LARGO DO PAISSANDU intervenção com inclusão FAUUSP – Trabalho Final de Graduação 2º sem / 2002 orientador: Prof. João Sette Whitaker Ferreira Ana Carolina Louback Lopes Anita R. Tan De Domenico 1 “Moradia digna é aquela localizada em terra urbanizada, com acesso a todos os serviços públicos essenciais por parte da população, que deve estar abrangida em programas geradores de trabalho e renda”. (Projeto Moradia, 2000) 2 AGRADECIMENTOS Aos membros da banca examinadora Arq. Celso Sampaio – Cohab; Prof. Dr. Khaled Ghoubar; Arq. Wagner Germano – Cohab; Aos professores e funcionários da FAU Profª. Andreína Nigriello; Prof. Antonio Carlos Barossi; Profª. Denise Duarte; Prof. José Eduardo de A. Lefevre; Arq. Rafael Brandão – LABAUT; Funcionários do LAME, sobretudo ‘mestre’ Laércio; Funcionários da biblioteca, sobretudo Regina; Gisela e Toninho, do Lab. Fotografia; Cidão e Robson, do LPG; Ana, do xerox; Aos consultores Arq. Alejandra Devecchi – Ambiente Urbano; Eng. Cláudio de Sena Martins – Instituto Mais São Paulo; Arq. Gisele – Secretaria Municipal de Habitação do Rio de Janeiro; Eng. Yopanan Rebello; À Irmandade N. Sra. do Rosário dos Homens Pretos, sobretudo ao Madureira e ao Brás; À Rosa, da Imobiliária Savoy, e ao Sr. Oliveira e demais funcionários do edifício do Cine Olido; Aos amigos, sobretudo Arq. Arthur P. S. Brito; Arq. Camila R. Calazans; Arq. Luiz Portugal; Ligia R. Rodrigues; Arq. Mirian S. Vaccari; Arq. Mônica P. Marcondes; Arq. Roberto Pompéia; Daniel Yuhasz – Integra Cooperativa de Trabalhos Interdisciplinar; Ao Arq. Paulo Fecarotta (Fino), professor e amigo; Ao nosso orientador, João; Às nossas famílias. 3 ÍNDICE APRESENTAÇÃO pg. 05 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA pg. 06 A formação do Triângulo A transposição do Anhangabaú A configuração de um “Centro Novo” O esvaziamento do Centro A situação atual pg. 07 pg. 07 pg. 09 pg. 10 pg. 12 A QUESTÃO DA HABITAÇÃO pg. 14 Quadro geral O caso de São Paulo Experiências de reabilitação de edifícios A habitação social no exterior pg. 15 pg. 18 pg. 20 pg. 23 A ÁREA DE ESTUDO pg. 25 Histórico Perfil atual Novos projetos PROJETO pg. 26 pg. 31 pg. 36 pg. 39 Requalificação do Edif. Domingos Fernandes Alonso Centro de Cultura Afro-Brasileira BIBLIOGRAFIA pg. 45 pg. 74 pg. 88 4 Inúmeras têm sido as propostas para a recuperação do Centro de São Paulo. Projetos pontuais prometem promover a reabilitação de seus entornos, atraindo investimentos e valorizando a região. Recursos vultosos são empregados no setor cultural, com a implantação de edifícios modernos e pomposos. O cenário que se configura gera expectativa, impressionando e convencendo a população de que uma verdadeira reforma urbana se concretizará. Não é bem isso que acontece. Mais uma vez a cidade é contemplada com intervenções que favorecem apenas as classes dominantes e que geram um processo de expulsão das camadas mais pobres da população. A elite promove uma “reintegração de posse”, voltando a mostrar interesse por uma área que, por décadas, preferiu abandonar. Às classes menos favorecidas não resta opção senão a ocupação das periferias, provocando uma expansão excessiva e desordenada da cidade, que atinge inclusive as áreas de preservação. deveria ser esquecida, mas sim ressaltada. A presença da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos é fruto de muita resistência às políticas segregacionistas que guiaram a evolução das áreas centrais. A partir dessas premissas, a proposta que segue pretende definir um projeto integrado, voltado para uma área específica, mas baseado no contexto da área central como um todo. Vale mencionar ainda que a opção pelo trabalho em dupla surgiu da pertinência em se fundir duas propostas originalmente distintas, contudo complementares: a “Requalificação de Edifício para Habitação” e a “Produção de Equipamentos Sociais no Centro”. Com isso, possibilitouse o estabelecimento de uma discussão mais aprofundada e a elaboração de um estudo mais abrangente. Diante desse quadro, este trabalho procura esboçar uma proposta de reabilitação de espaço degradado na área central, baseada não só na melhoria da qualidade ambiental, mas, sobretudo, na inclusão social, procurando atender às necessidades básicas da população. A produção de habitação de interesse social é colocada como o elemento-chave para o processo de transformação espacial e social, uma vez que concilia a necessidade de revitalização da área central à enorme demanda por moradia popular. Da mesma forma, a implantação de novos equipamentos sociais é considerada indispensável, tendo em vista a necessidade de ampliar a oferta destes serviços, já deficitários. Levando-se em conta a presença significativa de imóveis ociosos no Centro de São Paulo, opta-se pela requalificação de edifícios, acreditando-se ainda que a conversão de usos, além de otimizar a estrutura já instalada, funcionaria como um instrumento de preservação do patrimônio arquitetônico. As especificidades da área de intervenção também determinam elementos definidores da proposta. O Largo do Paissandu, objeto de estudo, guarda, sobretudo, uma história peculiar, que não podia, nem 5 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA 6 A FORMAÇÃO DO TRIÂNGULO Antes de se tornar a metrópole que é hoje, a cidade de São Paulo viveu um longo período de grande isolamento em relação ao resto do país, devido principalmente à sua localização geográfica, tendo a Serra do Mar como grande barreira. Fundada pelos jesuítas, São Paulo surgiu, em 1554, como um pequeno núcleo populacional implantado no topo de uma colina, favorecido pela presença de dois rios: o Anhangabaú e o Tamanduateí. Diante de sua difícil acessibilidade, agravada pela relativa pobreza de suas terras, apresentou, inicialmente, um crescimento muito lento. “Na verdade, a colina histórica constituía um recinto quase fechado pela natureza, em virtude das escarpas abruptas que a separavam dos rios Anhangabaú e Tamanduateí.”1 Dessa forma, até a primeira metade do século XIX, a cidade restringiu-se quase que inteiramente ao tradicional Triângulo, formado pelas atuais rua Direita, São Bento e Quinze de Novembro, tendo como centro administrativo o Pátio do Colégio. Além da colina, já havia uma ocupação rarefeita, composta por chácaras e pequenos núcleos residenciais. A transposição do vale se dava por duas pontes, uma ao fim da Ladeira de São João e outra no Piques, que, no entanto, não favoreceram a expansão do povoamento. Somente a partir das décadas de 1870-80, São Paulo iniciou seu processo ininterrupto de crescimento urbano, devido ao sucesso da produção cafeeira no interior e aos conseqüentes investimentos na produção de bens manufaturados, dando origem ao processo de industrialização. Para tanto, foi de essencial importância a localização geográfica da província, o que lhe atribuía um papel estratégico entre as regiões produtoras e o porto exportador de Santos. A situação foi 1 MÜLLER, N. L. – “A Área Central da Cidade”. IN: AZEVEDO, Aroldo de (direção) e outros. A Cidade de São Paulo – Estudos de Geografia Urbana – vol. II, pg. 136. favorecida ainda por sua condição de centro político-administrativo, comercial e cultural da região e, sobretudo, pela construção da rede ferroviária, datando de 1865 a viagem inaugural da São Paulo Railway e, dez anos mais tarde, a inauguração da Sorocabana. Nesse período, a cidade assiste a um crescimento populacional acentuado, sobretudo com a chegada dos imigrantes2, o que faz com que as elites busquem áreas mais resguardadas da atribulação do Centro. A TRANSPOSIÇÃO DO ANHANGABAÚ Dentro desse quadro, acelerou-se o processo de ocupação da margem esquerda do vale do Anhangabaú, sobretudo com o loteamento da Chácara do Chá, em 1876, quando os arredores da Praça da República já se encontravam parcialmente ocupados. “Loteada aquela área, ali se instalaram famílias tradicionais da época, que ‘mandaram construir bonitos prédios’ na rua Barão de Itapetininga. Por isso mesmo, o Centro teria de encontrar, nesse ponto, maior resistência à sua expansão.”3 Essa resistência à expansão, citada por Müller, manteve-se durante as três primeiras décadas do século XX. A construção do Viaduto do Chá, em 1892, embora se configurasse como uma imponente transposição física do vale, não garantia a efetiva acessibilidade à margem oposta, devido à inicial cobrança de pedágio. Tal iniciativa demonstra o intuito de se atender somente a elite, que passava a ocupar as terras a oeste. Mesmo após manifestações populares conseguirem a 2 “De cerca de 31 mil habitantes em 1872, a população passou a cerca de 65 mil em 1890, chegando a 240 mil em 1900 e 357 mil em 1910”. IN: SILVA, Helena Menna B. Habitação no Centro de São Paulo: como viabilizar essa idéia?, pg. 5. 3 MÜLLER, N. L. – idem, pg.140. 7 liberação do tráfego, os terrenos além-Anhangabaú, por não apresentarem uma diversidade e complexidade funcional, ainda não se caracterizavam como uma extensão do antigo Centro. Por outro lado, a travessia pela Rua São João, via eminentemente comercial, configurava-se como o principal vetor de expansão do Centro, mesmo após a construção do Viaduto do Chá. “Com efeito, no início do século XX, (...) o Centro (...) ensaiou uma tímida expansão para a margem esquerda do Anhangabaú, através da antiga Rua de São João, embora não fosse muito além do atual Largo do Paissandu. (...) Depois daquele largo, iniciava-se um bairro essencialmente residencial (...).”4 Adiante da Chácara do Chá, surgiram, ainda, novos bairros de caráter aristocrático e exclusivamente residenciais, como os Campos Elísios e Higienópolis, além da abertura da avenida Paulista, em 1891. Esses loteamentos eram estimulados pelo poder municipal, por meio da isenção de impostos durante os primeiros anos, e seu padrão de ocupação garantido pela própria legislação urbanística. É nítida a influência, já nesta época, do interesse das classes dominantes na configuração do território, induzindo seu crescimento a Sudoeste. A passagem para o século XX, momento em que se implantou o regime republicano, foi marcada por intervenções urbanas preocupadas apenas em transmitir uma imagem de modernização da cidade – em contraste à administração anterior – o que, na prática, implicou principalmente no afastamento da pobreza. Leia-se afastamento e não combate à pobreza (Reis, 1994). Segundo Helena Menna Barreto, “As transformações no espaço e no uso no centro eram também fundamentais para criar condições de maior rentabilidade para o investimento imobiliário e se articulavam com os objetivos da política sanitarista, no sentido de evitar as habitações populares, necessariamente precárias.”5 4 5 MÜLLER, N. L. – ibidem, pg.137. SILVA, Helena Menna B. Idem, pg. 6. Sob o governo do prefeito Antônio Prado (1899-1910), elaboraram-se os primeiros planos urbanísticos para o centro de São Paulo, cuja execução teve início, em 1903, com a demolição da Igreja do Rosário, que cedeu lugar à atual Praça Antônio Prado. Dentre as obras realizadas pelo chamado “Plano de Melhoramentos”, estão a canalização do Anhangabaú, concluída em 1906, a construção do viaduto Santa Ifigênia em 1913, além da remodelação do vale. Elaboradas diversas propostas, o redesenho do Vale do Anhangabaú seguiu as diretrizes do Plano Bouvard que, atendendo aos interesses públicos, era marcado por seu apelo estético nos moldes franceses. Finalizadas as obras, em 1918, o Vale se torna reduto da elite paulistana. “Invertia-se, portanto, a polarização da cidade. O que havia sido a sua porta de entrada, local de habitação do governador e das famílias mais abastadas, na parte leste da colina, transformava-se agora em zona industrial. O lado oposto, que durante séculos foi considerado o quintal da cidade, o Vale do Anhangabaú, transformou-se no ponto central da cidade, no seu cartão de visitas, a partir do qual se tinha acesso, pela Avenida São João e pelos seus viadutos, aos bairros residenciais de alta renda.”6 Essa transferência de valor criou uma nova centralidade, imposta pelas classes dominantes e concretizada pelas intervenções do poder público. Evidencia-se, assim, o quadro de segregação espacial que se instalava, marcado pela valorização das terras e protegido pela própria legislação urbanística. “Através da segregação, as camadas de alta renda dominam o espaço urbano não só produzindo suas áreas residenciais nas áreas mais agradáveis e bem localizadas, mas também atuando sobre toda a estrutura urbana segundo seus interesses”.7 6 REIS FILHO, Nestor Goulart. Algumas Experiências Urbanísticas do Início da República: 1890-1920, pg. 49. 7 VILLAÇA, Flávio. “Efeitos do Espaço sobre o Social na Metrópole Brasileira”. IN: SOUZA, Maria Adélia A. e outros. Metrópole e Globalização. Conhecendo a Cidade de São Paulo, pg. 224. 8 A CONFIGURAÇÃO DE UM “CENTRO NOVO” A margem esquerda do Anhangabaú, área ocupada majoritariamente por chácaras, assiste, já em 1808, à abertura de diversas ruas, cujo núcleo central situava-se no atual Largo do Arouche. Décadas mais tarde, é construído o Largo dos Curros, hoje Praça da República, não com a configuração de uma praça, mas como uma área destinada à realização de touradas. Ainda nesta época, foi aberta a Rua dos Bambus, atual Avenida Rio Branco. Nas terras da então Chácara do Chá implantou-se, em 1876, a Rua do Chá, hoje Barão de Itapetininga, além das atuais Xavier de Toledo, Conselheiro Crispiniano, Dom José de Barros e 24 de Maio. Apesar desse arruamento, a ocupação do lado oeste do vale, durante as duas primeiras décadas do século XX, não se incorporou ao antigo Centro, por não apresentar ainda uma diversidade funcional. Caracterizava-se essencialmente por residências e pensões – instaladas nos terrenos mais próximos às margens do rio, até o Paissandu – enquanto as áreas mais distantes, como a Praça da República e o Largo do Arouche, abrigavam atividades de pouco prestígio, caracterizando-se, inclusive, como zona de meretrício. Data de 1894 a instalação, na Praça da República, da Escola Normal e conseqüente urbanização da praça. A fixação das elites na Barão de Itapetininga impulsionou uma rápida valorização desta área, que teve início com a construção do Viaduto do Chá e culminou com o plano de Bouvard para o Anhangabaú e a, quase simultânea, construção do Teatro Municipal, inaugurado em 1911. No período que se seguiu, novos usos viriam a se instalar na região, atraídos pela presença dos nobres moradores e contemplando o cenário glamouroso que ali se instalava. Além de comércio e serviços requintados, novos edifícios passaram a abrigar escritórios e atividades culturais. Configurava-se uma nova dinâmica, que viria a promover efetivamente uma expansão do Centro, incorporando o lado oposto do vale: o “Centro Novo”. “Foi somente nos últimos vinte anos que teve lugar a integração ao Centro da área compreendida entre o Vale do Anhangabaú e a Praça da República; e o fato se tornou indubitável notadamente a partir do ano de 1940. (...) Para isso concorreram muitos fatores: a mudança da ‘Casa Mappin’ ou ‘Anglo-Brasileira’, da Praça do Patriarca para a Praça Ramos de Azevedo (1939), a abertura da Rua Marconi (1938) e a construção do novo Viaduto do Chá (que, com sua estrutura de cimento armado, substituiu o velho viaduto de estrutura metálica e pavimento de tábuas), entregue ao público em 1936 – constituíram os fatores principais dessa fulminante marcha do Centro, no rumo de Oeste.”8 O crescimento da cidade para além do Centro Histórico está intimamente ligado às mudanças econômicas que ocorreram na passagem para o século XX. Devido à abolição da escravatura e conseqüente salto populacional (imigração européia), o capital dos investidores passa a ser aplicado em terras, levando a um novo processo de construção da cidade e da legalidade urbana. Enquanto, na formação inicial da cidade, avançava-se de acordo com a real necessidade de ocupação, sem planejamento ou desenho, a partir do momento em que a propriedade fundiária passa a ser o lastro do capital, surgem inúmeros empreendimentos imobiliários (loteamentos e arruamentos), independentes da necessidade de expansão da cidade – “separação entre a propriedade e a efetiva ocupação” (ROLNIK, 1997). Inicia-se um intenso processo de especulação imobiliária, que determinaria a configuração sócio-espacial da futura metrópole. Vale ressaltar, que a presença de um projeto de ocupação, aliado às condições topográficas além-Anhangabaú, levaram à marcante diferença de traçado viário entre Centro Velho e Centro Novo: ruas desalinhadas e irregulares de um lado, contrapondo-se ao traçado mais regular e até ortogonal dos novos bairros recém-loteados. 8 MÜLLER, N. L. Ob. cit., pp.142 e 143. 9 O ESVAZIAMENTO DO CENTRO Já no final do século XIX, verifica-se uma política de expulsão das camadas populares da área central, evidenciada pelo Código de Posturas do Município e pelo Padrão Municipal, que tentavam acabar com a presença dos cortiços. Tal intenção seria reforçada pelas intervenções implementadas pelos Planos de Melhoramentos e pela introdução da iluminação pública, que levaram a uma acentuada valorização imobiliária e à possibilidade de novos usos. Por outro lado, as camadas mais ricas já se dirigiam aos bairros exclusivamente residenciais de alto padrão, desocupando casarões, que viriam a abrigar inúmeros cortiços. A valorização da área central impulsionou seu processo de verticalização, iniciado no final do século XIX, o que levou a um significativo adensamento (vide tab.1). Os problemas de tráfego foram acentuados, sobretudo com o crescimento da frota de automóveis e com o desinteresse na implementação de um sistema de transporte de massa eficiente. A dificuldade de acessibilidade a áreas mais distantes dificultava o processo de expansão, apesar da “saturação” do Centro. Tabela 1 – Cidade de São Paulo – Expansão predial (1886-1900). ano Fonte: MÜLLER, N. L. – “A Área Central da Cidade”. IN: AZEVEDO, Aroldo de (direção) e outros. A Cidade de São Paulo – Estudos de Geografia Urbana – vol. III, pg. 143. 1886 1891 1895 1900 prédios 7012 10321 18505 21656 população 44030 99930 184145 239820 pessoas/prédio 6,27 9,69 9,95 11,07 Fonte: BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil, pg. 20. O Plano de Avenidas (1929), aliado à implantação de uma rede de transporte coletivo (ônibus), viria a impulsionar o crescimento horizontal da cidade, pretendendo desafogar a área central e solucionar a demanda por moradia, com a ocupação da periferia. 10 Com a Segunda Guerra, a crise econômica iniciada em 1929 se agravaria. As altas taxas de inflação tornavam os imóveis para aluguel pouco rentáveis, sendo melhor negócio mantê-los fechados. A promulgação da Lei do Inquilinato (1942), que, ao congelar o valor dos aluguéis, acabou por elevá-los, aumentou o número de despejos e a demanda por habitação popular. Esse processo se repetiria com a ocupação da Paulista, a partir da metade do século XX, e, novamente, nos anos 80, com a consolidação dos eixos Faria Lima e Berrini. Essa novas centralidades, caracterizadas por usos especializados, diferenciam-se do centro tradicional e contrariam o próprio conceito de centro urbano, baseado na diversidade funcional.10 Diante desse quadro, não restou à população mais pobre outra alternativa senão seu deslocamento para a periferia. O poder público mais uma vez adotava uma postura excludente e descompromissada, deixando a questão habitacional a cargo da autoconstrução em áreas distantes e completamente desprovidas de infra-estrutura, reduzindo ao mínimo a necessidade de investimentos em moradia. “O centro tradicional, enquanto foi centro da minoria – das burguesias –, era o centro da cidade. Hoje, ele é o centro da maioria popular. Justamente agora que o centro ‘velho’ é o centro da cidade – pois agora ele é o centro da maioria –, a ideologia dominante declara que a cidade tem um novo centro. É curioso. O centro novo, segundo a ideologia dominante, passa a ser o centro da minoria. É o processo de universalização do particular por parte da classe dominante. O ‘seu’ centro deve ser sempre o centro da cidade.”11 “(...) longe de representar ausência de planejamento, o padrão periférico responde a uma estratégia de máxima acumulação capitalista. (...) o modelo amplia as possibilidades de especulação imobiliária e de rendimento eleitoral através de uma política clientelista, que barganha apoio nas urnas por algumas melhorias urbanas, ainda que modestas, em bairros dispersos”.9 Desta forma, o uso habitacional foi transferido para outras regiões, restando poucos moradores, em sua maioria vivendo ilegalmente em cortiços. O Centro passou, então, a se configurar como um pólo exclusivo de comércio e serviços. Contudo, já nas décadas de 50 e 60 inicia-se o deslocamento de centralidade para a Avenida Paulista, sob a alegação de se encontrar o Centro degradado e obsoleto, enfrentando problemas de trânsito e poluição. É importante verificar que essa transferência de centralidades é determinante no processo de metropolização de São Paulo. No início do século, com a transposição do Anhangabaú, as elites passam a ocupar o Centro Novo, levando consigo comércio e serviços de melhor padrão e abandonando o Centro Velho para as camadas populares. 9 ROLNIK, Raquel; SOMEKH, Nádia; KOWARICK, Lúcio (org.). São Paulo: Crise e Mudança, pg. 77. 10 “O distrito, e sem dúvida o maior número possível de segmentos que o compõem, deve atender a mais de uma função principal; de preferência, a mais de duas. Estas devem garantir a presença de pessoas que saiam de casa em horários diferentes e estejam nos lugares por motivos diferentes, mas sejam capazes de utilizar boa parte da infra-estrutura”. JACOBS, Jane. Morte e Vida das Grandes Cidades, pg. 167. 11 VILLAÇA, Flávio. Espaço Intra-Urbano no Brasil, pg. 346. 11 A SITUAÇÃO ATUAL A partir dos anos 60, a área central apresenta um acentuado decréscimo populacional, em contraposição às periferias, que passam a receber contingentes de moradores cada vez maiores. Tabela 2 – Evolução da participação relativa das populações, segundo zonas (1960, 1970, 1980). Zonas do município Centro Histórico Centro Expandido Oeste Sul Sudeste Leste 1 Leste 2 Norte 1 Norte 2 Município de SP 1960 10,1 22,1 1,9 8,1 17,2 14,9 3,3 2,5 19,9 100,0 1970 5,5 15,8 3,0 14,5 15,2 14,4 8,4 3,2 20,0 100,0 passou a ser um enorme entrave ao seu desenvolvimento, um grande problema aos olhos do poder público. Os dados apresentados na tabela 3, além de comprovar o citado esvaziamento da área, mostram que esse processo se estendeu até o final do século, fato evidenciado pelas gradativas taxas negativas de crescimento populacional. Simultaneamente, comparando-se estes índices aos da zona leste, evidencia-se uma intensa periferização da população. Tabela 3 – AR Sé – População residente e taxa de crescimento. 1980 3,8 13,5 3,7 19,8 13,0 12,9 11,9 3,4 18,0 100,0 Fonte: SILVA, Helena M. Barreto. Documento preparatório para o encontro ‘Habitação no Centro de SP: como viabilizar essa idéia?’, pg. 9. Com esse esvaziamento, o Centro teve seu processo de deterioração intensificado. O aumento do número de imóveis ociosos possibilitou a fixação das camadas populares nesta área, contudo, em condições precárias, transformando casarões e edifícios antigos em cortiços. Configurava-se, assim, um quadro completamente desfavorável ao retorno do interesse pela região, que, mesmo sofrendo intervenções pontuais, permaneceu abandonada pela sociedade. Com os anos, a falta de segurança e a desvalorização imobiliária na área central atingiram tais dimensões, que o “coração” da metrópole População Distritos 1980 1991 1996 2000 Taxa de crescimento 80/91 91/96 96/00 85416 71825 64895 63143 -1,56 -2,01 -0,7 Bela Vista 47588 36136 27788 26569 -2,47 -5,12 -1,1 Bom Retiro 38630 33536 26665 24505 -1,28 -4,48 -2,0 Brás 44851 37069 32089 28620 -1,72 -2,84 -2,7 Cambuci 77338 66590 58588 54301 -1,35 -2,53 -1,8 Consolação 82472 76245 64349 61850 -0,71 -3,34 -1,0 Liberdade 26968 21299 15434 14521 -2,12 -6,24 -1,5 Pari 60999 57797 49666 47459 -0,49 -2,99 -1,1 República 94542 85829 75826 71111 -0,88 -2,45 -1,5 Santa Cecília 32965 27186 21255 20103 -1,74 -4,80 -1,3 Sé 591769 513512 436555 412182 -1,20 -3,00 -1,4 Total AR-Sé 8493226 9646185 9839436 10405867 1,16 0,40 1,4 Mun. SP Fonte: PMSP, SEMPLA. São Paulo em Números, pp. 42 e 43. 2000 e 2001. Contudo, dotada de ampla infra-estrutura e dispondo de farta rede de transportes – sobretudo após a construção do metrô –, a região, mesmo degradada, continuava a apresentar um potencial elevado de reocupação. Dessa forma, a década de 90 veio a assistir à chamada “revalorização” do Centro, marcada por mudanças grandiosas, como é o caso da remodelação do Anhangabaú e requalificação da área da Luz. Elaboraram-se ainda projetos pontuais, como o Shopping Light, a Sala São Paulo, a reforma da Pinacoteca, do antigo DOPS e do prédio dos Correios. Estes funcionariam como “âncoras culturais” que, teoricamente, desencadeariam um processo de recuperação do entorno. 12 Entretanto, vale ressaltar que tais intervenções, assim como os Planos de Melhoramentos do início do século, voltaram-se unicamente ao embelezamento e valorização imobiliária da região, não atendendo às classes de menor poder aquisitivo. Pelo contrário, o que se observa é, mais uma vez, a expulsão progressiva dessa população e a formação de um “Centro cultural” restrito à elite, evidenciando descaso frente aos problemas sociais, que só tendem a serem acentuados. “O grande risco desse enfoque das coisas é que a gente pode descambar para a estética urbana, não é isso? E para a cosmética urbana, que é a grande moda atual. E para o divertimento das pessoas. E, com isso, se desvia também a direção política. Você não enfrenta os problemas: oferece, cristalizados, os novos espaços”.12 Desse modo, a implantação desses edifícios culturais, apesar de exercerem um papel importante como chamariz do público, apresenta um caráter segregacionista e isolado, não havendo integração com outras propostas de cunho social. Essa prioridade por projetos culturais elitistas deve-se, em parte, à parceria com a iniciativa privada, que os utilizou como instrumentos de propaganda, valendo-se, ainda, das leis de incentivo à cultura. “A reintegração de posse exige a saída daqueles que ‘indevidamente’ ocuparam o Centro, durante os anos em que a elite estava mais interessada nos novos bairros exclusivos do setor sudoeste da cidade”.13 Hoje, é consenso que, para a efetiva requalificação da área central, é necessária uma diversidade funcional que garanta sua ocupação em tempo integral, e por toda a população. Para tanto, o incentivo ao retorno do uso residencial socialmente diversificado é fundamental, o que atenderia, também, parte da demanda metropolitana por habitação social, reduzindo o crescimento horizontal da cidade e a pressão em áreas ambientalmente frágeis (mananciais). Nos últimos anos, a realização de ocupações de edifícios por parte dos movimentos populares veio a aumentar a pressão por moradia de interesse social no Centro, denunciando o problema habitacional e o abandono de imóveis públicos e privados. Paralelamente, instrumentos legais vieram a facilitar e estimular a implantação de uma política de reabilitação. A aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, permite a aplicação de novas medidas como, por exemplo, o IPTU progressivo, que viria a reduzir a subtilização de imóveis. A recente aprovação do novo Plano Diretor trará novas possibilidades, como, por exemplo, a instituição de ZEIS. Ainda na tentativa de atrair o investimento privado, em 1997 concebeuse a Operação Urbana Centro, instrumento legal que permite alterar normas do zoneamento, aumentando, sobretudo, o potencial construtivo dos lotes. Apesar de tal medida objetivar o adensamento da área de influência, ao gerar uma valorização dos imóveis, tende a afastar as camadas populares, impossibilitadas de arcar com os novos valores. Tal processo vem a promover, portanto, uma “reintegração de posse” por parte da classe dominante. 13 12 SANTOS, Milton. Cadernos do Le Monde Diplomatique - Um outro mundo urbano é possível. IN: http://www.forumcentrovivo.hpg.ig.com.br. ANDRADE, Julia; ARANTES, Pedro; FIX, Mariana; LEITE, José Guilherme; WISNIK, Guilherme. “Notas sobre a Sala São Paulo e a nova fronteira urbana da cultura” IN: Revista Pós, no 9, pp. 192 a 209. 13 A QUESTÃO DA HABITAÇÃO 14 QUADRO GERAL Paulo, uma vez que a segregação social torna-se insuficiente para garantir o conforto da classe dominante. A ausência de um planejamento integrado permitiu que a cidade de São Paulo, surgida a partir de um pequeno núcleo populacional, crescesse sem qualquer parâmetro, limite ou condição, atingindo rapidamente proporções gigantescas, o que traria à tona diversas deficiências embrionárias. Com o sucesso da atividade cafeeira e o surgimento de atividades urbanas ligadas a ela, problemas antigos tornaram-se inaceitáveis. Este é o caso, sobretudo, das habitações precárias que até então configuravam o cenário paulistano. “Se a expansão da cidade e a concentração dos trabalhadores ocasionou inúmeros problemas, a segregação social do espaço impedia que os diferentes estratos sociais sofressem da mesma maneira os efeitos da crise urbana(...)” 15 A partir da década de 1880, quando o café vem a promover uma extraordinária expansão do mercado de trabalho, a precariedade com que se aloja a imensa massa de trabalhadores passa a constituir uma grave ameaça à saúde pública. A significativa vinda de imigrantes, marcada pela instalação da Hospedaria dos Imigrantes em 1886, viria a acentuar a crise. Com a publicação do Relatório da Comissão de Exame e Inspeção das Habitações Operárias e Cortiços no Districto de Santa Ephigênia (1894), a precariedade dos bairros operários é evidenciada e passa a ser encarada como uma ameaça à saúde pública, tornando-se incômoda inclusive à classe dominante. Desta forma, não sem uma certa pressão, higienistas, engenheiros e médicos passaram a ocupar papéis importantes na administração pública, introduzindo o controle sanitário das habitações, criando legislação e códigos de postura e participando diretamente de obras de saneamento das baixadas, urbanização da área central e implantação de infra-estrutura. É nesta época que a cidade enfrenta seu primeiro surto populacional, chegando a atingir uma taxa de crescimento de 28% entre 1890 e 1893 (Morse, 1970). A mancha urbana passa a se expandir em todas as direções, com o loteamento de chácaras e abertura de novos bairros. Com isso, a cidade passa a enfrentar sérios problemas referentes à infra-estrutura urbana, sobretudo no referente aos transportes e às redes de abastecimento de água e coleta de esgotos.14 Entretanto, vale ressaltar que as medidas sanitaristas traziam uma clara intenção de eliminar os cortiços e demais aglomerações operárias da área central, objetivando, antes de mais nada, promover uma limpeza social, acelerando o processo de segregação por meio da intervenção pública (Bonduki, 1998). Além disso, constituíam instrumento de controle social, uma vez que regulamentavam não só o espaço urbano, mas também o comportamento dos moradores, infringindo a privacidade. Entretanto, os últimos quinze anos do século XIX seriam marcados apenas pela piora das condições de vida da classe operária, registrandose aumento da taxa de ocupação das moradias e do valor dos aluguéis. Por outro lado, investia-se em novos bairros de luxo, onde se alojava a elite cafeeira, indiferente à deterioração e preocupada em reproduzir para si um cenário semelhante às grandes capitais européias. É então que surgem os primeiros indícios de segregação espacial em São Apesar dos investimentos em melhorias para as habitações operárias, havia um problema maior: o reduzido número de unidades. No entanto, o poder público rejeitou a possibilidade de produção direta de moradia, passando a responsabilidade às mãos do setor privado, com a concessão de favores. “Construir casas, ‘assumindo o papel capitalista’, era incompatível com a concepção liberal do estado vigente até 1930”.16 15 14 Até então, as únicas iniciativas neste campo provinham de particulares que detinham concessões públicas (Bonduki, 1998). 16 BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil, pg. 20. BONDUKI, Nabil. Idem, pg. 40. 15 Desse modo, surgem, nesse período, as vilas operárias, construídas por empresas e destinadas a seus funcionários ou por investidores privados, objetivando o mercado de locação. As vilas, além de consideradas o modelo almejado pelos higienistas, constituíam uma forma de controle dos operários, estendendo a ditadura das fábricas às horas livres. Segundo Rolnik (1981), “funciona como um verdadeiro laboratório de uma sociedade disciplinar, combinando um saber higienista com um poder que ao mesmo tempo proíbe, pune, reprime e educa”. Entretanto, esta surtiu efeito contrário, ocasionando alta dos preços e conseqüentes despejos. Por outro lado, a produção rentista de habitação gera um aumento no número de habitações coletivas e precárias – os cortiços – uma opção rentável para o proprietário e mais econômica para o operário. Na década de 40, as grandes cidades brasileiras vêm a assistir a uma intensa crise habitacional, ocasionada não só pela eclosão da Segunda Guerra, que traria a alta dos preços, mas também pelo impasse do Estado entre investir no desenvolvimento tecnológico ou na supressão do déficit habitacional (Bonduki, 1998). A situação seria agravada ainda por um significativo êxodo rural. É somente a partir de 1930, com a ditadura Vargas, que a habitação social é tomada como preocupação do poder público, sendo encarada como condição básica de reprodução da força de trabalho e como elemento de formação ideológica, política e moral do trabalhador, características essenciais para se promover o tão almejado desenvolvimento nacional (Bonduki, 1998). Dessa forma, o problema da moradia tornou-se um tema multidisciplinar, mobilizando desde técnicos a intelectuais. Neste período, merece destaque a atuação dos IAPs (Institutos de Aposentadoria e Pensão), criados a partir de 1937. Apesar da produção reduzida, contribuíram com alguns projetos de significativo valor arquitetônico, e mesmo inovadores, como é o caso dos conjuntos residenciais de Pedregulho e da Gávea. Passou-se a incentivar a racionalização e a produção em maior escala, buscando-se sempre estimular a industrialização. Por outro lado, o mercado rentista passou a ser encarado como algo ineficiente na produção social de moradia, uma vez que, além de proporcionar uma oferta escassa, ainda “engolia” os subsídios, que vinham em forma de isenção fiscal, encontrando-se aluguéis cada vez mais exorbitantes. Para conter tal processo, o governo instituiu a Lei do Inquilinato (1942), que viria a congelar os valores dos aluguéis. Neste contexto, ganha espaço a casa própria unifamiliar, cuja aquisição se tornava possível com a criação de linhas de financiamento. Tal opção aparece como algo extremamente oportuno, visto que, além de constituir importante instrumento de marketing para o Estado, era uma forma de afastar a população pobre das áreas centrais, transferindo-as para as periferias, onde os preços eram-lhe acessíveis. O cenário paulistano neste período é realmente contraditório: apesar da crise habitacional, a cidade assiste à implantação de grandes e imponentes avenidas e ao surgimento de arranha-céus, que pretendiam exibir o apuro tecnológico. Diante dessa crise, a solução de moradia passa a ser a autoconstrução em bairros periféricos completamente desprovidos de infra-estrutura. Tem início também nesta época o desenvolvimento de favelas, a princípio nas áreas centrais, numa tentativa de assegurar a proximidade do local de trabalho. Ocupava-se terrenos ociosos ou mesmo impróprios a assentamentos habitacionais. Em 1946, o prefeito Abraão Ribeiro implantou os primeiros alojamentos provisórios (“pulmões”) da cidade de São Paulo, objetivando eliminar, rapidamente, as favelas que se implantavam no Centro da cidade, chocando à elite paulistana. Tal intervenção, apesar do caráter paliativo, viria a criar tradição, como uma etapa do processo de desfavelamento e remoção, que muitas vezes não chega a ser concluído. 16 Vale ressaltar que até a década de 70 o crescimento de favelas em São Paulo permaneceu restrito, uma vez que a enorme oferta de lotes na periferia constituía uma opção de vida mais digna para a população. Ainda em 1946, é instituída a Fundação da Casa Popular, primeiro órgão de âmbito nacional a atuar exclusivamente na provisão de habitação social. Entretanto, devido a questões político-econômicas, este teve uma produção bastante reduzida. Em 1964, sob a ditadura, os IAPs são extintos, cedendo lugar ao Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e ao Banco Nacional de Habitação (BNH), uma tentativa não só de produzir habitação em massa, mas também de estimular a conjuntura econômica – que enfrentava forte crise – por meio da criação de empregos na indústria da construção. A partir de então as políticas habitacionais concentraram-se apenas na construção de grandes conjuntos periféricos. Em muitos casos, a economia realizada na compra dos terrenos desaparecia frente aos enormes gastos com infra-estrutura e equipamentos (Silva, 2000). Consolidava-se um quadro de especulação imobiliária e segregação espacial. Em 1986, com o Plano Cruzado 2, o BNH foi extinto e incorporado à Caixa Econômica Federal. A partir daí pouco se fez, em âmbito nacional, pela questão da habitação. O SFH entrou em crise, sobretudo a partir de 1991, quando Collor facilitou a quitação da casa própria pela metade do saldo devedor (Taschner, 1997), o que aumentaria significativamente o déficit. financiamento diferentes, dispersando recursos em intervenções sobrepostas, adotando subsídios sem critérios sociais claros etc”. 17 A partir desses dados, verifica-se que as políticas urbanas no Brasil sempre procuraram fugir do problema real, adotando medidas paliativas ou simplesmente ilusórias, o que acontece, sobretudo, no campo da habitação. Elementos determinantes, como a questão fundiária, são ignorados por programas de governo (Maricato, 2001). Permite-se que o mercado imobiliário dite as regras de ocupação da cidade, o que passa a inviabilizar qualquer proposta de reforma urbana que altere o quadro vigente. A partir de 2003, com o novo governo, espera-se grandes mudanças no quadro habitacional. O Projeto Moradia, proposta elaborada em 2000 sob a coordenação do atual presidente Luís Inácio Lula da Silva, baseiase numa política de articulação do poder público nos três níveis com a iniciativa privada e as organizações civis. Propõe a instituição de um Sistema Nacional de Habitação descentralizado e baseado na participação da sociedade, na ordenação das intervenções por meio de Planos Habitacionais e na unificação dos sistemas de financiamento, buscando evitar sobreposição de atribuições e de intervenções. O Projeto Moradia propõe diversidade de programas e projetos, de acordo com necessidades e possibilidades específicas, atuando desde a melhoria das condições existentes (regularização de favelas e cortiços, urbanização de loteamentos ilegais, requalificação de imóveis e áreas degradadas, etc) até a produção de novas unidades. Para tanto, defende a concessão de subsídio às famílias mais pobres e prioriza as áreas com maior déficit habitacional, contando com a solidariedade entre Estados e Municípios. “Após a extinção do Banco Nacional de Habitação (BNH) e da desestruturação do SFH (Sistema Financeiro de Habitação), que se caracterizavam, equivocadamente, pela centralização e autoritarismo, o que se verifica hoje é a total desorganização da área, com a atuação de diferentes esferas de governo, cada qual adotando regras de 17 CAMARGO, J. A. e SILVA, L. I. L. (coord.). Projeto Moradia, pg. 36. 17 O CASO DE SÃO PAULO A partir da década de 70, com a acentuada crise econômica pela qual passava o país, intensificou-se a formação de favelas e cortiços, sobretudo na cidade de São Paulo. Neste mesmo período, surge o Movimento de Cortiços, uma forma de organização popular que passa a pressionar o poder público para ter acesso a programas de melhorias das moradias. Com isso, evidencia-se a necessidade de reforçar o uso residencial no Centro. Entretanto, é somente na administração de 89-92 que surgem programas abrangentes visando viabilizar a produção de habitação de interesse social nas áreas centrais. Foi criado o Programa de Cortiços, que contava com uma linha de financiamento específica, inteiramente com recursos municipais. Este programa atuava tanto na reabilitação de edifícios quanto na recuperação de quadras inteiras, com a produção de novas unidades habitacionais. No entanto, o programa foi interrompido pela administração seguinte. É também neste período que a habitação social no Centro passou a integrar as discussões sobre ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social) e sobre a legislação específica para HIS (Habitação de Interesse Social). A partir de 1997, a realização de ocupações de edifícios por parte dos movimentos populares veio aumentar a pressão por moradia de interesse social no Centro, denunciando o problema habitacional e o abandono de imóveis públicos e privados. Em 1998, foi instituído pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) o Programa de Atuação em Cortiços (PAC), programa dirigido exclusivamente aos moradores de cortiços, cujo objetivo é produzir unidades habitacionais a partir de construção nova ou reforma. Entretanto, não havia nenhum programa que privilegiasse a reabilitação de edifícios ociosos do Centro, dentre os quais muitos pertenciam ao próprio poder público. Sendo assim, intensificaram-se as ocupações dos movimentos de moradia. Em 1999, a Caixa Econômica Federal instituiu o Programa de Arrendamento Residencial (PAR), um programa dirigido exclusivamente à população de baixa renda, que financiava projetos de até R$20.000,00 por unidade, com a possibilidade de compra ao final do contrato. Esta linha de financiamento se estende à reabilitação de edifícios nas áreas centrais para habitação de interesse social. Contudo, vale ressaltar que o apenas o PAC e o PAR não são suficientes para garantir uma produção habitacional em massa, uma vez que esbarram em problemas referentes ao valor do financiamento, à rigidez dos parâmetros tipológicos e mesmo às condições de adesão ao programa. Quanto aos projetos de reabilitação, é imprescindível a criação de uma linha de crédito específica, que leve em conta as particularidades de um projeto de reforma. Propostas de adequação de edifícios existentes a novos usos exigem soluções arquitetônicas diferenciadas, sendo complicado seguir os padrões aplicados a projetos de unidades novas. Além disso, tratandose de áreas bem servidas de infra-estrutura, seria natural pensar em um subsídio que auxiliasse na compra do imóvel, uma vez que parte da infra-estrutura implantada em periferias é subsidiada. O investimento do poder público, neste caso, seria ainda altamente compensador, visto que tal medida seria importante não só na supressão do déficit habitacional, mas também na preservação do patrimônio arquitetônico da cidade. A aquisição dos imóveis é geralmente a maior limitante dos projetos de requalificação. Embora o valor de financiamento oferecido pelo PAR tenha se elevado para R$28.000,00 em 2002, com perspectivas de novo aumento, os valores de oferta dos imóveis na área central são altíssimos, sobretudo a partir da última década, quando foram iniciadas grandes obras de revalorização da região, como os pomposos projetos culturais. Este problema é, contudo, reflexo de um mercado imobiliário baseado na especulação e de políticas públicas voltadas para a segregação. 18 Atualmente, instrumentos legais vieram a facilitar e estimular a implantação de uma política de “reabilitação social” do Centro. Com a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001 e a recente aprovação do novo Plano Diretor, São Paulo passa a contar com medidas que deverão reduzir a subtilização de imóveis como, por exemplo, o IPTU progressivo, o usucapião de imóvel urbano e o direito de preempção. Outras medidas devem atuar também no maior aproveitamento dos terrenos, como é o caso da criação de ZEIS. Alguns programas de governo também vêm estimulando a produção de habitação social no Centro, como é o caso do Morar Perto. Programa instituído pelo poder municipal em 2001, cria perímetros de intervenção, dentro dos quais deve-se suceder projetos de reabilitação em massa, aproveitando-se não só edifícios ociosos, como também terrenos desocupados ou subtilizados. Outra possibilidade que já vem sendo estudada há alguns anos é a locação social, uma alternativa que poderia conciliar a capacidade de pagamento da população com a qualidade da habitação. Esta poderia constituir uma solução para as muitas famílias retidas pelas atuais linhas de financiamento por não atingirem a renda mínima exigida ou não conseguirem comprová-la. Recente pesquisa realizada pela Fundação Seade e pela CDHU, referente à população encortiçada do Pari, comprova que 89,1% dos moradores trabalha, mas 42% tem renda até 3 SM (vide gráfico 1).19 “Se essas famílias tivessem como alugar uma kitchenette no centro, viveriam no aluguel, mas, como estão na informalidade e ganham muito pouco, só lhes resta o cortiço.”20 Gráfico 1 – Faixas de renda da população encortiçada de São Paulo. mais de 10 faixa salarial (SM) “(...) é preciso que os agentes promotores e o município definam estratégias que permitam obter terrenos e imóveis por custos adequados agora e depois dos investimentos para melhoria. Isso envolve estratégias de obtenção e instrumentos urbanísticos que produzam este efeito”.18 4,20% 5 a 10 22,10% 3a5 28,20% até 3 sem rendimento 42,00% 3,50% Fonte: FSP, “Cortiço abriga solitário e família pequena”, 05/11/02, pg. C1. Uma primeira experiência, realizada através de uma parceria entre a CDHU e a Prefeitura de São Paulo, foi chamada de “concessão onerosa” e vem sendo testada no empreendimento Pari A, na Av. do Estado. As famílias residentes nesse edifício pagarão aluguel ao Estado por cinco anos, tendo a possibilidade da compra no final desse período. 18 SILVA, H. M. B. Habitação no Centro de São Paulo: como viabilizar essa idéia? (documento preparatório), pg. 42 (grifos do autor). 19 FSP, “Cortiço abriga solitário e família pequena”. 05/11/02, pg. C1. 20 FSP, idem. 19 EXPERIÊNCIAS DE REABILITAÇÃO DE EDIFÍCIOS Projeto Celso Garcia. Embora, em âmbito nacional, o quadro habitacional encontre-se bastante estagnado, ações municipais têm-se mostrado bastante inovadoras, implementando projetos de regularização de favelas, recuperação de cortiços e construção de casas próprias sob regime de mutirão e co-gestão. No caso dos centros urbanos, as experiências que mais têm se destacado são as reabilitações de edifícios antigos, originalmente residenciais ou não. Em São Paulo, embora haja muitos projetos já elaborados, apenas cinco propostas de reabilitação na área central foram executadas. Todas contaram com financiamento do PAR, o que muitas vezes prejudicou o projeto arquitetônico, não só em função das exigências tipológicas que o programa coloca (ambientes segregados, lavanderias individuais, etc), mas também pelo valor que disponibiliza. Em muitos casos, exigiu-se um aumento quase que impossível do número de unidades para que o projeto fosse viabilizado. No caso do Projeto Brigadeiro Tobias, elaborado pela assessoria técnica Integra, a necessidade de aumentar o número de unidades implicou na construção de mais um pavimento. Em outras propostas, por exemplo, a elaborada pela COHAB/Pró-Centro para o Edifício da Rua Assunção, o acréscimo de unidades chega a comprometer a qualidade arquitetônica do projeto. Uma dificuldade constantemente encontrada pelos projetos de reabilitação para habitação social é solucionar a ventilação e a iluminação das unidades, sobretudo quando se trata de edifícios de uso não residencial. No caso do Edifício Banespa - Celso Garcia, além da opção por unidades alongadas nas fachadas, que aproveitavam ao máximo o caixilho existente, foi necessária a abertura de vãos internos. Para tanto, foram removidas partes estratégicas da laje, conservando-se a estrutura. O número reduzido de pavimentos permitiu o bom desempenho da solução empregada. Entretanto, o custo da obra sofreu um significativo acréscimo. Fonte: Integra Cooperativa de Trabalho Interdisciplinar. O Edifício Fernão Sales, primeiro projeto aprovado pelo PAR em São Paulo, elaborado por Helena Saia, poderia ter reduzido os custos das unidades se tivesse mantido o térreo comercial como determinava o projeto original. Por ser localizado numa esquina da Rua 25 de Março, importante corredor comercial da cidade, as lojas constituiriam ponto valorizado. Por outro lado, a conversão de uso pode trazer problemas acústicos para as residências. Uma proposta interessante, apresentada para a reconversão do Hotel São Paulo e elaborada pela assessoria técnica Fábrica Urbana, foi a miscigenação de usos. Esta proposta, por exemplo, sugere que, além das unidades residenciais, alguns pavimentos sejam destinados a serviços públicos e a áreas comerciais, as quais seriam assumidas pela iniciativa privada, podendo gerar um abatimento no valor das habitações. Propõe ainda a incorporação de um terreno contíguo, no qual seriam implantadas áreas de lazer e de convívio. 20 Outra diretriz a ser destacada no projeto do Hotel São Paulo é a diversidade tipológica das habitações, visando atender famílias de diferentes tamanhos e mesmo promover uma certa miscigenação social. Projeto Hotel São Paulo. semelhantes na França têm optado por tubulações externas, com grande sucesso, o que demonstra tratar-se de puro preconceito cultural. A abertura de shafts é necessária em muitos casos, sobretudo quando há conversão de uso, o que implica na ampliação da rede hidráulica. No Edifício Banespa, procurou-se amenizar este problema com a concentração das instalações hidráulicas em um núcleo central. Em alguns projetos, a passagem vertical da tubulação é solucionada por poços de ventilação ou de elevadores desativados. É preciso destacar ainda que, em função das particularidades de cada projeto e, principalmente, dos gastos na aquisição do terreno, os custos de reforma apresentam valores bastante variados. Tab. 4 – Comparativo de custos dos projetos de requalificação executados. PROJETO Fonte: BONDUKI, Nabil e outros. Comissão de Estudos sobre “Habitação na Área Central”. Relatório Final, pp. 150 e 151. Edifício Fernão Sales Edifício Banespa Edifício Brig. Tobias CUSTO GLOBAL (m2) CUSTO OBRA (m2) R$ 346,00 R$ 589,80 R$ 583,83 R$ 134,28 R$ 496,90 R$ 402,30 Fonte: Seminário da Comissão de Estudos sobre Habitação na Área Central, 2001. Apesar da reabilitação de edifícios contar com diversas vantagens, vale mencionar que, por se tratar geralmente de edifícios antigos, abandonados e mal conservados, praticamente nada se aproveita das instalações elétricas e hidráulicas e, algumas vezes, as próprias condições estruturais do imóvel apresentam-se comprometidas. No Projeto Brigadeiro Tobias, um laudo técnico apontou risco de ruína na estrutura do edifício, o que implicou gastos elevados em reforços estruturais. Desta forma, seria importante a criação de linhas de crédito exclusivamente destinadas a projetos de reabilitação, que considerassem tais especificidades. O fato do PAR também não aceitar regimes de mutirão e co-gestão, dificulta ainda mais a redução dos custos. Fora isso, vale ressaltar a inexperiência da construção civil brasileira no que se refere à tecnologia de reformas. Com a especialização do setor, os custos poderiam diminuir. Uma característica comum aos projetos analisados é a opção por instalações embutidas, por motivos de aceitação, o que dificulta não só as obras de reforma, como também a manutenção. Experiências No Rio de Janeiro, o Programa Novas Alternativas, desenvolvido pela Secretaria Municipal de Habitação, também tem apresentado resultados interessantes. Criado com o objetivo de estimular e oferecer opções de 21 moradia nos bairros centrais da cidade, o programa teve início com o projeto piloto de Reabilitação de Cortiços, o qual promoveu a recuperação de três imóveis. As obras empregaram recursos do orçamento municipal e as novas unidades foram ocupadas sob regime de locação, o que gerou um problema para o poder público por não contar com um órgão de gestão específico.21 Por tratar-se de um projeto piloto, procurou-se abranger tipologias bastante variadas, que buscassem exemplificar a diversidade de soluções possíveis para programas de reabilitação. Tomou-se por objeto um edifício construído originalmente para abrigar um cortiço, uma residência unifamiliar posteriormente subdividida e um edifício em ruínas e abandonado, contudo passível de ser ocupado. implicou na total reconstrução de seu interior, restaurando-se apenas as fachadas. A partir do sucesso deste projeto piloto, o Programa Novas Alternativas elaborou uma proposta mais ampla, que engloba, além do programa Reabilitação de Cortiços, o Recuperação de Ruínas e o Recuperação da Vila Operária, todos voltados à produção de habitação social no centro. Para tanto, os projetos passarão a contar com as linhas de crédito oferecidas pelo PAR. Programa Novas Alternativas – Rio de Janeiro. As obras de readequação optaram pela diversidade tipológica das unidades, incluindo cômodos individuais com banheiros coletivos (numa relação média de 3/1) e residência autônomas, ou seja, com banheiro e cozinha próprios. No entanto, a configuração geral da edificação foi mantida, mantendo-se áreas de lavanderia e pátios de uso comum. Embora os projetos tenham procurado minimizar as intervenções internas, em alguns casos, foram necessários reforços estruturais, ou mesmo, alteração dos elementos construtivos. No Edifício da Rua Senador Pompeu, 34, as paredes de taipa tiveram que ser substituídas por blocos de concreto celular, para evitar a sobrecarga, e os pisos de madeira, irrecuperáveis, deram lugar a lajes de argamassa armada. Visando a preservação do patrimônio histórico, dois módulos foram restaurados nos moldes originais. Fonte: http://www.rio.rj.gov.br/habitacao/. Contudo, o exemplo mais crítico foi o do sobrado da Rua Sacadura Cabral. O estado de ruínas do casarão comprometia a estrutura, o que 21 A gestão atualmente fica a cargo da Secretaria de Finanças, o que acarreta dificuldades de organização, arrecadação e cobrança. Desse modo, as próximas propostas deverão passar a contar com a parceria da Caixa Econômica, por meio de seus programas de crédito. 22 A HABITAÇÃO SOCIAL NO EXTERIOR diferentemente do que ocorre no Brasil, onde as construtoras contratadas pela CDHU e COHAB são, geralmente, privadas. A política habitacional francesa, implantada no segundo pós-guerra, é um interessante modelo a ser estudado, que exemplifica a postura adotada por muitos países europeus ao assumirem como responsabilidade do Estado o saneamento do déficit habitacional. Ao contrário do que ocorre na Europa, as experiências latino-americanas mais recentes têm partido, geralmente, da ação de grupos sociais, sobretudo de movimentos populares, justamente em função da ausência de uma ação efetiva do Estado. A exemplo do Brasil, tais países sempre conviveram com mercados imobiliários excludentes e políticas públicas segregacionistas. No entanto, algumas iniciativas populares têm levado a projetos de reconstrução de centros urbanos, com a produção de habitação social.22 Tendo em vista a necessidade de uma produção habitacional em massa, a solução encontrada foi a construção subsidiada de um parque habitacional de propriedade estatal, ocupado sob regime de locação. Para tanto, criou-se dois fundos orçamentários, geridos pela Caisse de Dépots: o de “ajuda à Pedra”, voltado à construção das unidades, e o de “ajuda à Pessoa”, um subsídio a fundo perdido, dirigido à parcela da população que não dispõe de condições para arcar com as despesas de aluguel. O fato de novas construções apresentarem custos muito elevados, sobretudo com a alta dos preços promovida pelo fim da Guerra, levou o governo francês a optar, quando possível, por projetos de reabilitação. Esta prática, que começou a ser desenvolvida em Paris ainda no século XIX, com o movimento higienista, era uma forma também de preservar a paisagem e a configuração do tecido urbano. Dessa forma, estimulou-se o desenvolvimento da tecnologia de reforma, o que levou empresas de construção a se especializarem, passando a atuar exclusivamente no ramo da reabilitação. Atualmente, cerca de 55% do setor da construção civil francês encontra-se ligado a este tipo de atividade. Com isso, desencadeou-se um processo significativo de otimização de projetos e obras, o que levou à redução de custos e ganho de qualidade na produção. Vale mencionar ainda que, na França, as atividades de construção referentes ao Estado ficam a cargo de companhias de construção e gestão semipúblicas, ou seja, empresas e ongs que prestam serviços exclusivamente para o poder público. O volume de recursos injetados em obras públicas permite que tais empresas se mantenham, Na Cidade do México, a destruição causada pelo terremoto de 1985 parecia a fórmula ideal para expulsar a população que se instalara no Centro, grande parte dela residindo em casas ocupadas, geralmente edificações tombadas pelo patrimônio histórico. Contudo, a resistência dos moradores, obrigou o governo a promover uma reciclagem em massa das moradias, assim como a regularização de posse. Em Lima, a pressão exercida pela enorme população encortiçada, expulsa dos centros urbanos em virtude dos elevados valores dos aluguéis, levou à implantação de um processo integrado de renovação urbana. A cidade foi dividida em grupos de quadras, compostos por comitês de moradores, comerciantes e empresários, dentro dos quais elaborou-se projetos interligados, promovendo a articulação e o intercâmbio dos espaços. A Prefeitura contratou ONGs para assessorar o processo e permitiu o emprego de “alternativas legislativas”. Em Buenos Aires, onde existem cerca de 150 mil imóveis vazios na região central, o Movimento de Inquilinos e Ocupantes (MOI) formou cooperativas de moradores buscando a compra dos edifícios, o que se daria por meio de financiamento com o próprio proprietário. A partir daí, o programa prevê apoio do poder público para o financiamento 22 Os exemplos descritos foram apresentados por Evaniza Rodrigues no Seminário da Comissão de Estudos sobre Habitação na Área Central, realizado em 2001 e presidido pelo vereador Nabil Bonduki. 23 de materiais de construção e a formação de cooperativas de produção, com recursos para remunerar parcialmente mão-de-obra e serviços. A aprovação de uma lei municipal de apoio à autogestão (1999) garante o repasse destes recursos. Ao confrontar os quadros europeu e latino-americano, ficam claros os reflexos das diferentes posturas políticas assumidas. Apesar das experiências latino-americanas apresentarem valor significativo, sobretudo enquanto instrumento de mobilização e desalienação da população, para que se realize uma reforma no cenário habitacional capaz de suprir os déficits atuais são imprescindíveis o envolvimento e o investimento direto do poder público. A possibilidade de locação social é interessante, contudo não elimina a necessidade de um subsídio às famílias que não apresentem condições para arcar com estes gastos. “(...) o acesso à moradia digna é condição básica de cidadania, devendo, portanto, receber o mesmo tratamento que a educação e a saúde, ou seja, deve ser uma prioridade nacional e ter garantidos recursos e mecanismos institucionais para sua concretização.” 23 23 CAMARGO, J. A. e SILVA, L. I. L. (coord.). Projeto Moradia, pg. 9. 24 A ÁREA DE ESTUDO 25 A opção por estudar o Largo do Paissandu deve-se não só ao estado de degradação em que a área se encontra, mas, sobretudo, ao fascínio trazido por sua história, marcada por fases bastante distintas. A região, que passou de periferia à passarela da elite paulistana, abrigou usos diversos e presenciou desde acontecimentos culturais a manifestações sociais e políticas. Foi palco do chamado “boom cinematográfico”, embora nem todo o glamour da Avenida São João tenha livrado a região do intenso processo de esvaziamento que se instalou na área central a partir dos anos 60. a passarela da elite paulistana por muitos anos, até a sua decadência na década de 60, impulsionada pela nova transferência de centralidade, desta vez para a região da Paulista. Localização do córrego Zunega Atualmente, o Largo do Paissandu destaca-se por sua importância para a cultura afro-brasileira, já que guarda parte da memória da cultura negra em São Paulo, preservada pela presença marcante da Igreja de N. Sra. do Rosário dos Homens Pretos (ainda bastante freqüentada) e pela ‘Mãe Preta’ – escultura de autoria de Júlio Guerra, que homenageia as antigas mães de leite e, por extensão, a população afro-brasileira. HISTÓRICO As primeiras referências ao Largo do Paissandu citam a presença de um conjunto de lagoas que se estendiam pela área do Paissandu e São João, formadoras do riacho Iacuba, o que justifica sua primeira denominação: “Praça das Alagoas”. A confluência dessas águas num rebaixo do terreno formava o “Tanque do Zunega”, muito utilizado pelas lavadeiras. Somente em meados do século XIX é que a área, por ordem do governo provincial, foi dessecada e terraplenada. Mesmo assim, permaneceu pouco valorizada, contando com reduzida ocupação e mantendo seu caráter periférico. O Paissandu só passa a receber atenção a partir das primeiras décadas do século XX, com a expansão da cidade além-Anhangabaú e conseqüente formação do Centro Novo, ocupado pela camada mais abastada da sociedade. A Cinelândia faz do eixo São João – Paissandu Fonte: MÜLLER, N. L. “Aspectos da Metrópole Paulista “ IN: AZEVEDO, Aroldo de (direção) e outros. A Cidade de São Paulo. Estudos de Geografia Urbana. Vol. III, pg. 143. 26 A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos O culto a Nossa Senhora do Rosário é um dos mais antigos de São Paulo, sendo a sua confraria “uma das primeiras nascidas no burgo humilde que começava a surgir em torno do Colégio (...), em cuja fundação podemos ver o dedo do venerável Anchieta”.24 Em 1872, ao assumir o governo da província, João Teodoro Xavier resolve abrir um largo em frente à igreja, “com a desapropriação de pequenos prédios e do terreno do cemitério aí existente”,26 que viria a se chamar Largo do Rosário. Antiga Igreja do Rosário Tal devoção levou à construção, por volta de 1721, de uma capela singela, sustentada pelos devotos, que abrigaria a Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Homens Pretos. Situava-se numa área ainda considerada mais que subúrbio, onde está localizada a atual Praça João Mendes. “Era na época um lugar tão afastado que o poder municipal mandava para lá os doentes, para que ficassem isolados do resto da cidade”.25 A capela passou a constituir o ponto de encontro dos negros, que, naquela época, eram proibidos de entrar nas outras igrejas. Além das cerimônias religiosas, o local abrigava também o cemitério dos negros e, em seu subsolo, um quilombo. A Irmandade passou a desempenhar então, além do papel religioso, uma importante função social e política, comunicando-se com seus membros por meio do badalar dos sinos. Data de 1725 a licença, pela autoridade eclesiástica, de edificação de um novo templo. Logo em seguida, buscou-se a legalização, pela Câmara, da posse do terreno (obtida em 1728) e a arrecadação de fundos em Minas Gerais, já que São Paulo não dispunha de verbas para tal. Finalmente, a Igreja do Rosário foi erguida à entrada da atual Rua Quinze de Novembro, num “tabuleiro natural”, onde, antes da construção da capela, os negros já se reuniam às escondidas para realizarem seus cultos. Acredita-se que o término das obras deu-se em 1737. Fonte: BRUNO, E. S. – “Festas de Brancos e Negros”. IN: História e Tradições da Cidade de São Paulo. Vol. II, pg. 787. A irmandade, criada em 1711, congregava negros, cuja preferência pela referida santa remontava ainda à África, onde muitos a tinham como padroeira, por influência dos colonizadores portugueses (ARROYO, 1966). Além de prestar culto à N. Sra. do Rosário, conservava as tradições da cultura africana, por meio de autos populares dos congos e cacumbis, tendo desempenhado ainda importante papel no processo de abolição da escravatura27. Os festejos, caracterizados 26 24 ARROYO, Leonardo. “Nossa Senhora do Rosário dos Homens Prêtos”. IN: Igrejas de São Paulo, pg.173. 25 DUARTE, Neide. “Geledés”. IN: Caminhos e Parcerias, TV Cultura (www.tvcultura.com.br/caminhos/04geledes/geledes2.htm). PORTO, Antônio Rodrigues. História Urbanística da Cidade de São Paulo (1554 a 1988), pg. 53. 27 Segundo Rolnik, as irmandades de negros, além de comprarem alforrias, atuavam como sedes ocultas de redes de suporte aos movimentos abolicionistas (ROLNIK, 1997). 27 por danças e cantos, tinham caráter profano, sendo, por isso, muitas vezes combatidos pelas autoridades. Contudo, por falta de opções de atividades de lazer, boa parte da sociedade assistia a essas celebrações: “Na falta de outras diversões, as festividades religiosas eram a ‘great attraction’, sendo que boa parte dos concorrentes não as assistiam por devoção, mas por passatempo, mesmo porque nelas ordinariamente havia cenas impróprias da gravidade que deve revesti-las.”28 Com o crescimento da cidade, o largo, antes destinado aos marginalizados, passou a ser habitado pelas altas camadas da sociedade. Um novo comércio – de luxo – passou a dividir espaço com os tabuleiros e barraquinhas dos “homens pretos”, que ocupavam a frente da igreja. A presença dos negros, com seus festejos e celebrações, fazia da igreja um obstáculo à valorização da região. “Assim, a Igreja dos Homens Pretos, o Largo do Rosário, seus ambulantes e as manifestações culturais populares de origem afro e indígena deveriam representar um desafeto à elite e ao poder público, por estarem localizados num dos pontos que mais se europeizavam – o ‘Triângulo Central’”.29 destino traçado: a remoção para outra área, novamente periférica à Cidade. Assim, a partir de 1903, durante a gestão do prefeito Antônio Prado, foram desapropriados e demolidos vários imóveis, inclusive a igreja, para a ampliação do Largo do Rosário. O terreno onde se situava a igreja e seu cemitério passou à posse de Martinico Prado, irmão do prefeito, que construiu, alguns anos mais tarde, o edifício “Casa Martinico”, que viria a se tornar a sede da Light. “Desaparecera a igreja. Era uma vez o Largo do Rosário... Os pretos não mais enfeiariam o pátio com suas festanças, reis, rainhas, rústicos... A cidade ficava livre de costumes bárbaros”.31 Mediante uma pequena indenização, a igreja foi reconstruída no Largo do Paissandu – não sem protestos dos moradores de seu entorno, que alegavam o fim da beleza da praça –, sendo inaugurada no dia 22 de abril de 1908. Paulatinamente, os festejos foram sendo substituídos por outros menos atentatórios, da mesma forma que, já em 1898, sob a ‘ideologia’30 de modernização e higienização da cidade, a própria igreja tinha seu 28 BUENO, F. A. V. “A Cidade de São Paulo. Recordações evocadas de memória”. IN: BRUNO, Ernani Silva. Memória da Cidade de São Paulo – depoimentos de moradores e visitantes: 1553-1958, pg. 53. 29 SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem Tudo Era Italiano – São Paulo e Pobreza (1890-1915), pg.125. 30 O emprego do termo ideologia pretende ressaltar a verdadeira intenção do poder público, que, ao utilizar-se de tais argumentos, visava, sobretudo, o afastamento das camadas populares, cuja presença desvalorizava a região. ”(...) a ideologia é um ideário histórico, social e político que oculta a realidade, e (...) esse ocultamento é uma forma de assegurar e manter a exploração econômica, a desigualdade social e a dominação política” (CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia, pg. 7). 31 AMARAL, R. J. Os pretos do Rosário de São Paulo, pg. 119. 28 A mudança da Igreja do Rosário exemplifica a intenção do poder público de embelezar e “reorganizar” a cidade segundo os interesses da classe dominante, promovendo, sobretudo, uma limpeza social. Este processo envolvia a expulsão das camadas populares para a periferia, demonstrando desprezo no combate à pobreza e preocupação em somente afastá-la do convívio social. “(...) a procura pela remodelação arquitetônica de São Paulo esteve relacionada à formulação de uma nova percepção do que deveria ser a cidade e seus lugares, à tentativa de eliminação de tradições inconvenientes e à marginalização dos indesejáveis”.32 Mais tarde, a Igreja enfrentaria novas ameaças de demolição, sobretudo com o desenvolvimento da Cinelândia, que faria da região um pólo cultural das elites. Em 1940, por exemplo, o então prefeito Prestes Maia, tendo sua proposta urbanística como justificativa, pretendia substituir a igreja por um monumento a Duque de Caxias. Contudo, “os tempos eram outros e também os homens eram outros”.33 Com muita luta e resistência, a Irmandade permanece, até hoje, no Largo do Paissandu. O desenvolvimento da Av. São João e a Cinelândia Até o início do século XX, a “Ladeira de São João”, embora constituísse uma ligação entre as duas margens do Anhangabaú por meio da Ponte do Acu, ainda guardava uma importância secundária na malha urbana. Tratava-se de uma via estreita, ocupada por comércio no trecho próximo ao Largo de São Bento e por residências no percurso que se seguia ao Vale, nas proximidades do Paissandu. Esta área era ocupada por grandes chácaras e um casario simples, que abrigava famílias menos abastadas da sociedade. Com a execução dos “Planos de Melhoramentos”, iniciaram-se, entre 1913 e 1918, as obras de alargamento da ladeira, que, conforme o 32 33 SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Ob. Cit., pg.126. AMARAL, R. J. Ob. Cit., pg. 129. previsto pelo projeto de Bouvard, passaria a ocupar uma largura de 30m. Tal intervenção implicou na demolição do Mercado São João e dos demais edifícios instalados em seu lado direito, onde seriam implantadas as primeiras quadras alargadas da nova via. Desta forma, e contando ainda com um canteiro central arborizado, por onde trafegariam os bondes da Light, a então Ladeira de São João foi elevada à categoria de avenida. Vale destacar que, já no final do século XIX, a São João demonstrava uma vocação de eixo de cultura e entretenimento, fato caracterizado pela presença de áreas para a prática de pelota basca e pela inauguração, em 1892, do Teatro Politeama. Ainda nas primeiras décadas do século XX, surge também o famoso Circo do Piolim, situado no Largo do Paissandu, que viria a se tornar uma referência importante na cidade. A Avenida São João se transformaria no eixo da elite paulistana, ponto de encontro de artistas e intelectuais como Mário de Andrade, freqüentador do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Foi também na Avenida São João que ocorreram os primeiros carnavais de rua da cidade. Com o crescimento urbano e, sobretudo, econômico de São Paulo, os empreendimentos de lazer passam a representar uma fonte de renda significativa. Em 1907, surge o Bijou-Palace, o primeiro cinema regular da cidade, instalado na Av. São João. Em 1916, o Teatro Politeama cederia lugar, após um incêndio, ao Cine Central. A partir dos anos 20, com o sucesso das primeiras salas de exibição, o cinema consolida-se como uma atividade empresarial, o que leva à construção de salas mais sofisticadas e dotadas de características técnicas adequadas. O Centro passa a ser pontuado por um número crescente de salas, principalmente no eixo das avenidas São João e Ipiranga, região que vinha se tornando o ponto de encontro das elites, concentrando o comércio e serviços requintados. Em 1936, a construção do UFA-Palácio, projetado por Rino Levi, representou um marco na concepção dos cinemas, ao solucionar questões técnicas e funcionais até então não consideradas. Simbolizava a modernização da cidade, consolidando, portanto, a Avenida São João 29 como um corredor cultural e definindo de vez a localização da Cinelândia paulistana. “Um novo, poderoso eixo vara a cidade de São Paulo, girando, centrípeto. Esticada, recta, entre duas montanhas symbólicas de nossa grandeza – o Jaraguá, a montanha histórica que Deus fez; e o Martinelli, a montanha moderna que os homens fizeram – a Avenida São João, centralizadora, attrahente, magnética, vae chamando a si a vida urbana, que a ella se gruda e com ella roda empolhada toda de arranha-céus, apinhada de altos e trams, inchada de pencas de gente, borbulhada de cachos de luz. (...) E – synthese da vida de hoje, índice infalível do progresso desses tempos – o cinema também para alli converge, escancarando as suas portas e imam para a dócil limalha humana”.34 No início dos anos 40, são inaugurados mais de vinte cinemas, espalhados pelo Centro, concentrados, sobretudo, na Cinelândia, onde se encontram também as salas de maior movimento. O aumento de público é tamanho que chega a superar o crescimento demográfico (SIMÕES, 1990). Ainda nesta década, a atividade se difunde pela cidade, que passa a oferecer mais de cem salas de exibição, estando 80% nos bairros. Apesar da variedade de opções, é nesta época que a Cinelândia confirma-se como uma área de prestígio, “(...) reservada para as ocasiões mais solenes, quando se quer impressionar a namorada, presentear a mãe aniversariante ou pelo menos passear pelo centro, um programa especial para quem mora longe e vem de ônibus ou bonde compartilhar um pouco da grandeza dos prédios, da elegância dos restaurantes e cinemas”.35 Os anos 50 trazem os primeiros sinais de desinteresse do público, a partir do surgimento de outras formas de entretenimento, como a construção do Estádio do Pacaembu, as rádio-novelas e, posteriormente, a televisão. Contudo, são os cinemas de bairro os mais afetados pela crise, já que a Cinelândia, possuidora das melhores salas e freqüentada pela elite paulistana, mantém o seu glamour. Desta forma, ainda nesta época a região assiste à inauguração de grandes cinemas – Olido, República, Rivoli e Paissandu – numa tentativa de assegurar os índices de audiência. Cine Olido – dia da inauguração e fachada do edifício. Fonte: SIMÕES, Inimá. Salas de Cinema em São Paulo, pp. 95e 96. Nos anos 60, com o deslocamento da centralidade para a região da Avenida Paulista, a Cinelândia entra em crise, evidenciando o processo de decadência do Centro. Para se adaptarem às novas circunstâncias, as antigas salas são subdivididas e passam a exibir gêneros específicos, principalmente filmes eróticos. “Com os anos 60, a região compreendida entre a Paulista e o rio Pinheiros atrairá os principais investimentos das empresas exibidoras, que revelam mais uma vez sensibilidade suficiente para ocupar seus lugares em território que se tornará o mais valorizado e prestigioso de toda a cidade.”36 34 ALMEIDA, Guilherme. OESP, 15/03/1938. IN: SIMÕES, Inimá. Salas de Cinema em São Paulo, pg. 40. 35 SIMÕES, Inimá. Salas de Cinema em São Paulo, pg. 69. 36 SIMÕES, Inimá. Idem, pg. 106. 30 PERFIL ATUAL A análise da área configura, sobretudo, um quadro de subutilização, espacial e temporal, ou seja, além de diversos imóveis ociosos, os usos predominantes – comércio e serviços – ocupam apenas o período diurno. A ausência de uma vida noturna significativa, torna a região pouco segura e favorece a instauração de um cenário de degradação e conseqüente desvalorização. A praça atualmente apresenta péssima qualidade ambiental. Tomada por paradas de ônibus em toda a sua volta, tem seus canteiros e a própria estátua circundados por gradis, recebendo pouca atenção e manutenção deficiente. Entretanto, delimitado pelas ruas Conselheiro Crispiniano, Antônio de Godói e pelas avenidas Rio Branco e São João, o Largo do Paissandu possui localização privilegiada, uma vez que apresenta excelente infra-estrutura e fácil acessibilidade, abrigando e sendo circundado, ainda, por importantes pontos de referência da cidade. É servido por uma farta rede pública de transportes, fato de extrema relevância numa metrópole como São Paulo. Em suas proximidades encontram-se estações do Metrô da Linha 1-Norte/Sul (Estação São Bento) e da Linha 3-Leste/Oeste (Estações República e Anhangabaú), garantindo fácil acesso a todas as zonas da cidade. Além disso, considerando a integração – ainda que precária – das linhas do Metrô à rede ferroviária, tem-se acesso inclusive a municípios vizinhos. Ainda vale mencionar o transporte individual, sendo significativo o número de automóveis que circulam no local, sobretudo nas avenidas Rio Branco, São João e Ipiranga. Há um importante fluxo de veículos vindo da rua da Consolação que, devido à atual configuração do sistema viário do Centro Novo, tem como opção única para atravessá-lo e alcançar a região da Luz o trajeto pelo Largo do Paissandu. Apesar de serem claros os conflitos entre veículos e pedestres, além da perda da qualidade espacial da área, não existe nenhuma proposta concreta para melhorar a circulação na região, a não ser a nova linha do Metrô, que ligará a Vila Sônia à Luz. Ainda assim, a estação prevista para a Av. Rio Branco foi retirada do projeto. A região apresenta um forte potencial de adensamento populacional, não só em função da disponibilidade de infra-estrutura e de farta rede de transportes, mas também pelo fato de contar com atividades variadas durante o dia, desde o intenso comércio até as cerimônias religiosas. A presença da igreja exerce papel fundamental, por atrair fiéis de diversas regiões da cidade. Além disso, por congregar a Irmandade dos Negros, tornou-se local de encontro de diversos grupos étnicos, que procuram preservar suas origens e tradições. Apesar de a área ser regida por um zoneamento bastante abrangente37, é caracterizada, essencialmente, por comércio e serviços (tabela 5), atividades estas que disponibilizam uma grande oferta de empregos. Neste ínterim é necessário citar ainda a presença significativa do comércio ambulante, que, embora constitua atividade ilegal, vem atuando como fonte de renda para boa parte da população paulistana. Pelo largo ainda circulam, segundo dados da Prodam, 57 linhas de ônibus, oriundas de vários bairros periféricos, além de lotações que, inclusive, têm como ponto final a rua do Boticário, cujas dimensões são inadequadas para tal função. O intenso tráfego de ônibus chega a constituir um problema sério para a área, sobretudo para o largo, que passou a abrigar diversos terminais em todo o seu perímetro. 37 Trata-se de uma Z5, zona de uso misto, de densidade demográfica alta. 31 Tabela 5 – AR Sé – Amostragem de estabelecimentos por setor de atividade econômica Distritos Bela Vista Bom Retiro Brás Cambuci Consolação Liberdade Pari República Santa Cecília Sé Total AR-Sé Mun. São Paulo Total 4672 4005 4620 1575 3861 2379 2445 9356 3851 6370 43134 194941 Comércio 960 1325 2176 583 738 693 910 2637 1249 2645 13916 Tabela 6 – AR Sé – População de rua Distritos Serviços 3268 949 899 580 2765 1349 490 5840 2038 3219 21397 Fonte: PMSP, SEMPLA. São Paulo em Números, pp. 47 e 48. 2000 e 2001. A forte presença de um comércio especializado na região garante um movimento intenso e constante durante o dia. Destacam-se a R. Conselheiro Crispiniano e as grandes galerias comerciais, que atraem um público bastante significativo e variado, inclusive aos sábados. A Galeria do Rock, por exemplo, chega a receber num sábado cerca de 16.000 pessoas38, vindas de diversas partes da cidade. O uso residencial é reduzido, ocupando, geralmente, edifícios de uso misto, com comércio no pavimento térreo. Entretanto, os índices da tabela 6 demonstram elevado número de moradores de rua, o que pode ser verificado no próprio Largo do Paissandu, ao redor da igreja. Logradouro Bela Vista Bom Retiro Brás Cambuci Consolação Liberdade Pari República Santa Cecília Sé Total AR-Sé Mun. São Paulo 138 151 180 74 167 109 69 715 434 773 2810 5013 Situação Albergue 14 6 791 627 249 81 51 47 1866 3693 Total 152 157 971 74 167 736 318 796 485 820 4676 8706 Fonte: PMSP, SEMPLA. São Paulo em Números, pg. 63. 2000 e 2001. Quanto à disponibilidade de equipamentos para educação, a região apresenta séria deficiência no atendimento, principalmente, das crianças na faixa etária de até 6 anos. O distrito da República conta com apenas duas escolas de educação infantil (ambas públicas), atendendo apenas 29% da demanda; duas estaduais de ensino fundamental, apresentando taxa de atendimento de 29,3%; e apenas uma, particular, voltada ao ensino médio, não dispondo de nenhuma creche ou centro de juventude. No campo da saúde, há apenas três postos de atendimento médico. A oferta de equipamentos esportivos é também bastante precária.39 No âmbito cultural, a área abriga importantes estabelecimentos, como o Teatro Municipal e o Conservatório Dramático e Musical de São 39 38 Dado não oficial fornecido pelo Instituto Mais São Paulo. Dados obtidos através de uma comparação de duas publicações da SEMPLA: BDP – AR-Sé, de 1993 e São Paulo em Números, de 2000-2001. Vale ressaltar que a oferta dos equipamentos de educação e saúde não se alterou nesse intervalo de tempo. 32 Paulo. Além disso, aguarda a conclusão da reforma do prédio dos Correios, um novo espaço cultural que pretende não só atrair público para o Centro, mas também recuperar o Beco do Piolim, atualmente bastante degradado e ocupado por moradores de rua e catadores de lixo. Apesar dessa invejável concentração de edifícios culturais, é importante ressaltar que muitos possuem um caráter metropolitano, implicando muitas vezes numa especialização que acaba atendendo somente à faixa de público de maior renda e/ou melhor formação cultural. A região apresenta, assim, uma enorme deficiência no atendimento das camadas populares, freqüentemente excluídas dos eventos oferecidos por tais estabelecimentos. Além disso, não há oferta de cursos ou qualquer atividade de capacitação. Neste sentido, um importante projeto em execução é a instalação do Sesc Centro, que poderá, em parte, cumprir tal função. dos freqüentadores da área, há também problemas com tráfico de drogas e assaltos. Vale ressaltar que o perímetro que engloba o Largo do Paissandu e a Av. São João constitui uma das áreas de intervenção do PROCENTRO, que visa a requalificação urbana e funcional do Centro de São Paulo. Procissão em homenagem a N. Sra. do Rosário, 22/09/2002. Dentre as atividades de alcance popular, é interessante mencionar o uso do espaço público. Devem ser citados os eventos culturais e, até mesmo, procissões religiosas que ocorrem no Vale do Anhangabaú e na Avenida São João, além da tradicional feira de artesanato da Praça da República. Esta, além do comércio de diversos produtos, conta com rodas de capoeira e algumas manifestações culturais ligadas à música e poesia, atraindo um grande número de freqüentadores há muitos anos. Os antigos cinemas, desde a crise da Cinelândia, passaram, em sua maioria, por reformas que visavam a subdivisão das salas ou, até mesmo, alteração de uso. Atualmente encontram-se, em geral, descaracterizados, abrigando principalmente bingos e cines pornôs, e até estacionamentos. O desinteresse e conseqüente esvaziamento da área trouxe, ainda, outras atividades “marginais” não condizentes com o antigo cenário glamouroso da região, como night clubs e hotéis de “moral duvidosa”, tornando o Paissandu também uma área de prostituição, principalmente no período noturno. Além disso, segundo depoimentos 33 Edif. Caetano de Campos Praça da República Shopping Light Te a t r o M u n i c i p a l Viaduto do Chá Edif. Domingos Fernandes Alonso (Cine Olido) L A R G O D O PA I S S A N D U Correios Va l e d o A n h a n g a b a ú Viaduto Santa Ifigênia NOVOS PROJETOS Broadway Paulistana parceria com o investimento privado (sobretudo os proprietários dos imóveis), o qual arcaria com 80% do custo total da intervenção, avaliado em R$ 50 milhões.40 Conforme o estudo apresentado, os antigos cinemas dariam lugar a usos variados, como teatros, salas de concerto, salas de convenções, restaurantes, danceterias e buffets, um verdadeiro “shopping a céu aberto”, segundo palavras de Martins. Busca-se atingir uma diversidade de público, incluindo diferentes faixas etárias e interesses. Seria estimulada ainda a recuperação do uso hoteleiro, que aconteceria naturalmente, em função da valorização da região. Outro elemento fundamental seria a construção de um estacionamento subterrâneo no Largo do Paissandu, que abrigaria cerca de 800 veículos e estaria ligado ao Teatro Municipal por uma esteira rolante. A obra seria viabilizada por meio de uma concessão do poder municipal, o qual, desta forma, precisaria arcar apenas com as melhorias relativas à infra-estrutura e aos equipamentos urbanos, como recuperação de calçadas, afastamento das linhas de ônibus, limpeza do local, etc. Fonte: ESP, “Ministro visita a futura Broadway paulistana”. 23/03/02, pg. C8. Desde 1999, vem sendo desenvolvido pelo Instituto Mais São Paulo, em parceria com a Secretaria Estadual de Cultura, o projeto “Broadway Paulistana”, uma proposta de recuperação do caráter cultural da antiga Cinelândia, tornando a Avenida São João um novo pólo turístico. Segundo Cláudio de Sena Martins, um dos idealizadores do projeto, tal iniciativa só traria vantagens à região, uma vez que, além de recuperar imóveis de grande valor histórico e arquitetônico, revalorizaria seu entorno e ainda geraria cerca de 6600 empregos. A proposta engloba uma área pequena, de raio aproximado de 200m, limitando-se a duas quadras da Avenida São João e ao Largo do Paissandu. Baseia-se na reabilitação de equipamentos existentes, transformando-os em “âncoras culturais”, o que alavancaria um processo de valorização da área. Para tanto, o projeto apóia-se numa Fonte: ESP, “Ministro visita a futura Broadway paulistana”. 23/03/02, pg. C8. 40 ESP, “Ministro visita a futura Broadway paulistana”. 23/03/02, pg. C8. 36 Os responsáveis pelo projeto citam ainda a importância da Galeria do Rock, sugerindo a criação de um “Palácio do Rock” – uma área destinada a shows de rock –, e consideram a presença da Igreja como importante referência local, embora não haja nenhuma proposta concreta em relação a ela. exclusivamente arquitetônico, apresenta-se relevante tendo em vista a necessidade de recuperação e preservação do patrimônio histórico. Aos poucos a iniciativa começa a ganhar corpo, uma vez que alguns proprietários particulares, por meio de leis de incentivo, estão recuperando seus imóveis, como o Cine Dom José, da mesma forma que o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo acaba de ter sua fachada restaurada (embora seu interior esteja ainda em péssimo estado de conservação). Outra intervenção, desta vez por parte do governo municipal, é a transformação do edifício do Cine Olido em um centro de cultura, música e dança. O antigo cinema passará a abrigar uma sala de espetáculos com capacidade para 600 lugares, e as orquestras Sinfônica Municipal e Experimental de Repertório, o Coral Lírico, o Coral Paulistano, o Quarteto de Cordas, o Balé da Cidade, a Escola Municipal de Bailado e a Escola de Música ocuparão do 1º ao 8º andares do edifício. A Secretaria Municipal de Cultura já está se transferindo para o edifício, instalando-se do 9º ao 15º andares. Os demais pavimentos serão utilizados pela Secretaria do Abastecimento e pela Ouvidoria Municipal. A reforma, iniciada no segundo semestre de 2002, teve sua primeira etapa concluída ainda no final do ano. Os custos da obra deveriam ser divididos entre o governo municipal e a proprietária do imóvel (a Imobiliária Savoy), podendo contar ainda com algumas parcerias com a iniciativa privada, por meio das leis de incentivo à cultura.42 Apesar de buscar a recuperação da área da Cinelândia, o projeto da Broadway suscita críticas principalmente ao prever usos que, mais uma vez, excluem a participação da população de baixa renda, a que mais sofre a carência de equipamentos culturais. Além disso, em momento algum foram levadas em conta as necessidades da Igreja ou da Irmandade. Outro ponto bastante questionável é a construção do estacionamento sob o Largo do Paissandu, uma vez que implica em gastos elevados e prioriza o transporte individual na área com maior oferta de transportes públicos da cidade, o Centro. Recuperação da antiga Cidade Nova Patrocinado pela Empresa Municipal de Urbanização e pela Associação Viva o Centro, o programa visa a recuperação do chamado “coração da Cidade Nova” – o quadrilátero formado pela rua Conselheiro Crispiniano, avenidas São João e Ipiranga e rua 7 de Abril. As obras estão sendo incentivadas através de benefícios fiscais, como isenção do IPTU.41 O conjunto arquitetônico da área, que inclui 65 edifícios tombados, vem passando por obras de restauro e limpeza visual, embora ainda haja resistência por parte de muitos comerciantes, que não estão dispostos a retirarem suas placas e anúncios. Apesar do projeto ter um caráter Reforma do Edifício Domingos Fernandes Alonso A transferência desses equipamentos para o Largo do Paissandu vem criando diferentes reações. Enquanto agrada a Orquestra Experimental de Repertório, hoje instalada em condições precárias na r. Santo Amaro, causa descontentamento por parte da Escola de Bailado, já que seus membros se preocupam com a adequação técnica das novas instalações e com a segurança das alunas.43 A concentração das secretarias e dos demais equipamentos em um só edifício no Centro visa a redução de custos, especialmente de aluguel, segundo o secretário municipal da cultura, Marco Aurélio Garcia. No entanto, o edifício do Cine Olido não é de propriedade estatal e a sua 42 ESP, “Antigo Cine Olido vai virar centro cultural”. 24/06/02 ESP, “Orquestra experimental sonha com a mudança”. 24/06/02 ESP, “Transferência desagrada escola”. 24/06/02 43 41 ESP, “Para salvar a história por trás das fachadas”. 08/12/02, pg. C7. 37 adequação aos novos usos exige uma reforma de grande porte, sobretudo para atender às exigências de pé-direito, muito superiores ao de um edifício comercial, necessárias do 1º ao 8º andares. 38 PROJETO 39 Beco do Piolim Av. Rio Branco terreno de projeto do centro de cultura calçadão da Av. São João Vista aérea do Largo do Paissandu a partir do Edif. Domingos Fernandes Alonso (Cine Olido). 40 A proposta elaborada consiste num projeto integrado, que parte da escala urbana para, então, enfocar soluções de apropriação do espaço e projeto arquitetônico. A partir da análise do Largo do Paissandu e de seu entorno, algumas diretrizes se colocaram como elementos fundamentais na instauração de um processo de reabilitação urbana da área. A começar, o excesso de ônibus e pontos de paradas apresenta-se como um problema eminente, visto que transforma a praça num “desordenado terminal rodoviário”. A solução, no entanto, constitui uma intervenção de caráter metropolitano, que implicaria numa reestruturação do sistema de transportes. Sugere-se a delimitação de um perímetro central, dentro do qual o transporte coletivo fosse realizado apenas pela rede metroviária e por microônibus circulares. Desta forma, os pontos terminais seriam extintos e o trânsito reduziria. Com isso, seria possível também a interdição de um trecho da Rua Antônio de Godói para a criação de um calçadão, visando privilegiar o pedestre e reforçar o diálogo da praça com o entorno. A medida implicaria apenas na mudança de mão do trecho inicial da Av. Rio Branco (contíguo ao largo) e na duplicação de sentido da Rua do Boticário, que viria a constituir uma rua sem saída. Intervenções pontuais no desenho da praça promoveriam uma melhor qualidade espacial, otimizando os percursos, adequando as áreas de permanência e preservando o patrimônio. O projeto prevê a retirada dos gradis, a preservação da vegetação significativa e a implantação de um espelho d’água, garantindo o isolamento físico da estátua da Mãe-Preta, marco histórico que tem sido alvo de atos de vandalismo. O piso ganha um novo desenho, que prioriza os caminhos e se estende ao interior dos edifícios em projeto, incorporando-os à praça. Ao promover, em alguns pontos, a transposição de vias, favorece as ligações com o Vale do Anhangabaú, Beco do Piolim e com os calçadões além da Av. São João. Um pequeno bloco procura concentrar serviços públicos importantes, evitando, contudo, confrontar-se com o volume da Igreja. Abriga banheiros e telefones públicos, um posto policial e um balcão de informações, uma alternativa que visa reduzir a degradação ambiental e reforçar a segurança. Equipamentos urbanos tais como bancos e lixeiras, embora fujam da escala de apresentação do projeto, constituem também elementos indispensáveis e, portanto, previstos na proposta. Assim como a melhoria da iluminação pública, que deveria atuar também como um instrumento de destaque da igreja e da estátua. Resolvidas as principais deficiências espaciais da área, a grande alavanca para concretizar um processo de reabilitação urbana está nas estratégias de ocupação. Para tanto, a produção de habitação de interesse social se faz indispensável, uma vez que concilia essa necessidade de uso do espaço a uma demanda enorme por moradia na área central, região privilegiada pela rede de infra-estrutura e transportes. “Manter o Centro vivo todos os dias da semana e todas as horas do dia (e não apenas no horário comercial) exige, entre outros usos, que a moradia seja também admitida e incentivada. O sucesso de qualquer plano de revitalização da área central exige um programa habitacional”.44 O significativo número de imóveis ociosos nas imediações do Largo do Paissandu aponta a requalificação de edifícios como ferramenta a ser empregada. Constituindo, em sua maioria, prédios de escritórios, sugere-se que as edificações abandonadas sejam readequadas, passando a abrigar residências, albergues para estudantes, hotéis de categorias variadas, enfim, usos que garantam uma real apropriação do espaço. O aumento populacional proporcionaria um significativo aumento de público para os cinemas, o que possibilitaria, ao menos, a recuperação das salas mais importantes da área: o Ufa-Palácio, o Marrocos e o Cine Paissandu, edifícios, sobretudo, dotados de relevante valor histórico-arquitetônico. 44 MARICATO, Ermínia. “Renovação do Centro e habitação: o direito à cidade” in Associação Viva o Centro. São Paulo Centro XXI: entre História e Projeto. 41 A nova demanda intensificaria, ainda, a necessidade de ampliação da oferta de equipamentos sociais, culturais e esportivos, que já se encontra insatisfatória. A disponibilidade destes serviços reduziria os deslocamentos dos moradores, o que, num quadro geral, levaria ao descongestionamento da rede de transportes. Além da reabilitação do patrimônio ocioso, propõe-se o aproveitamento de terrenos vazios ou subutilizados (estacionamentos a céu aberto, por exemplo) para construção de novas edificações, sobretudo de cunho social. Instrumentos legais devem ser empregados para garantir a extinção dessas áreas subutilizadas, levando a iniciativas dos proprietários ou favorecimento da aquisição pelo poder público. Sendo assim, a proposta aprofunda-se em dois projetos pontuais distintos: um exemplo de requalificação e outro de construção. Um edifício ocioso passa a abrigar residências, equipamentos sociais, comércio e lazer. Numa nova edificação ganham corpo atividades culturais, esportivas e de lazer. Procura-se delinear, assim, duas formas de intervenção possíveis no Centro de São Paulo, cuja pertinência varia de acordo com as condições físicas e programáticas específicas de cada área. Estudo de intervenção no Largo do Paissandu 42 Estudo para o equipamento a ser implantado no largo. 45 Requalificação do Edif. Domingos Fernandes Alonso (Cine Olido) Seu programa original incluía um restaurante com amplo salão no subsolo, galeria comercial no térreo, sala de cinema e 22 pavimentos com planta livre, destinados ao uso comercial e de serviços. A escolha do edifício resultou da análise de um conjunto de características: seu papel relevante na história da Cinelândia e na configuração da Av. São João, sua conformação física e seu atual estado de abandono. Atingido pelo processo de esvaziamento do Centro, foi perdendo seus ocupantes e sofrendo uma série de adaptações para se manter em funcionamento. Seu subsolo passou a ser um estacionamento rotativo de automóveis e a grande sala de cinema, seguindo o destino da maior parte das salas da Cinelândia, foi subdivida em 3, na década de 80. Mesmo assim, o Cine Olido, um dos únicos a não se tornarem cines pornô ou darem lugar a outros usos, sucumbiu e fechou suas portas há cerca de um ano. A própria galeria comercial já em meados da década de 90 tinha boa parte de suas lojas fechadas. Ocupando um terreno de 2345m², configura-se como um prédio de grande porte, compreendendo uma área de 30000m², distribuída em 27 pavimentos, além do subsolo. Apresenta características modernas, como, por exemplo, plantas livres e certa regularidade no posicionamento dos pilares concordando com o ritmo das fachadas, o que possibilitou uma racionalização do projeto, principalmente das unidades habitacionais. A conversão de usos traz uma série de dificuldades na adaptação das unidades habitacionais, tanto técnicas como de desenho. Neste caso, ao se priorizar a qualidade arquitetônica, o traçado original do edifício implicou em apartamentos com dimensões superiores às comumente aprovadas. Ainda assim, a reforma mostrou-se economicamente viável. Um breve histórico O edifício situado na esquina da R. Dom José de Barros com a Av. São João, eixo da antiga Cinelândia, foi inaugurado em 1957. Dotado de uma sala de exibição com capacidade para 800 lugares – o Cine Olido –, tornou-se um marco por possuir o primeiro cinema da cidade em uma galeria comercial. A sala mais moderna do país trazia inovações como a instalação de cadeiras numeradas e um sistema de reservas, tornando-se ponto de encontro da elite paulistana no fim dos anos 50 e na década de 60. Em 2002, o Olido se apresentava como um edifício ocioso já por um período de 10 anos, permanecendo em uso somente o estacionamento do subsolo e parte do térreo e da sobreloja locados por um bingo. No decorrer do mesmo ano surgiram as notícias da transferência da Secretaria Municipal de Cultura e outros equipamentos culturais já citados, tendo início a reforma no segundo semestre. 46 Projeto a necessidade de se ampliarem estes serviços a partir de uma política de incentivo do uso habitacional no centro de São Paulo. Trata-se de uma requalificação de um edifício ocioso para habitação social e equipamentos sociais. Assim, uma das primeiras diretrizes adotadas, visando a viabilização do projeto, foi a reforma com mínima quantidade de alterações necessárias, porém garantindo qualidade arquitetônica ao conjunto. O edifício foi setorizado em três blocos hierarquizados, segundo o tipo de uso e o grau de privacidade que deveriam ter: Assim, o programa do edifício foi idealizado da seguinte forma: Subsolo Mantém-se o setor de instalações técnicas do edifício e um estacionamento cujas vagas devem ser comercializadas separadamente. Sua pequena capacidade (sem serviço de manobrista, conta com apenas 35 vagas) deve-se à disposição dos pilares e ao baixo pé-direito, que impedem a adoção de equipamentos que racionalizariam seu uso. Térreo habitação equipamentos sociais comércio A opção pela manutenção do uso comercial nos primeiros andares deu-se pela possibilidade de se diminuir o custo das unidades habitacionais através da venda de pontos comerciais, pela necessidade de se estabelecer um comércio de 1ª necessidade que atendesse aos moradores do edifício e aos de suas imediações, além, é claro, da própria conformação espacial do edifício. Da mesma forma, julgou-se pertinente a inclusão de equipamentos sociais (posto de saúde, creche e escola infantil), levando-se em conta a atual deficiência no atendimento à demanda existente na região central, especialmente no distrito em questão (República), assim como Galeria a ser ocupada por comércio de bens de 1ª necessidade, uma padaria-escola e um restaurante popular. Este tem capacidade para atender simultaneamente 72 pessoas dentro do salão, além das mesas disponíveis na galeria. A opção pelo “bandejão”, servindo refeições subsidiadas pelo governo municipal, veio da observação dos bons resultados que essa iniciativa vem conseguindo em várias capitais brasileiras. Em São Paulo já existem 15 restaurantes servindo 20mil refeições por dia a R$1,00. No Rio de Janeiro, segundo uma pesquisa da Secretaria de Ação Social, 7,8% dos freqüentadores dos restaurantes não almoçavam antes de sua implantação e “40,5% saem de casa só para comer lá”.45 Sobreloja Integrada ao térreo, compõe-se pelo hall de acesso ao teatro e às salas de cinema, dispondo de um cyber café. Há ainda salas de administração, serviços e camarins do teatro localizado no 1º pavimento. 45 “Chefs na fila do bandejão” IN: Revista Época, pp. 76 a 78. 30/12/02. 47 Optou-se pela manutenção da subdivisão da antiga sala do Cine Olido, porém com a transformação da maior em um teatro de pequeno porte (215 lugares). As outras duas salas se mantiveram como cinemas, com capacidade p/ 150 e 179 pessoas. O posto de saúde foi projetado de maneira setorizada, podendo ser dividido nas seguintes áreas: bancos de sangue e de leite, bloco de administração e serviços, salas de consulta médica, enfermagem, assistência social e sala para atividades educativas. É interessante se pensar no funcionamento do posto de acordo com o PSF (Programa de Saúde da Família), política municipal de saúde, baseada “na prevenção da doença e na promoção da saúde”. É aplicado no âmbito dos Distritos, sendo que suas unidades básicas de saúde atuariam por meio de equipes nucleares, residentes no mesmo bairro e responsáveis por uma determinada área e número de famílias. 2º ao 4º Pavimentos – Creche e escola infantil. O 3º pavimento centraliza os setores administrativo e de serviços, constituindo o acesso principal e sendo interligado por rampas aos outros pavimentos. Descendo, estão a creche e as salas de maternal, jardins e pré-escola; no 4º andar se localizam as salas de 1ª a 4º séries e a área de lazer, que aproveita a laje de cobertura dos cinemas. 5º ao 22º Pavimentos – Habitações. Somando 233 apartamentos, as unidades habitacionais apresentam oito plantas distintas, com tipologias de 1, 2 e 3 dormitórios, além de quitinetes, buscando atender a diferentes composições familiares. Há predomínio da tipologia de quitinetes, justificada pelo perfil da população demandatária de habitações populares (vide gráfico 2) e devido à forma do edifício. Gráfico 2 – Composição familiar dos encortiçados de São Paulo. nº componentes 1º Pavimento – Teatro e duas salas de cinema na parte posterior do edifício e posto de saúde na parte frontal. 8 o u ma is 0 ,9 0 % 7 1 ,0 0 % 6 5 4 3 2 1 2 ,5 0 % 5 ,7 0 % 1 0 ,2 0 % 1 8 ,4 0 % 2 2 ,7 0 % 3 8 ,5 0 % Fonte: FSP, “Cortiço abriga solitário e família pequena”, 05/11/02, pg. C1. A conformação original do edifício resultou na divisão do bloco habitacional em 2 plantas-tipo: uma do 5º ao 9º pavimentos e outra do 10º ao 22º. O 10º pavimento é um andar de transição entre as plantas, possuindo um terraço lateral, além de uma área de lazer aberta, voltada para a R. Dom José de Barros. Apesar de serem propostas lavanderias coletivas em todos os pavimentos de habitação, aproveitando-se o bloco hidráulico existente, todas as unidades dispõem de uma pequena área de serviço, para proporcionar privacidade e facilitar o dia-a-dia dos moradores. 23º Pavimento Aproveitando-se um salão existente e a laje de cobertura do edifício, criou-se uma área de lazer para as habitações, contendo salão para festas e reuniões de condomínio, quadra de esportes, churrasqueiras e playground. 24º Pavimento – Casa de máquinas e salas de serviços do edifício. 25º Pavimento – Caixas d’água e sala de serviços do edifício. 48 Tab. 7 – Edifício Cine Olido - quadro de áreas Pavimentos Áreas (m²) subtotal subsolo térreo sobreloja 1º pavimento 2º pavimento 3º pavimento 4º pavimento 5º ao 9º pavimentos 10º pavimento 11º ao 22º pavimentos 23º pavimento 24º pavimento 25º pavimento TOTAL posto de saúde 941 m² teatro e cinemas 1225m² 1304m²/pavimento 876m²/pavimento total 2294 2294 1826 2166 941 941 1413 6520 1022 10512 359 286 82 30656 Uma reforma de edifício com alteração de usos tem certos limitantes físicos e financeiros que, na maioria das vezes, inviabilizam um resultado ideal. As opções técnicas adotadas, apesar de não solucionarem todas as questões, promoveram a adequação do edifício de forma satisfatória. 1. Estrutura Foi mantida, sem ser comprometida pelas intervenções. Estima-se que não haveria sobrecargas estruturais, já que edifícios comerciais costumam ter coeficientes de segurança superiores aos residenciais. Houve necessidade de cortes nas lajes em três casos: parte da laje da sobreloja para o aumento do pé-direito do térreo e criação de um mezanino; em uma extremidade das lajes entre o térreo e o 11º pavimento, para a construção de uma escada de emergência; rasgos nas lajes do 3º e 4º pavimentos para a instalação de rampas conectando os andares do bloco da escola. Os dois primeiros casos não trouxeram problemas relacionados a cortes de vigas, já que respeitaram a modulação estrutural; já no caso da escola, foram necessários reforços, cuja solução foi a execução, na maior dimensão do vão, de vigas de borda invertidas (servindo inclusive de parapeito das rampas), apoiadas nas vigas já existentes. 2. Racionalização da Construção A escolha de painéis leves pré-moldados para a execução das novas paredes, além de evitar uma grande sobrecarga na estrutura, decorre também da necessidade de racionalização da construção: seca, com um canteiro de obras reduzido e limpo, tornando sua execução rápida, já que a região central é densamente ocupada e tem restrições para a circulação de veículos. Os eixos de alvenaria das habitações e dos equipamentos sociais acompanharam a disposição estrutural e a modulação da fachada. Quando houve necessidade, os vãos foram subdivididos em partes iguais. 3. Acessos e Circulação Vertical A necessidade de acessos diferenciados e controlados num edifício de uso misto foi facilmente solucionada, pois o prédio já contava com 7 elevadores (um, inclusive, pôde ser desativado). No pavimento térreo foi feita a divisão do hall em duas recepções, uma atendendo às habitações, contando com 3 elevadores, e outra aos equipamentos, sendo que 2 elevadores atendem à escola e 1 ao posto de saúde. As rampas do bloco da escola são metálicas e atirantadas, recebendo uma camada de poliuretano expandido para minimizar ruídos. De acordo com as normas, houve a necessidade de se construir uma nova escada de emergência, localizada em um dos extremos do edifício. Para garantir um bom isolamento térmico de sua caixa, são utilizados blocos de concreto celular revestidos. A escada existente entre os elevadores sofreu algumas adaptações: suas comunicações com o 49 bloco hidráulico foram fechadas em todos os pavimentos; o poço do elevador justaposto à escada (desativado) foi subdividido em dutos de entrada e saída de ar da antecâmara e em um shaft; o lance entre o térreo e a sobreloja teve que ser redesenhado, substituindo os degraus em leque por patamares. 4. Instalações Elétricas e Hidráulicas As instalações elétricas devem ser redimensionadas e totalmente refeitas. Vale ressaltar a opção por tubulações externas e a adoção de caixas de disjuntores individuais para cada unidade habitacional. A solução das instalações hidráulicas foi um dos maiores desafios do projeto. Originalmente, toda a hidráulica do edifício estava concentrada no bloco de banheiros, localizado atrás dos elevadores. Com a instauração de novos usos, especialmente o habitacional, tiveram que ser criados shafts, deslocados dos principais eixos estruturais e dispostos a cada dois apartamentos. Outros dois foram localizados no bloco da nova escada de emergência e no antigo poço do elevador. No 4º pavimento, a mudança de uso (escola) exige a extinção dos shafts dos apartamentos, sendo a tubulação direcionada para os das escadas. No posto de saúde, volta a necessidade de uma ampla rede hidráulica: faz-se um forro rebaixado, por onde a tubulação de água limpa se ramifica; a tubulação de esgoto é disposta no forro do andar inferior, livre de problemas com a declividade, já que há um pé-direito de 7,7m. então, varandas para atenuar a entrada de radiação direta na salaquarto, assim como um brise horizontal a 2,1m de altura para abater a curva de distribuição de luz e, conseqüentemente, diminuir o contraste. Os corredores, sempre que possível, possuem aberturas em suas extremidades, buscando uma melhor iluminação e ventilação. Os pavimentos dos equipamentos sociais e do térreo também receberam brises horizontais na fachada NE (voltada para o Largo do Paissandu), evitando a radiação direta. A fachada da R. Dom José de Barros praticamente não apresenta problemas, pois há muitas obstruções externas (edifícios vizinhos). Em todas as unidades habitacionais foram utilizados cobogós nas áreas de serviço, tentando promover uma ventilação cruzada. É importante ressaltar a opção pela integração entre o térreo e a sobreloja, através da supressão de parte da laje intermediária e da criação de um mezanino. Com isso, conseguiu-se maior amplidão à entrada no térreo, que passou a ter 7,7m de pé-direito, melhorando a iluminação natural de toda galeria comercial, além da inclusão de um novo acesso à sobreloja. Máscara de obstruções na fachada da R. Dom José de Barros. As edificações vizinhas ao Olido já atuam como barreira solar em quase todas as situações. Nas áreas molhadas dos apartamentos foi necessária, para a instalação da tubulação de esgoto, a adoção de um piso 20cm elevado, preenchido com argila expandida ou com o próprio entulho triturado e ensacado. 5. Iluminação e Ventilação O projeto das habitações utilizou-se de alguns artifícios para melhorar suas condições ambientais. Devido à forma do edifício, as quitinetes, caso mais crítico, possuem grande profundidade e possibilidade de abertura de caixilhos somente em uma fachada (NE). Foram propostas, Máscara de obstruções na fachada da Av. São João. Dispositivos de proteção solar são indispensáveis na maior parte do dia. 50 Quitinetes - planta isolux e gráfico de distribuição de iluminância. A colocação de uma placa horizontal de 0,6m a h=2,1m diminui a entrada de luz direta e o contraste entre frente e fundo do apartamento, sem prejudicar os níveis de iluminância. Equipamentos sociais – plantas isolux e gráfico de distribuição de iluminância. Optou-se pela colocação de um conjunto de 6 brises horizontais de 0,6m, equidistantes, garantindo melhor uniformidade de luz nas salas e, também, ressaltando o bloco de equipamentos sociais na fachada. 51 6. Caixilhos Estimativa de Custos As aberturas nas fachadas foram mantidas conforme a modulação original. Em alguns casos, foram feitas subdivisões em partes iguais, racionalizando o desenho e execução dos novos caixilhos. Estes serão de chapa de ferro dobrada (opção que une durabilidade e custo), assim como os existentes. A estimativa de custos da reforma apontou um gasto total de obra de aproximadamente R$2.417.378,00, o que resultaria num custo médio de R$10375,00 por unidade, correspondente a R$228,00/m2. Comparados aos gastos de projetos já executados46, estes valores apresentam-se satisfatórios, comprovando a viabilidade do projeto de readequação. Nas quitinetes, apesar do obedecimento à modulação, justifica-se a troca dos caixilhos pela possibilidade de melhoria das condições ambientais. A opção por um grande caixilho permite sua divisão em dispositivos que garantam uma ventilação controlada e em portas de correr acessando a varanda. Vale lembrar que, ao considerar a diversidade tipológica empregada, os custos das unidades menores são ainda inferiores, chegando a R$6.849,00 para a residência de tipo 3, que dispõe de um dormitório. Nas outras unidades e nos demais pavimentos de equipamentos e comércio, procura-se apenas fazer a manutenção das janelas existentes, que se apresentam em bom estado. 7. Acabamentos Seguindo o princípio de racionalização da construção, foram selecionados materiais de acabamento que conciliassem durabilidade e custos. Nas habitações, as áreas secas recebem pintura látex diretamente sobre os painéis leves, com piso de cimento queimado. As áreas molhadas têm paredes e pisos revestidos com cerâmica. Tab. 8 – Custos estimados das unidades, por tipologia. tipologias Tipo 1 – quitinete n.º unidades área útil (m2) custo/unidade (R$) 149 41,6 9.475,00 Tipo 2 – 3 dormitórios 18 70,0 15.981,00 Tipo 3 – 1 dormitórios 6 30,8 6.849,00 Tipo (A, B e C) – 2 dormitórios 42 46,2 10.533,00 Tipo 5 (A e B) – 2 dormitórios 18 57,0 13.027,00 No entanto, ao incluir o valor de compra do edifício, os custos chegaram praticamente a quadruplicar. Embora o edifício encontre-se fechado há 10 anos, seu valor de oferta é de R$25.000.000,00, o que corresponde a R$833,00/m2, mais que o dobro dos índices geralmente encontrado em outros projetos (vide tab. 9). 46 Alguns projetos chegaram a duplicar este gasto, como é o caso dos edifícios Celso Garcia e Brigadeiro Tobias, cujos custos de obra foram de, respectivamente, R$496,90 e R$ 402,30 (Integra, 2001). 52 Tab. 9 – Comparativo do valor de compra de edifícios na área central valor total (R$) área construída preço/ m2 (R$) (m2) Ed. Brigadeiro Tobias 420.000,00* 4.522,93 92,90 Ed. Celso Garcia 559.000,00* 3.078,77 181,50 Ed. Rua do Boticário 1.200.000,00** 3.376,77 355,40 Ed. R. Joaquim Carlos 1.600.000,00*** 6.677,70 239,60 Ed. Av. Ipiranga 3.000.000,00*** 8.332,90 360,00 Fonte: Integra – Cooperativa de Trabalho Interdisciplinar. * valor da operação efetuada ** valor de oferta *** valor negociado com o proprietário Sendo assim, as políticas públicas não podem se mostrar dependentes desse mercado imobiliário que se apresenta. E, para tanto, dispõe-se de instrumentos legais, como o direito de preempção e o IPTU progressivo. No caso em estudo, o fato do edifício estar abandonado há 10 anos garantiria a sua desapropriação. Outra questão a ser colocada é a inexistência de políticas públicas de financiamento, o que possibilitaria, por exemplo, a criação de um programa de crédito exclusivamente voltado a obras de reabilitação, visto que este tipo de intervenção é encarado como um investimento de risco. Além disso, é imprescindível a implantação de uma política de subsídio pessoal, que auxilie a população no acesso a programas habitacionais. O exemplo francês de locação social constitui uma proposta factível, que merece ser melhor estudada. Dessa forma, mesmo considerando os abatimentos gerados pelos usos diversos às habitações, os quais seriam, em alguns casos, comercializados e, em outros, financiados por recursos públicos provenientes de outras fontes orçamentárias, o valor global médio da reforma giraria em torno de R$45.000,00 por unidade. Ainda que o PAR – única linha de crédito disponível para o financiamento de obras de requalificação de edifícios – elevasse o valor do empréstimo para R$35.000,00, conforme o anunciado, o projeto permaneceria completamente inviável. Tal constatação leva, entretanto, ao questionamento de algumas diretrizes que vêm marcando as políticas de desenvolvimento urbano no Brasil, a começar pela supremacia do mercado imobiliário. A questão fundiária é hoje o grande entrave às políticas habitacionais, que se inviabilizam mediante os altíssimos valores “de mercado”. Contanto, vale ressaltar que, muitas vezes, este “mercado” sequer existe, ou seja, tratase de mercadorias sem compradores. Este é o caso dos imóveis e terrenos ociosos do Centro de São Paulo, nítidos reflexos de um processo especulativo. 53 ORÇAMENTO DA REFORMA DO EDIFÍCIO "CINE OLIDO" - HABITAÇÕES OPÇÃO POR PAINÉIS DE CONCRETO CELULAR PLANILHA TCPO.10-PINI DE DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS SERVIÇOS COM SEUS CUSTOS MÉDIOS (jan/2002, s/BDI, c/LS) Ordem 1 13 14 15 16 Item 1 2 2.1 3 3.1 17 18 19 20 23 24 26 27 28 31 32 35 38 39 42 43 46 47 48 49 50 51 80 101 3.2 4 4.1 4.2 4.5 4.6 5 5.1 5.2 6 6.1 6.4 6.7 7 7.3 8 9 9.1 9.2 9.3 9.4 10 11 12 Descrição dos Serviços FUNDAÇÕES ESTRUTURAS DE CONCRETO ARMADO Laje treliçada 12 cm ALVENARIAS Estrutuais em blocos de concreto 09 cm (9x19x39 cm) Bloco de concreto celular esp. 10 cm Estruturais em blocos de concreto 14 cm (14x19x39 cm) Painel de concreto celular esp. 10 cm (40 x 280 cm) Divisória "wall" compensado naval, esp. 4 cm Painel de gesso acartonado "dry-wall" esp. 10 cm PORTAS, JANELAS E VIDROS Portas de madeira, 60 cm, externa, p/pintura, completa Portas de madeira, 70cm, interna, p/pintura, completa Caixilho em chapa de aço dobrada, correr Vidro liso 3 mm COBERTURA Estrutura pontaletada de madeira p/telhas de barro Telha cerâmica plan REVESTIMENTOS DE PISOS INT. E EXTERNOS Cimentado desempenado e alisado (queimado) Piso cerâmico Rodapés de cerâmica 7,5 x 15 cm REVESTIMENTO PAREDES INT. E EXTERNAS Azulejos comuns REVESTIMENTO TETOS PINTURAS Esmalte sintético sobre madeira Esmalte sintético sobre metal Láteax PVA interno Látex Acrílico externo INSTALAÇÕES HIDRO-SANITÁRIAS Ponto hidráulico INSTALAÇÕES ELETRO-MECÂNICAS Ponto elétrico TOTAL GERAL SEM BDI Código SSO-SIURB-PINI Unidade Quantid. Custo Unitário 030419 PINI m2 480,00 27,67 070153 PINI PINI PINI PINI PINI PINI m2 m2 m2 m2 m2 m2 0 0 0 17.195,00 0 0 14,53 16,75 21,57 37,46 62,23 39,55 PINI PINI SSO SSO un un m2 m2 347 419 1535 179,66 179,69 104,91 36,78 PINI PINI m2 m2 30 30 30,59 19,84 170305 SSO PINI PINI m2 m2 m2 8.221,70 1.723,50 3744,8 11,97 14,52 14,52 110229 SSO m2 5.155,00 12,75 070171 070207 070503 070604 070701 080101 080102 080241 140102 110101 110405 130202 170305 150211 150310 200205 200304 SSO SSO PINI PINI m2 m2 m2 m2 4035,00 3070,00 30609,00 2500,00 11,07 12,76 6,38 6,95 ponto 1506 400 ponto 6964 40 Custo Total 0,00 13.281,60 13.281,60 644.124,70 0,00 0,00 0,00 644.124,70 0,00 0,00 337.458,43 62.342,02 75.290,11 161.036,85 0,00 1.512,90 917,70 595,20 177.813,47 98.413,75 25.025,22 54.374,50 65.726,25 65.726,25 0,00 296.501,07 44.667,45 39.173,20 195.285,42 17.375,00 602.400,00 602.400,00 278.560,00 278.560,00 2.417.378,42 % 0,00 0,55 26,65 13,96 0,06 7,36 2,72 0,00 12,27 24,92 11,52 100 54 Fachada proposta para o Edif. Domingos Fernandes Alonso. Brises protegem da radiação solar e diferenciam os andares de habitação e equipamentos sociais. 55 Habitação tipo 1 – quitinete Habitação tipo 2 – 1 suíte +2 dormitórios 72 Habitação tipo 3 – 1 dormitório. Habitação tipo 4B – 2 dormitórios Habitação tipo 4A – 2 dormitórios. 73 Habitação tipo 5A - 1 suíte + 1 dormitório Habitação tipo 4C – 2 dormitórios Habitação tipo 5B – 2 dormitórios 74 Centro de Cultura Afro-Brasileira pavimentos) ocupados pelos hotéis Lincoln e Visconde e pelo Cine América (pornô) e dois estacionamentos a céu aberto. A proposição de um centro de cultura afro-brasileira surgiu a partir de uma pesquisa histórica sobre o Largo do Paissandu e a Igreja de N. Sra. do Rosário dos Homens Pretos e, principalmente, de conversas com participantes da Irmandade. A área é caracterizada como Z5, zona de uso misto de densidade demográfica alta. Em função do programa do centro de cultura, caracterizado como E4 – usos especiais –, estabelece-se uma taxa de ocupação de 0,8 e um coeficiente de aproveitamento de 3,5, ficando a definição dos recuos mínimos a critério da SEMPLA. A Irmandade exerce um papel fundamental na preservação da cultura afro-brasileira, mantendo muitas de suas tradições através de ramificações em grupos de culto e grupos culturais (congada, por exemplo) espalhados pela capital e pelo interior. Guarda também um acervo precioso de documentos que retratam a presença do negro em São Paulo desde a sua formação. Suas missas dominicais, festas e procissões mesclam o catolicismo a crenças africanas – N. Sra. do Rosário é a madrinha da congada –, evidenciando a miscigenação de culturas ocorrida desde a vinda do negro ao Brasil. No entanto, após tantos anos de luta para manter vivas a memória e as tradições afro-brasileiras, a Irmandade vem sofrendo um certo esvaziamento e envelhecimento, principalmente pela falta de interesse dos jovens. Um dos principais motivos é a ausência de um espaço capaz de abrigar outras atividades além do culto religioso. Atualmente, a Irmandade tem sua sede no porão da igreja, o que limita muito sua atuação. Assim, ficou clara a pertinência de se propor um centro de cultura afrobrasileira dentro da área do Paissandu, já que esta guarda parte dessa história e poderia, ainda, ser mantida a estreita relação com a igreja. Um levantamento da região levou à escolha de um terreno de 2400m² (30x80), delimitado pelo largo, pela rua do Boticário, pela Av. Rio Branco e por um edifício comercial de 15 pavimentos. Atualmente, encontra-se subutilizado, sendo ocupado por quatro pequenos edifícios térreos de uso comercial, três edifícios de baixo gabarito (3 e 4 75 Em primeiro plano, área de projeto vista pela Av. Rio Branco. 77 Projeto O programa do centro de cultura foi definido não só de acordo com as necessidades da Irmandade, mas também a partir da carência, na área central e principalmente na República, de equipamentos culturais e de lazer voltados a um público mais amplo. Criam-se, assim, ambientes que proporcionem um intercâmbio cultural, com atividades para diferentes faixas etárias, que atendam a todos os níveis de renda. Espaço de exposições – Compreende uma área de exposição permanente – museu da cultura afro-brasileira – e outra destinada a mostras temporárias. Biblioteca e sala multimídia – Abrigariam todo o acervo histórico colecionado pela Irmandade – documentos, livros, fotografias, vídeos, áudio –, outras obras pertinentes, além de acesso à Internet. Auditório – Usos diversos, como palestras, conferências, reuniões dos vários grupos da Irmandade e até pequenas apresentações artísticas; possibilidade de locação para outras atividades. Oficinas e salas de aulas – Ofereceriam aulas de música, canto, teatro, danças, capoeira, artesanato (pintura, escultura, cerâmica, etc), reciclagem, corte e costura (podendo, inclusive, produzir os trajes típicos para os grupos da Irmandade), cursos de línguas e informática. Além de se desenvolverem atividades relacionadas à cultura afro-brasileira, certos cursos poderiam ser profissionalizantes, proporcionando uma alternativa de fonte de renda. Restaurante afro-brasileiro – Contaria com uma cozinha-escola, oferecendo cursos de culinária típica. Térreo livre – Promove, em primeira instância, uma continuidade do Largo do Paissandu até a Av. Rio Branco. O amplo espaço coberto procura abrigar diversos usos: ensaios dos grupos de congadas, concentração e preparação das procissões, festas e outras manifestações. Conta com uma área de apoio, incluindo vestiários, sanitários e lanchonete. “Cinema” a céu aberto – Uma pequena praça no miolo da quadra, equipada com um telão de projeções e bancos. Quadra de esportes e piscina – Buscam atender a parte da demanda por equipamentos esportivos, podendo ter uso livre ou atividades monitoradas. Para a distribuição física desse programa, foi proposto um edifício único setorizado em dois blocos: bloco cultural (acima do nível da praça) e bloco esportivo (localizado no subsolo). Como diretriz de projeto foi considerada fundamental a ligação com a igreja, tanto através de contato visual como pela fluidez do espaço. O largo se estende até o centro de cultura, integrando-se ao edifício, permeia a quadra e abre-se novamente em uma área livre. Surge, assim, uma praça central no miolo da quadra, um espaço agradável de acesso, passagem e permanência, o que procura constituir um “respiro” em meio a uma malha urbana extremamente densificada. A opção por gabaritos não muito elevados, assim como a implantação da praça central, busca um ganho de qualidade ambiental na Rua do Boticário, permitindo uma melhoria em sua insolação e escala urbana. Salão lúdico – Voltado principalmente ao público infanto-juvenil, ofereceria jogos, brinquedos e equipamentos de áudio e vídeo. Administração – Recepção, secretaria, diretoria, almoxarifado, sala de reuniões. Abrigaria a nova sede da Irmandade, responsável pela gestão do centro cultural, embora este constitua uma obra do poder público. 78 O edifício tira partido de empenas cegas na fachada da Av. Rio Branco, que atuam como barreira acústica, proporcionando um espaço interno reservado. O grande vão central concentra a circulação vertical, sendo que o jogo de passarelas e rampas distribui as atividades e permite a visibilidade entre os pavimentos. Uma série de sheds na cobertura desse vão traz iluminação difusa e ainda permite uma ventilação por efeito chaminé. Abrem-se caixilhos voltados para a igreja e para o miolo da quadra, assim como ao lado das rampas, buscando o contato visual com o exterior. Um bloco estrutural concentra a circulação vertical de emergência e por elevadores e a hidráulica (bloco de sanitários). No subsolo localiza-se a área de atividades físicas, incluindo uma quadra de esportes, uma piscina e um amplo espaço para aulas de capoeira e danças. A caracterização do centro de cultura ainda procura resgatar alguns elementos da arquitetura africana. Os brises dispostos na fachada frontal constituem-se de um painel formado por elementos vazados que remetem aos cobogós trabalhados presentes na arquitetura africana. Propõem-se brises tensionados junto às rampas, cuja forma lembraria as tendas da cultura vernacular. Assim como a reforma do edifício do Cine Olido, é necessária uma construção racionalizada e industrializada, com canteiro de obras seco e diminuto, visando contornar as dificuldades impostas pelo Centro. Como condição essencial, o edifício segue uma modulação estrutural, permitindo o emprego de estrutura metálica, lajes “steel deck” e painéis de vedação pré-moldados. Opta-se pelo aço patinável – Corten –, devido à sua excelente resistência à corrosão atmosférica e possibilidade de utilização sem revestimentos, facilitando sua manutenção. 79 fachada frontal fachada r. do boticário fachada av. rio branco fachada posterior 80 Praça do Cinema telão de projeções aproveita empena cega de edifício vizinho. 81 BIBLIOGRAFIA 90 • ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). NBR 9077 – Saídas de emergência em edifícios. Brasil: ABNT, 1990. • BONDUKI, Nabil e outros. 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