar o convite de uma viagem a Maceió, mesmo sabendo que a data dessa viagem coincidiria com o período das provas escolares. E, para deixar claro ao interlocutor como se deu tal situação conflitante, o informante sente a necessidade discursiva de, dentro da cena discursiva da qual participa, reconstruir partes de uma outra cena discursiva já vivenciada. Assim, (35) é um recorte de um momento, em que à cena comunicativa entrevistador/entrevistado é subposta a cena comunicativa mãe/filho. Para tanto, o informante recorre a mecanismos de subordinação sintática, uma vez que enunciados outrora sintaticamente autônomos aparecem, no discurso reportado, como cláusulas­complemento do verbo dizer . Observemos que, por meio das construções complexas disse... “ ei ... você vai?” , ela disse ... “ qual é a primeira ... qual é a primeira assim ... qual é a primeira ... a primeira ... a primeira prova? , eu disse ... “ não ... num vou não” ... e eu disse ... “ não ... eu vou” ..., o informante codifica citações diretas, reconstruindo tanto o discurso da mãe quanto o seu próprio discurso. É importante notarmos que, nessas quatro construções, as duas primeiras completivas, bem como as duas últimas, respectivamente associadas às falas da mãe e do filho, ao serem reportadas, perderam a autonomia sintática que possuíam quando realizadas em suas falas originárias. Tal fenômeno se deve ao fato de que a subordinação sintática com verbos de enunciação/informação, na língua portuguesa, corresponde, de fato, a um mecanismo linguístico disponível ao falante que lhe possibilita subpor um discurso a outro. Vale ainda salientar que, através desse mecanismo, não somente enunciados que, em ações comunicativas aludidas, foram realmente codificados podem ser reportados, mas também qualquer um que, nelas, esteve potencializado. Retomando o exemplo (35), podemos verificar isso. Na citação indireta eu não disse a ela que tinha prova ..., a forma verbal disse é escopo da negatividade do advérbio não , o que nos leva à conclusão de que a cláusula­complemento não foi codificada, no entanto como ela carrega uma enunciação que estava potencialmente presente na ação comunicativa a que o informante faz alusão, ela pôde, na narrativa, ser codificada na forma de discurso reportado. Nos discursos direto e indireto, as cláusulas de complementação verbal não diferem entre si apenas por a do segundo tipo de discurso tratar­se de uma 74 paráfrase e a do primeiro não. Existem outros aspectos que também podem ser observados na distinção entre as duas formas de cláusula­complemento. Dentre estes aspectos, destacam­se, do ponto vista semântico­pragmático, a dêixis, e, do ponto de vista sintático, a presença do complementizador que. Comecemos, com base nos exemplos (36) e (37) a seguir, observando o comportamento dos elementos de referenciação dêitica em cláusulas de complementação verbal participantes das duas referidas formas de discurso. No exemplo (36), (36) “é você tem que morrer ... pois você foi atacado pelo lobisomem” ... aí começou a falar ... aí disse ... “ ei .. sai daqui ... você morreu ... num sei o quê” ... aí ele foi dizer pra enfermeira ... a enfermeira disse que ele tava louco num sabe? ele disse ... “não ... mas eu vi o meu amigo ... eu vi ... aí começou nessa besteira ... ele foi morar ... ele foi morar ... ele saiu ... do hospital ... (fala: narrativa recontada, p. 183) dentro de sua narrativa recontada, para reconstruir partes do discurso do filme O Lobisomem de Londres, o entrevistado codifica a cláusula verbal sai daqui como subordinada do verbo principal disse. Em casos como esses, ocorre subposição de discursos, consoante já afirmado. Consequentemente, a interpenetração de cenas discursivas gera duas noções de planos espaços­temporais, nas quais a referenciação dêitica pode ser buscada. Um destes planos espaços­temporais está relacionado ao sujeito da cláusula matriz; enquanto o outro, ao falante/escrevente. Notemos que o circunstancial de lugar aqui , mesmo apresentando comportamento dêitico, ainda assim é intralinguisticamente dependente, pois ele mantém uma relação de referência com sujeito da cláusula principal, na medida em que semântico­pragmaticamente codifica uma noção de lugar ancorada num plano espaço­temporal relacionado ao sujeito da estrutura subordinante. Em (37), (37) fiquei com seqüelas como ... meus dentes ficaram num sei quantos anos ... caindo sozinho ... amolecia sozinho e caía ... é só sem ver de que caía e também tive que ... eu tava ... tinha seis anos né ... me prejudicou também na ... na ... no crescimento né ... no meu desenvolvimento né ... no meu desenvolvimento também ... o médico disse ... que me prejudicou também ... e eu acho que em outras coisas também ... me afetaram muito sabe? (fala: narrativa de experiência pessoal, p. 8) ao narrar uma experiência pessoal, na qual sofre um acidente de carro que lhe deixou graves sequelas, o informante insere, em seu discurso, o discurso do médico. Para isso, a fala do médico é reportada por meio da completiva que me prejudicou também ... subordinada à forma verbal disse. Nessa completiva, também está presente um elemento de referenciação dêitica, o clítico me, mas que, no entanto, 75 não pode de modo semelhante a (36), ser decodificado com base numa relação de referência com o sujeito da cláusula matriz. Afinal de contas, trata­se de um discurso reportado e, assim sendo, o falante assume a responsabilidade pela codificação do enunciado. É bastante evidente que, apesar de a fala reportada ser atribuída ao sujeito da cláusula principal, o médico jamais poderia ter dito me na cena comunicativa da qual ele e o nosso informante foram participantes. Sendo assim, esse clítico não estabelece nenhuma relação de interdependência entre as duas cláusulas. Seu entendimento se dá, unicamente, com base num processamento cognitivo de busca do referente no plano espaço­temporal em que se desenvolve a cena comunicativa entrevistado/entrevistador e, para isso, é o falante que é tomado como referência, e, não, o sujeito do verbo principal. Ou seja, em suma, nas citações diretas, a dêixis depende do sujeito; nas citações indiretas, do falante/escrevente. No que tange à presença do complementizador que como característica sintaticamente distintiva das citações direta e indireta, verificamos que, nas do primeiro tipo, ele não aparece, contudo, nas do segundo tipo, é indispensável ao encaixamento sintático. Tal fato pode ser observado nas ocorrências das completivas dos exemplos já analisados (35), (36) e (37). Sob uma perspectiva escalar da epistemicidade, caso comparados aos verbos de cognição, os de enunciação/informação ocupam o ponto mais baixo da escala, pois não codificam noções de certeza em relação ao evento da cláusula de complementação verbal. Uma distribuição dos verbos de enunciação/informação e dos mais prototípicos de cognição na escala de epistemiciade é apresentada no quadro (4) abaixo: Quadro (4): Continuum cognição­enunciação/informação jurar achar pensar saber lembrar confessar sentir ver recomendar preocupar­se explicar notar descrever compreender contar entender falar interessar dizer acreditar ligar perguntar crer conhecer 76 A posição dos verbos de enunciação/informação na escala apresentada, confere­ lhes baixo grau de epistemicidade, o que a eles possibilita tanto o encaixamento sintático de cláusulas­complemento no modo indicativo quanto no modo subjuntivo. Nos exemplos (38) e (39) seguintes, encontramos completivas em tais modos verbais. Em (38), (38) ... você tem que ... passar por aquilo pra ver ... se der certo ... melhor ainda ... se num der né? levantar a cabeça e seguir em frente ... foi o que aconteceu comigo e ele ... sabe? mas eu fazia tanta loucura ... sabe? por ele ... namorava escondido ... mentia pra minha mãe ... disse que ia ... dizia pra ela que ia prum lugar ... num ia ... sabe? ia me encontrar com ele ... era o maior chafurdo ... e assim a gente passou um ano e cinco meses ... nesse sufoco ... muito tempo né? (fala: narrativa de experiência pessoal, p. 119) durante a construção de sua narrativa de experiência pessoal, o informante faz menção a um namoro que vivenciou, mesmo sabendo que a mãe não o aprovava. No desenvolvimento desse tópico discursivo, a citação é usada como estratégia para a reconstrução parcial de momentos de interação verbal entre mãe e filho. Observemos que, na citação realizada, à forma verbal dizia é encaixada uma cláusula de complementação verbal cujo verbo se encontra no modo indicativo. Já em (39), (39) o pai brigou ... e disse que ... as férias as próximas férias que eles tivessem ... eles nunca mais vinham pra fazenda ... porque ... depois de uma barbaridade dessa eles não podiam ir mais pra fazenda ... e acabaram encontrando o caminho de casa ... e foram pra fazenda ... aí o pai disse que ... não fossem ... não ... as próximas férias que tivesse de meio de ano ... férias de final de ano ... eles não iam mais pra fazenda ... por causa disso ... iam ficar de castigo ... (fala: narrativa recontada, p. 172) para recontar a narrativa do livro A serra dos dois meninos, texto em que os dois protagonistas, na tentativa de chegarem a uma determinada serra, perdem­se em meio a uma floresta, o entrevistado reporta o discurso do pai dos garotos através de uma cláusula­complemento com verbo no subjuntivo. Caso sejam observados à luz de uma escala de envolvimento emocional, tal como proposta por Givón (1980), para quem essa escala está associada a diferentes graus de desejo, por parte o sujeito da cláusula principal, em relação à possibilidade de o(a) evento/estado/ação codificado(a) na completiva ser ou tornar­se verdadeiro(a), verificamos que os verbos de enunciação/informação, em muitos contextos discursivos, apresentam­se como fronteiriços aos verbos de manipulação, 77 categoria essa que será analisada na seção seguinte. Em (39), por exemplo, é perceptível que o verbo dizer , embora esteja sendo utilizado num discurso reportado, ele carrega um certo grau de envolvimento emocional, já que, além de introduzir uma cena discursiva dentro de outra, ele também codifica, sobre a ação expressa pela cláusula de complementação verbal, o desejo do sujeito da cláusula principal de que a não realização de uma determinada ação torne­se uma verdade. Desse modo, o verbo dizer , dentro desse contexto discursivo, é deslocado para um ponto mais elevado da escala de envolvimento emocional, mostrando­se numa zona de interface entre os verbos de enunciação/informação e os de manipulação. No exemplo (40), (40) é ... eu gosto de várias coisas ... né ... que são muito interessantes ... mas ... uma coisa que eu ...aprendi a fazer desde pequeno e gosto muito é nadar ... eu comecei a nadar basicamente porque eu tinha um problema de saúde ... né ... alérgico e a médica recomendou que eu nadasse ... isso desde os seis anos de idade ... né ... até os doze eu nadava por nadar ... mais por causa do problema ... (fala: relato de procedimento, p. 112) o mesmo fenômeno pode ser observado com o verbo recomendar . No início do relato de procedimento, quando perguntado pelo entrevistador sobre algo que gostava de fazer, o entrevistado apresenta a prática da natação como resposta, relacionando o surgimento desse hábito a um problema de saúde por que passou. Notemos que, nesse relato de procedimento, as duas partes do enunciado a médica recomendou que eu nadasse ... estão semanticamente organizadas de modo que a forma verbal recomendou , além de participar de uma citação indireta, também codifique envolvimento emocional do sujeito da cláusula matriz sobre a ação expressa na cláusula­complemento. Sendo assim, o verbo recomendar , mesmo participando de uma citação indireta, não deve ser visto somente como um verbo de enunciação, mas, sim, também como um verbo de manipulação, pois, ao desejo do sujeito, a médica, de realização da ação expressa na completiva, subjaz uma noção de controle. O quadro (5) enunciação/informação­manipulação. abaixo corresponde a um continuum 78 Quadro (5): Continuum enunciação/informação­manipulação explicar dizer recomendar pedir descrever perguntar mandar permitir falar ordenar impedir contar inibir confessar 3.2.1.4 Verbos de manipulação Os verbos que compõem o grupo dos verbos ditos de manipulação também estão entre os que admitem cláusulas­complemento na função sintática de objeto. Eles codificam noções de controle que partem do sujeito da cláusula matriz em direção ao sujeito da cláusula completiva, respectivamente, separando tais sujeitos em manipulador e manipulado. A esse último são atribuídos dois papéis semânticos, pois, ao mesmo tempo, ele é objeto dativo da cláusula principal e sujeito agente da cláusula de complementação. Devido à agentividade existente, a valência sintática reservada ao sujeito da completiva, normalmente, é preenchida por um SN nomeador de ser humano/animal. No exemplo (41), (41) porque ela ... assim na avenida ... né? rodando bolsinha ... aí eu sei que ela ... ele parou ... né? aí ela disse ... “quer sair comigo?” num sei o quê ... essas coisas ... né? aí ele mandou ela entrar no carro ... aí na hora que ele entrou no ... que ela entrou no carro ... só falando sobre carro ... o carro era bonito num sei o quê ... e ele só rindo ... com o jeito dela que era bem extrovertida ... sabe? (fala: narrativa recontada, p. 122) as características descritas podem ser observadas. Ao recontar a narrativa do filme Uma linda mulher, o informante subordina a cláusula ela entrar no carro ... à cláusula ele mandou . Analisemos que, nessa construção complexa, há uma relação semântica de controle entre as cláusulas encaixadas. O verbo principal codifica uma noção de controle que tem como ponto de partida o sujeito da estrutura subordinante e como ponto de chegada o sujeito da subordinada. O pronome ela, ocupante da valência de sujeito da completiva, possui os papéis semânticos de agente e de 79 paciente, já que, além ser o alvo da noção de controle, ele também é executor da ação expressa na subordinada. Atentemos ainda para o fato de que o ele referencia um ser humano a quem pode ser associada a noção de agentividade. No que tange ao sujeito, verificamos também que enquanto nas completivas dos verbos modais o seu apagamento se deve à correferencialidade, nas completivas infinitas dos verbos de manipulação, dá­se por motivos de indeterminação. Em (42), (42) Os meninos pegam na hora da aula ficam bagunçando e fazem das carteiras verdadeiras cadeiras de balanço o chão como e de cimento já está ficando só os baracas. Como ano passado a diretora mandou fazer reforma e aproveitou mandou construir um comongois ao lado das salas de aula ficando estes para fora da sala (escrita: narrativa recontada, p. 177) ao redigir a descrição de sua sala de aula, o informante subordina duas completivas infinitas à forma verbal mandou . É interessante notarmos que, nas duas construções, o sujeito da cláusula matriz é o nominal a diretora, o qual não mantém nenhuma relação de correferencialidade com o sujeito da cláusula­complemento. Nessa segunda cláusula, o apagamento do sujeito se deu por uma necessidade do escrevente de o indeterminá­lo. Assim como os modais, os verbos de manipulação podem ser subcategorizados em implicativos e não­implicativos. Os do primeiro tipo nos permitem, através de um cálculo lógico­semântico, inferirmos se o evento/ação expresso(a) na completiva realizou­se ou não. Já os do segundo tipo não nos possibilitam nenhuma inferência acerca da realização ou não daquilo que está expresso na estrutura subordinada. Vale ressaltar que, devido à ocorrência, em nosso corpus, de apenas um único tipo de implicativo, para os verbos de manipulação, não nos foi possível investigar a existência de correlações sistemáticas entre sintaxe e semântica resultantes de propriedades implicativas. Apresentamos, com base nas ocorrências em nossos dados, os verbos das duas referidas subcategorias no quadro (6) abaixo: Quadro (6): Verbos de manipulação MANIPULAÇÃO IMPLICATIVO POSITIVO NÃO­IMPLICATIVO NEGATIVO pedir mandar ordenar impedir permitir 80 De modo semelhante aos verbos de enunciação/informação, os de manipulação permitem ao falante/escrevente subpor um discurso a outro. Durante o ato de comunicação em curso, o usuário da língua recorre aos verbos de manipulação para reportar discursos de participantes de uma cena comunicativa previamente ocorrida. No exemplo (43), (43) aí quando chegou lá ... na casa dela que era ... um apartamento bem ... michuruca mesmo sabe? bem ... ruim ... aí ela ... ele mandou o motorista buzinar pra ela ver ... pra ela escutar né? quando ela escutou ... acho que ela conheceu o ... a buzina ... aí saiu na janela ... (fala: narrativa recontada, p. 128) o mesmo informante que em (41), ao continuar sua narrativa recontada sobre o filme Uma linda mulher, por meio de uma citação, insere, em seu texto, a fala de um personagem do filme. Todos os casos de discurso reportado envolvendo verbos de manipulação apresentaram­se tal qual o mostrado em (41), pois, em nossos dados, para essa categoria de verbos, não foi registrada nenhuma ocorrência de discurso direto. Para os verbos de manipulação, na língua portuguesa, também não foi verificada nenhuma correlação sistemática entre sintaxe e semântica à qual estivesse subjacente uma escala de graus de autoridade/controle. Em nossos dados, tanto os verbos que codificam graus de autoridade mais elevados quanto os que codificam graus inferiores apresentam­se tomando cláusulas­complemento com a mesma arquitetura sintático­semântica. Observemos os exemplos (44) e (45) a seguir: (44) A sua mãe ao perceber ordenou que seu esposo tomasse a criança nos braços, já que agora estavam mais próximo de chegar, onde? ninguém sabia. (escrita: narrativa recontada, p. 44) (45) o amigo ... o motorista que vinha ... com ele ... não ... quando vinha os pratos não comia nada porque ele não conhecia nada e ... pediu ... acabou é:: se apoquentando lá ... e pediu um ... que lhe servissem é ... um feijão com arroz ... ((riso)) e no final um cafezinho né ... (fala: narrativa recontada, p. 57) (44) trata­se da escrita de uma narrativa recontada acerca de um romance lido, e, ao fazer alusão a uma cena em que a mãe, por perceber a fraqueza de seu filho, exige que o esposo tome a criança nos braços, o entrevistado reporta a fala da 81 personagem por meio de uma construção complexa com verbo ordenar na condição de principal. No que tange a uma possível perspectiva escalar dos graus de autoridade/controle envolvendo verbos de manipulação, esse verbo ocupa uma posição bem elevada na escala, estando situado num ponto antagônico ao verbo pedir no exemplo (45), fragmento de narrativa recontada, no qual o informante fala sobre a ida de um amigo bastante humilde a um requintadíssimo restaurante. Contudo, apesar dos diferentes graus de controle/autoridade por esses verbos codificados sobre os sujeitos de suas respectivas cláusulas de complementação, não há diferenças entre as arquiteturas sintático­semânticas de tais cláusulas. Notemos que ambas possuem sujeito­agente, verbo no subjuntivo e são introduzidas pelo mesmo complementizador, o que. 3.2.2 Sobreposição semântica Sendo a polissemia um fenômeno semântico intrínseco aos variados usos dos itens lexicais das línguas do mundo, as categorias pelas quais aqui são distribuídos os verbos que tomam cláusulas­complemento não devem ser concebidas como discretas. É comum que verbos pertencentes a uma categoria específica apareçam, em determinados contextos, codificando significados normalmente associados a verbos de outras categorias. Com base em ocorrências desse tipo, é verificado que as fronteiras semânticas delimitadoras de cada categoria são bastante tênues. Daí decorre que protótipos semânticos e sintáticos caracterizadores de uma categoria podem ser estendidos a verbos de uma outra. Analisemos o comportamento do verbo pensar nos exemplos (46) e (47): (46) Martin chegou e disse: “desça se não um raio vai pegar o senhor e tudo ... vai lhe derrubar” ... né ... aí ele chegou e disse: “espera aí que eu vou descer” ... quando ia descer ... a nave ia pousar ... aí um raio atingiu a nave ... aí desapareceu ... né ... aí nisso ... aí ele ficou desesperado ... chorando ... porque pensou que ele tinha morrido ... né ... que o doutor Brown tinha morrido ... (fala: narrativa recontada, p. 98) Em (46), ao recontar uma cena do filme De volta para o futuro , o entrevistado produz uma construção complexa, dentro da qual a forma verbal pensou , na condição de verbo da cláusula principal, serve à codificação da crença do sujeito (Martin) em relação ao evento gravado na cláusula­complemento. Nesse caso, 82 embora bastante evidente o baixo grau de epistemicidade do verbo pensar , é inegável que ele comporta­se como um verbo de cognição. Retomando aqui o Continuum modal­cognição, o verbo pensar , no eixo de prototipicidade modal, está localizado numa posição de menor gradiente, ou seja, em (46), estamos diante de uma forma verbal que está mais para a categoria dos verbos de cognição que para a categoria dos verbos modais. Por consequência, em situações como a apresentada em (46), a cláusula­objeto é modelada consoante protótipos sintático­semânticos previstos pelo sistema da língua para verbos de cognição. Dentre os referidos protótipos, destacam­se, como principais, a presença do complementizador que, a não obrigatoriedade de correferencialidade entre os sujeitos e a forma finita do verbo da completiva, protótipos esses que podem ser facilmente percebidos na construção complexa sob análise. Já no exemplo (47), (47) às vezes eu dizia pra minha mãe que tinha aula no sábado e num tinha ... ligava pra ele e a gente se encontrava ... mas era uma coisa tão infantil ... sabe? a gente nunca ... assim ... pensou assim ... em ir mais longe ... era uma coisa assim ... mais ... sabe? mais criança ... a gente era um amor assim ... infantil mesmo ... a gente ... eu tinha ele como um amigo ... um irmão ... (fala: narrativa de experiência pessoal, p. 120) que se trata de uma narrativa de experiência pessoal, para falar de seu comportamento durante um namoro vivenciado, o informante, bem como o do exemplo (46), também recorre a um encaixamento sintático do qual a forma verbal pensou participa como principal. Todavia, nesse caso, o verbo pensar não apresenta o mesmo comportamento semântico que no exemplo anterior. Enquanto, em (46), comporta­se como um prototípico verbo de cognição, em (47), ele aparece apresentando maior grau de prototipicidade modal. Nesse último uso do verbo pensar , ele codifica um significado bastante próximo ao codificado pelo verbo decidir , enquanto, no primeiro caso, podemos dizer que estabelece uma relação sinonímica com o verbo acreditar . À proporção que determinados usos de um verbo o fazem menos prototípico comparado aos da categoria para a qual foi catalogado, ele desloca­se para pontos marginais das escalas semânticas subjacentes à isomorfia entre semântica e sintaxe. Daí, na medida em que as margens de tais escalas sobrepõem­se semanticamente, é natural às gramáticas das línguas do mundo que um determinado verbo, uma vez estando situado num ponto de sobreposição semântica entre duas escalas, possa apresentar um comportamento 83 alicerçado em protótipos sintáticos e semânticos análogos aos caracterizadores de verbos de uma categoria distinta. É o que acontece, por exemplo, na língua portuguesa, com o verbo pensar em (47), pois, por manter, contextualmente, uma relação sinonímica com o verbo decidir , passa a um ponto da margem inferior da escala de graus de epistemicidade, ponto esse em que a referida escala sobrepõe­ se semanticamente à escala de graus de implicatividade. Desse modo, o pensar de (47), se comparado aos verbos de cognição, mostra­se menos prototípico que o pensar de (46). Observemos que, em (46), o pensar codifica certo grau de certeza em relação ao evento expresso pela completiva, e, que, em (47), o mesmo não acontece, pois o verbo, além de apresentar um acentuado esvaziamento de seu conteúdo epistêmico, participa de uma construção complexa cujas características sintático­semânticas do encaixamento das partes são comuns às de verbos modais. Lembramos que, no quadro (3), o verbo decidir é apresentado, dentro do continuum modal­cognição, como estando localizado numa zona de interface entre as duas categorias, sendo­lhe, por isso, possível um comportamento sintático­semântico camaleônico. Ora, se partirmos dos pressupostos de que toda língua possui uma sistematicidade que lhe é inerente e de que tal sistematicidade é reguladora da combinatória de seus itens lexicais, tornar­se­á bastante compreensível a naturalidade que envolve o processo de extensão de propriedades sintático­ semânticas típicas de uma categoria para verbos que passaram por transições semânticas, isto é, em síntese, o que é válido para um é válido para todos, desde que haja relação sinonímica. É, por isso, que, pelo sistema da língua portuguesa, é autorizado ao verbo pensar , como sinônimo de decidir em (47), o encaixamento sintático de uma completiva com verbo no infinitivo, com sujeito correferencial e não introduzida pelo complementizador que. Características sintático­semânticas essas, como dito antes, sistematicamente aplicadas aos verbos modais. Passemos, agora, aos exemplos (48) e (49) abaixo, por meio dos quais, uma análise comparativa nos permite observar que o verbo saber em (49), assim como o verbo pensar em (47), também sofre sobreposição semântica: (48) Batman se apaixona pela Mulher Gato ... e os dois assim ... vivem um romance ... ela sem saber ... ela pensando que era um rico milionário ... que era assim um sujeito normal ... e ele pensando que ela era uma simples secretária ... não sabia que ela era a Mulher Gato ... (fala: narrativa recontada, p. 162) 84 (49) mais tímido do que eu ... mulher ó eu ... porque eu sou tímida ... que eu num vou ... num sou de chegar assim pro rapaz e falar as coisa ... menina ... quando eu cheguei perto desse menino ... porque eu pensava que ele sabia dançar num sabe? aí ... eu num sabia de nada ... aí eu cheguei ... menina ... eu cheguei TRUUU ((imitação de tremedeira)) ... porque dá logo uma tremedeira sabe? (fala: narrativa de experiência pessoal, p. 180) No exemplo (48), o mesmo falante que o do exemplo (20), ao recontar a narrativa do filme Batman o retorno , subordina que ela era a Mulher Gato como cláusula de complementação à forma verbal sabia. Atentemos para o fato de que, dentro dessa construção complexa, o verbo saber , embora esteja tendo seu sentido negado pelo advérbio não , codifica um(a) conhecimento/certeza possível ao sujeito da cláusula principal sobre o evento gravado na cláusula de complementação. Nesse caso, o saber , pelo valor epistêmico que carrega em sua semântica, encontra­se, na escala de epistemicidade, posicionado num ponto mais distante da margem sobreposta à escala de deonticidade, atuando como um verbo prototípico de cognição. Decorrente a tal comportamento prototípico, enquanto, em (48), ao verbo ao saber é pelo sistema da língua autorizado o encaixamento sintático da completiva por meio de propriedades sintático­semânticas típicas dos verbos de cognição, é negado, pelo mesmo sistema, qualquer encaixamento sintático alicerçado em propriedades sintático­semânticas típicas de verbos modais. Se, por exemplo, eliminarmos o complementizador que, correferenciarmos os sujeitos e modificarmos para a forma infinita o verbo da completiva, incorreremos num processo de transição semântica do verbo, levando­o a codificar o sentido de possibilidade/capacidade, sentido esse um tanto incoerente ao contexto discursivo. Afinal de contas, em não sabia ser a mulher gato , o verbo saber apresenta uma acentuada regressão na escala de epistemicidade, passando a um ponto situado na zona de sobreposição semântica entre os planos deôntico e epistêmico. Conquanto esse último deslocamento apresentado na escala de epistemicidade tenha sido artificialmente condicionado pelas modificações realizadas sobre a arquitetura da construção complexa, podemos, assim como em (47), observá­lo naturalmente acontecendo no exemplo (49), trecho no qual, durante a narrativa de experiência pessoal, o entrevistado fala sobre o momento em que tentou se aproximar de uma determinada pessoa por quem havia se interessado durante uma viagem a Maceió. O verbo dançar , na condição de cláusula­complemento encaixada à cláusula matriz ele sabia, traz as configurações sintático­semânticas típicas dos verbos modais. Para tanto, o verbo 85 saber passa por uma polissemia, já que em vez de codificar epistemicidade prototípica, codifica possibilidade/capacidade, mantendo uma relação sinonímica com o verbo modal poder . Analogamente ao verbo pensar de (47), a polissemia sofrida pelo verbo saber de (49), transfere­o para um ponto de sobreposição entre as margens de duas escalas semânticas – a deôntica e a epistêmica –, conferindo­ lhe, de acordo com o contexto discursivo, um comportamento camaleônico, no qual se reveste das propriedades sintático­semânticas sistematicamente, pela língua, reservadas aos verbos modais. Ressaltamos que sobreposição semântica não se confunde com polissemia. Embora a segunda seja condição sine qua non à realização da primeira, por si só ela não assegura tal realização. As sobreposições semânticas devem ser vistas como um fenômeno linguístico cuja abstração só o permite dimensioná­lo num nível de profundidade para além dos laços sintático­semânticos perceptíveis em dimensões mais superficiais da codificação de um enunciado. Nossos dados revelam que nem toda transição semântica de um verbo, necessariamente, implica uma sobreposição semântica. Propomos que, no que tange à função de objeto, a sintaxe da complementação por meio de cláusulas verbais seja concebida como tridimensional, sendo composta pela dimensão sintática, pela dimensão semântica e pela dimensão inter­escalar. A primeira é a mais superficial das três, corresponde à arquitetura sintática do enunciado; a segunda é intermediária, relaciona­se às relações de significado entre os itens lexicais do enunciado, e a terceira é a de maior profundidade dentro do sistema linguístico, tem a ver com áreas de tangência entre escalas reguladoras do processo de subordinação sintática. A dimensão semântica não exerce controle total sobre a dimensão sintática, pois os protótipos sintáticos semânticos caracterizadores de uma categoria verbal somente podem ser transmitidos a verbos de outras categorias, se a polissemia for suficientemente forte a ponto de deslocar o verbo para dentro da dimensão inter­escalar. Caso esse deslocamento não ocorra, a alteração de sentido ficará restrita à dimensão semântica, não sendo o verbo capaz de tomar cláusulas­complemento com protótipos diferentes dos previstos pelo sistema linguístico para a sua categoria. Comparemos os verbos achar dos exemplos (50) e (51): (50) porque cada pessoa tem a sua forma de chegar a Deus ... eu não costumo ir à igreja porque eu acho que Deus não está em muita gente ali ... porque a igreja passa a ser um ritual ... você vai todo domingo ... muitas vezes você vai e não está ali ... enquanto que se 86 você estivesse em casa ... estivesse conversando com ele ali você estaria com ele ... então o importante é ter Deus dentro de si ... (escrita: relato de opinião, p. 31) (51) eu muito encabulado ... meu Deus ... o que que essa garota pode pensar ... se a minha mão deslizar ... e cair sobre sua perna ... ((riso)) o que que ela pode ... mas ... enquanto eu pensava isso a cabeça dela já derreava no meu ombro ... e ... o braço dela já passava no meu pescoço ... ((riso)) e ... alguns momentos ou alguns minutos ... mais tarde eu acho que nós estávamos nos braços um do outro ... namorando mesmo Marcos ... e aquecendo ... e aquecendo um do ... daquele frio ... ((riso)) (fala: narrativa de experiência pessoal, p. 54) em (50), para relatar sua opinião sobre religião, o falante cria a construção complexa eu acho que Deus não está em muita gente ali ..., na qual o verbo achar , na condição de principal, codifica sobre o conteúdo da completiva elevado grau de epistemicidade, mantendo uma relação sinonímica com o verbo acreditar , que, em nosso continuum modal­cognição, aparece como prototípico de cognição. Já em (51), o mesmo não acontece. Durante a narrativa de experiência pessoal, para falar dum curtíssimo romance vivenciado durante uma viagem de ônibus ao interior do Rio Grande do Sul, um outro entrevistado também usa o verbo achar . No entanto, nesse última situação, ele sofre polissemia, apresentando uma leve perda de conteúdo epistêmico. Diferentemente do acho de (50), o acho de (51) não possui o sentido de acreditar . Observemos que, enquanto, no primeiro caso, a troca dele pela forma verbal acredito pode ser realizada sem problema algum; no segundo caso, ela não é possível. A polissemia sofrida pelo verbo leva­o a uma relação sinonímica com o verbo lembrar , que, no nosso continuum modal­epistêmico, embora apareça situado num ponto de grau de epistemicidade inferior ao verbo acreditar , ainda assim é também considerado um prototípico de cognição. É importante atentarmos para o fato de que a sinonímia existente entre os verbos achar e lembrar , apesar de ser um caso de polissemia, não se constitui como sobreposição semântica. Nem ao achar não­polissêmico do exemplo (50), nem ao achar polissêmico do exemplo (51) podem ser encaixadas cláusulas com características das de complementação dos verbos modais. Algo como *eu acho estar nos braços um do outro..., sem dúvida, trata­se de uma construção agramatical para a língua portuguesa. O que acontece com o verbo achar do exemplo (51) é que a polissemia por ele sofrida não é forte o suficiente para deslocá­ 87 lo para uma região marginal da escala de epistemicidade, região essa em que tal escala tangencia outras. Sendo assim, a alteração de sentido fica restrita à dimensão semântica, não interferindo num nível mais profundo do sistema linguístico, ou seja, o verbo não é transferido para uma zona de interface dentro da dimensão inter­escalar, e, por isso, a polissemia ocorrida não possibilita, dentro da dimensão sintática, modificações na configuração arquitetônica do enunciado. A figura (2) abaixo é uma representação da dimensão inter­escalar e, nela, encontram­ se distribuídos os verbos polissêmicos dos exemplos (47), (49) e (51): Figura (2): Dimensão inter­escalar saber achar pensar Na figura apresentada, as linhas E, D e I representam, respectivamente, as escalas de epistemicidade, deonticidade e implicatividade, que são subjacentes à dimensão sintática do enunciado. Em decorrência das escalas por elas representadas não serem discretas, não há isolamento entre as linhas. O que há são pontos de cruzamento a partir dos quais são abertos espaços inter­escalares responsáveis pelo fenômeno da sobreposição semântica. Observemos que enquanto a polissemia sofrida pelos verbos saber e pensar arrastou­os para dentro de espaços inter­ escalares, o mesmo não fez a polissemia sofrida pelo achar , deslocando­o, minimamente, na escala de epistemicidade. 88 3.2.3 Gradiente de encaixamento Embora sejam estruturas hipertáticas, as cláusulas­complemento compõem um grupo heterogêneo no que diz respeito ao grau de encaixamento sintático­ semântico que mantêm com verbo da cláusula matriz. A hipertaxe não se constitui como um fenômeno uniforme. Ela abriga variadas estruturas linguísticas com variados comportamentos sintático­semânticos. O grau de dependência de uma cláusula­complemento em relação ao seu verbo regente não deve ser observado apenas com base na hierarquia configuracional dos constituintes sintáticos. A hipertaxe deve ser vista sob uma perspectiva escalar. Tanto para verbos de uma mesma categoria quanto para verbos de categorias distintas, a combinação de cláusulas por subordinação é uma questão de gradiente. Observemos os exemplos (52), (53) e (54), todos pertencentes à categoria dos verbos de manipulação: (52) E a reação da criança era gemer, enquanto o pai se movia para pegar a bainha e bater contra aquele ser indefeso que se via sem objetivos. Pobre menino! não abria sua boca nem se quer para dizer que seu corpo doia, apenas esperava as reações do pai. A sua mãe ao perceber ordenou que seu esposo tomasse a criança nos braços, já que agora estavam mais próximo de chegar, onde? ninguém sabia. (escrita: narrativa recontada, p. 43) (53) ele começou mesmo a se sentir envergonhado da condição dele de beber e tá trabalhando na família que respeitava tanto ele ... que ... que ... que tinha um é ... uma certa confiança nele ... e que ele num tava atendendo àquela expe/ àquela expectativa naquele momento difícil da vida dele num é? então ele ... antes de que acontecesse qualquer coisa mais grave assim ... um desentendimento ... maior ou um desagrado maior por causa da bebida dele ... ele pediu pra sair ... mas a amizade permaneceu ... (fala: narrativa recontada, p. 57) (54) aí foi quando ele soube que havia um antagonismo muito forte por parte da família em relação à pessoa que vendeu ... que trocou a vida lá ... com ele ... então ele se faz passar por outro ... ele se faz passar por apenas amigo do morto e que esse morto tinha pedido para que ele as procurasse quando ele conseguisse sair da prisão e realmente ele foi lá ... então pediu emprego e foi aceito como empregado da casa ... na sua própria casa ... exato ... e a partir do momento que ele foi vivendo com essa família ... (fala: narrativa recontada, p. 24) No exemplo (52), ao recontar uma narrativa que a ele tinha sido contada pelo professor de português, o informante recorre a uma construção subordinada a fim de, indiretamente, citar a fala de um dos personagens. A formatação de tal 89 construção acontece por meio da integração da completiva que seu esposo tomasse a criança nos braços à cláusula matriz A sua mãe ao perceber ordenou 9 . No entanto, apesar de as duas sentenças comporem uma construção complexa por subordinação, podemos verificar que a completiva goza de certo grau de independência em relação à sua subordinante. Um dos indícios dessa independência é a relação entre os sujeitos das duas partes. Enquanto o sujeito da sentença principal é o SN a sua mãe, o da subordinada é o SN seu esposo . A não­ correferencialidade de sujeito entre as estruturas é um dos traços de autonomia sintático­semântica. Sentenças mais dependentes são sentenças estruturalmente menos desenvolvidas, uma vez que são menos completas em si mesmas. Outro traço de autonomia é a presença do complementizador que introduzindo a cláusula­ complemento ao verbo da cláusula matriz. Nas construções complexas cujas sentenças são sintático e semanticamente mais integradas, a presença do complementizador não se faz necessária, pois o processo de dessentencialização sofrido por uma das sentenças, sob o ponto de vista cognitivo, leva o falante/escrevente à perda da noção de que a construção é composta por duas partes distintas. Diferentemente do que dizem os manuais de GT da língua portuguesa, o que não é uma mera conjunção integrante despida de qualquer tipo de função sintática. Embora, enquanto complementizador, não tenha o status de constituinte sintático, ele, no sistema da língua, corresponde ao que, aqui, chamamos de mecanismo subposição sintática. A presença do complementizador é a marca sistêmica de que uma estrutura sintática e sintaticamente autônoma se permitiu passar a uma condição hierarquicamente inferior, tornando­se um constituinte sintático de outra. Um terceiro traço de autonomia da completiva do exemplo (52) é a forma finita do verbo de seu verbo. A marcação das noções de tempo, modo e aspecto, para ambas as sentenças, se dá na morfologia de seus respectivos verbos. Enquanto, na cláusula matriz, a forma verbal ordenou encontra­ se no pretérito perfeito do indicativo, na cláusula­complemento, a forma verbal da cláusula tomasse apresenta­se no pretérito imperfeito do subjuntivo. No exemplo (53), durante a narrativa recontada, para falar de um indivíduo que devido ao excessivo consumo de bebida alcoólica precisou pedir demissão do trabalho, o entrevistado também codifica uma construção complexa por 9 Estamos desconsiderando o fato de a estrutura ao perceber corresponder a uma sentença temporal intercalada, pois se trata de algo irrelevante aos nossos propósitos analíticos. 90 subordinação. Contudo, nesse caso, a cláusula de complementação verbal não goza do mesmo grau de independência sintático­semântica apresentado pela completiva do exemplo (52). Atentemos para o fato de que os traços de autonomia sintático­ semântica não são identificáveis na completiva de (53). Em ele pediu pra sair , os sujeitos são correferenciais. Para o verbo da cláusula­complemento, o sujeito corresponde a uma anáfora zero, isto é, ele só pode ser percebido através do estabelecimento de uma relação de referência com sujeito da cláusula matriz. O complementizador que não se faz presente na integração entre as duas partes da construção complexa. A preposição pra é que possibilita a combinação das cláusulas. A ausência do complementizador é justificada pela dessentencialização sofrida pela cláusula­complemento, levando­a a despir­se de suas características de sentença. Conforme já dito, para ela, o constituinte sujeito se dá por meio de uma anáfora zero, não estando codificado na própria sentença. Ademais, seu verbo encontra­se em forma infinita. Nele, não estão morfologicamente marcadas as noções de tempo, modo e aspecto. Pelo processo de dessentencialização, a estrutura sentencial é reduzida a uma forma nominal. Consequentemente, a construção complexa passa por uma reorganização interna, retornando a um estágio mais primitivo: o de construção simples. Daí decorre que, cognitivamente, ao falante/escrevente não se faz necessário recorrer ao complementizador, pois as duas partes da construção complexa já não são mais percebidas como duas sentenças distintas. Sendo assim, podemos dizer que a ausência do que, na combinação de cláusulas com elevado grau de hipertaxe, corresponde a um reflexo do princípio da iconicidade na sintaxe da complementação verbal. Talvez a presença da preposição pra, uma vez que se trata de um elemento de conexão, possa ser pensada como o motivo pelo qual o falante/escrevente deixa de codificar o complementizador que. No entanto, não corroboramos com tal ideia. O que, de fato, subjaz ao referido fenômeno é uma correlação entre sintaxe e cognição. No exemplo (54), para recontar a narrativa de um filme assistido, o informante codifica a construção complexa esse morto tinha pedido para que ele as procurasse. Observemos que, nesse caso, entre a estrutura principal e sua cláusula completiva, além da preposição para, também é codificado o complementizador que. Na medida em que a complementação não se dá por meio de uma estrutura dessentencializada, o que torna­se indispensável à integração entre as partes da 91 construção complexa, evidenciando um grau mais baixo de dependência sintático­ semântica. Na completiva ele as procurasse, podem ser identificados traços de autonomia. Ela não somente possui sujeito próprio, como também apresenta seu verbo flexionado. Desse modo, mesmo a preposição estando presente, a codificação do complementizador se faz necessária pelo fato de a cláusula de complementação verbal corresponder a uma sentença prototípica. Notemos que enquanto a preposição é dispensável, a eliminação do complementizador é desautorizada pelo sistema da língua. Imaginemos as seguintes codificações para a construção complexa do exemplo (54): esse morto tinha pedido que ele as procurasse e esse morto tinha pedido para ele as procurasse*. A realização da primeira é completamente possível na língua portuguesa. Já a segunda é nitidamente agramatical. A agramaticalidade é uma evidência de que, conforme já dito, o complementizador não é esvaziado de função sintática. Ele opera como um elemento de subposição sintática. Somente por meio dele, é possível que a estrutura ele as procurasse, que é uma cláusula autônoma em si mesma, seja subposta à condição de completiva do verbo pedir da cláusula esse morto tinha pedido . Através dos exemplos (55) e (56), podemos verificar que a variação de graus de subordinação também ocorre com cláusulas­complemento de verbos de categorias distintas. (55) O rapaz tinha um amigo muito preconceituoso, mas ele tinha muita confiança, então ele contou que sua namorada era uma prostituta; então seu amigo começou a dá em cima dela, mais ela não aceitou, mas seu amigo contou­lhe uma estória mentirosa e assim ela voltou p/ sua casa, onde morava antes de conhecê­lo; (escrita: narrativa recontada, p. 135) Em (55), para reportar o discurso de um personagem do filme assistido, o entrevistado codifica a sentença sua namorada era uma prostituta como subordinada do verbo contar . Os verbos de enunciação/informação, categoria a que pertence o referido verbo, só admitem completivas com baixo grau de integração sintático­semântica. Podemos observar que a cláusula­complemento de (55) apresenta as características de uma sentença hipertática com baixo grau de dependência. Já no exemplo (56), (56) porque lá não é muito desenvolvido ... mas esse é o melhor colégio ... lá tem ... três colégios ... um na Rua da Matriz ... que é só primeiro grau ... tem um lá perto:: um colégio lá perto desse cruzeiro que eu fa/ que eu acabei de falar agora ... é mobral e esse colégio 92 Joaquim da Luz ... que é nessa rua ... que essa rua se chama São Jo/ São José ... esse colégio ele tem uma:: um descampado ... próximo a esse descampado:: (fala: descrição de local, p. 38) durante sua descrição de local, para ressaltar o fato de que está dizendo algo pela segunda vez, o informante codifica uma cláusula complexa composta pelas estruturas eu acabei e falar agora. O verbo da primeira, acabar , pertence à categoria dos modais. Os membros dessa categoria só tomam cláusulas de complementação verbal com elevado grau de subordinação. São identificados, na subordinada falar agora, os mesmos traços de dessentencialização caracterizadores da cláusula­complemento do exemplo (53). 3.3 As cláusulas­complemento entre o falado e o escrito O gráfico (2) mostra, em função da categoria verbal, o número de ocorrências de cláusulas­complemento por página nos textos produzidos pelos informantes de nível fundamental II. Gráfico (2): Ocorrências por página: Fundamental II Ocorrências por página: Fundamental II 40 35 30 25 20 15 10 5 0 Fala Escrita Modal Cognição Manipulação Enunciação / Informação 38,7071986 10,80283485 0,889074693 7,40563784 21,8 6,304761905 2,657142857 6,933333333 Categoria verbal 93 Como podemos perceber, apenas na categoria dos verbos de manipulação, a fala não superou a escrita em termos do número de ocorrências. Também pode ser verificado que, no tocante às categorias modal e cognição, há um considerável distanciamento entre os valores das ocorrências, o que sinaliza, para esse grupo de informantes, um predomínio da subordinação em textos falados. O gráfico (3) apresenta, em função da categoria verbal, a quantidade de ocorrências das completivas por página nos textos produzidos pelos informantes de nível médio. Gráfico (3): Ocorrências por página: Médio Ocorrências po r página: Médio 35 30 25 20 15 10 5 0 Fala Escrita Modal Cognição Manipulação Enunciação / Informação 31,87644901 12,96682839 0,580976499 5,102496864 25,4 4,266666667 1,6 2,4 Categoria verbal O gráfico (3) mostra, para o grupo de informantes do nível médio, um quadro bastante semelhante ao verificado para o grupo dos informantes de nível fundamental II. É perceptível uma superação da fala em relação à escrita quanto ao número de ocorrências do fenômeno da subordinação. Pode ser também observada uma considerável discrepância entre o número de ocorrências na fala e na escrita para as categorias modal e cognição. Tal como para o fundamental II, essa 94 discrepância evidencia, para os informantes de nível médio, um predomínio da subordinação em textos de fala. O gráfico (4) apresenta, em função da categoria verbal, o número de ocorrências das cláusulas­complemento por página nos textos produzidos pelos informantes de nível superior. Gráfico (4): Ocorrências por página: Superior Ocorrências por página: Su perior 35 30 25 20 15 10 5 0 Modal Cognição Manipulação Enunciação / Informação 25,96136752 12,81948718 0,774358974 6,162735043 Escrita 32,14358974 9,051282051 1,866666667 2,594871795 Fala Categoria verbal Conforme pode ser observado, para o grupo de informantes de nível superior, não houve, nas categorias modal e cognição, uma superação da fala em relação à escrita quanto ao número de ocorrências do fenômeno da subordinação. No caso dos verbos modais, a escrita supera a fala. É verificada também, para a categoria cognição, uma diminuição da discrepância entre os números de ocorrência da subordinação na fala e na escrita. Assim sendo, o gráfico (4) mostra que, com o aumento do nível de escolaridade, o fenômeno da subordinação torna­se mais recorrente na escrita, levando­a, em termos quantitativos, a uma aproximação ou até mesmo superação da fala. 95 O gráfico (5) corresponde, em função da categoria verbal, a uma apresentação do número total de ocorrências das completivas por página nos textos produzidos por todos os informantes. Para esse último cálculo, foram desconsiderados os diferentes níveis de escolaridade dos informantes. Gráfico (5): Total de ocorrências por página To tal d e oco rrências po r p ágin a 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0 Modal Cognição Manipulação Enunciação / Informação 96,54501513 36,58915042 2,244410166 18,67086975 Escrita 79,34358974 19,62271062 6,123809524 11,92820513 Fala Categoria verbal O gráfico (5) mostra que, independentemente do nível de escolaridade, a ocorrência das cláusulas­complemento é mais frequente em textos de fala do que de escrita. Apesar de, na categoria manipulação, o fenômeno da subordinação ter apresentado um comportamento diferente do ocorrido para as demais categorias, isso não compromete a afirmação de que, no que tange ao fenômeno da subordinação por cláusulas­complemento, há uma superação da fala em relação à escrita quanto ao número de ocorrências. O gráfico (6), em termos percentuais, apresenta as semelhanças de ocorrências das completivas por página de texto falado e escrito e vice­versa. As ocorrências foram quantificadas apenas em função do nível de escolaridade dos informantes; sendo, portanto, desconsiderada a categorização verbal. 96 Gráfico (6): Semelhança percentual entre número de ocorrências por página Semelhança entre número de ocorrências por página (% ) 80 70 60 50 40 30 20 10 0 Fundamental II Médio Superior Total Fala / Escrita 26,32822984 56,69215116 75,71993699 69,35484945 Escrita / Fala 56,96211893 67,74140868 72,49468283 75,81356989 Escolaridade É perceptível que, no que diz respeito à ocorrência das completivas, a fala tende a assemelhar­se à escrita com o aumento do nível de escolaridade dos informantes. Para a sintaxe da complementação sentencial, o gráfico (6) evidencia que, diferentemente do que se pensa, a escrita não é mais propícia à ocorrência do fenômeno da subordinação. No que diz respeito a esse fenômeno, o grau de semelhança entre fala e escrita não está relacionado ao sistema linguístico nem à modalidade de uso da língua em si, mas, sim, ao nível de escolaridade em decorrência de um maior domínio da escrita por parte dos informantes. Passemos, agora, à visualização da frequência das cláusulas­complemento por tipo textual. O gráfico (7) e o gráfico (8) representam, respectivamente, na fala e na escrita, a ocorrência do fenômeno da subordinação nos textos produzidos pelos informantes de nível fundamental II. 97 Gráfico (7): Ocorrências por tipo textual: Fundamental II – Fala Ocorrências por tipo textual: Fundamental II ­ Fala 18 16 14 12 Modais 10 Cognição Enunciação / Informação 8 Manipulação 6 4 2 0 Narrativa de experiência pessoal Narrativa recontada Descrição de local Relato de procedimento Relato de opinião Tipo textual Gráfico (8): Ocorrências por tipo textual: Fundamental II – Escrita Ocorrências por tipo textual: Fundamental II ­ Escrita 10 9 8 7 Modais 6 Cognição 5 Enunciação / Informação 4 Manipulação 3 2 1 0 Narrativa de experiência pessoal Narrativa recontada Descrição de local Relato de procedimento Relato de opinião Tipo textual Como pode ser observado, há uma primazia dos verbos modais em todos os tipos textuais. Nos duas formas de narrativa, tanto na fala quanto na escrita, a quantidade ocorrência dos verbos de enunciação/informação aproxima­se da quantidade de ocorrência dos verbos de cognição ou a supera. Nas duas formas de relato, a categoria enunciação/informação mostra­se inexpressiva. A categoria manipulação 98 apresenta­se mais recorrente na escrita do que na fala. Os gráficos (9) e (10) apresentam, respectivamente, na fala e na escrita, a ocorrência das completivas nos textos produzidos pelos informantes de nível médio. Gráfico (9): Ocorrências por tipo textual: Médio – Fala Ocorrências por tipo textual: Médio ­ Fala 12 10 8 Modais Cognição 6 Enunciação / Informação Manipulação 4 2 0 Narrativa de experiência pessoal Narrativa recontada Descrição de local Relato de procedimento Relato de opinião Tipo textual Gráfico (10): Ocorrências por tipo textual: Médio – Escrita Ocorrências por tipo textual: Médio ­ Escrita 10 9 8 7 Modais 6 Cognição 5 Enunciação / Informação 4 Manipulação 3 2 1 0 Narrativa de experiência pessoal Narrativa recontada Descrição de local Tipo textual Relato de procedimento Relato de opinião 99 Também pode ser observada a primazia da categoria modal em relação às demais. Somente no relato de opinião, a ocorrência dos verbos de cognição mostra­se equilibrada entre fala e escrita. De modo geral, a categoria enunciação/manipulação é mais expressiva na fala do que na escrita. Já a categoria manipulação, à exceção da narrativa recontada, apresenta­se inexpressiva tanto na fala quanto na escrita, nos diversos tipos textuais. O gráfico (11) e o gráfico (12) representam, respectivamente, na fala e na escrita, a ocorrência de cláusulas­complemento nos textos produzidos pelos informantes de nível superior. Gráfico (11): Ocorrências por tipo textual: Superior – Fala Ocorrências por tipo textual: Superior ­ Fala 9 8 7 6 Modais 5 Cognição 4 Enunciação / Informação Manipulação 3 2 1 0 Narrativa de experiência pessoal Narrativa recontada Descrição de local Tipo textual Relato de procedimento Relato de opinião 100 Gráfico (12): Ocorrências por tipo textual: Superior – Escrita Ocorrências por tipo textual: Superior ­ Escrita 14 12 10 Modais 8 Cognição Enunciação / Informação 6 Manipulação 4 2 0 Narrativa de experiência pessoal Narrativa recontada Descrição de local Relato de procedimento Relato de opinião Tipo textual Novamente, é perceptível a supremacia da ocorrência de verbos modais em relação à ocorrência de verbos de outras categorias. Tanto na fala quanto na escrita, a narrativa recontada apresenta uma significativa ocorrência de verbos de enunciação/informação. Apenas no referido tipo textual, a categoria manipulação mostra­se mais expressiva. À exceção da narrativa recontada da fala, a categoria modal apresenta­se bastante destacada. Os gráficos (13) e (14) correspondem, respectivamente, na fala e na escrita, ao total de ocorrências das cláusulas de complementação verbal por página dos textos produzidos por todos os informantes. Para tal cálculo, foram tomadas como variáveis apenas a tipologia textual e a categorização verbal; sendo, portanto, desconsiderados os diferentes níveis de escolaridade dos informantes. 101 Gráfico (13): Total de ocorrências por tipo textual – Fala Total de ocorrências por tipo textual: Fala 10 9 8 7 Modais 6 Cognição 5 Enunciação / Informação 4 Manipulação 3 2 1 0 Narrativa de experiência pessoal Narrativa recontada Descrição de local Relato de procedimento Relato de opinião Tipo textual Gráfico (14): Total de ocorrências por tipo textual – Escrita Total de ocorrências por tipo textual: Escrita 12 10 8 Modais Cognição 6 Enunciação / Informação Manipulação 4 2 0 Narrativa de experiência pessoal Narrativa recontada Descrição de local Relato de procedimento Relato de opinião Tipo textual É notório que, independentemente do tipo textual, tanto na fala quanto na escrita, há um predomínio de completivas encaixadas a verbos modais. Em segundo lugar, predominam os verbos de cognição. Contudo, podemos observar que, nas duas formas de narrativa, essa última categoria verbal mostra­se bastante equiparada à 102 categoria dos verbos de enunciação/informação. Também pode ser verificado que, de modo geral, apesar de uma relativa expressividade dos verbos de manipulação nas narrativas recontadas, nos outros tipos textuais, eles são pouco recorrentes. 103 CAPÍTULO 4 – CONCLUSÃO Na língua portuguesa, a ocupação da valência sintática reservada à posição de objeto por complemento sentencial não é possível a todos os verbos. Aqueles que admitem tal tipo de encaixamento sintático­semântico enquadram­se dentro da categorização tipologicamente proposta por Givón (1984) para as línguas do mundo. Por meio da investigação do funcionamento discursivo dos verbos, foi comprovado o caráter não­discreto das categorias adotadas. Na codificação de cláusulas complexas, as mesmas propriedades sintático­semânticas podem ser compartilhadas por membros de diferentes sub­grupos verbais. Para tanto, é necessário que o verbo núcleo da cláusula matriz não seja prototípico, situando­se numa zona de interface entre categorias distintas. Foi verificado também que, de modo simplificado, subjazem à categorização dos verbos três escalas semânticas: a de deonticidade, a de epistemicidade e a de implicatividade, sendo elas responsáveis pelo fenômeno da sobreposição semântica. Há coincidência entres áreas de sobreposição das referidas escalas e as zonas de intersecção das categorias verbais. Não somente em relação ao grupo no qual se inserem, como também no que diz respeito à escala semântica subjacente, os verbos não possuem pontos fixos de localização. De acordo com o contexto discursivo, o fenômeno da polissemia pode levá­los a um deslocamento em direção a pontos mais periféricos, permitindo­lhes um comportamento camaleônico quanto às propriedades sintático­ semânticas reguladoras da sintaxe da complementação verbal. Através de tal fato, foi confirmada a existência de correlações entre os domínios pragmático, semântico, cognitivo e sintático, o que atesta a aplicabilidade do princípio da iconicidade para o estudo da combinação de cláusulas por subordinação. A investigação dos dados confirmou também que as cláusulas de complementação verbal, embora ocupem a posição sintática de objeto, não podem ser consideradas objetos prototípicos. A elas, de fato, não são atribuídos papéis semânticos tal como ocorre com SNs regidos por verbos. A integração de uma cláusula­complemento ao verbo de uma estrutura subordinante corresponde a um mecanismo de produção de sentido tanto no âmbito discursivo quanto da gramática da língua. No primeiro caso, por meio da subordinação, além de modalizações epistêmicas e deônticas, são codificadas estratégias de citações discursivas, o chamado discurso reportado. No segundo caso, a subordinação funciona como um 104 recurso de marcação das noções gramaticais de tempo, modo e aspecto. A subordinação de completivas a verbos modais é responsável pelas modalizações e pela marcação das noções gramaticais. Já subordinação associada a verbos de cognição codifica apenas modalizações. No tocante ao discurso reportado, ele é construído com cláusulas­complemento encaixadas a verbos de enunciação/informação ou de manipulação. Outro aspecto, com base no qual a distinção entre completivas e objetos prototípicos foi atestada, tem a ver com o sistema de transitividade da língua. Foi confirmado que os verbos que tomam complementos sentenciais apresentam baixo grau de transitividade. No que concerne ao processo de combinação de cláusulas, apesar de, se comparadas às adjetivas ou às adverbiais, as cláusulas completivas serem consideradas estruturas integradas com elevado nível de subordinação, elas diferem entre si quanto ao grau de dependência sintático­semântica em relação à cláusula matriz. Foi observado que, não somente entre verbos de uma mesma categoria, como também entre verbos de categorias distintas, a combinação de cláusulas se dá de forma escalar. As completivas mais desenvolvidas são menos dependentes da estrutura subordinante do que as cláusulas dessentencializadas. As desse segundo tipo apresentam a correferencialidade de sujeito, a marcação das noções de tempo, modo e aspecto e a presença do complementizador como traços de falta de autonomia sintático­semântica. Foi verificado que a aplicação do rótulo subordinada às cláusulas de complementação verbal não­dessentencializadas só se justifica sob uma perspectiva configuracional hierarquizada da sintaxe da construção complexa, pois tais estruturas apresentam­se completas em si mesmas, não havendo da parte delas nenhum traço de dependência sintática ou semântica em relação à sentença dita principal. Por fim, estatisticamente, não foi confirmada a bastante difundida visão de que a escrita é uma modalidade mais propícia à ocorrência do fenômeno da subordinação do que a fala. O confronto do número de ocorrências em textos de fala e de escrita revelou que, com o aumento do nível de escolaridade, a fala tende a assemelhar­se à escrita. Do ponto de vista da tipologia textual investigada, a relação entre fala e escrita apresentou­se mais regular para as duas formas de narrativa. Nos outros tipos textuais, o número de ocorrências por categoria mostrou­se bastante desigual. 105 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDREWS, Avery. The major functions of the noun phrases. In: SHOPEN, Timothy. Language typology and syntactic description. Great Britain: Cambrige press, 1992. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática do português. Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2001. BORBA, Francisco S. Uma gramática de valências para o português. São Paulo: Ática, 1996. BRAGA, Maria Luiza; NARO, Anthony Julius. A questão do tamanho da amostra. In: Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, RJ, n. 117, p. 61­66, abr.­jun. 1994. CARVALHO, Nelly. A palavra é. Recife: Liber, 1999. CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. CUNHA, Maria Angélica Furtado da. Corpus Discurso & Gramática: a língua falada e escrita na cidade do Natal. Natal: EDUFRN, 1998. CUNHA, Maria Angélica Furtado da. O complemento dos verbos de enunciação. s.d. (mimeo.) 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