Mariana Benatto Pereira da Silva 1 A posição do analista na clínica da anorexia1 Mariana Benatto Pereira da Silva Resumo O presente trabalho pretende abordar a problemática da posição do psicanalista na clínica da anorexia, analisando o discurso de pacientes entrevistadas e casos da literatura que mostram a complexidade envolvida ao se pensar as possibilidades analíticas dessa clínica. Analisamos elementos evidenciados na fala das pacientes, como a postura desafiadora do poder, e a presença marcante de uma busca pela morte, para então pensar qual seria a necessidade e a justificativa de uma discussão em relação a uma clínica específica da anorexia. Sem categorizar estruturalmente a anorexia, tentaremos demonstrar que existem elementos comuns e importantes nessa clínica, que implicam em especificidades no estabelecimento da transferência e que justificam a necessidade dessa discussão. Desenhando, portanto, uma análise entre a demanda aparente desses pacientes e as necessidades para a instauração de uma cura psicanalítica, nos questionamos a respeito da posição do analista e da direção da cura, passando, para tanto pela temática do desejo do analista. 1 Artigo extraído da dissertação de mestrado realizada em 2007, na Universidade de Paris 7, intitulada “La clinique de l’anorexie et la position de l’analyste : une clinique du désir ?”. Todas as traduções aqui presentes foram realizadas pela autora, e contam com o texto original, em francês, na nota de rodapé. Mariana Benatto Pereira da Silva 2 A posição do analista na clínica da anorexia Se nossa existência é tão fútil, tão insignificante... deixem-nos morrer! Eu só sinto a vida em essência quando me sinto morrendo, não com essa felicidade utópica que desce pela garganta em forma de comida! […]se um dia eu jazer com 40 quilos…30 quilos, morrer-meei feliz, porque realmente consegui o que queria2. Eu quero morrer para saber quem eu sou.3 Essas palavras, proferidas por duas adolescentes anoréxicas, a primeira encontrada num blog pró-anorexia e a segunda, uma paciente atendida por Maud Mannoni, nos escancaram a profunda e chocante dimensão da demanda de morte presente no discurso desses pacientes. No entanto, ao analisar casos como esses, percebe-se que essa demanda significativa pela morte aparece sempre revestida pela indiferença em relação ao que é sentido e vivido. Isso pode ser notado, por exemplo, nas palavras de Justine, uma adolescente francesa que após passar pela anorexia, escreveu um livro contando sua história4: “Eu quero sarar sozinha, se eu estou doente. E além do mais não estou doente, eu estou fazendo um regime, só isso. Eu me controlo muito bem, não preciso ir ao médico, ele não vai me dizer nada de mais!” Lasègue, um dos primeiros médicos a descrever a anorexia, há 130 anos, já nos alertava para esse aspecto particular presente no discurso dessas pacientes. Ele fez considerações sobre a relação médico-paciente, descrevendo comparações entre os pacientes em estado de sofrimento, que geralmente procuram ajuda, e o tratamento clínico dessas pacientes5: “Aqui nada de parecido, ao contrário, um otimismo inexpugnável contra o qual vem a fracassar as súplicas e as ameaças. ‘Eu não sofro, portanto estou bem em forma’, é essa a fórmula monótona que substituiu a 2 ERBERT, T. C, Anorexia e Bulimia Nervosa: Blogs e casos reais , Ed. Marco Zero : São Paulo, 2005, p.58. M. Mannoni , Le psychiatre, son « fou » et la psychanalyse. Editions du seuil : Paris, 197, p. 152. Original : « je veux mourir pour savoir qui je suis »3. 4 JUSTINE, Ce matin j’ai décidé d’arrêter de manger, Mesnil-sur-l'Estrée.: Oh ! Editions, 2007. p. 23. Original : « Je veux guérir toute seule, si je suis malade. Et puis je ne suis PAS malade, je fais un régime, c’est tout. Je me contrôle très bien, je n’ai pas besoin de voir un docteur, il ne va rien dire de plus !». 5 LASEGUE, C., « De l’anorexie hystérique » in Ecrits psychiatriques, Toulouse : Privat, 1971, p. 142 e 144. Original : « Ici rien de pareil, au contraire, un optimisme inexpugnable contre lequel viennent se briser les supplications et les menaces. Je ne souffre pas, donc je suis bien portante, telle est la formule monotone qui a remplacé la précédente, je ne peux pas manger parce que je souffre […]« L’excès d’insistance appelle un excès de résistance ». 3 Mariana Benatto Pereira da Silva 3 anterior, eu não posso comer porque eu sofro”. Essa dificuldade, encontrada por Lasègue, pode ser descrita ainda hoje exatamente da mesma maneira, como vimos nas falas anteriores. Ainda em outro trecho, o autor ressalta também que “o excesso de insistência” por parte do médico, “leva a um excesso de resistência” por parte do paciente. Essas citações mostram de forma precisa o que é encontrado na clínica ao nos depararmos com esses pacientes, ou seja, uma indiferença ao seu estado mórbido, muitas vezes grave, que resiste ou ainda aumenta conforme a insistência na necessidade de fazê-los se alimentarem. Essa busca pela morte, combinada com essa postura não demandante de tratamento presente nessas pacientes6 nos leva a questionar: o que se pode dizer do manejo em uma cura analítica com pacientes anoréxicos? O que se poderia pensar da posição do analista frente a esses pacientes que parecem nada demandar enquanto traçam sua trajetória em direção a morte? Esse trabalho busca, portanto, analisar e discutir quais seriam as dificuldades e as necessidades de uma cura analítica com pacientes anoréxicos, e principalmente, qual seria a posição demandada do analista nesses casos, tendo por base a complexidade neles presente, como se pôde constatar brevemente na transcrição das falas à cima. Clínica da Anorexia? Frente a esses questionamentos, propõe-se, por conseguinte, se discutir a clínica da anorexia. Mas porque falar em clínica da anorexia, uma vez que essa é apenas uma patologia, como tantas outras? Como se deve compreender, então, a anorexia? Sobre esse ponto, inúmeras opiniões já foram emitidas. A anorexia já foi considerada, por exemplo, uma histeria, por Lasègue (1873) e também Charcot (1890); comparada à melancolia por Freud em 1892; descrita como uma forma de esquizofrenia, por H. Bruch em 1977 e ainda como “o processo anoréxico”, por Brusset, também em 1977. 6 Em alguns momentos, nos referiremos aos pacientes no feminino devido à grande maioria de mulheres afetadas pela patologia, mas sem esquecer que esse comportamento aparece também em homens, sendo que a proporção é de 1 homem para cada 10 mulheres. BIROT, E. CHABERT, C. et JEAMMET, P.,Soigner l’anorexie et la boulimie, Paris : PUF, 2007. Mariana Benatto Pereira da Silva 4 Todas essas divergências servem para nos mostrar a dimensão complexa que existe nessa patologia. Mas a questão que se impõe é: seria apropriado fazer da anorexia uma categoria clínica específica? Nossa resposta a esse questionamento é simples: não seria interessante fazer da anorexia uma categoria, nem descrever um padrão de tratamento para todos esses casos. Acredita-se que o sintoma da anorexia, ou mesmo a síndrome, descrita por alguns autores, pode existir dentro de contextos diferentes, tanto na psicose quanto na neurose ou na perversão, dependendo da singularidade de cada caso. Como o diz Waller desde 1940, ao analisar a anorexia: “A predominância de uma fantasia específica não exclui outros conflitos e defesas correspondentes. Ela faz o papel de um dos mecanismos que pode atuar dentro das múltiplas síndromes psiquiátricas, indo da neurose à psicose” 7. É certo e claro que essas diversidades implicam em manejos diferentes com cada paciente, de maneira que não se pretende falar de um único modelo de tratamento. Sabemos ainda que a análise é sempre construída na unicidade da relação entre analista e analisando, independente da patologia apresentada pelo sujeito. Porque então a escolha de discutir a posição do analista na clínica da anorexia? Apesar das considerações sobre a singularidade de cada análise, não se pode negar que existe um conjunto de características próprias a esses pacientes. Algo que se refere a um conflito psíquico inconsciente depositado no corpo, que se torna, assim, o centro das atenções dos próprios pacientes e dos que o cercam. Mas como podemos entender de forma mais clara esse conflito psíquico? A serviço de qual lógica inconsciente estaria atuando essa impossibilidade de comer? Lacan nos diz que “a anorexia mental não é um não comer, mas um comer nada. Insisto: isso quer dizer comer nada. Nada, é justamente algo que existe no plano simbólico” 8. O nada é, portanto, elevado, na análise de Lacan, ao estatuto de objeto. 7 WALLER, J.M. et coll., Anorexia nervosa : a psychosomatic entity Psychosom. Med., 1940, p.16. « La prédominance d’un fantasme spécifique n’exclut pas d’autres conflits et des défenses correspondantes. Il joue le rôle d’un des mécanismes qui peuvent jouer dans de multiples syndromes psychiatriques, allant de la névrose à la psychose ». 8 LACAN, J. O seminário, livro IV, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p.190. Na edição original : « l’anorexie mentale n’est pas un ne pas manger, mais un rien manger, j’insiste – cela veut dire manger rien. Rien c’est justement quelque chose qui existe sur le plan symbolique». Mariana Benatto Pereira da Silva 5 Ainda no mesmo texto, Lacan nos descreve como, através dessa eleição do objeto nada, a criança inverte a situação de dependência em relação à sua mãe. É pelo poder da recusa à comida, que a criança transforma sua mãe em dependente dela, e não mais o contrário: É aí que ela inverte a sua relação de dependência, fazendo-se, por esse meio, o mestre da onipotência ávida de fazê-la viver, ela que depende da onipotência. A partir daí, é ela quem depende por seu desejo, é ela quem está à sua mercê, à mercê das manifestações de seus caprichos, a mercê da onipotência de si mesma.9 Esse controle, esse poder que os pacientes anoréxicos atingem nessa relação, é também o que condiciona a relação da anoréxica com seu corpo. A dominação de seu instinto mais básico, a fome, parece assegurar uma forma de se relacionar ao Outro. Essa recusa em comer, portanto, pode ser compreendida como uma maneira de se dirigir ao desejo do Outro, que ela se sente forçada a dominar. Assim sendo, essa recusa se torna na realidade a única maneira para esses pacientes de se afirmarem com sujeitos desejantes, como nos mostra Mannoni ao descrever um caso de anorexia: “É pela via do luto (de uma relação narcísica com o corpo que ela abandona) que procura se restabelecer, o que dela, perdido lá, vai poder nascer com o estatuto de desejante, o que quer dizer estatuto de sujeito capaz de lutar para viver” 10. É esse funcionamento pela recusa, essa dinâmica na relação ao Outro, comum a esses pacientes, que tem, certamente, conseqüências para o tratamento analítico. Especialmente no estabelecimento da transferência, de onde, mais tarde, poderá surgir o diagnóstico estrutural. É, portanto, esse traço comum que nos motiva a pensar na clínica da anorexia, embora considerando, sempre com atenção, as objeções realizadas acima. 9 Ibid., p. 187. Na edição original : « C’est là qu’il renverse sa relation de dépendance, se faisant, par ce moyen, maître de la toute-puissance avide de le faire vivre, lui qui dépend d’elle. Dés lors, c’est elle qui dépend de son désir, c’est elle qui est à sa merci, à la merci des manifestations de son caprice, à merci de sa toute-puissance à lui ». 10 MANNONI, M., Le psychiatre, son « fou » et la psychanalyse. Editions du seuil : Paris, 1970, p. 158. Orignal : «C’est par la voie du deuil (d’un rapport narcissique à un corps qu’elle abandonne) que cherche à se rétablir, ce qui d’elle, perdu là, va pouvoir naître à l’état de désirant, c'est-à-dire à l’état de sujet capable de lutter pour vivre ». Mariana Benatto Pereira da Silva 6 A Posição do Analista e a Direção da Cura a) A jovem de Angoulême – Charcot Para iniciar nossa reflexão sobre a posição do analista e a direção da cura na clínica com esses pacientes, recorreremos a um caso de anorexia, analisado por Charcot, em 1890, quando ele discorre sobre a importância do isolamento nos casos de histeria. Nesse caso, de uma menina de 14 anos, proveniente da cidade de Angoulême, França, Charcot insistiu no isolamento, dizendo aos pais da menina que a única chance que ela tinha de sobreviver, uma vez que seu estado era bastante precário, era se eles fossem embora, ou ao menos fingissem um afastamento. Com muita resistência, e após todas as tentativas, os pais aceitam. Assim sendo, surpreendentemente a menina volta gradativamente a se alimentar. Ao final de dois meses de tratamento, quando a paciente já estava praticamente restabelecida, ela confessa ao seu médico: […]Enquanto papai e mamãe não me deixaram, em outros termos, enquanto você não triunfou – porque eu sabia que você queria fazer me trancarem – eu acreditei que minha doença não era séria, e como eu tinha horror de comer, eu não comia. Quando eu vi que você era o mestre, eu tive medo, e apesar da minha repugnância, eu tentei comer e isso foi vindo pouco a pouco. 11 Ao trazer esse fragmento, nossa intenção não é discutir a necessidade ou não de isolamento nesses tratamentos, mas sim, analisar porque a posição tomada por Charcot fez com que houvesse uma mudança na posição da paciente? O que aconteceu nesse caso, para que o que era “belle indifférence12”, passasse a uma tomada de responsabilidade por seu próprio corpo e por seu próprio estado? Analisando a atitude de recomendar o isolamento, tomada por Charcot, percebemos que o que ele fez nesse caso foi dar uma resposta diferente à manipulação que a paciente exercia sobre seus pais. Isolando-a, ele passa a intervir no poder que a recusa a se alimentar tinha, fazendo, assim, com que essa relação de dependência fosse, se não revertida, ao menos, suspensa. 11 CHARCOT, J.M., « De l’isolement dans le traitement de l’hystérie », dix-septième leçon sur les maladies du système nerveux in Œuvres complètes, tome III, Paris : Le progrès médical / Lecrosnier et Babé, 1890, 246. Original : « Tant que papa et maman ne m’ont pas quittée, en d’autres termes, tant que vous n’avez pas triomphé – car je savais que vous vouliez me faire enfermer, – j’ai cru que ma maladie n’était pas sérieuse, et, comme j’avais horreur de manger, je ne mangeais pas. Quand j’ai vu que vous étiez le maître, j’ai eu peur, et, malgré ma répugnance, j’ai essayé de manger et cela est venu peu à peu. ». 12 Bela indiferença – expressão utilizada para designar a falta de preocupação de certos pacientes. Mariana Benatto Pereira da Silva 7 O que podemos aprender com essa situação para pensar a clínica psicanalítica atual da anorexia? Em que essa posição tomada por Charcot há mais de 100 anos pode nos ajudar a entender a transformação de uma recusa ao tratamento em uma demanda de análise? b) Demanda de análise e desejo do analista « Le premier but de l’analyse est d’attacher l’analysé à son traitement et à la personne du praticien. Pour ce faire, laissons agir le temps. »13. Para avançar em nossa pesquisa, propõe-se o seguinte questionamento: Qual a real demanda da anoréxica com essa “não-demanda”, expressa a partir de uma recusa? Como já vimos, na relação com a mãe, a anoréxica se mostra demandante, justamente através de sua recusa. Ou seja, sua recusa é uma maneira de se dirigir e de se posicionar em relação ao desejo do Outro. Será assim também na relação com o analista? Pode se pensar nessa aparente “ausência” de demanda, como sendo na realidade uma maneira de demandar através da recusa? Acreditamos que essa ausência pode sim ser entendida como uma forma de demanda. Encontra-se, também, essa idéia em Jeammet, quando o autor descreve que o que a “[...] anoréxica quer mais que tudo, mas não pode formular, é que nos ocupemos dela”14. Ou ainda em outro trecho: Portanto, percebemos facilmente, sob a vivacidade, ou ainda a ferocidade da recusa, a concretude da espera, a qual é tão mais difícil de abandonar, quanto maior é a expectativa. Essa situação paradoxal, que nos parece central na problemática desses sujeitos, exige frequentemente uma resposta igualmente paradoxal, a saber, prescrever o que na verdade as pacientes desejam, mas não podem confessar, nem mesmo confessar a si mesmas, a saber, os cuidados e que nos ocupemos delas. 15 13 FREUD, S., “Le début du traitement », in La technique psychanalytique, Paris : PUF, 1970, p. 99. Tradução: “Permanece sendo o primeiro objetivo do tratamento ligar o paciente a ele e à pessoa do médico. Para assegurar isto, nada precisa ser feito, exceto conceder-lhe tempo”. (versão Edição Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Editora Imago). 14 P. JEAMMET, Anorexie et Boulimie, les paradoxes de l’adolescence op.cit., p. 190. Original: « Or ce que l’anorexique veut plus que tout mais ne peut formuler, c’est qu’on s’occupe d’elle ». 15 Ibid., p. 190. Original: « Néanmoins, on perçoit aisément sous la vivacité, voire la violence du refus, la massivité de l’attente à laquelle il est d’autant plus difficile de s’abandonner que l’attente est plus grande. Cette situation paradoxale, qui nous paraît centrale dans la problématique de ces sujets, appelle fréquemment une réponse également Mariana Benatto Pereira da Silva 8 Com a ajuda das citações, pode se perceber claramente essa idéia de uma recusa que refletiria na verdade um desejo que não pode ser reconhecido. Essa atenção, esse cuidado que as pacientes desejam, são sentidos também como uma ameaça, ameaça pela possibilidade de dependência que neles existe. Como descreve Corcos: “Uma demanda verbal, mesmo sendo possível nos momentos mais graves, será sempre humilhante, pois ela estigmatizará a dependência do paciente e sua avidez de passividade”16. É, portanto, através dessa lógica que o analista estabelecerá uma primeira ligação com seu paciente. Fazendo esse primeiro contato sem tentar, ao menos nesse primeiro momento, interpretar conteúdos inconscientes, que podem como nos diz Bruch17, fazer surgirem defesas que colocariam fim ao tratamento. Na realidade, ao ouvir as histórias relatadas pelas anoréxicas durante essa pesquisa, assim como nos casos relatados na literatura, percebemos que essa “baixa de guarda” que permite que uma ligação analítica seja estabelecida, não acontece antes de várias tentativas de tratamento. Isso acontece justamente devido ao fato dessa relação terapêutica ser percebida pelo paciente como muito perigosa, pois como já sublinhamos, o que essas pacientes mais precisam é também o que mais as ameaça. Em suma, podemos dizer que essa abertura a uma relação analítica não depende apenas da posição do analista, mas na realidade, tanto do analista quanto do paciente, uma vez que “a psicanálise é uma experiência dialética”, como nos diz Lacan18. Logo, como nos diz Freud na citação que inicia esse item, a ação do o tempo é um fator importante para ligar o paciente ao seu terapeuta, inclusive nos casos aqui tratados, mas, ainda assim, poder-se-ia colocar em questão: como interviria o analista nessa dialética? O que pode o analista oferecer nesse trabalho clínico, além da espera pela atuação do tempo? paradoxale, à savoir prescrire ce qu’en fait les patientes désirent mais ne peuvent nous avouer, ni même s’avouer, à savoir des soins et qu’on s’occupe d’elles ». 16 CORCOS, M. Le corps insoumis : psychopathologie des troubles de conduites alimentaire Paris : Dunod, 2005, p.177. Original : « Une demande verbale, si tant qu’elle soit possible dans les moments plus aigus, sera toujours humiliante car elle stigmatisera la dépendance du patiente et son avidité de passivité ». 17 BRUCH, Les yeux et le ventre : l’obèse, l’anorexique, Paris : Payot, 1984, p. 387. 18 LACAN. J., « Interversion sur le transfert », in Écrits I, Pari s : Seuil, 1999, p. 213. Original : « la psychanalyse est une expérience dialectique». Mariana Benatto Pereira da Silva 9 Segundo Lacan, “o que o analista tem a dar, contrariamente ao parceiro do amor, é o que a mais linda noiva do mundo não pode ultrapassar, ou seja, o que ele tem. E o que ele tem nada mais é do que o seu desejo, como o analisando, com a diferença de que é um desejo prevenido19”. Mas o que seria esse desejo prevenido do analista? Lacan, continuando, ao discutir a questão de uma resposta à demanda de felicidade, responde afirmando o que ele não pode ser: “Ele não pode desejar o impossível20”. Lacan, portanto nos mostra que o que o analista tem a oferecer nessa relação é o seu desejo, que é um desejo prevenido e que, assim sendo, o analista não pode desejar o inalcançável. Para complementar a questão do desejo do analista, recorremos à Guyomard: Esta expressão desejo-do-psicanalista (“désir-du-psychanalyste”) não é descritiva. Não qualifica, com outros atributos, um dos traços do psicanalista. Não é o desejo de tal ou tal psicanalista, não é também o desejo ser psicanalista. É um conceito - um significante – no qual se pensa uma função - o desejo como função. Freud escrevia que o psicanalista opera com o seu inconsciente. Lacan defende que ele analisa com o seu desejo. […] Ele (O inconsciente do analista) intervêm na cura apenas a título das possibilidades e impossibilidades que tem o analista de escutar, de ser suscitado e às vezes transformado pelos ditos do analisando, e de falar. É lá a manifestação real e concreta do inconsciente. O seu silêncio vale apenas como palavras possíveis, como desejo deste silêncio: a regra, o ajustamento do silêncio e da palavra, coloca em jogo o inconsciente. 21 Essa citação nos mostra o que é esse significante “desejo-do-analista”, que permeia toda e qualquer cura analítica, desvendando as possibilidades e impossibilidades da relação entre analista e analisando. Essa possibilidade de escuta, de interpelação e transformação, existente nessa relação é que será o instrumento pelo qual o analista poderá intervir num processo de cura analítico. Ou seja, é essa função que orientará todo o trabalho do inconsciente do analista, com suas possibilidades e também limitações. 19 LACAN. J., “ O Seminário livro 7, A ética da psicanálise”, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1997, p. 360. Ibid p. 360. 21 GUYOMARD, P. « La jouissance du tragique : Antigone, Lacan et le désir de l’analyste », Paris : Aubier, 1992, p. 19. Original : « Cette expression « désir-du-psychanalyste » n’est pas descriptive. Elle ne qualifie pas, avec d’autres attributs, un des traits du psychanalyste. Ce n’est pas le désir de tel ou tel psychanalyste, ce n’est pas davantage le désir d’être psychanalyste. C’est un concept – un signifiant – où se pense une fonction – le désir comme fonction. Freud écrivait que le psychanalyste opère avec son inconscient. Lacan soutient qu’il analyse avec son désir. [ …] Il (l’inconscient « de » l’analyste) intervient dans la cure qu’au titre des possibilités et impossibilités qu’a l’analyste d’entendre, d’être suscité et parfois remanié par les dires de l’analysant, et de parler. C’est là la manifestation réelle et concrète de l’inconscient. Son silence ne vaut que comme de paroles possibles, comme désir de ce silence : la règle, le réglage du silence et de la parole, met en jeu l’inconscient ». 20 Mariana Benatto Pereira da Silva 10 Assim, podemos pensar: de que maneira essa função do “desejo-do-psicanalista” poderá ser pensada especificamente na clínica da anorexia? Qual poderá ser esta função numa clínica na qual o desejo do paciente só pode aparecer no desaparecimento do corpo? Pelas análises aqui realizadas, percebe-se que essa função do desejo do analista é justamente de fazer da análise o lugar onde o sujeito poderá se confrontar ao seu desejo. Isso quer dizer que, no caso da clínica da anorexia, o desejo do analista terá uma função de mediador, ou bem de catalisador, para oferecer ao paciente uma nova forma, que vá além da negação do corpo, de se confrontar ao seu desejo inconsciente. Mas como pode o desejo do analista fazer da análise o lugar de encontro do paciente com seu desejo? Mais uma vez Guyomard nos ajuda a compreender: [...] o lugar do analista não é um lugar vazio. Ele supõe que ele seja desejado; o desejo de ocupar este lugar com todas as suas conseqüências, além do “savoir-faire” e da experiência, impõe este conceito. A dialética e a alteridade do desejo – o desejo como desejo de desejo – implicam que um sujeito não questione seus desejos e o mundo sobre o qual são constituídas e solidificadas (suas fantasias) a não ser em referência a essa alteridade.22 Assim, pode-se compreender que é através desta dialética do desejo de desejo que o sujeito é levado a se dirigir ao seu próprio desejo, pela intervenção da função “desejo do analista”. Mannoni também nos ensina sobre essa dialética: “É no lugar do Outro, que o sujeito em análise articula o: O que você quer de mim? Que se transforma em um: O que eu quero? Essas questões do inconsciente são aquelas mesmas que recobrem os significantes bem iniciais do desejo” 23. No caso de pacientes anoréxicos é bastante perceptível que esses primeiros significantes do desejo estão ainda bastante ligados ao corpo, não podendo emergir de outra forma que não seja através dessa dinâmica mortífera aplicada a ele. Isso ocorre segundo Mannoni, porque esse 22 GUYOMARD, P. op. cit. .p.19. Original: « […] l a place de l’analyste n’est pas une place vide. Elle suppose qu’elle soit désirée ; le désir d’occuper cette place avec toutes ses conséquences, en plus du savoir-faire et de l’expérience, impose ce concept. La dialectique et l’altérité du désir – le désir comme désir de désir – impliquent qu’un sujet ne questionne pas ses désirs et le mode sur lequel ils se sont constitués et figés (ses fantasmes) qu’en référence à cette altérité. » 23 MANNONI, M., op. cit., p. 138. Original: « C’est au lieu de l’Autre, que le sujet en analyse articule le : Qu’est-ce que tu veux de moi ? Qui se transforme en un : Qu’est-ce que je veux ? Ces questions de l’inconscient sont celles mêmes que recouvrent les tout premiers signifiants du désir ». Mariana Benatto Pereira da Silva 11 sujeito está ainda preso ao desejo de sua imago materna, percebido como devorador. Por isso, a única maneira para ele “de conseguir nascer como sujeito desejante, fora do desejo da mãe” 24, é através da recusa a comer. Para completar, Mannoni também faz referência a essa dinâmica mortífera na qual está implicado o desejo, afirmando que “é bem uma demanda de morte que sustenta, a um nível inconsciente, tudo que ela formula conscientemente como exigências diversas; essa demanda de morte gira em torno do voto que seu corpo desapareça para que o desejo como tal subsista” 25. Refletindo agora sobre o processo de cura analítica, poderíamos pensar que a oferta que o desejo do analista representa, poderia, para essas pacientes, significar uma outra forma de se relacionar ao seu próprio desejo? Evidentemente a maneira de se relacionar à análise será também carregada, ao menos inicialmente, de todos esses interditos ao desejo que estão presentes na sua relação ao Outro, uma vez que a análise se atualiza na repetição, como Freud bem nos ensinou. No entanto, o analista está lá precisamente para tomar outro lugar, um lugar de aliado do desejo26, que ninguém mais, nem a família, nem a equipe médica, pode ocupar. Retomando o caso da paciente de Charcot, relatado anteriormente, poderíamos pensar que a posição tomada por ele, seria um exemplo dessa resposta dada de outro lugar? Seria essa atitude de Charcot, a princípio incompreensível para a família e para muitos, uma tentativa de interromper essa dinâmica mortífera da repetição que se perpetuava na relação de manipulação com a família? c) A cura de Sidonie – M. Mannoni Para melhor ilustrar essa diferenciação no posicionamento do analista, possibilitada justamente pela função de seu desejo, recorreremos a uma breve análise do o caso de Sidonie, 24 Ibid.p. 154. Original: « d’arriver à naître comme sujet désirant, hors du désir de la mère ». MANNONI, M., op. cit., p. 152. Original: « C’est bien une demande de mort qui sous-tend à un niveau inconscient tout ce qu’elle formule consciemment comme exigences diverses ; cette demande de mort tourne autour du vœu que son corps disparaisse pour que le désir comme tel subsiste». 26 ASSOUN, P.L., Leçons psychanalytiques sur le transfert, Anthropos : Paris, 2006, p. 77. 25 Mariana Benatto Pereira da Silva 12 paciente de M. Mannoni27, apresentada em seu livro Le psychiatre, son « fou » et la psychanalyse. . Com 17 anos, Sidonie era uma adolescente que sofria de anorexia grave desde os 15 anos. Desde o início de sua doença, a paciente tinha sido hospitalizada cinco vezes, todas em isolamento. Nutrida à força, a paciente saia do hospital sempre saudável, no entanto revoltada e desobediente, era veementemente contra qualquer tentativa de tratamento. Após os tratamentos, assim que retornava a família, seu comportamento recomeçava: greve de fome, ingestão desmesurada de vinagre, aspirina ou limão, até que ela fosse, mais uma vez, hospitalizada. O ciclo se repetia e os pais da paciente já haviam tentado de tudo para interrompê-lo. No entanto, Sidonie desencorajava as equipes médicas que já a consideravam como doente crônica, condenada a um leito de hospital para toda a vida. Foi nesse momento que os pais a levaram a um psicanalista, dizendo: “perdido por perdido, [...]vamos ver um psicanalista” 28. Durante a primeira entrevista, a analista descreve: “uma mãe ansiosa, um pai interessado, apaixonado pelas pesquisas médicas; sua filha constitui ‘um caso’ que desafia a medicina, ele está visivelmente satisfeito”. Os pais se preocupam com seu estado, mas ao mesmo tempo, não tem mais forças, querem sair de férias. Com medo de deixar a filha longe de seus cuidados, o pai diz: “você assume a responsabilidade de que Sidonie não cairá desmaiada na rua?” ao que Mannoni responde: Eu não assumo a responsabilidade de nada, se não aquela de conduzir a análise. O Dr. Y decidiu que Sidonie poderia ficar dois meses sem se alimentar, uma vez que ela não o faz. Ele decidirá daqui a dois meses se nós a hospitalizamos ou não. De imediato, cabe a Sidonie dizer se ela se encarrega de seu corpo, se ela assume a responsabilidade de me conduzir esse corpo nas horas e dias fixados.29 27 MANNONI, M., Le psychiatre, son « fou » et la psychanalyse. Editions du seuil, 1970, p. 139 -162. Para uma descrição mais detalhada do caso, ver as páginas indicadas. 28 MANNONI, M. Op. cit., p. 139. Original: « Perdu pour perdu, […], allons toujours voir une psychanalyste ». 29 Ibid. p.140. Original : «Je ne prends la responsabilité de rien du tout, si ce n’est celle de la conduire en analyse. Le Dr. Y a décidé que Sidonie pouvait rester deux mois sans s’alimenter plus qu’elle ne fait. Il décidera d’ici deux mois si on l’hospitalise ou non. Dans l’immédiat, c’est à Sidonie de dire si elle prend son corps en charge, si elle prend la responsabilité de me conduire ce corps chez moi aux heures et jours fixés. » Mariana Benatto Pereira da Silva 13 Aqui se pode ver claramente como Mannoni demarca seu papel de analista, recusando uma responsabilidade que, como nos mostram muitos autores30, não pode fazer parte da função do analista. Com essa pontuação, ela preserva o vínculo analítico, deixando de fora a responsabilidade pela vida do paciente. O tratamento prossegue e a paciente, ansiosa e culpada pela liberdade que teve durante as férias dos pais, demanda uma nova hospitalização. A analista atende seu pedido, no entanto ressalta: É o seu corpo que deverá se tomar conta. Você busca que nós te invadamos de todas as maneiras. Depois você diz: é ele o malvado, o terrível. São sempre os outros que estão errados. Você não é nada dentro de tudo isso que se passa a seu respeito. Você é lá como se estivesse no cinema: vejam Senhores e Senhoras, o que fizeram de mim. 31 Nessa intervenção, vemos, sobretudo, que Mannoni tenta uma tomada de responsabilidade por parte da paciente em relação a sua maneira de se utilizar de sua doença como uma forma de dirigir-se ao Outro. Essa intervenção nos faz pensar no caso de Dora, aonde Freud intervém, colocando em cena o que foi descrito por Lacan como uma reversão dialética32. A análise continua enquanto Sidonie é hospitalizada em total liberdade. Ao ser internada, sem obrigações e nutrição forçada, a paciente passa por um momento de euforia enquanto seu corpo fica cada vez mais fraco. Um dia, Mannoni a encontra, deitada sobre o sol, quase inconsciente e diz: “eu te aceito tão bem morta quanto viva33”. A paciente, assustada, levanta-se e responde-a que não quer morrer. Nessa intervenção, percebemos a expressão do respeito que a analista demonstra pelo desejo de sua paciente. Mannoni mostra, contrariamente aos outros que a cercam, que não está fixada no aspecto mórbido da doença e, por conseqüência, pode aceitar o voto de morte do seu corpo, que diz respeito ao seu desejo. 30 Ver : JEAMMET, P., « La thérapie bifocale », Adolescence, 1992, 10, n° 2 ; ,JEAMMET, P., Anorexie et Boulimie, les paradoxes de l’adolescence, Paris : Hachette Littératures, 2005; JEAMMET, P., et al. Soigner l’anorexie et la boulimie, Paris : PUF, 2007 ; sobre a necessidade de uma equipe plurifocal para que o analista esteja livre para atuar apenas como analista. 31 MANNONI, M. op. cit., p.144. Original : «C’est ton corps qui doit se prendre en charge. Tu cherches à ce qu’on te rentre dedans par tous les moyens. Après tu dis : c’est lui, le méchant, l’affreux. C’est toujours les autres qui ont tort. Toi, tu n’es jamais pour rien dans tout ce qui se passe à ton sujet. Tu es là comme au cinéma : voyez Messieurs, Mesdames, ce qu’on a fait de moi. » 32 LACAN. J., « Interversion sur le transfert », in Écrits I, Pari s : Seuil, 1999, p. 213. 33 MANNONI, M. op. cit., p. 148. Mariana Benatto Pereira da Silva 14 Alguns dias depois, a paciente reforça seu voto de morte, proferindo a frase que inicia esse artigo: “Eu quero morrer para saber quem eu sou.34”. Analisando, assim, os efeitos de sua intervenção, Mannoni afirma: Homologando no início de sua estada seu voto de destruição de seu corpo (“eu te aceito tão bem morta quanto viva”), eu privilegiei a manutenção do desejo, desejo que estava interdito por um super ego maternal arcaico. Mas deixei inteira a fascinação exercida sobre Sidonie, por um certo jogo com a morte, foi necessário que ela provasse seu efeito sobre os outros, para mensurar o desejo deles de vê-la viva. 35 Entende-se assim, que é através da repetição de seu “jogo”, no qual ela mensura o desejo dos outros de vê-la viva pela sua recusa a comer, que ela alimenta seu próprio desejo. Essa dinâmica se repete também na análise, mas nesse caso Sidonie recebe uma resposta diferente, é justamente isso que poderá viabilizar, ao paciente, o surgimento de uma nova forma de se posicionar no mundo, de sair desse interdito materno arcaico para iniciar a fundação de seu lugar de sujeito desejante. d) Desejo do analista, castração e o caso de Sidonie Pensando sobre a resposta dada por Mannoni à sua paciente, pode-se perguntar: como se estabelece esse posicionamento diferenciado do analista através de seu desejo? O que possibilitaria o surgimento dessa função na análise? Guyomard nos ajuda a compreender melhor essa questão: Um sujeito não encontra o limite e as referências ao seu desejo a não ser em se apoiando sobre o desejo dos outros que puderam vir nesse lugar. O desejo-do-analista é o conceito desse conjunto de questões; para um analista a sua relação ao desejo-do-analista coloca muito mais em jogo sua castração que o seu desejo próprio. Para ele, permanecer psicanalista é menos ceder ao seu desejo que ceder a sua castração. 36 34 Ibid. p. 152. Original : « je veux mourir pour savoir que je suis »34. Ibid. p. 153. Original: « En homologuant au début de son séjour son vœu de destruction de son corps (« Je t’accepte aussi bien morte, que vivante »), j’ai privilégié le maintien du désir, désir qui était interdit par un sur moi maternel archaïque. Mais j’ai laissé entière la fascination exercée sur Sidonie, par un certain jeu avec la mort, il a fallu qu’elle en éprouve l’effet sur les autres, pour y mesurer leur désir de la voir vivante » 36 GUYOMARD, P. op. cit., p. 20. Original: « Un sujet ne trouve de limite et de références à ses désir qu’en s’appuyant sur le désir des autres qui on pu venir à cette place. Le désir-de-l’analyste, est le concept de cet ensemble de questions ; pour un analyste sa relation au désir-de-l’analyste met davantage en jeu sa castration que son désir propre. Pour lui, rester psychanalyste c’est moins ne pas céder sur son désir que ne pas céder sur sa castration ». 35 Mariana Benatto Pereira da Silva 15 Através da citação de Guyomard, podemos compreender a diferença entre o desejo pessoal do analista e o desejo-do-analista como função. Pode-se entender que o desejo-do-analista está muito mais próximo da castração do analista que de seu desejo pessoal, pois é justamente através da falta que se insere o desejo. Assoun toca também nessa temática ao falar dos traços atribuídos por Freud ao analista: “Nós vemos o retrato estonteante que se desencadeia desses ‘traços’. Isso vai do aspecto mais pragmático à capacidade de se fazer desaparecer, sem, no entanto se apagar, de se retirar sem, no entanto, se eclipsar, em fim, de significar o seu desejo de analista sem impor seu gozo.” 37. Nesse sentido, ceder ao seu próprio desejo seria impor ao paciente seu próprio gozo, o que iria de encontro ao que se busca em uma análise, que é justamente a existência de um espaço para que o desejo do paciente possa surgir. Guyomard defende ainda que: “A castração origina os desejos, ela os torna possíveis e funda suas possibilidades em uma perda. Sem ela, o desejo se ausenta ou vê o seu valor se inverter na onipotência (toute-puissance). [...]A castração é o limite a sua onipotência (toutepuissance).”38 Retornando ao caso de Sidonie, podemos dizer que é exatamente essa inversão de desejo em onipotência que podemos notar quando, em determinado momento da análise, Mannoni acaba por sair do seu papel de analista. A situação ocorre no momento da hospitalização de sua paciente. Mannoni, para permitir que Sidonie seja internada em uma clínica na qual teria total liberdade, acaba por aceitar a inteira responsabilidade por sua cura, e também por sua vida: “Mas eu saía também do meu estrito papel de analista, revelando meu desejo. Esse desejo, eu o havia mesmo claramente formulado: eu 37 ASSOUN, P.L., op. cit., p. 78. Original: « On voit l’étonnant portrait qui se dégage de ces « traits ». Cela va de l’aspect le plus pragmatique à la capacité de se faire disparaître, sans pour autant s’estomper, de se mettre en retrait sans pour autant s’éclipser, bref de signifier son désir d’analyste sans imposer sa jouissance ». 38 GUYOMARD, P., op. cit., p. 20 e 21. Original: « La castration origine les désirs, elle les rend possibles et fonde leur possibilité dans une perte. Sans elle, le désir s’absente ou voit sa valeur s’inverser dans la toute-puissance. [...] La castration est la limite à sa toute-puissance ». Mariana Benatto Pereira da Silva 16 recusava o sistema psiquiátrico clássico que nesse caso não havia levado a nada mais do que ao insucesso. Sidonie desejava ir até o limiar da morte (do corpo), que ela o vá”.39 Na realidade essa saída do seu papel de analista se deu como uma maneira de respeitar o voto de morte do corpo de sua paciente, ou seja, seu desejo era de impor a Sidoine que ela fosse em direção ao seu próprio desejo. Essa circunstância, na qual a analista assumiu o controle de toda a situação foi percebida pela paciente, que passou a tratá-la como alguém onipotente e mágico, que dirigia a tudo e a todos: “Eu busco permanecer a analista, consciente, de já ter usurpado muito os papéis, entrado mais do teria gostado no jogo de Sidonie. E o quê Sidonie busca provar, é justamente algo da ordem da minha onipotência mágica. De certa maneira, ela tem a impressão que dirijo tudo, seus parentes, a clínica, os médicos”40. O desejo da analista foi justamente transformado em onipotência mágica, sem limites, portanto um desejo impossível, sem falta. No entanto, após a entrada de Sidonie na clínica, Mannoni retoma seu papel de analista, se integrando a equipe da clínica e dividindo a responsabilidade pela cura de Sidonie. Assim, privilegiando o caminho da castração e não da onipotência de seu desejo, a analista retoma o caminho da análise, fundando uma perspectiva de perda e falta, e, portanto, uma possibilidade de acesso para a origem do desejo. É justamente uma idéia dessa possibilidade que percebemos em seguida, no discurso de Sidonie: “Todo mundo está contente porque eu estou curada. Não se dão conta que não é isso o importante. Não compreendem que o que conta são minhas vontades. São as minha vontades que as vozes41 matam. Elas as perseguem para as matar. De que serve que eu viva, se sou condenada a morte de minhas vontades ?” 42. 39 MANNONI, M. op. cit., p.146. Original: «Mais je sortais aussi de mon strict rôle d’analyste, en dévoilant mon désir. Ce désir, je l’avais même clairement formulé : je refusais le système psychiatrique classique qui dans ce cas n’avait abouti qu’à l’échec. Sidonie souhaitait aller jusqu’au seuil de la mort (du corps), qu’elle y aille ». 40 MANNONI, M., op. cit., p. 145 Original : « Je tiens à rester l’analyste, consciente, d’avoir usurpé déjà bien des rôles, entrée plus que je ne l’aurais voulu dans le jeu de Sidonie. Et ce que Sidonie cherche à éprouver, c’est bien quelque chose de l’ordre de ma toute-puissance magique. D’une certaine façon, elle a l’impression que je dirige tout, ses parents, la clinique, les médecins ». 41 A paciente ouvia vozes que a ordenavam no sentido não de não se alimentar. Para maiores detalhes recorrer ao texto integral. 42 Ibid. p. 153. Original: «Tout le monde est content, parce que je suis guérie. On se rend pas compte que ce n’est pas ça, l’important. On comprend pas que ce qui compte, c’est mes envies. C’est mes envies que les voix tuent. Elles les traquent pour les tuer. A quoi ça sert que je vive, si je suis condamnée à la mort de mes envies ? ». Mariana Benatto Pereira da Silva 17 É na relação analítica que Sidonie desvenda esse interdito de “suas vontades”, o que pode representar um grande passo na busca da paciente, pelo seu lugar de desejante. Como Mannoni nos descreve, “reaparece na linguagem isso que permanecia até lá recusado pelo sujeito e subtraído de qualquer articulação simbólica.” 43. Deste modo, percebe-se nessa articulação clínica, a importância da posição do analista, que compelido a conservar-se em seu lugar, ou seja, permanecer desejante44, permitiu à ralação analítica de se produzir e de agir. . Conclusão No conjunto desse trabalho, pôde-se compreender que a instauração do dispositivo analítico em um processo de cura com pacientes anoréxicos depende, portanto, de uma combinação complexa de inúmeros fatores, dos quais, a posição ocupada pelo analista é um dos elementos importantes. Analisamos como, através de seu desejo de analista, ou seja, da sua possibilidade de se manter desejante, sustentando a falta, o analista poderá conduzir seu paciente a um trabalho em relação ao seu próprio desejo. Nesse processo, o paciente poderá formular a questão: “o que ele quer de mim?” que em seguida, passará a “o que eu quero?”, possibilitando um espaço para que ele possa alcançar os primeiros significantes do desejo, ligados a esses questionamentos. Essa pesquisa nos permitiu também perceber que uma análise no caso de pacientes anoréxicos (e na verdade em todos os casos), vai muito além das questões do sintoma. Essa centralização na problemática da anorexia, comum nos inícios de tratamento, seria apenas uma etapa necessária para tornar possível um acesso ao sujeito que fica em segundo plano, escondido pelas questões do corpo e pelo estereótipo do paciente anoréxico. Poder-se-ia assim dizer que o caminho seria um processo analítico que deixe a anorexia de lado, proporcionando ao paciente um mínimo de referência para que ele possa, dessa forma, passar aos questionamentos em relação ao seu posicionamento como sujeito, muitas vezes levantados através do próprio sintoma. 43 Ibid. P. 160. Original : « Réapparaît dans le langage ce qui demeurait jusque-là refusé par le sujet et soustrait à toute articulation symbolique». 44 GUYOMARD, P., op. cit., p. 16. Mariana Benatto Pereira da Silva 18 Porém, fica a questão: essa passagem da clínica da anorexia à análise do sujeito, permeada pela função do desejo do analista, seria possível em todos os casos? Mesmo nos mais graves? Seria essa busca pelo sujeito do inconsciente na clínica da anorexia diferente da busca nas outras clínicas nominadas “difíceis”? Sabe-se que as questões aqui propostas não estão fechadas, e que ao contrário, abrem perspectivas de pesquisas que se mostram muito pertinentes se considerarmos a clínica com a qual nos deparamos no nosso cotidiano presente. O trabalho com pacientes ditos “difíceis”, ou o que também pode ser chamado de ‘clínica da regressão’ nos interpela com questionamentos e problemáticas como as discutidas à cima, e, portanto, demanda um aprofundamento. A idéia de um trabalho amplo, referente às dificuldades de se compreender o trabalho e aposição do analista na clínica com pacientes difíceis, discutidas por autores como Winnicott, Balint e Ferenczi, é uma necessidade que se faz presente na continuação desse trabalho. Referências ASSOUN, P.L., Leçons psychanalytiques sur le transfert, Paris: Anthropos, 2006. BIROT, E., CHABERT, C., et JEAMMET, P., Soigner l’anorexie et la boulimie, Paris : PUF, 2007. BRUCH, H., Les yeux et le ventre : l’obèse, l’anorexique, Paris : Payot, 1984. 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