história pretensa do sistema de numeração

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CALENDÁRIO MAIA DE YUCATAN
(Boyer, Carl Benjamin,História da
Matemática.São Paulo,Edgard Blücher, 1974)
PRETENSA HISTÓRIA DO SISTEMA DE NUMERAÇÃO
Rogério Rodrigues
Há histórias que não podem ser contadas com apuro factual. O macarrão, por
exemplo; diz-se que ele foi inventado pelos chineses e apresentado aos italianos pelo
viajante Marco Pólo, de Veneza. Entretanto, não se sabe como e nem quando; nem
mesmo se sabe se essa história sobre Marco Pólo é verdadeira. Porém, há fortes
evidências que dão verossimilhança à história. É o caso do nosso sistema de numeração,
que foi apresentado ao ocidente provavelmente pelos árabes, durante os períodos de sua
dominação na Europa; sabe-se ainda da participação dos hindus, com a inclusão do
zero, necessário ao critério posicional do sistema. Mas a partir de que ponto começou
esta história? Qual foi o caminhar da humanidade que permitiu esse avanço para um
sistema relativamente simples e engenhoso?
Conta-se que o homem primitivo, não sabendo contar, associava unitariamente seus
pertences a objetos como pedras, galhos, ossos e outros. Então, se ele tinha 5 ovelhas,
associava cada uma a uma pedra e seu rebanho era simbolicamente representado por um
saquinho de pedras. Assim, quando queria conferir seu rebanho, tirava uma pedra do
saquinho para cada ovelha que passava por ele. Se passassem todas as ovelhas, mas
sobrasse uma pedra no saquinho, por exemplo, significava que faltava uma ovelha do
rebanho. Pensemos na questão prática: se o rebanho tivesse 100 ovelhas, ele precisaria
de 100 pedras; como guardaria esse rebanho de pedras? Sem levar em consideração que
o número elevado de ovelhas dificultaria em muito a conferência.
Figura extraída do livro PROGRAMA DE ADMISSÃO, 16a EDIÇÃO, 1967. C.EDIT. NACIONAL
Mesmo no estado primitivo em que se encontrava, aquele homem compreendia que
bem mais leve do que pedras são as pedras desenhadas, que não têm ainda a
necessidade de serem armazenadas num saquinho; aliás, nem precisa ser pedra, pode ser
qualquer coisa, até um simples traço. Lembremos que inúmeras pinturas rupestres
mostram uma contagem com traços paralelos, como se faz até hoje, particularmente nos
presídios, quando algum interno conta os dias para ser libertado. Com isso fica resolvida
a questão do peso, mas não se resolve a questão da quantidade.
A cardinalidade ainda não foi contemplada, ou seja, até aqui, o método não garante
o sentimento da quantidade, a noção de grandeza, que hoje chamamos de número. O
homem ter 100 ou 101 ovelhas só teria diferença, aos seus olhos, depois da conferência
com os traços rupestres. Fazia-se necessário inventar algo que tornasse mais visível
cada cardinalidade, assim como temos hoje: um dois, três, quatro, .....
É bem razoável pensar em algo concreto e bem natural, algum modelo que se vê
constantemente no cotidiano. Por exemplo, um inseto com seis patas e associar cada
pata a uma ovelha; então, quem tivesse 12 ovelhas, diria, na época &%$#@?#@# ,
cuja tradução é tenho 2 insetos de ovelhas. Isso resolvia o problema da cardinalidade,
mas, ainda resta a dificuldade para representar grandes quantidades.
È provável que ,a partir do ponto em que chegamos, a necessidade tenha apontado
para um critério aditivo, como o sistema romano. Então, cada unidade é chamada de
cabeça e até 5 cabeças são cinco traços; completando-se 6 cabeças, usa-se a
representação de 1 inseto. Aí, ter-se-ia, por exemplo:
NOTAÇÃO
Uma ovelha: │ Seis ovelhas: Ω (1 inseto)
Duas ovelhas: ││
Cinco ovelhas: │││││
Oito ovelhas: Ω ││
treze ovelhas: Ω Ω│
Conta-se que o modelo imediatamente percebido pelo homem, ao invés de um
inseto com 6 patas, foi a mão com cinco dedos; nesse caso, ter-se-ia, por exemplo, a
seguinte notação:
1 ovelha : dedo (d)
5 ovelhas: mão (M)
Três ovelhas: ddd
Sete ovelhas: Mdd
Onze ovelhas: MMd
E, então, vieram os romanos com esse mesmo princípio e a seguinte notação:
1 ovelha : I
2 ovelhas: II
3 ovelhas: III
5 ovelhas: V
4 ovelhas: IV
6 ovelhas: VI
Observemos que esse princípio aditivo soma ao algarismo o que está à sua direita e
subtrai o que está à sua esquerda .:
Cinco é representado por V
Quatro é I a menos do que V, ou seja, IV
Seis é I a mais do que V, ou seja, VI
Mais algarismos romanos: X (dez), L (cinquenta), C (cem), D(quinhentos) e M(mil).
Assim, tem-se, por exemplo,
1.921 é MCMXXI, 743 é DCCXLIII, 2.001 é MMXI
Quantidades a partir de 4.000 são representadas usando-se traços sobre o símbolo,
fazendo com que ele seja multiplicado por mil:
12.000 é
, 512.000.000 é
Imagine-se as quantidades astronômicas, quantos traços exigiriam; o saco de pedras
tomou outra forma e pesa de maneira diferente, mas ainda pesa.
A idéia de contar em grupos até aqui foi o grande avanço conseguido; só falta
otimizar essa idéia, no sentido de fazê-la prática e enxuta. O princípio aditivo, como
aconteceu até aqui, a partir de alguma quantidade, deixará de ser enxuto, exigindo
dispositivos multiplicadores. Então, voltemos ao ponto que nos conduziu para o
princípio aditivo.
A mão como modelo matemático parece algo bem razoável, pois seria um
instrumental ligado ao corpo e de cardinalidade explícita. Então, teríamos símbolos ou
nomes para as quantidades de 1 a 5 dedos; suponhamos que esses nomes, ou símbolos
sejam m, n, p, q e r , respectivamente, para as quantidades um, dois, três, quatro e
cinco. Assim,
► uma ovelha : m ovelha
► duas ovelhas : n ovelhas
► três ovelhas : p ovelhas
► quatro ovelhas : q ovelhas
► cinco ovelhas : r ovelhas
Surge, então, o primeiro problema: Quais são os nomes para seis, set, oito e nove
ovelhas? Pode-se pensar em
► seis ovelhas: cinco + uma = r + m
► sete ovelhas: cinco + duas= r + n
► oito ovelhas: cinco + três = r + p
Observe que todas essas grandezas resumem-se a um grupo de r ovelhas mais alguma
coisa menor do que r ovelhas, ou seja:
► seis ovelhas: cinco + uma = r + m  m grupos de r ovelhas + m ovelha
► sete ovelhas: cinco + duas= r + n  m grupos de r ovelhas + n ovelha
► oito ovelhas: cinco + três = r + p  m grupos de r ovelhas + p ovelha
Para quantidades maiores, o critério seria o mesmo; observe:
► dezesseis ovelhas: cinco + cinco + cinco + uma  p grupos de r ovelhas + m ovelha
► vinte e duas ovelhas: cinco + cinco + cinco + cinco + duas  q grupos de r ovelhas
+ n ovelhas
Então, simbolicamente, poder-se-ia escrever as grandezas acima com os seguintes
numerais:
► seis ovelhas: cinco + uma = r + m  m grupos de r ovelhas + m ovelha  mm
► sete ovelhas: cinco + duas= r + n  m grupos de r ovelhas + n ovelha  mn
► oito ovelhas: cinco + três = r + p  m grupos de r ovelhas + p ovelha  mp
► dezesseis ovelhas  p grupos de r ovelhas + m ovelha  pm
► vinte e duas ovelhas  q grupos de r ovelhas + n ovelhas  qn
Observe que, da esquerda para a direita, o primeiro algarismo é a quantidade de grupos
de r ovelhas e o segundo algarismo representa o número de ovelhas que sobram; isto
sugere a contagem de r em r.
Contudo, qual foi a experiência humana que, supostamente, conduziu a modelagem
para a contagem em grupos? Desconfia-se que foi o sistema primitivo de trocas ou
escambo, a primeira noção de moeda da humanidade. Para atribuir valores compatíveis
e justos nas trocas com objetos diferentes, deveria haver um acordo. Por exemplo:
equivale a
1 porco equivale a
5 galinhas poedeiras
equivale a
1 boi equivale a
5 porcos
Então, pode-se obviamente concluir que:
1 boi equivale a
25 galinhas
E, então:
► Quem tem 17 galinhas, tem 3 porcos e 2 galinhas → numeral: 32
► Quem tem 32 galinhas, tem (5 + 5 + 5 + 5 + 5) galinhas + 2 galinhas = 5 porcos +
+ 2 galinhas = 1 boi + 2 galinhas → numeral: 102 (1 boi, 0 porcos e 2 galinhas)
► Quem tem 41 galinhas, tem (5 + 5 + 5 + 5 + 5 + 5 + 5 + 5 + 1) galinhas = 8 porcos +
+ 1 galinha = ( 5 + 3) porcos + 1 galinha = 1 boi + 3 porcos + 1 galinha → numeral:
131.
Observemos que, da direita para a esquerda, as casas ou ordens dos algarismos é
Número Número Número de
de bois de porcos galinhas
Poder-se-ia ainda convencionar que 5 bois equivaleriam a 1 roça de mandioca ou outro
bem qualquer. Adaptemos o conceito de algarismo proposto anteriormente, ou seja,
► uma galinha : m galinha
► duas galinhas : n galinhas
► três galinhas : p galinhas
► quatro galinhas : q galinhas
► cinco galinhas : r galinhas
Nesse modelo, os números do exemplo anterior seriam representados pelos seguintes
numerais:
► Quem tem 17 galinhas, tem 3 porcos e 2 galinhas → numeral: pn (na base r).
► Quem tem 32 galinhas tem 1 boi + 0 porcos + 2 galinhas → numeral: mzn (na base
r, convencionando-se que o nome do zero é z).
► Quem tem 41 galinhas, tem 1 boi + 3 porcos + 1 galinha → numeral: mpm (na base
r).
Como exemplo, Qual seria o numeral que representa o valor total de um patrimônio de
a) 83 galinhas?
Temos 16 grupos de 5 galinhas + 3 galinhas = 16 porcos + 3 galinhas = 3 grupos de 5
porcos + 1 porco + 3 galinhas = 3 bois + 1 porco + 3 galinhas.
►numeral com algarismos ocidentais : 313 na base 5.
►numeral com algarismos do modelo proposto : pmp na base r.
b) 23 galinhas, 12 porcos e 3 bois?
Como 23 galinhas equivalem a 4 porcos e 3 galinhas; 12 porcos equivalem a 2 bois e 2
porcos; o patrimônio equivale a (2 + 3) bois + (4 + 2) porcos + 3 galinhas, que
equivale a 5 bois + 6 porcos + 3 galinhas = 1 roça de mandioca + 1 boi + 1 porco + 3
galinhas.
►numeral com algarismos ocidentais : 1113 na base 5.
►numeral com algarismos do modelo proposto : mmmp na base r.
O Sistema de numeração decimal, assim como fizemos com o modelo proposto,
batizou os dez algarismos com os nomes zero, um, dois, três, ..., nove e conta as coisas
de dez em dez. Nele, as ordens, da esquerda para a direita, receberam os nomes de
unidade, dezena e centena , o que equivale, respectivamente, a galinha, porco, boi ,
ressalvando-se o fato de os grupos de contagem (bases) serem diferentes.
O Sistema binário, usado pelos computadores, conta de dois em dois e utiliza
apenas os algarismos 0 e 1. Nele, cada porco vale duas galinhas e cada boi vale dois
porcos. Os sistemas de medidas também têm o mesmo princípio; o sistema métrico é
decimal, assim como o de unidades de massa. Já o tempo é sexagesimal, ou seja, conta
de 60 em 60 e suas ordens chamam-se, da direita para a esquerda, segundo, minuto e
hora. Nesse sistema, cada minuto são 60 segundos e cada hora são 60 minutos; É como
se cada porco fosse equivalente a 60 galinhas e ...
O zero foi provavelmente introduzido no sistema de numeração mais tarde pelos
hindus, mas apareceu independentemente nos dois hemisférios do planeta, o calendário
maia de Yucatan registra um símbolo para as casas vazias, papel fundamental do zero
no sistema posicional; sem ele, as ordens vazias ficariam sem sinalização e 58
(cinquenta e oito), por exemplo, seria representado do mesmo modo que quinhentos e
oito; ou seja, 580 galinhas, que equivalem a 5 bois e 8 porcos, considerando o sistema
decimal, seria confundido com 5 porcos e 8 galinhas.
Genericamente, o sistema posicional registra cada número, usando um numeral em
que os algarismos representam parcelas de uma soma de potências da base escolhida.
Assim, por exemplo, 235, na base 10, significa 2.102 + 3.101 + 5.100 e 235, na base 7,
significa 2.72 + 3.71 + 5.70.
O fato é que os fundamentos do sistema de numeração têm tanta identidade com as
questões históricas ligadas ao escambo e às relações comerciais, que sua compreensão
se dá de um modo bem natural. Há muitos indícios culturais dessa assimilação como,
por exemplo, as unidades de contagem antigas como a dúzia (12 unidades) e a grosa
(12 dúzias). Existem sistemas mistos como, por exemplo, o tempo cronometrado nas
provas de atletismo, que começa sexagesimal e termina decimal; tempos cronometrados
como 2h 22min 12 s 8 d 2 c exemplificam isso.
Belo Horizonte, 16 de dezembro de 2011.
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