PAISAGEM, PAISAGISMO COMESTÍVEL E ESPAÇO EXTERIOR DOMÉSTICO VOLTADOS À SOBERANIA ALIMENTAR: NOTAS INICIAIS Céline Veríssimo Universidade Federal da Integração Latino-Americana, Foz do Iguaçu, Brasil [email protected] Leo Name Universidade Federal da Integração Latino-Americana, Foz do Iguaçu, Brasil [email protected] RESUMO Busca-se promover um diálogo entre arquitetura, paisagismo e geografia, alicerçado pela soberania alimentar. Se, por um lado, a arquitetura já conta com discussão teórica e prática mais ou menos farta que a relaciona ao direito à habitação e a geografia possui abundante discussão sobre os condicionantes tanto geobiofísicos quanto políticos, econômicos e culturais que moldam as paisagens, compreendidas em permanente transformação pelos gêneros de vida que nelas habitam; por outro lado, em ambas as disciplinas pouco se tem debatido sobre o acesso e a garantia de direitos. Assume-se, por isso, a necessidade de uma discussão espacial de direitos humanos, em especial à alimentação, partindo da premissa de que o paisagismo comestível é ferramenta capaz de relacionar o exercício profissional de paisagistas e a discussão sobre a paisagem dos geógrafos. Destaca-se, outrossim, o papel do espaço exterior doméstico, que quando adaptado para integrar agricultura e negócio familiar, contribui para a segurança e soberania alimentar e produz um microclima agradável, podendo levar à regeneração ambiental em espaços de vulnerabilidade socioeconômica e socioambiental. Palavras-chave: paisagismo comestível; espaço exterior doméstico; soberania alimentar; geografia, arquitetura. INTRODUÇÃO Faz quase sete décadas que a alimentação e a habitação adequadas são direitos humanos (ONU, 1948). No entanto, por um lado estima-se que o mundo ainda possui, apenas nas áreas urbanas, por volta de 1 bilhão de pessoas vivendo em condições inadequadas de habitação (ONU, 2005); por outro, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 795 milhões de pessoas passam fome, o que equivale a 10,9% da população mundial (FAO, FIDA e PMA, 2015). Desde a década de 1960 sabe-se que a produção de alimentos é suficiente para todo o planeta. No entanto, as monoculturas avançam sobre os territórios não para garantir alimentos às populações, mas lucro e patentes milionárias a multinacionais – mesmo que às custas de danos à biodiversidade, riscos à saúde humana, biopirataria e apropriação de saberes autóctones (Porto-Gonçalves, 2006). Ante tais problemas, a noção de segurança alimentar inicialmente designava a manutenção da disponibilidade de alimentos mesmo em contextos de expansão de consumo e de flutuações de produção e de preços, porém mais contemporaneamente diz respeito à situação na qual “todas as pessoas têm, a qualquer momento, acesso físico, social e econômico a alimentos suficientes, inócuos e nutritivos que satisfaçam suas necessidades energéticas diárias e preferências alimentares para levar uma vida ativa e saudável” (FAO, 2011). Movimentos sociais acusam, contudo, que os discursos sobre segurança alimentar são estritamente voltados ao combate à desnutrição, não servindo no enfrentamento contra as grandes corporações transnacionais de alimentos e sua organização capitalista agroindustrial. A Via Campesina – entidade internacional composta por 164 organizações camponesas, a maioria delas localizada na América Latina e no Caribe – defende um outro conceito, a soberania alimentar, voltada aos direitos de cada nação “manter e desenvolver sua própria capacidade de produzir os alimentos básicos dos povos, respeitando a diversidade produtiva e cultural” e “de praticar o manejo sustentável dos recursos naturais e de preservar a diversidade biológica”, assim como os das comunidades de “usar livremente e proteger os recursos genéticos diversos, incluindo as sementes, desenvolvidos por estas mesmas comunidades ao longo da história” (Via Campesina, 1996; ver também: Dominguez, 2015; Rosset, 2008). Se a abordagem da segurança alimentar é normalmente conduzida por intelectuais do Norte e agências multilaterais globais, o discurso da soberania alimentar – o qual neste artigo abraçamos – foi gestado pelos movimentos sociais campesinos da periferia global. É importante, contudo, que a luta por direitos e a busca por sua garantia sejam realizadas a partir de uma compreensão espacial dos fenômenos a eles relacionados, na medida em que sua aplicação e reprodução se dá a partir de uma base territorial – condicionante natural utilizado para satisfazer necessidades; amálgama de culturas que influenciam a percepção de direitos; e espaço de conflitos entre diferentes grupos e interesses. Num debate sobre o espaço, aportes da geografia, da arquitetura e do paisagismo fazemse necessários. No Brasil, arquitetura e paisagismo são executados pelo mesmo conjunto de profissionais, que tem no espaço construído de uma casa, por exemplo, a possibilidade de ação projetiva em arquitetura, ao passo que no espaço livre junto a esta tem a matériaprima fundamental para um exercício projetivo em paisagismo: o que defendemos é que este espaço livre pode e deve se voltar à provisão de quem vive nesta casa, e que a paisagem, compreendida para além de suas dimensões estéticas, é um elemento que articula os diferentes fenômenos e níveis de análises relacionados à ação projetiva e a ação em prol de diferentes direitos (à habitação, à alimentação, ao meio ambiente). Para nos auxiliar nesta tarefa, resgataremos algumas discussões sobre o conceito de paisagem e sobre a disciplina do paisagismo, cotejando-as com o debate sobre o chamado paisagismo comestível – compreendido como uma ferramenta capaz de auxiliar no combate à fome e na produção de alimentos. Em seguida, relacionaremos a a escala da paisagem à outrora desenvolvida conceituação de espaço exterior doméstico (EED) – um microespaço, muitas vezes residual da construção e disposição dos elementos arquitetônicos construídos em lotes formais ou ocupações informais, que contribui para a soberania alimentar de residentes, podendo também produzir um microclima agradável e levar à regeneração ambiental em áreas de vulnerabilidade (Veríssimo, 2013). Somos movidos pelas seguintes questões: arquitetura, paisagismo e geografia são saberes pelos quais se pode debater e agir em prol dos direitos humanos, em especial da soberania alimentar? A abundante literatura da geografia sobre os condicionantes tanto geobiofísicos quanto políticos, econômicos e culturais que moldam as paisagens (Holzer, 1999; Montezuma, 2012; Oliveira e Montezuma, 2010; Name, 2010; Vitte, 2007) pode auxiliar num debate sobre alimentação? Como integrá-la a escritos da arquitetura (Bastos, 2013; Chugar, 2009, 2012 e 2013; da Cunha, 2014; da Cunha e Buzzar, 2013), que já fazem discussões teórica e prática relativamente fartas sobre o direito à habitação? PAISAGEM, GÊNERO DE VIDA E PAISAGISMO... COMESTÍVEL? Muito embora não seja tratada exclusivamente pela geografia, ao longo da trajetória desta disciplina acadêmica a paisagem recebeu bastante atenção analítica. Não à toa, é um dos seus conceitos-chave, talvez o mais polissêmico e em constante aprofundamento e reelaboração teórica por diferentes abordagens (Holzer, 1999; Name, 2010; Vitte, 2007). A mais recente discussão geográfica a respeito da paisagem deu-se em escritos da chamada “nova geografia cultural”, que ainda ecoam atualmente. Tal debate realçou os aspectos visuais e representacionais da paisagem, que seria tanto um texto como uma maneira europeia/ocidental de ver o mundo, pela qual grupos enunciam e interpretam os espaços, a si e aos outros (Cosgrove, 1984, [1989] 1996 e [1989] 1998); Duncan, 1990). Tal discussão foi frutífera a partir da década de 1980; porém, muitos destes escritos têm como referências aportes teóricos mais antigos, como os do estadunidense Carl Otwin Sauer ([1925] 2007; ver também: Leighly, org., [1941] 1963) e do francês Paul Vidal de La Blache ([1921] 1954, [1911] 2012a e [1911] 2012b). O primeiro afirmou que as paisagens são compostas por distintas formas, ao mesmo tempo físicas e culturais. Admitiu haver conteúdos subjetivos e estéticos relacionados às paisagens e alçou sua observação à posição de método distintivo da geografia – com vistas a perceber, descrever e tipificar as diferenças entre povos e territórios da superfície terrestre. Entretanto Sauer não descartou a relevância dos processos naturais, relacionados ao clima, composição dos solos e interatividades ecossistêmicas, por exemplo – que também produzem paisagens, mas que nem sempre são perceptíveis à observação. Antes dele, Vidal de La Blache delineou sua noção de “gênero de vida”, definido como o conjunto de formas específicas de cada grupo realizar adaptações ao meio em que vivem, com base em suas heranças culturais e instrumentais, por sua vez transmitidas pelo hábito. Segundo ele, a cada gênero de vida, “de ação metódica e contínua sobre a natureza” (Vidal de La Blache, [1911] 2012a, p. 132), corresponde uma paisagem-tipo (vide Troll, [1950] 2007). Importa destacar, em primeiro lugar, que subjaz às concepções de Sauer e Vidal de La Blache, a ideia de que a paisagem não é apenas o que se vê. Diz respeito também aos inúmeros processos que constantemente moldam e transformam o espaço, sejam os geobiofísicos, em diferentes escalas temporais e abrangências espaciais; sejam os conduzidos por distintos grupos sociais, que do que a natureza fornece se apropriam – harmoniosamente ou de forma destrutiva. Assim, a paisagem é tanto uma marca deixada por determinada cultura ou civilização sobre a materialidade do espaço como uma matriz de significados sobre o mundo, que espacial e visualmente traduz diferentes intencionalidades (Berque, [1984] 1998): relaciona-se, então, à produção, à transformação e à representação do espaço, sempre animadas por assimetrias de poder, distintos saberes e aportes culturais, além de necessidades que vão da subsistência à manutenção de hegemonias. E importa destacar, em segundo lugar, que a discussão conduzida por Vidal de La Blache a respeito de gêneros de vida moldadores de diferentes paisagens-tipo em grande medida tinha sua formulação apoiada em um exercício de comparação entre o que se julgava o estatuto civilizacional europeu e as práticas de lugares “inóspitos” e povos “selvagens”, sobretudo as relacionadas ao pastoreio e ao cultivo e consórcio de plantas visando à alimentação. Talvez por isso, tão logo a implantação de tecnologias agrícolas visando ao aumento da produção de alimentos iniciou seu avanço sobre o Terceiro Mundo a noção de gênero de vida passou a ser acusada de incapaz de explicar o mundo que parecia estar homogeneizando-se (Sorre, [1948] 2002). Afinal, o crescimento da organização capitalista agroindustrial com base nos grandes latifúndios e na monocultura de exportação deu-se a par e a passo da generalização dos processos de urbanização e industrialização. Se ditos processos por um lado eram compreendidos como condições da continuada realimentação da crença moderna no progresso e, por outro, sempre os acompanharam a destruição de paisagens e culturas, foi desta contradição que surgiram disciplinas mais intervencionistas, como o paisagismo. Nesse sentido, por um lado a práxis paisagista valida a teorização geográfica sobre a paisagem ser tanto uma ideia ou modo de ver quanto o resultado de práticas e processos que moldam aquilo que deve ser visto. Igualmente, que a paisagem é um produto do trabalho e da criação contínua no tempo: seja a natureza em forma de campo ou a natureza em forma de jardim, estamos sempre diante de projetos (Cauquelin, 2000; Pires do Rio e Name, 2013). Por outro lado, como afirmam Cesar e Cidade (2003), coexistiram nas diferentes abordagens do paisagismo, desde sua gênese na metrópole moderno industrial fin-de-siècle, tanto o resgate de signos e valores ligados à nostalgia e à beleza da vida bucólica quanto os movimentos de valorização do novo e do progresso. Diferentes concepções e práticas de projeto de paisagismo tanto acreditaram em certa ciência projetiva capaz de ubiquamente transformar hábitos, práticas e sociedades como raramente valorizaram outros aspectos da natureza que não fossem os estéticos. Somente mais contemporaneamente surgiram abordagens valorizadoras do conforto ambiental, do desenho de infraestruturas verdes, da interconectividade ecossistêmica e do uso de espécies nativas (Chacel, 2004; Benedict e McMahon, 2006; Demantova, 2011). No entanto, dentre as inúmeras vertentes do paisagismo contemporâneo (Cesar e Cidade, 2003; Farah et al., Orgs., 2010; Martignoni, 2008), e, sobretudo, no Sul Global, as abordagens que dão atenção teórica ou prática às espécies vegetais que possam servir à alimentação humana são exceção (Nahum, 2007; Name, 2016; Name e Moassab, 2014) Contraditoriamente, é em lugares menos famintos – Europa, Estados Unidos e Austrália – que o debate sobre o chamado “paisagismo comestível” tem sido mais frequente. Movimentos sociais urbanos, acadêmicos e profissionais das artes vêm pregando a produção autônoma de jardins e hortas comestíveis, caseiros ou comunitários, em coberturas de edifícios ou espaços públicos (Braga e Zamith, 2014; Sánchez-Torija, 2013). Também propõem as florestas comestíveis (ver Figura 2), i.e., projetos com grupamentos heterogêneos que visem a recriar a interação ecossistêmica e os consórcios entre plantas que sirvam à alimentação humana (Pereira da Costa, 2012; Poe et al., 2013). No caso da América Latina, por exemplo, nos últimos anos é a discussão sobre plantas alimentícias não convencionais, ou PANCs (Kinupp e Lorenzi, 2014) que tem se reforçado. Morosamente também avançam projetos de paisagismo produtivo em áreas, sobretudo rurais (sítios, chácaras etc.), que visam à produção de alimentos e são influenciados pela agricultura urbana, a agroecologia e a permacultura. Muito mais praticados por profissionais da agronomia e da botânica (Backes, 2013), apenas eventualmente são foco de projetos de paisagistas (Nahum, 2007). Figura 1. Representação de perfis ecológicos por estratos de floresta comestível tropical (à esquerda) e temperada (à direita). Fonte: Niñez (1987). Figura 2. Floresta urbana comestível em mata pré-existente. Legenda: A – mata existente; B – plantação de estratos inferiores; B’ – substituição de espécies de estratos inferiores; B’’– plantação de estratos inferiores. Fonte: Pereira da Costa, 2012. Figura 3. Perfil de uma estrutura vertical tradicional de um horto caseiro na América Central. Fonte: Lok (1998). Contudo o debate mais expressivo na região é sobre as hortas domésticas e comunitárias, compreendidas como herança pré-colombiana e estratégia de sobrevivência. Em geral de pequenas dimensões, estão presentes em áreas rurais, periurbanas e urbanas, incluindo favelas e comunidades tradicionais (indígenas e quilombolas, por exemplo). Manejadas em especial por mulheres moradoras do espaço onde se encontram ou de seus arredores, são projetos sem conhecimento técnico formal, mas que respeitam princípios agroflorestais: têm variados estratos verticais e horizontais, espécies em consórcio e alta agrobiodiversidade (Name, 2016). Trata-se de um conhecimento de processos naturais que moldam as paisagens, aplicados à microescala e voltados à produção de alimentos que garantem a subsistência; e que também podem proporcionar sombra e diminuição de temperaturas (Niñez, 1987; Gillespie et al. 1993; Lok, Org., 1998; Winklerprins, 2002; Mariaca, Org., 2012) (ver Figura 3). É neste ponto que paisagem, paisagismo e espaço exterior doméstico se cruzam, com vistas à produção de alimentos e à soberania alimentar. ESPAÇO EXTERIOR DOMÉSTICO Em pesquisas anteriores (Veríssimo, 2013), o termo “espaço exterior doméstico” (EED) foi criado para explicar o espaço multifacetado a que se refere a área externa ao redor da construção da casa; e que, no caso de estudo, Moçambique, é onde as atividades diárias da família têm lugar, envolvendo fortes funções sociais e produtivas, bem como reprodutivas. O EED é adaptado para integrar agricultura e negócios, dando forma a um padrão de crescimento urbano verde e ruralizado (ver Figura 4). Enfrentando a degradação da sua base de recursos naturais, problemas ambientais e desemprego, residentes transformaram a utilização do espaço doméstico e reorganizaram estratégias de produção para assegurar o seu sustento. O EED torna-se estrategicamente ecológico e produtivo em termos de alimento, rendimentos, sombra e ar fresco e puro, além do convívio social, não só para facilitar a adaptação em relação a problemas ambientais, degradação de recursos, mudanças climáticas e transformação de políticas económicas, mas em particular para reproduzir as condições naturais necessárias ao sustento tradicionalmente ligado à natureza – “as estratégias de subsistência são organizadas e desenvolvidas de maneira a permitir-lhes encarar a adversidade econômica sem perderem a coesão e identidade familiar” (da Costa, 2002, p. 267). Como resposta à escassez e à adversidade, isto garante que a “memória biocultural” (Toledo e BarreraBassols, 2008) se prolongue. Para compreender o uso desta terminologia – EED – no lugar dos ocidentais “pátio/quintal”, “lote” ou “talhão”, é necessário entender primeiro a noção coletiva de “casa-aldeia” e “lar” dentro do contexto cultural de Moçambique. Os termos “casa”, “lar” e “aldeia” têm exatamente o mesmo significado e são chamados muti nas línguas africanas ronga e changana, as mais faladas em Moçambique. Muti pode ser descrito como aglomerado doméstico, aldeia ou casario que alojem uma família muito extensa, com árvores plantadas e várias casas ou cabanas e geralmente rodeado por uma área cultivada. Já não se encontram aldeias que integrem várias gerações de membros da família, a não ser em áreas muito remotas. Nas áreas rurais, o que no passado constituía uma mistura de várias casas consiste, agora, em três a cinco casas. Enquanto as casas construídas servem para dormir, armazenar e proteger da chuva, o EED é o centro da vida doméstica e social. Seus limites são muito ambíguos, como o são as esferas privadas e públicas do espaço doméstico. O caráter de urbanidade doméstica inerente ao EED facilita não só́ a emergência de negócios domésticos, mas sobretudo a manutenção de redes sociais. Mais importante é o que foi herdado da organização do espaço de acordo com funções e componentes, do significado coletivo de habitação, dos materiais de construção e tecnologia, além de o modo como estes evoluíram para responder às novas condições ambientais, políticas, econômicas e sociais. Definido aqui como a evolução do muti tradicional numa urbanização atual espontânea, o EED foi adaptado e melhorado para resistir à opressão e adversidade, numa transformação silenciosa para estabelecer uma segurança coletiva. Moldando as cidades moçambicanas, o EED tem condições para adaptar o espaço doméstico a novas (agro e não agro) funções produtivas: é estratégia de subsistência (alimentação e rendimento) e produz um microclima no bairro confortável (sombra e ar fresco). Com base em princípios de diversidade e flexibilidade, no EED culturas mistas intensivas são combinadas com gado, serviços e comércio (ver Figuras 5 e 6), adaptando a produção de alimentos domésticos às mudanças de clima e das reformas políticas e econômicas, lidando com recursos escassos e gerando também renda. Os limites imprecisos entre as relações de parentesco alargadas que ocorrem, do nível familiar no EED ao nível da comunidade de bairro, revelam o potencial do EED para a organização coletiva. Ainda que a conceituação ora apresentada tenha origem na observação de dinâmicas moçambicanas, cremos que ela é útil para outros contextos. Afinal, em inúmeros lugares as populações socioambientalmente vulneráveis realizam produção de subsistência nos espaços livres de edificação de suas moradias e de seus bairros. Tais paisagens hortícolas autogeridas (ver Figura 7), quando por exemplo em meio a populações latino-americanas rurais, quilombolas ou indígenas, além de garantir acesso e certa autonomia em relação ao consumo de alimentos, podem ser importantes tanto para a preservação de saberes agrícolas e regimes dietéticos autóctones quanto para a resistência à pressão dos sistemas agroindustriais (Gonzáles, 2012; Name, 2016). Figura 4. Transformação do Espaço Exterior Doméstico e subsistência familiar auto-organizada nos bairros do Dondo, Moçambique. Fonte: Veríssimo (2014). Figura 5. Subsistência e renda em espaço exterior doméstico do Dondo, Moçambique. Fonte: Veríssimo (2010). Figura 6. Trabalho e renda desenvolvidos em espaços exteriores domésticos do Dondo, Moçambique. Fonte: Veríssimo (2010). Figura 7. Agricultura de subsistência no Quilombo de Apepu, Santa Terezinha de Itaipu, Paraná, Brasil. Fonte: acervo próprio (2015). Neste sentido, os EED associados a uma discussão sobre paisagens e paisagismo comestíveis voltados à soberania alimentar são uma oportunidade para que os debates em arquitetura, paisagismo e geografia se aproximem das cosmovisões e espaços correlacionados ao chamado buen vivir (Acosta, [2013] 2016), às noções de cura física e espiritual por ervas cultivadas e utilizadas pelas religiões de matriz africana (Camargo, 2014; Ramos, 2016) e as práticas espaciais nos diferentes espaços livres junto à habitações produzidas por saberes de raiz africana ou indígena (Moassab, 2016). Além disso, o ordenamento da paisagem com base nos aspectos ecológicos, sobretudo em áreas urbanizadas periféricas, possibilita um ambiente saudável e viável em longo prazo: uma vez que aumenta a capacidade de troca de fluxo gênico entre espécies, potencializa o papel recreativo da paisagem e contribui nos processos de regeneração ambiental (Bolund e Hunhammar, 1999; Veríssimo, 2013), repercute positivamente para toda a população. Um paisagismo interessado em auxiliar nestas tarefas deve compreender como estratégicos os EED dos ambientes periurbanos ou urbanos: a ação projetiva pode auxiliar na distribuição de serviços ecossistêmicos significativamente associados não apenas à provisão de alimentos como também à regulação de importantes processos ecossistêmicos – ação sobre o microclima, as dinâmicas hidrológicas e o controle de poluição. Mais ainda, têm a importante função educativa de valorizar, difundir e auxiliar na preservação das técnicas e conhecimentos sobre manejo de espécies provenientes de saberes constantemente expropriados ou relegados ao esquecimento devido ao avanço dos monocultivos sobre os territórios – saberes que coexistem, mas muitas vezes são ameaçados, pela racionalidade moderna instrumental. COMENTÁRIO FINAL Ao contrário do que pensaram intelectuais da Geografia na segunda metade do século XX e alguns dos propagadores acríticos da globalização contemporânea, o avanço da modernidade-colonialidade não homogeneizou totalmente os espaços da superfície terrestre, e, por isso, não eliminou os diferentes gêneros de vida. Particularidades ainda persistem, em especial no que tange ao cultivo de plantas para alimentação – grande foco de interesse vidalino, sejam em territórios marginalizados, aglomerados de exclusão e movimentos sociais do Sul Global, sejam reinventados por movimentos sociais e práticas mais comunitárias no Norte. Eles resistem em práticas de paisagismo que se afastam da usualidade de produção de paisagens meramente belas e que produzem alimentos. Existem, sobretudo, em espaços livres junto de onde diferentes grupos e pessoas vivem. O paisagismo comestível foi aqui apresentado como instrumento voltado não só à reversão dos desconhecimentos sobre espécies vegetais que sirvam à alimentação humana como para ampliar as possibilidades de se acessá-la mais equitativamente. Muitas vezes a partir de saberes que passam ao largo da racionalidade técnica e à revelia de paisagistas, paisagens são transformadas a partir da intervenção contínua sobre os EED, pelos quais se reorganizam estratégias de produção para assegurar sustento e qualidade ambiental. A natureza diversificada e polissêmica do EED, que inclui localização, dispersão, isolamento, concentração, inter-relação e dimensões privadas e públicas preserva uma relação humana simbiótica com a natureza – fundamental para assegurar a soberania alimentar, a base de recursos para a subsistência e a regeneração da vida natural. Assim, a prática de um paisagismo comestível nos EED é um meio de resistência popular à marginalização. Trata-se de conjunto de ações já praticado por não paisagistas, mas paisagistas podem considerá-las como um meio de se incorporar às suas práticas projetivas o direito à alimentação. É por isso que não só é desejável como necessário o entrelaçamento entre paisagismo, arquitetura e geografia, útil tanto para o adensamento teórico quanto para a prática projetiva – ambos interessados em processos geradores tanto de espaços livres quanto de espaços construídos mais justos. REFERÊNCIAS ACOSTA, A. O bem viver. São Paulo: Elefante, (2013) 2016. BACKES, M.A. Paisagismo produtivo. Revista brasileira de horticultura ornamental, v. 19, n. 1, 2013, p. 47-54. BASTOS, T.S. Autogestão habitacional e a desmercantilização da moradia: avanços e retrocessos na região metropolitana do Rio de Janeiro. Dissertação – Mestrado em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2013. BENEDICT, M. e MCMAHON, E.T. Green infrastructure. Washington: Island Press: 2006. BERQUE, A. Paisagem-marca, paisagem-matriz: elementos da problemática para uma geografia cultural. In: CORRÊA, R.L. e ROSENDAHL, Z. (Orgs.). Paisagem, tempo e cultura. 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