Volume 19, N. 1, pp. 115- 128, Jan/Jun 2015. O ABALO NA VIDA DO CUIDADOR AO LIDAR COM UM ENTE COM CÂNCER EM FASE FINAL: CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE O LUTO, MELANCOLIA E O TRAUMA Thayse Maria Ferreira Dules (INAP - Instituto de Neuropsicologia Aplicada) Fernanda Cristina Nunes Simião (UFAL - Universidade Federal de Alagoas - Campus Arapiraca) Resumo Esse trabalho teve como objetivo investigar, a partir das experiências vivenciadas por cuidadores que tiveram um ente com câncer fora da possibilidade de cura, como se processa o luto a melancolia e/ou o trauma diante da morte do seu ente. Ouvimos relatos de experiências de cinco pessoas que eram cuidadoras e vivenciaram a perda de um ente com câncer em estágio terminal. Identificamos nas falas desses cuidadores que o ente que estava com câncer geralmente não era informado sobre o seu estado terminal. Além disso, compreendemos que os sentidos atribuídos estavam relacionados à impotência diante da morte, com sentimentos de tristeza, desesperança e fracasso características elementares do luto da melancolia e do trauma com suas respectivas atribuições e distinções. Palavras-Chave:psicanálise; tumor; família. Abstract The upheaval in the life of the caregiver when dealing with a loved one with cancer in final stage: Psychoanalytic considerations on Mourning, Melancholia and Trauma This paper aimed to investigate, from the experiences of these caregivers that had a loved one with cancer out of healing possibilities, how to process grief melancholy and / or trauma on the death of his one. We heard reports of experiences of five people who were caregivers and experienced the loss of a loved one with cancer in terminal stage. We identified in the statements of these caregivers that the ones who had cancer were usually not informed about their terminal condition. In addition, we understand that most of the assigned feelings were related to impotence in the face of death; sadness, hopelessness and failure which are elementary features of mourning, melancholy and trauma with their respective powers and distinctions. Keywords:psychoanalysis; tumor; family. O câncer é uma doença que tem Introdução uma representação estigmatizada, que acarreta uma carga emocional negativa. No corpo da pessoa ocorre um processo 115 Perspectivas em Psicologia, Vol. 19, N. 1, pp 115-128, Jan/Jun 2015 O ABALO NA VIDA DO CUIDADOR AO LIDAR COM UM ENTE COM CÂNCER EM FASE FINAL: CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE O LUTO, MELANCOLIA E O TRAUMA desarranjado do crescimento das células, o familiar que cuida muda muitas vezes que leva a produção de uma grande radicalmente devido à necessária atenção, quantidade de tecidos do corpo, formando pois o caminho do tratamento de câncer é tumores. Straub (2005), os doloroso, incerto, traz a iminência de tumores malignos (cancerosos) consistem morte e fragiliza os planos futuros, de células renegadas que não respondem expondo o grupo familiar a uma doença aos controles genéticos do corpo no que considerada assustadora e a serviços de diz respeito a seu crescimento e divisão. saúde Segundo Essa doença tem um que são desconhecidos e efeito angustiantes, o que contribui mesmo que arrebatador na pessoa, levando-a a ter que inconscientemente para o processo de luto conviver com perdas: físicas, sociais, (Lima, Bielemann, Schwartz, Viegas & mudanças psicológicas e uma carga e abalo Santos, 2012). emocional desde o diagnóstico e durante todo A experiência humana, estão inseridas em complexidade desse processo não ocorre uma produção subjetiva, social e individual de forma unilateral, atinge também as (Rey, 2006). Desta forma, ser acometido pessoas que fazem parte da vida da pessoa por câncer, uma doença crônica cuja neoplásica: a família (Carvalho e outros, representação geralmente é a morte, devido 2003). ao grande número de óbitos causados por Silva o processo do tratamento. As doenças crônicas, como toda Segundo Sales, Almeida, Silva, ela, nas mais variadas faixas etárias, faz e com que o medo da perda esteja sempre Waidman (2011), há uma imposição de mudanças consideráveis na bastante acentuado (Castro, 2010). vida de pacientes e familiares depois do Além disso, as doenças associadas diagnóstico de câncer, exigindo uma à morte quebram a temporalidade futura reorganização na dinâmica da família que em que se apóia a segurança das pessoas, incorpore às atividades cotidianas os forçando estas a elaborarem vivências cuidados exigidos pela doença e pelo bastante angustiantes diante do processo de tratamento da doença. adoecimento: desde o diagnóstico, durante Carvalho e outros (2003) afirma que as demandas colocadas às famílias se ampliam, uma vez que aumenta o tratamento, até a cura ou a morte (Rey, 2006). a Esta visão da sociedade em que a dependência e a necessidade de cuidado morte é encarada como tabu, em que os dos pacientes. Dessa forma, a vida do debates são considerados mórbidos, e a 116 Perspectivas em Psicologia, Vol. 19, N. 1, pp 115-128, Jan/Jun 2015 THAYSE FERREIRA DULES, FERNANDA CRISTINA NUNES SIMIÃO ideia de que a morte significa perder, faz As com que doenças como o câncer sejam intervenções psicológicas em situações consideradas de morte são recentes e ainda escassas, desumanas (Vasconcelos, Costa & Barbosa, 2008). pesquisas que analisam as mas alguns autores sugerem estratégias O fato de o câncer ser uma doença de suporte psicológico baseadas nos que gera certo desespero nas pessoas que princípios dos cuidados paliativos, da foram acometidas por ele, como também qualidade de vida e do controle da dor. nas pessoas que precisam ao menos lidar (Borges e outros, 2006, p. 362). com a doença, seja como cuidador, seja como profissional de saúde, é devido ao Esses cuidados se estendem fato de que os sentidos que são dados a também à família, no intuito de auxiliá-la essa doença já estão de alguma maneira no processo de elaboração do luto e pré-formados socialmente, e isso se deve aceitação do processo. tanto à construção histórica e cultural dessa A morte de câncer geralmente está doença, quanto à dificuldade inerente ao embebida de um sentido muito intenso, ser humano em ter que lidar com a perda, pois, como citam Carvalho e outros. ou seja, com a facticidade da morte apesar (2003), existem tantas outras doenças que de também podem ser fatais além do câncer; as perdas fazerem parte do desenvolvimento humano (Freitas, 2009). contudo, a impressão que temos é que as Estudos como os de Lourenção, outras doenças “apenas” matam, mas o Santos Junior e Luiz (2009) mostram que o câncer “destrói”. câncer, por ser uma doença crônica, exige No entanto, o medo da múltiplos ajustes na vida da pessoa que é terminalidade não extermina nenhum dos acometida pela doença, com evidências dois fatores, ou seja, nem elimina o medo indicando que fatores físicos, emocionais, nem a terminalidade em alguns casos. Pois cognitivos, o interpessoais e homem dificilmente irá encarar fim, apenas comportamentais estão inter-relacionados e abertamente contribuem para o eventualmente com certo temor é que ajustamento final observado em cada indivíduo. o seu cogitará a possibilidade de sua própria Sem a possibilidade de cura, e à morte, fato que ocorrerá possivelmente ao medida que a doença avança, os pacientes se deparar com uma doença que ameaça em estado terminal necessitam de cuidados sua vida (Carvalho e outros,2003). paliativos. 117 Perspectivas em Psicologia, Vol. 19, N. 1, pp 115-128, Jan/Jun 2015 O ABALO NA VIDA DO CUIDADOR AO LIDAR COM UM ENTE COM CÂNCER EM FASE FINAL: CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE O LUTO, MELANCOLIA E O TRAUMA O câncer fragiliza as pessoas que destacam a dificuldade do sistema de acometidas por essa enfermidade, além dos saúde brasileiro em estruturar programas seus cuidadores e familiares, é considerado de cuidados ao final da vida, devido ao uma sendo aumento da incidência de câncer no Brasil extremamente temido e estando sempre e ao ônus causado ao sistema de saúde. associado à ideia de risco iminente de Essa morte e ao temor de tratamentos agressivos elaboração de programas que valorizem a e mutilantes. importância de cuidar de uma pessoa até o das piores doenças, Nesse sentido, segundo Kovács visão dificulta, por vezes, a seu último momento de vida. (2003), uma das coisas que impulsiona o Nesse estudo pretendemos entender homem a sua criação frenética é o terror como diante da morte, de maneira que. responsabilidade de cuidar do seu ente em fase O homem está bipartido: ao mesmo tempo em que sabe de sua originalidade e poder de criação, reconhece sua finitude de forma racional e consciente. Vive toda a sua existência com a morte presente em seus sonhos, fantasias. Durante toda a sua existência, o ser humano tenta driblar esse saber, essa consciência, e age como se fosse imortal. (Kovács, 2003, p. 25). familiares terminal que assumiram enfrentaram a situações inesperadas que implicaram em dor e sofrimento para todos os envolvidos, e de que forma os sentidos e sentimentos diante dessas experiências contribuíram para a elaboração do seu luto. É importante entender que numa perspectiva psicanalítica, a morte está presente no nosso dia-a-dia mais do que possamos admitir, algumas vezes não nos permitimos trazer a consciência, mas ela abita dentro de nós e a reconhecemos No entanto, o câncer traz consigo a diante de algumas facticidades de perda verdade irrefutável da não invencibilidade durante a nossa vida, diante dos mais do homem, além da racionalização das variados tipos de perdas. Pois, vivenciamos suas fraquezas e limites na fase mais perdas desde o nascimento, como, o avançada da doença, também chamada de rompimento da vida intra-uterina, a ruptura fase terminal, em que a pessoa se depara do cordão umbilical, o desmame, algumas com a realidade de sua existência humana, relacionadas ao encerramento da infância, a finitude. adolescência, vida adulta e velhice, a vida É importante ressaltar que existem estudos como os de Silva e Hortale (2006) 118 Perspectivas em Psicologia, Vol. 19, N. 1, pp 115-128, Jan/Jun 2015 THAYSE FERREIRA DULES, FERNANDA CRISTINA NUNES SIMIÃO revela a morte a partir do próprio existir (Fonseca, 2009). Pois, falar de morte na (Kovács, 2003). contemporaneidade, em que se predomina A morte do outro nos traz a o sujeito ativo socialmente, produtivo, experiência de viver a morte em vida, pois passa a ser complexo devido a dificuldade quando estabelecemos vínculo com um de lidar com o fator finitude humana. ente que se foi é como se parte nossa Tanto para os familiares como para também morresse (Fonseca, 2009). A a pessoa com câncer, lidar com os morte é experimentada desde a ruptura dos elementos de perda que envolve todo o primeiros vínculos, de forma que faz parte desenrolar da luta contra esta enfermidade do desenrolar do ciclo da vida, faz parte do culmina em diversos desajustes emocionais desenvolvimento humano. e psíquicos, e em se tratando da fase Dessa forma o processo de luto se terminal da doença, cuja cura já não é faz necessário diante das perdas cotidianas possível para a medicina, a realidade da dos familiares que acompanham o seu ente morte traz a angústia de saber que haverá com câncer, pois o luto não se refere tão uma ruptura com uma figura de ligação, ou somente a morte em si, mas as perdas seja, uma quebra de um vínculo afetivo impostas pelo adoecimento do seu ente. E (Zavaschi e outros, 2002). a interrupção desse luto pode ser até O luto pode ser entendido como um prejudicial, já que é um processo inerente movimento de passagem, que flui. Que frente à perda de um objeto amado. A compreende pessoa libido marcados como, diminuição da autoestima, anteriormente investida no objeto e a da capacidade de amar, desinteresse pelo introjeta em seu próprio eu (Gonçalves, mundo 2001). anteriormente comuns, ou seja, o luto pode enlutada retira a A ruptura com o objeto perdido envolve sentidos e sentimentos aspectos dolorosos externo, por bem atividades ser ainda entendido como uma travessia, que em que se faz necessário passar pela sua embalam esse desligamento, e que por história, seu passado, mergulhar em sua vezes pode ser muito penoso e requerer subjetividade e abrir caminhos para o tempo, de maneira que o ego esteja livre e futuro, sem perder a capacidade de amar a permita a criação de um novo vínculo. A si mesmo, perda da pessoa com câncer, seja de forma melancolia, que toma rumos de pesar simbólica ou real, traz consequências eternos (Cintra, 2011). e não se entregando a asestruturas psíquicas de toda a família 119 Perspectivas em Psicologia, Vol. 19, N. 1, pp 115-128, Jan/Jun 2015 O ABALO NA VIDA DO CUIDADOR AO LIDAR COM UM ENTE COM CÂNCER EM FASE FINAL: CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE O LUTO, MELANCOLIA E O TRAUMA No entanto é importante que se Assim esse trabalho objetivou amplie esta perspectiva de luto, pois diante identificar as mudanças no cotidiano da da complexidade do ser humano seria vida dessas pessoas, quais experiências muita a mais marcaram durante o processo de acumularia cuidados, as perdas mais significativas, tantos pesares proporcionados pelas perdas além de discutir o papel do psicólogo no que o câncer oferece, de forma que processo de acompanhamento das famílias entendemos que o luto é uma condição durante os cuidados de pessoas com salutar equilíbrio câncer, para que dessa forma pudéssemos psíquico, mas que o trauma e a melancolia compreender como se processa o luto, a fazem parte do processo vital de algumas melancolia e/ou trauma na vida dessas pessoas. pessoas. pretensão subjetividade acreditar humana necessária não para o que Assim entendemos que o trauma psíquico ocasionado pela perda de um ente Materiais e Métodos querido pode gerar um choque emocional capaz de romper a barreira do ego e Este trabalho seguiu a perspectiva garantir perturbações significativas para a da pesquisa qualitativa, que, segundo ordem psíquica do indivíduo, mas que a Minayo, Deslandes e Gomes (2010), nos depender, da possibilita trabalhar com universo dos reorganização e reelaboração do ego, ou sentidos, significados, dos motivos, das mesmo o rumo de enclave que o impedirá aspirações, das crenças, dos valores e das de elaborar um equilíbrio salutar, como é atitudes. Essa pesquisa teve como objetivo no caso de uma melancolia (Zavaschi e investigar, outros, 2002). vivenciadas por esses cuidadores diante da pode Dessa tomar forma, o rumo diante a partir das experiências dos situação de ter um ente com câncer fora de pressupostos da psicanálise pretendemos possibilidades de cura, como se processa o explorar o mundo inter e intrapsíquico dos luto a melancolia e/ou o trauma diante da participantes da pesquisa, de maneira a morte do seu ente. compreender, mais que explicar suas experiências diante das situações e A pesquisa contou com cinco participantes, que acompanharam três condições viabilizadas pelo adoecer de casos de câncer, conforme a seguir câncer do seu ente e pela passagem da vida apresentados. Trata-se de pessoas que à morte. passaram pela dor de ter vivenciado junto a 120 Perspectivas em Psicologia, Vol. 19, N. 1, pp 115-128, Jan/Jun 2015 THAYSE FERREIRA DULES, FERNANDA CRISTINA NUNES SIMIÃO um familiar o processo de diagnóstico de de suas vivências como cuidadoras junto a câncer, tratamento, fase terminal e morte. um familiar com câncer em fase terminal Os participantes são maiores de 18 anos, (Thiollent, 2000). de ambos os sexos, que ao aceitarem Por meio do roteiro da entrevista participar desse estudo assinaram um semiestruturada foi possível produzir os Termo dados dessa pesquisa. As entrevistas foram de Consentimento Livre e Esclarecido (T.C.L.E.). Tivemos acesso a audiogravadas esses participantes por meio de redes de autorização dos participantes da pesquisa, conhecimento, onde ocorreu um processo para serem análise. O material produzido de investigação das pessoas que atendiam nesse estudo foi analisado segundo o as exigências supracitadas, além de atender referencial teórico da psicanálise. Os também ao requisito de a facticidade da participantes dessa pesquisa tiveram seus morte de seu ente já ter ocorrido a mais de dados resguardados e os nomes expostos um ano. são fictícios Nesse estudo foi realizada uma Dessa e transcritas, forma, com chamaremos a a revisão da literatura sobre o tema e depois primeira participante de Júlia, casada, mãe nos debruçamos sobre a produção dos de duas filhas, cursa o nível superior e dados da pesquisa através do procedimento tornou-se a cuidadora da sua avó, a qual foi da entrevista semiestruturada, pois este nos diagnosticada com câncer de útero, com permitiu realizar algumas perguntas que posterior metástase nos ossos. No primeiro direcionaram as pessoas da pesquisa a diagnóstico o câncer foi tratado por quase discorrer sobre o tema proposto e também um ano, mas quando parecia ter sido nos deu a liberdade de elucidar ou explorar curado ele reapareceu nos ossos. A morte questões na fala da pessoa entrevistada da avó de Júlia, a partir do segundo através de perguntas adicionais (Boni & diagnóstico de câncer, foi em menos de Quaresma, 2005). dois meses. A participante acompanhou Dessa forma, para permitir que a todo o processo de diagnóstico, tratamento, entrevista atendesse a proposta do estudo, fase terminal e morte de sua avó, fazendo- mas não limitasse a fala dos participantes, se mais presente como cuidadora nos utilizamos esse procedimento de maneira momentos finais do adoecimento. que possibilitasse às pessoas discorrerem Tivemos como participante, ainda, sobre suas experiências, dando vazão aos a mãe e a irmã, que chamaremos de Maria sentidos e sentimentos tecidos no decorrer e Marta, de um homem diagnosticado com 121 Perspectivas em Psicologia, Vol. 19, N. 1, pp 115-128, Jan/Jun 2015 O ABALO NA VIDA DO CUIDADOR AO LIDAR COM UM ENTE COM CÂNCER EM FASE FINAL: CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE O LUTO, MELANCOLIA E O TRAUMA câncer de estômago em estágio avançado de diagnóstico, tratamento, fase terminal e da doença. Maria é aposentada e Marta morte. empresária, casada e mãe de dois filhos. Desde o diagnóstico de câncer de seu ente Resultados e Discussões não havia prognóstico de cura real, pois ele já estava em fase terminal, no entanto, ele O impacto na vida de quem cuidou de um ainda viveu em tratamento durante quase familiar com câncer três anos. Foram realizadas algumas sessões de quimioterapia e radioterapia e O cotidiano de quem se torna um não havia possibilidade de cirurgia para cuidador de uma pessoa com câncer muda retirada do tumor devido ao seu tamanho, o bruscamente, pois ele participará da rotina que indicava o estado avançado da doença. de Essas as cuidadosdiversos, que são constantes. Toda do essa rotina passa a ser algo comum a todos tratamento e nos cuidados paliativos até o que vivenciam e acompanham a realidade momento da morte de seu familiar. de quem adoce de câncer, inclusive em duas protagonistas mulheres no foram acompanhamento Os dois últimos participantes da pesquisa foram a filha e o genro de uma exames, consultas, tratamentos e fase terminal. Em decorrência disso, essas mulher diagnosticada com câncer de útero, mudanças afetam concomitantemente os que chamaremos de Claudia e Carlos. diversos Ambos entrevistados são empresários, cuidadores, gerando um impacto na rotina casados e pais de três filhos. A mãe de dessas pessoas. As alterações na qualidade Claudia recebeu o diagnóstico de cura de vida dos cuidadores, como não poderem depois de câncer. trabalhar, dormir ou realizar as atividades Contudo, depois que ela começou a sentir do dia-a-dia, implicam na desestrutura da novamente ordem natural das coisas (Muniz, Zago & tratar o primeiro algumas dores, ela foi examinada e os exames detectaram outro âmbitos da vida desses Schwartz, 2009). tumor na coluna, só que agora na coluna e As novas condições de vida dos em nível avançado. Desse modo, a mãe de cuidadores, que são estabelecidas pelo Claudia recebeu o diagnóstico de fase câncer, geram aflição, tristeza, angústia, terminal, o que a levou à morte em apenas ansiedade e desconsolo. Isso fica evidente um mês após esse diagnóstico. Assim, o nas falas que seguem a baixo: casal acompanhou de perto todo o processo 122 Perspectivas em Psicologia, Vol. 19, N. 1, pp 115-128, Jan/Jun 2015 THAYSE FERREIRA DULES, FERNANDA CRISTINA NUNES SIMIÃO - Maria:eu ficava ali com ele, pelejava alguma forma, da maneira que pode [...] o dia inteiro, cozinhando ali pra ele [...] mas ela (Claudia) estava aqui, parou os eu dormia na cadeira e ia adormecendo trabalhos, que ela costurava, parou tudo e me acordando, o tempo todo, porque [...] quem cuidou cem por cento foi ela, ele reclamava de muitas dores, mesmo ela quem botou a vela na mão dela tomando a morfina. (sogra com câncer), ela (sogra) morreu nas mãos dela (Claudia) [...] na época - Marta: mudou tudo, tudo na vida da gente mudou... nós deixamos tudo pra cuidar dele, até trabalhar eu não eu cuidei como se fosse mãe, eu senti demais, eu imagino pra ela (Claudia) como não foi [...] é muito doloroso. trabalhava mais, quando o telefone tocava que eu não estava com ele, eu - Júlia: ninguém tinha vida. Assim, tem pensava logo que ele tinha morrido, eu festa pra ir, ninguém ia, todo mundo, estava mais satisfeita quando eu estava todo dia, estávamos na casa dela (avó lá com ele, cuidando dele, eu sempre com câncer) independente do que você estava com ele pra dar massagem nele, tinha pra conversa com ele. qualquer coisa, mas a gente tinha que ir pra fazer, casa, faculdade, pra casa dela, tipo, final de semana, é Nesse sentido, pretendemos refletir sobre como o câncer motiva mudanças e gera impactos na vida não somente de quem sofre com a doença, mas também de quem lhe tece cuidados, pois entendemos que o adoecimento é gerador de desarmonia em todos os aspectos da vida de uma pessoa, inclusive na vida de seu cuidador, conforme os relatos a seguir. meu final de semana de cuidar, então eu não vou sair, vou ficar na casa dela (avó com câncer). E eu pensava, poxa, a pessoa que tomou conta tanto tempo de mim daqui a pouco não vai estar mais aqui. Daqui uns dias essa pessoa não vai estar mais aqui, então eu vou ter que fazer o que eu puder por ela agora... Você não tinha cabeça pra pensar, eu ia - Carlos: [...] eu ia pra Maceió com elas pra faculdade, tinha uma prova, eu não (Claudia e sogra com câncer) as cinco estudava, o professor dava aula, mas eu horas da manhã e esperava o tratamento não conseguia prestar atenção, porque e voltava [...] mexeu porque alguém eu ficava pensado na hora de ir cuidar tinha que fazer alguma coisa, e todo dela. Abdiquei de fazer qualquer coisa mundo da família ajudou, todos de pra minha filha porque era dia de ficar com ela, tinha que cuidar dela, tinha 123 Perspectivas em Psicologia, Vol. 19, N. 1, pp 115-128, Jan/Jun 2015 O ABALO NA VIDA DO CUIDADOR AO LIDAR COM UM ENTE COM CÂNCER EM FASE FINAL: CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE O LUTO, MELANCOLIA E O TRAUMA supermercado pra fazer, tinha alguma podem levar a um processo de enlutamento coisa pra fazer, mas eu não podia (Kovács, 2003). porque eu tenho que passar lá pra cuidar dela, tinha logo que ver ela, era um O diagnóstico de fase terminal dever passar os últimos dias com ela. A fase terminal é um agravo clínico Por intermédio dessas falas foi possível vislumbrar o que já havia sido discutido nesse estudo outrora: as mudanças severas causadas na vida dos cuidadores, geradas pelo adoecimento do seu ente, a mudança na rotina e o abandono de algumas atividades importantes se fizeram necessários para que o enfrentamento da doença e os cuidados ao seu ente com câncer pudessem ser priorizados, ansiedade gerando e sofrimento aos familiares. com causas bastante definidas. Geralmente é causionada por uma doença em estado avançado, ou em estado progressivo ou incurável. Nessa fase, há uma baixa possibilidade de responder ao tratamento específico e, geralmente, é acompanhada de diversos crônicos, problemas múltiplos, ou sintomas multifatoriais e alternantes. É caracterizada também pela iminência de morte real, ou seja, quando se está fora das possibilidades de cura e se tem um prognóstico de vida muito curto - Carlos: pra mim que vivenciei foi um (Müller, Scortegagna & Moussalle, 2011). Contudo, a fase terminal vai além momento angustiante [...] você vê um ente querido seu morrendo ao poucos, é dessas características um sentimento de tristeza muito grande. anteriormente, visto acarreta um em definidas que esse estado ponto central do - Marta: a tristeza era grande porque a tratamento: a morte, a finitude. O que antes gente já sabia que iria perdê-lo (irmão parecia estar presente, mas era evitado a com câncer). Já era um sentimento de todo custo, agora passa a ser um fato, a perda. ideia da batalha perdida passa a se É importante destacar que esses abalos, essas pequenas perdas que se estabelecem durante o processo de cuidados à pessoa com câncer podem desencadear alguns sentimentos que concretizar. Com isso, o diagnóstico do estado terminal gera sentidos e sentimentos bem marcados, presentes, por exemplo, nas falas do casal Carlos e Claudia: - Carlos: Pra mim que vivenciei foi um momento angustiante, eu entrava aqui, 124 Perspectivas em Psicologia, Vol. 19, N. 1, pp 115-128, Jan/Jun 2015 THAYSE FERREIRA DULES, FERNANDA CRISTINA NUNES SIMIÃO ela (sogra com câncer) estava deitada no fazer, mas você não tem poder nenhum sofá, aí eu passava a mão na cabeça sobre aquilo. dela, aí você vê um ente querido seu Para a família, a dificuldade de morrendo aos poucos, é um sentimento de tristeza muito grande, porque você vê a pessoa ali, com o coração batendo, com os olhos abertos e você sabe que já perdeu ela, você está com a pessoa ali, mas você já perdeu, infelizmente, ela tá ali e você ter que mandar já construir a catacumba, ela viva aqui, mas se não tivesse construído a catacumba não tinha aonde colocar, só deu tempo terminar, quando eu estava terminando a catacumba ela faleceu, é um lidar com essa situação muitas vezes culmina em sentimentos de impotência, ansiedade e incertezas, gerando inúmeras preocupações, como o fato de não saber como agir diante da situação de finitude do seu ente (Carvalho, 2008). Esses elementos compõem um processo que culminará em luto, melancolia ou trauma, pois embora os sentimentos e sensações sejam similares, a forma como cada pessoa irá reorganizar ou reelaborar o seu ego é muito particular. sentimento de perda tão grande, mas Considerações Finais você tinha que agir com razão, aí eu disse „pessoal, infelizmente não da pra O câncer é uma doença que esperar não, a situação dela está séria‟ atualmente é considerado um problema [...] aí foi quando começou a construir, mundial. Como foi discutido ao longo do era ela aqui no velório e o pessoal trabalho, sua representação e sentidos vêm construindo, é uma situação que [...] sendo tecidos de forma estigmatizada quem já passou por isso é uma situação devido às diversas maneiras como a delicada [...]. doença atinge as pessoas, provocando - Júlia: Nem sei dizer, o sentimento era de desespero, de impotência, como o meu tio, ele perguntou lá a médica se ele vendesse a casa dele resolveria o problema, e a médica disse que infelizmente não, era uma situação de impotência, a gente poderia vender tudo pra fazer o tratamento, mas, mesmo assim, não ia ter condições, você quer inúmeros sofrimentos e dores nos mais diversos âmbitos da vida tanto das pessoas acometidas pela doença quanto de seus familiares (Menezes, Passareli, Drude, Santos e Valle, 2010). Assim, as perdas são constantes desde o diagnóstico. O cuidador que lidou com um ente com câncer em fase terminal teve que compreender as diversas necessidades 125 Perspectivas em Psicologia, Vol. 19, N. 1, pp 115-128, Jan/Jun 2015 O ABALO NA VIDA DO CUIDADOR AO LIDAR COM UM ENTE COM CÂNCER EM FASE FINAL: CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE O LUTO, MELANCOLIA E O TRAUMA dessa pessoa, e certamente não foi uma Aqueles que durante o enlutamento tarefa fácil, como pudemos compreender a nas suas relações com o objeto amado partir predominou das falas participaram do das pessoas a culpa e a depressão estudo. Esses certamente terá mais probabilidade de cuidadores tiveram que lidar inclusive com romper com a barreira do ego e gerar os sentimentos que se configuravam ao algumas perturbações que dificultará a experienciarem cada momento difícil, a evolução saudável do ego, ocasionando cada uma melancolia, abrindo caminhos para fracasso, nosso que com os avanços e retrocessos, a cada mudança ao lado de seu inúmeras familiar, atribuindo sentidos a todos esses passando por esse processo conseguir momentos vivenciados. tomar Faz-se importante, a partir desse patologias, rumos mas de se mesmo reorganização e reequilíbrio, deixando o trauma (que estudo, que entendamos que o processo de também luto pode tomar alguns rumos, o salutar e o possivelmente se permitirá desenvolver um neurótico. A maneira psicodinâmica a qual equilíbrio salutar. O luto é um processo está descrita as falas das pessoas que saudável, participaram desse estudo, nos permite sentimentos, e sensações bem definidos compreender o presentes nos três processos, o luto flui, de relacionamento do ego com seus objetos, forma saudável, de maneira que é possível neste caso mais especificamente com essas operar efetivamente uma projeção em pessoas processaram as diversas mortes outro objeto amado. como se organiza gera patologias) pois, embora para traz existam ocorridas durante o período de cuidados de seus entes com câncer. Referências Boni, V. & Quaresma, S. J. (2005). Aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas em Ciências sociais. Revista Eletrônica dos Pós-Graduandos em Sociologia Política da UFSC, 2(1), 68-80. Borges, A. D. V. S.; Silva, E. F.; Mazer, S. M.; Toniollo, P. B.; Valle, E. R. M. & Santos, M. A.(2006). Percepção da morte pelo paciente oncológico ao longo do desenvolvimento. Psicologia em estudo, 11(2), 361-369. 126 Perspectivas em Psicologia, Vol. 19, N. 1, pp 115-128, Jan/Jun 2015 THAYSE FERREIRA DULES, FERNANDA CRISTINA NUNES SIMIÃO Carvalho, C. S. U. (2008). A Necessária Atenção à Família do Paciente Oncológico. Revista Brasileira de Cancerologia, 54(1), 87-96. Carvalho, M. M. M. J.; Ribeiro. E. M. P. C.; Valle, E. R. M.; Wanderley, K. S.; Gimenes, M. G. G.; Kovács, M. J.; Ferreira, M. L.; Bromberg, M. H. P. F.; Amaral, M. T. C. Yamaguchi, N. H. & Carvalho, V. A. (2003). Introdução à Psiconcologia. São Paulo: Livro Pleno. Castro, E. H. B. (2010). A experiência do câncer infantil: repercussões familiares, pessoais e sociais. Revista Mal-estar e Subjetividade, 10(3), 971-994. Cintra, E. M. U. (2011). Sobre luto e melancolia: uma reflexão sobre o purificar e o destruir. ALTER- Revista de Estudos Psicanalíticos. 29(1), 23-40. Fonseca, C.O. S. (2009). O luto vivenciado pelos irmãos dos pacientes com câncer na perspectiva da psicanálise. Revista Iluminart. 1(2), 24-34. Freitas, J. L. (2009). Experiência de adoecimento e morte: diálogos entre a pesquisa e a gestalt-terapia. Curitiba: Juruá. Gonçalves, M. O. (2001). Morte e castração: um estudo psicanalítico sobre a doença terminal infantil. Psicologia Ciência e Profissão, 21(1), 30-41. Kovács, M. J. (2003). Os profissionais de saúde e educação e a morte. In: _____. Educação para a morte: desafio na formação de profissionais de saúde e educação. São Paulo: Casa do Psicólogo. Lima, L. M.; Bielemann, V. L. M.; Schwartz, E.; Viegas, A. C.; Santos, B. P. (2012).Adoecer de câncer: o agir e o sentir do grupo familiar. Ciência, Cuidado & Saúde, 11(1), 106-112. Lourenção, V. C.; Santos Junior, R. dos & Luiz, A. M. G. (2009). Aplicações da terapia cognitivo-comportamental em tratamentos de câncer. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, 5(2), p.46-53. Menezes, C. N. B.; Passareli, P. M.; Drude, F. S.; Santos, M. A. & Valle, E. R. M. (2010). Câncer infantil: organização familiar e doença. Revista Mal-Estar e Subjetividade, 8, 191210. 127 Perspectivas em Psicologia, Vol. 19, N. 1, pp 115-128, Jan/Jun 2015 O ABALO NA VIDA DO CUIDADOR AO LIDAR COM UM ENTE COM CÂNCER EM FASE FINAL: CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE O LUTO, MELANCOLIA E O TRAUMA Minayo, M. C.; Deslandes, S. F.; Gomes, R.(2010). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Rio de Janeiro: Vozes. Muller, A.; Scortegagna, D. & Moussalle, L. (2011). Paciente Oncológico em Fase Terminal: Uma Abordagem do Fisioterapeuta. Revista Brasileira de Cancerologia, 57 (2) 207-215. Muniz, R. M., Zago, M. M. F. & Schwartz, E. (2009). As teias da sobrevivência oncológica: com a vida de novo. Texto Contexto Enferm,18(1), 25-32. Rey, F. L. G. (2006). As representações sociais como produção subjetiva: seu impacto na hipertensão e no câncer. Psicologia: Teoria e Prática, São Paulo. Sales, C. A.; Almeida, C. S. L.; Silva, J. D. D.; Silva, V. A. & Waidman, M. A. P. (2011). Qualidade de vida sob a ótica de pessoas em tratamento antineoplásico: uma análise fenomenológica. Revista Eletrônica de Enfermagem, 13, 250 – 258. Silva, R. C. F. & Hortale, V. A. (2006). Cuidados paliativos oncológicos: elementos para o debate de diretrizes nesta área. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 22(10), 205566. Straub, R. O. (2005). Psicologia da Saúde. Porto Alegre: Artmed. Thiollent, M. (2000). Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez. Vasconcelos, A. da S.; Costa, C. & Barbosa, L. N. F. (2008). Do transtorno de ansiedade ao câncer. Revista da SBPH, Rio de Janeiro,11(2), 51-71. Zavaschi,M. L. S.; Poesterc, F. S.; Vargas, D. C. F.; Piazenskib, R.; Rohdeel, A. P. & Eizirikf, C. L. (2002). Associação entre trauma por perda na infância e depressão na vida adulta. Revista Brasileira de Psiquiatria. 24 (4), 189-95. As autoras: Thayse Maria Ferreira Dules possui graduação em Psicologia, Especialização em Psicopatologia e Especialização em Neuropsicologia Clinica. E.mail: [email protected] Fernanda Cristina Nunes Simião possui graduação e licenciatura e mestrado em Psicologia. Atualmente é professora efetiva do curso de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas, Campus Arapiraca, Polo Palmeira dos Índios. E.mail: [email protected] 128 Perspectivas em Psicologia, Vol. 19, N. 1, pp 115-128, Jan/Jun 2015