O real a mais: ensaio sobre a exposição “Dois reais” de Matheus

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O real a mais: ensaio sobre a exposição “Dois reais”
de Matheus Rocha Pitta.
Camila Damico Medina1
O Paço Imperial foi construído em 1743 e tombado como patrimônio histórico-cultural em
1938. Devido sua restauração, que ocorreu entre os anos de 1982 a 1985, o centro cultural que o
Paço abriga carrega e assume em pauta as cicatrizes das atualizações arquitetônicas e a construção
original. Portanto, suas instalações e exposições privilegiam uma atuação que valorize o contraste
entre o passado e o presente. Não é surpreendente, então, que tenham selecionado Matheus Rocha
Pitta para uma das seis exposições individuais realizadas em 2012 para reabrir uma das salas do
espaço cultural, já que este artista traz consigo uma investigação, que mescla pesquisas no campo da
fotografia, do vídeo e da escultura, por toda a sua carreira sobre a relação acerca a passagem do
tempo, a efemeridade e o objeto sujeito a troca de valores (tanto em uma dimensão física quanto
simbólica), mas, principalmente, sobre a questão da memória e do valor do objeto de memória
quando qualificado como mercadoria graças a algum acontecimento histórico.
Sendo a única instalação com curadoria nesse ciclo de exposições do Paço Imperial,
realizada por Sérgio Bruno Martins, “Dois reais” foi concebida quando Matheus já tinha o convite
do histórico Paço em mãos. A notícia, que abre a exposição, de que os fragmentos do que fora o
Hospital do Fundão seria vendido pelo valor de um real (R$1,00) à empresa paulista Britex, que
trabalha com material de construção, permeou a sua instalação de todo um tom pessoal (ao menos
foi a impressão que me marcou durante o percurso da exposição), pois assim que o artista chegou à
capital do Rio de Janeiro, vindo de Petrópolis, o Hospital do Fundão havia sido sua grande ‘musa’
inspiradora por ser um espaço esvaziado e abandonado que fora reapropriado e ressignificado pela
comunidade local; com os seus entulhos vendidos, as ruínas tornam-se mercadoria, eis o que aponta
Matheus em seu trauma.
O primeiro real, ou como pretendo realçar, a primeira realidade, se apresenta quando a ruína
transforma-se, violentada à proposta de des-memória, em material de construção; o segundo real,
introduzido por Matheus, em que, através da apropriação plástica, se entra em contato com esse
material, em revalorização de suas possibilidades históricas.
Devido esse processo de ressignificação da história individual do artista sobre o Hospital do
Fundão, e mesmo de compreensão e “digestão” desse trauma, todo o meu percurso foi marcado pela
apresentação de espaços descontínuos e fragmentários, já que o contato com o material é
desvirtuado pela provocação de uma separação precoce entre espectador e obra, que é sentida pelo
choque e frustração de expectativa sobre a obra: no primeiro espaço da instalação, os entulhos foram
embalados e armazenados em paredes falsas. Alguns visitantes classificam que o espaço está em
reforma, e não em exposição.
É colocado o desejo e a angústia da necessidade de localizar os fragmentos, ou seja, de
localizar qual é a obra de arte contida na instalação, reposicioná-los na narrativa da vida, ou seja, na
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Graduanda em Produção Cultural no Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense. Email: [email protected]
http://www.uva.br/trivium/edicoes/edicao-ii-ano-iv/o-real-a-mais-ensaio-sobre-a-exposicao-dois-reais.pdf
narrativa convencional da obra de arte na História da Arte.
Eis que, entretanto, a possibilidade de reposicionar o objeto no lugar a que esperamos que
pertença não existe. Na instalação, os entulhos serão mobilizados à empresa de material de
construção, portanto, nem mesmo no aspecto prático da obra de arte ela poderá ser localizada
convencionalmente. Ao fim do percurso fica apenas o testemunho de um vídeo em que (re)vela a
historicidade da exposição e as situações anteriores sofridas pelos sedimentos que se encontraram
embalados no espaço anterior do Paço Imperial.
Um olhar afetivo sobre as ruínas
O real a mais é introduzido pelo Matheus Rocha Pitta para trilhar esse percurso afetivo sobre
o objeto e sobre a história construída em torno dele que será um dia transgredido, em última
instância, para uma total renovação de possibilidades de memória. Ao introduzir uma segunda
imagem em torno de um certo evento que é capaz de furar o olhar e ferir o sujeito, esse
acontecimento reveste-se de uma nova película, de uma nova narrativa, de fato, de uma outra
memória.
Por estar em um processo muito pessoal do artista, que trabalhou na exposição com a questão
da memória, em minha opinião, fui transportada, em um compartilhamento evidente para o apego e
à ferocidade da despedida de outro edifício carioca, localizado na Rua Treze de Maio, que era antes
um lugar privilegiado e favorito para mim até então e, por esse evento perturbador, se tornou para
mim um lugar estranho, um lugar marginal, registrando para mim, através da instalação do Matheus,
um retorno a essa experiência, ao vórtice desse momento que furou o meu olhar.
Uma imagem marginal é explorada por Matheus Rocha Pitta, sentida através da
temporicidade proposta pela exposição em encontro com a temporicidade da casa acolhedora
daquela obra, cuja importância à história do Brasil é inegável. Em dois tempos, portanto, se vive
algo além de um real, mas dois reais àquele trajeto, delineado pela instalação desse artista mineiro.
A experiência do real localizada nesse lugar incita uma imagem, uma foto. Não poderia querer algo
menos real que isso, já que Matheus é, antes de tudo, fotógrafo e, portanto, em busca dessa realidade
para além do que os olhos podem tocar.
A imagem que tenho em mente é a seguinte: no deslocar de um período de algumas horas
noturnas, entre dois edifícios da área comercial da cidade surge algo que fura o meu olhar; entre
essas duas obras da construção civil havia algo que não estava mais lá, um edifício que antes
compunha o trio de prédios do quarteirão, que existia ali como se existisse sempre, em uma
totalidade fatigante, organicamente assimilado por todos os passantes, completo, unívoco – não, não
é assim, de fato; ele desabou em minutos, como se nunca pudesse ser de outra forma senão esses
fragmentos de memórias.
Todos os vestígios de que estivera ali se mantinham em cicatriz; os vestígios da demarcação
das salas, dos cômodos; o contorno em carvão das janelas, das portas; o esqueleto dos alicerces da
construção, os tijolos; o piso, o azulejo: em ruínas.
Em um ambiente imerso de soberania e de supremacia simbólica revela-se a fragilidade e a
efemeridade. De repente aquele edifício tornou-se nada, voltou a ser material de construção. De toda
aquela forma codificada, de todo aquele brilho suntuoso de uma construção civil, em tudo era
completo, claro, evidente – a pura presença do ser; jaz às ruínas, àquele excesso de códigos, de
informações, de emblemas, de contextos, de circunstâncias, de lembranças conformados a voltarem
a ser nada, contemplativos.
O horror dessa visão é sem par, pois as rebarbas foram violentamente despejadas sobre o
http://www.uva.br/trivium/edicoes/edicao-ii-ano-iv/o-real-a-mais-ensaio-sobre-a-exposicao-dois-reais.pdf
olhar, constituindo algo de obsceno nessa revelação da physis desmantelada, em uma beleza do
sofrimento.
Acompanho esse ensaio do trauma com um trecho de Walter Benjamin que surge à mente,
sobre a escrita alegórica, que me evoca a imagem da qual pretendo esboçar desde o início do texto,
pois, não se iluda com pressupostos estilos linguísticos, é preciso por mim o desenhar de um rosto
através de palavras:
A história em tudo o que nela desde o início é prematuro, sofrido e malogrado, se exprime
num rosto – não, numa caveira. E porque não existe, nela, nenhuma liberdade simbólica de
expressão, nenhuma harmonia clássica da forma, em suma, nada de humano, essa figura, de
todas a mais sujeita à natureza, exprime, não somente a existência humana em geral, mas, de
modo altamente expressivo, e sob a forma de um enigma, a história biográfica de um
indivíduo. Nisso consiste o cerne da visão alegórica: a exposição barroca, mundana, da
história como história mundial do sofrimento, significativa apenas nos episódios de
declínio” (1984, p. 188).
Está exposta a proposta de violento desapego àquela instituição, toda a memória está posta a
ser esquecida para se tornar um outro material de construção. Aqueles restos serão desprovidos de
contexto para serem aplicados em outras estórias, em outros mitos. Um edifício que se dará graças a
e a partir desse material melancólico. Quantos fragmentos incorporaram o material daquela
construção em ruínas, quantas ruínas compõem aqueles fragmentos, não existindo sequer um fundo
primeiro de materiais; todos se constituíram a partir da queda de qualquer império, de qualquer
totalidade evidente. Toda memória deve ser esquecida. Ou será esquecida, mesmo não tendo esse
dever.
Há algo de sedutor nessa visão, pois todo aquele material torna-se palpável, é possível pegar
em um pedregulho, é possível sujar as roupas daquela areia, é possível manusear um pedaço de
tijolo, de azulejo, encontrar uma caneta nos escombros. Dali irei à minha casa, levando sem querer
os escombros, a areia, a sujeira, sujeitando ao meu cotidiano, ao ar que respiro os restos cósmicos da
melancolia de um indivíduo. Estarei marcada da história do sofrimento, e finalmente poderei me
banhar desse outro que nunca pude ver realmente, que nunca pude perceber, que nunca pôde existir
para mim antes desse evento; assimilarei, mesmo não conscientemente, uma outridade. Quem sabe
de quem sou feita.
Percebo que não há fundos em mim. De toda a minha totalidade, de toda a minha evidência
existe a melancólica caveira; o desmoronar de um edifício comercial no centro da cidade; do centro
da multidão. Composta do nada, dos fragmentos, quê sofrimento é perceber que pretendo ser
qualquer coisa. É preciso se despir das minhas ambições, dos meus contextos, circunstâncias,
lembranças, enfim. Em fim. É preciso receber, em um dado momento, ser receptáculo.
Em uma intenção melancólica,
a imagem é fragmento, ruína. Sua beleza simbólica se evapora, quando tocada pelo clarão
do saber divino. O falso brilho da totalidade se extingue. Pois o eidos se apaga, o símile se
dissolve, o cosmos interior se resseca. Nos rebus áridos, que ficam, existe uma intuição,
ainda acessível ao meditativo, por confuso que ele seja” (1984, p. 198).
É interessante assimilar como Matheus Rocha Pitta se propõe a uma escrita sagrada, de uma
perspectiva borgesiana; tomando como ponto de partida da exploração a reportagem sobre a
licitação sobre os fragmentos da construção, tendo o contrato o valor de um real simbólico no
acordo entre o governo e a empresa licitadora (mas certamente não se restringindo a essa reflexão
http://www.uva.br/trivium/edicoes/edicao-ii-ano-iv/o-real-a-mais-ensaio-sobre-a-exposicao-dois-reais.pdf
somente), a exposição altera-se devido a algum determinado critério entre o artista e o curador,
Sérgio Bruno Martins, em que as apelações a diferentes interpretações do material de construção dos
restos do Hospital do Fundão não têm fim. O processo de manipulação dos espaços, dos fragmentos
coloca aquele material expurgado de seu anterior contexto, de sua memória: os pedreiros estão
expostos numa presença efêmera no manuseio do material, os escombros estão libertos de sua
memória, trabalhados enquanto ruínas, enquanto perenes, assumidos em uma presença real de
performance. Tanto pedreiros, funcionários, visitantes quanto os materiais de destruição ficam
retirados de qualquer estória, de qualquer sofrimento, pois deslocados do contexto melancólico, da
memória, da lembrança, da circunstância. Junto àqueles escombros, ficamos sem território, não
podemos tocar. Desvirtuados de sua evidente forma, o material nos encena a mise-en-abyme, nos
convocando a estar fora de si, do material que significamos como inteiro, completo, total.
Assistindo à desterritorialização daquele espaço que são os fragmentos da obra militar, nos
desconstruímos, ficamos em fragmentos, observamos a falta-em-si que estamos; há o sabor da
ausência. Assumimos a alteridade, posto que a colocamos em movimento do desfazer dos nós, que
fomos. A experiência do melancólico assume um papel de descentralizar as imagens, os ditos, os
evidentes, colocando em questão aquilo que assumimos como nosso, meu, eu.
Bibliografia
BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. Brasiliense, São Paulo, 1984.
http://www.uva.br/trivium/edicoes/edicao-ii-ano-iv/o-real-a-mais-ensaio-sobre-a-exposicao-dois-reais.pdf
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