SÃO PEDRO DO RIO GRANDE DO SUL A LUZ DE UM GEÓGRAFO LIBERTÁRIO Marcelo Miyahiro Universidade de São Paulo [email protected] INTRODUÇÃO Este trabalho se constitui como resultado parcial da pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, preliminarmente intitulada, Élisée Reclus e a Geografia do Brasil no final do século XIX. Nosso objetivo com esta pesquisa é nos aproximarmos de uma análise contextual da geografia e da história do Estado do Rio Grande do Sul no período da Primeira República. Em 1893, o geógrafo francês realizava a sua última grande viagem ao redor do mundo e seu destino foi a América do Sul, com passagem pelo Brasil e pelas nações do Rio da Prata. A viagem tinha o objetivo de subsidiar a redação do tomo XIX da Nouvelle Géographie Universalle (NGU). Publicada em 1894, esta obra se estrutura em seis capítulos – Capítulo I. As Guianas; Capítulo II. Estados Unidos do Brasil; Capítulo III. Paraguai; Capítulo IV. Uruguai; Capítulo V. Argentina e Capítulo VI. Ilhas Falkland e Geórgia do Sul. O capítulo dedicado ao Brasil por sua vez se divide em: I. Vista geral; II. Amazonia. Estados do Amazonas e do Pará; III. Vertente do Tocantins. Estado de Goyaz; IV. Costa equatorial. Estado do Maranhão, Piauhy, Ceará, Rio Grande do Norte, Parahyba, Pernambuco, Alagôas; V. Bacia do rio S. Francisco e vertente oriental dos planaltos. Estados de Minas Geraes, Bahia, Sergipe e Espirito Santo; VI. Bacia do Parahyba. Estado do Rio de Janeiro e Districto Federal; VII. Vertente do Paraná e contravertente oceânica. Estados de São Paulo, Paraná, e Santa Catharina; VIII. Vertente do Uruguay e littoral adjacente. Estado de São Pedro do Rio Grande do Sul; IX. Matto Grosso; X. Estado material e social da população brasileira e XI. Governo e administração. Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 1 Pouco tempo depois, em 1900, foi publicada uma tradução para o português do capítulo dedicado ao Brasil da NGU com o título de Estados Unidos do Brasil: Geographia, Ethnographia, Estatística com tradução e breves notas de Benjamin Franklin Ramiz Galvão e Anotações sobre o Território contestado pelo Barão do Rio Branco. Para estudarmos a passagem de Reclus pelo Rio Grande do Sul no período da Primeira República, utilizamos centralmente o capítulo VIII. Vertente do Uruguay e littoral adjacente da obra acima identificada. Neste trabalho, caminhamos próximos do objetivo de Eric Hobsbawm na produção das “Eras”. Entretanto, nosso objeto de estudo foi analisar a geografia e a história gaúchas apresentadas por Reclus durante sua passagem pelo território brasileiro. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA Para a realização deste trabalho, o instrumental analítico utilizado origina-se da área do conhecimento conhecido como estudos sociais da ciência. Entretanto, é importante apresentar um breve histórico do campo com o qual os estudos sociais da ciência dialogam. No final da década de 1960 e o início de 1970, pesquisadores propõem uma nova forma de analisar a atividade científica. Até então, a filosofia e a sociologia da ciência apresentavam resultados pouco convincentes. Essa nova forma de analisar a atividade científica influenciada por diversos campos disciplinares tornou-se conhecido como sociologia dos conhecimentos científicos, passando a entender estas atividades e conhecimentos como socialmente produzidos. Em 1970, duas são as instituições que se destacam na produção destes estudos: a University of Bath e a University of Edinburgh. Neste último, se organizou o mais importante programa de pesquisa na área de sociologia do conhecimento, conhecido como Programa Forte, este se diferenciava por enfatizar a defesa das análises sociológicas da ciência. A metodologia e as técnicas para a realização deste trabalho originam-se, portanto, dos estudos sociais da ciência – entendida aqui como um outro programa, mas que compartilha referências, preocupações e o abandono da perspectiva disciplinar na análise da atividade científica – em especial dos trabalhos de Bruno Latour. Este autor propõe a necessidade da produção de um campo ampliado constituído de um compartilhamento de métodos e problemas comuns. Tal proposta se contrapõe as tradicionais abordagens sociais Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 2 das ciências organizadas por disciplinas e objetos. Isso porque, segundo Latour, tal organização não possibilita a análise do processo de produção dos conhecimentos. Ressaltando que para Latour, a produção dos conhecimentos constitui-se como um processo social, cuja análise deve privilegiar as práticas e não somente os resultados. Com a realização deste trabalho, pretendemos apresentar nossa contribuição ao estudo das obras clássicas da geografia em uma perspectiva em ação, buscando construir um entendimento do contexto social e do conteúdo técnico do conhecimento geográfico a luz de seu tempo, ou seja, analisar a geografia do Rio Grande do Sul e do Brasil a luz do final do século XIX, através da obra de Reclus evidenciando a atualidade de sua obra e mostrando que ele antecipou tendências e transformações da formação da sociedade gaúcha e brasileira. RESULTADOS PRELIMINARES Élisée Reclus inicia seu estudo do território gaúcho com uma descrição da fronteira natural e política do Rio Grande do Sul com a Argentina e com o Uruguai, respectivamente. Verificou que a população gaúcha apresentava crescimento pelo significativo fluxo imigratório presente e pela grande quantidade de nascimentos em uma região com condições favoráveis. Destacou a participação dos imigrantes açorianos na história do Estado. Citou como exemplo as cidades de Rio Grande e Porto Alegre que foram fundadas pelos portugueses açorianos. Já na cidade de São Leopoldo se instalaram os alemães com a finalidade de trabalhar a terra; enfatizando que a coesão da língua, da educação e da cultura alemã contribuíam na formação de um “Estado no Estado”, entretanto, conforme outros imigrantes – italianos, espanhóis e eslavos – se instalaram nas cidades da região, tal fato colaborou para diminuir a formação inicial de uma nação no interior do Rio Grande do Sul. Quanto aos escravos, Reclus lembrou que antes mesmo da Abolição da Escravidão o Rio Grande do Sul já havia libertado mais da metade deles. Apresentou uma divisão do Estado em quatro regiões a partir de seu relevo. A primeira constitui-se como uma região de “serra-abaixo” junto ao litoral; a segunda região apresenta uma serra-alta que separa o litoral dos planaltos que se inclinam para o rio Uruguai; na terceira região, existe uma depressão que separa a serra baixa da serra alta, possuindo Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 3 seus limites com rios ao seu redor; e, a quarta e última região localizam-se as montanhas do nordeste gaúcho chamadas de Serra do Mar. As praias do litoral do Rio Grande têm origem e formação por ação oceânica. As formações lacustres por sua vez têm origem a partir da “formação de um cordão littoral [que] separou do mar vastas extensões que se transformaram em lagunas, cuja massa liquida incessantemente renovada pelos rios se torna salôba ou totalmente doce.” Tais características existem desde a laguna do Tubarão no Estado de Santa Catarina e se estendem até as lagunas do Rio Grande. Outra rede de lagunas se formou e estas fazem a ligação do rio Capivary até a Lagôa dos Patos. Mais ao sul do Estado, se formou outra lagoa, a Lagôa Mirim que se estende até a fronteira do Brasil com o Uruguai. Quanto à rede fluvial, o principal rio se forma pela união do Vacacahy e do Jacuhyy, sendo o segundo rio o mais importante por ser navegável e ao seu grande número de tributários que tem origem no norte do Estado, e tem sua foz no encontro com a Lagôa dos Patos passando a se chamar Guahyba. Ao norte do Rio Grande do Sul o rio Uruguai faz o limite com Santa Catarina. Segundo Reclus, o nome deste rio tem origem guarani e significa para uns “Cauda de gallinha” e para outros “Rio do passaro de muitas côres”, nasce em território brasileiro e deságua na nação vizinha, o Uruguai, que possui o mesmo nome do rio. A oeste, o rio Uruguai limita o território do Brasil com a Argentina; ao sul em conjunto com a Lagôa Mirim estabelece a fronteira do Brasil com o Uruguai. Depois de descrever os elementos naturais do Rio Grande do Sul, Reclus fez uma analogia do Estado mais meridional brasileiro com a Europa ocidental em relação ao clima temperado. Destacou a influência do minuano, vento frio vindo da região dos Andes e do pampeiro, vento também frio que se origina nos pampas argentinos e entram que nas terras gaúchas. A principais formações vegetais do Rio Grande do Sul são as florestais, principalmente na região norte, e a de campos localizada na região central, oeste e sul, com uma vegetação de transição entre estas formações. Tal vegetação se apresenta igualmente do lado brasileiro e do lado argentino dos pampas. Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 4 Reclus descobriu na pré-história do litoral gaúcho a existência de sambaquis com características semelhantes aos dos botocudos. Indicou ainda que as tribos indígenas que os conquistadores europeus encontraram eram de origem guarani, principalmente das etnias “Carijós, Patos, Minuanos, Tapes, Charruas, que pela maior parte deram seus nomes a montanhas, lagôas e outros accidentes do territorio”, enfatizou que os habitantes originais quase desapareceram, entretanto, o sangue dos indígenas está presente com a população mestiça. A miscigenação ocorreu também com os africanos podendo ser confirmada na diminuição da participação dos negros nas estatísticas. Os europeus representados principalmente pelos alemães tem participação significativa no conjunto populacional, nas atividades econômicas e na posse de riquezas. Contudo “os colonos da serra” avançam em ritmo mais lento por apresentar dificuldade no uso da língua portuguesa e pelo emprego de antigas práticas agrícolas; “ao passo que seus filhos domiciliados nas cidades distinguem-se pelo conhecimento das linguas, pela iniciativa e pelo espirito industrial : estão em suas mãos quase todas as fabricas e as casas exportadoras.” A imigração de europeus de origem italiana, portuguesa e galega nos últimos anos, se fez mais presente que a imigração alemã, e que por sua origem latina integram-se à nova pátria mais rapidamente que os alemães. Reclus atribuiu a proximidade do Rio Grande do Sul com a Argentina certa identidade entre seus habitantes, como também em seus trabalhos. Nas palavras do autor: Predomina a industria do “xarque” no Rio Grande como no Uruguay e nos pampas. Immensas manadas percorrem os pastos, e os grandes estabelecimentos urbanos são matadouros. O typo characteristico do camponez rio-grandense assimelha-se ao do gaúcho argentino: é como elle cavalleiro infatigavel, homem de força e dextreza pouco vulgares, disposto á aventura, audaz e astuto, e insensivel ao espectaculo do sangue. Descreveu as cidades gaúchas iniciando com a capital do Estado, Porto Alegre, fundada em 1772, localiza-se no “centro geográfico da região” interligada por sua hidrografia e rede de transportes. As suas construções se adaptaram ao relevo e ao sítio urbano movimentados. Com a função de entreposto de produtos agrícolas dos colonos alemães da Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 5 serra, a cidade viveu um importante período de crescimento econômico, que hora se apresenta como uma cidade industrial. Como capital, a cidade se destaca com suas instituições de ensino e jornais. A oeste, se localiza S. Jeronymo que abastece Porto Alegre com suas minas de carvão mineral. As cidades industriais de Rio Pardo e Cachoeira abastecem por sua vez com produtos dos campos ocidentais. Ao norte as cidades de S. Leopoldo e Nova Hamburgo se ligam ao seu mercado regular por via férrea. Ao sul, através da Lagoa do Patos, Porto Alegre se relaciona com Pelotas, Rio Grande e os portos estrangeiros. O “sábio geógrafo francês” identificou obstáculos à navegação da capital do Estado à cidade de Rio Grande e levantou um projeto de construção de um canal de navegação de Porto Alegre através do rio Capivary e das diversas lagoas até a cidade gaúcha de S. Domingos das Torres, que por sua vez, terminariam junto à cidade catarinense de Laguna. Todavia, este projeto ainda não foi concluído pelos altos custos para a sua realização. Reclus, apresentou uma outra alternativa aos obstáculos da navegação gaúcha: “Os engenheiros fizeram tambem a proposta de cortar directamente o isthmo que defende a Leste a Lagôa dos Patos e crear um porto artificial na extremidade d’este córte.” No extremo sul gaúcho, a cidade de Jaguarão possui em seu relevo colinas que apresentam amplas paisagens. Separada da cidade uruguaia de Artigas por um rio, com quem sustenta certas trocas comerciais. Na região sul do Estado está localizado próximo a Lagoa dos Patos, a cidade de Pelotas com seu importante mercado. Também possui a maior produção brasileira de charque, abastecendo importantes cidades de outras regiões tais como Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Duas outras cidades localizadas nas margens da Lagoa dos Patos se destacam. A leste, S. José do Norte. A oeste, a cidade do Rio Grande, que empresta seu nome ao Estado, com suas históricas construções coloniais, localizada exatamente na ponta de uma península entre as lagoas. Quanto à atividade portuária S. José do Norte apresenta melhores condições de navegabilidade do que Rio Grande. Enquanto os projetos de ampliação não se tornam realidade os produtores de charque buscam no transporte terrestre uma alternativa aos riscos da navegação. As ferrovias que ligam o Rio Grande a Pelotas prosseguem a oeste até a cidade de Bagé que em certos lugares surgem afloramentos de carvão mineral. Bagé por sua indústria e Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 6 população se aproxima em termos de identidade com as cidades platinas. A oeste de Bagé localiza-se a cidade de Santana do Livramento, estas duas cidades gaúchas serviram para os uruguaios como refúgio e quartel-general em momentos de necessidade. Mais ao norte das duas últimas cidades gaúchas, encontra-se a cidade de Lavras com suas riquezas minerais de chumbo, cobre e ouro. Na região oeste do Estado às margens do rio Uruguai, localiza-se a cidade de São Borja que faz divisa com a Argentina. No passado, no período das missões jesuítas foi o núcleo populacional permanente mais antigo do Rio Grande do Sul. Ao sul de São Borja, está a cidade de Itaqui, que possui localização estratégica junto à fronteira com a Argentina, porém mantém relações comerciais com Montevideu via rio Uruguai. Próximo a Itaqui se encontra a cidade de Alegrete, que depende do porto da cidade gaúcha de Uruguaiana que se localiza na margem brasileira do rio Uruguai; já na margem argentina, está a cidade de Paso de los Libres. Uruguayana foi fundada em 1843 e teve papel central na Guerra do Paraguai. A divisão regional do Brasil a partir do Tomo XIX da Nouvelle Geographie Universelle (1894) de Élisée Reclus. Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 7 fonte: SILVA, Moacir M. F. Geografia dos Transportes no Brasil. 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