1 Pr. Rafael Alves I- Uma Panorâmica do Evangelho de Marcos O escopo deste capítulo é apresentar uma visão panorâmica do evangelho de Marcos. Versarei aqui, a respeito dos principais fatores para uma compreensão introdutória geral do evangelho. Marcos não teve na antiguidade o mesmo destaque, comparado aos outros evangelhos, que o tem hoje. Alguns, como Agostinho, chegaram a considerá-lo como um resumo de Mateus, este reconhecido como o evangelho eclesiástico, pela sua preferência em uso pela igreja. A redescoberta da obra de Marcos é dos nossos tempos. Eis que nos aparece hoje como um evangelho simples, atual, vivaz, quase pitoresco. Um evangelho que demonstra um profundo interesse histórico pela pessoa de Jesus, e o entusiasmo rude e cheio de vida da pregação de Pedro, mestre de Marcos.1 Embora Marcos tivesse a sua sacralidade e inspiração reconhecidas; e sendo posto entre os outros três evangelhos, tendo sido também exaltado como um eco da voz do apóstolo Pedro, a valorização do evangelho de Marcos se deve a estudos recentes, como afirma Oscar Battaglia na referência supracitada. 1.1 A Autoria de Marcos O evangelho de Marcos, embora leve esse nome, é anônimo, não existem evidências internas no texto que comprovem a sua autoria. Não existe um consenso entre os estudiosos do Novo Testamento acerca da sua autoria, embora a maioria aceite a atribuição da autoria do evangelho de Marcos a João Marcos. Ele, provavelmente, era filho de Maria, mulher cuja casa Pedro foi, ao ser livre da prisão em Atos 12,12-17, e foi levado por Paulo e Barnabé na primeira viagem missionária em Atos 13,1-13. Os relatos que temos sobre a 1 BATTAGLIA, Oscar. Introdução aos Evangelhos: Um estudo histórico-crítico. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 167. 2 Pr. Rafael Alves pessoa de João Marcos no Novo Testamento encontram-se em Atos 15,39; Colossenses 4,10; Filemom 1,24; II Timóteo 4,11; I Pedro 5,13. Segundo Papias (cerca de 130 d.C) em sua afirmação preservada no escrito de Eusébio temos: E o presbítero costumava dizer isto: Marcos tornou-se interprete de [hermêneutês] de Pedro e escreveu com exatidão tudo aquilo de que ele se lembrava, é verdade que não em ordem, das coisas ditas ou feitas pelo Senhor. Pois ele não tinha ouvido o Senhor nem havia-o seguido, mas mais tarde, de acordo com o que eu disse, seguiu Pedro, que costumava ministrar ensino conforme se tornava necessário, mas não organizado, por assim dizer, os pronunciamentos do Senhor, de sorte que Marcos nada fez de errado ao pôr por escrito fatos isolados a medida que se lembrava deles. De uma coisa ele cuidou: não deixar de fora nada do que ouvira e não fazer nenhuma afirmação falsa.2 Assim, de acordo com Papias, se atribui aqui, a autoria do evangelho a João Marcos. 1.2 A Prioridade de Marcos É consenso entre a maioria dos estudiosos do Novo Testamento que o evangelho de Marcos, entre os sinóticos, tenha sido o primeiro a ser escrito, e também tenha servido como fonte para Mateus e Lucas. Alguns dos principais argumentos usados pelos eruditos que defendem a prioridade de Marcos são: A ordem geral dos sinóticos é a mesma, mas, quando há variação, verifica-se que: a) Quando Mateus discorda de Marcos, Lucas concorda (Mt diferente Mc=Lc); b) Quando Lucas discorda de Marcos, Mateus concorda com ele (Lc diferente Mc=Mt); c) Mas, muito raramente (talvez mesmo nunca) se pode dizer que Mateus, em acordo com Lucas, discorda de Marcos (Mt=Lc diferente Mc). Este argumento é 2 EUSÉBIO. História Eclesiástica, III, 39,15. Apud CASON, D. A; MOO, Douglas J; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. Tradução: REDONDO, Márcio Lourenço. São Paulo: Vida Nova, 1997. p. 102-103. 3 Pr. Rafael Alves tido como um dos pilares da hipótese da prioridade de Marcos, e é aceito, praticamente, por quase todos os críticos. [...] Outro argumento para sustentar a prioridade de Marcos é que a gramática e o estilo de Mateus e Lucas são mais refinados do que o estilo e a gramática de Marcos. Como sempre acontece, o rascunho contém mais erros do que a forma final de um trabalho literário, e que autores posteriores têm sempre a oportunidade de corrigir erros ou de aperfeiçoar o estilo de obras produzidas anteriormente.3 Partindo desse pressuposto, aceita-se aqui, a prioridade do evangelho de Marcos. 1.3 A Datação e o Lugar de Origem de Marcos A datação do evangelho é assinalada entre os anos 66-70 em Roma, embora haja divergências entre os estudiosos a esse respeito, conservar-se-á aqui, a supracitada data e local do evangelho. O ter sido escrito em Roma, Broadus David Hale em sua Introdução ao Estudo do Novo Testamento diz: [...] Há alguma evidência, no Novo Testamento, de que Marcos esteve em Roma com Paulo e talvez com Pedro. Se Paulo escreveu a epístola aos Colossenses de Roma, Marcos estava em Roma nessa ocasião. Se Paulo escreveu II Timóteo, e se Timóteo fez o que Paulo solicitou, Timóteo e Marcos provavelmente chegaram a Roma antes da morte de Paulo. Se Babilônia, em I Pedro 5:13, é uma referência encoberta a Roma, então Marcos estava em Roma com Pedro quando essa carta foi escrita. [...] Com base nas cartas tanto de Paulo como de Pedro, mencionando a presença de Marcos, é provável que, ainda como testemunho de Clemente de Roma, Marcos esteve em Roma. Também há alguns latinismos (palavras latinas empregadas ao grego) no seu Evangelho. Marcos explica em 12:42, o valor de uma moeda grega, e compara-a com a 3 MIRANDA, Osmundo Afonso. Estudos Introdutórios Nos Evangelhos Sinóticos. São Paulo: Cultura Cristã CEP-IPB, 1989. p. 45-46. 4 Pr. Rafael Alves cunhagem romana. Outros exemplos de palavras emprestadas e construções latinas são observados em 6:27; 14:44,65; 15:15,19,44,45. Em Marcos 15:21 os filho de Simão Cireneu são mencionados — Rufo e Alexandre — como se eles fossem bem conhecidos dos leitores. Segundo a epístola de Paulo aos Romanos (16:13), Rufo estava então morando em Roma. A grande evidência, Tanto interna como externa, faria concluirse que o Evangelho de Marcos foi escrito em Roma.4 As evidências de que o evangelho de Marcos tenha sido escrito entre os anos 66-70, segundo Osmundo Afonso Miranda: É que o conteúdo e a linguagem do Evangelho, que parece indicar que o levante dos judeus contra os romanos já havia começado. Como a revolta dos judeus se iniciou em 66, determina-se que o livro não pode ter sido escrito antes de 66. Mas não se encontra evidência de cerco de Jerusalém — como, por exemplo, alguns autores vêem em Mateus e Lucas. Como o cerco se deu em 70, conclui-se que o livro não pode ter sido escrito depois de 70 A.D. Daí o colocar-se a composição entre 66-70 (ou 67-69).5 A partir dessas evidências, colocaremos aqui, a datação do evangelho de Marcos entre 66-70 d.C. 1.4 Os Destinatários de Marcos O evangelho de Marcos, provavelmente tenha sido escrito para um público cristão gentílico. Partindo do pressuposto que Marcos tenha escrito o evangelho que leva o seu nome em Roma, ele, mais provavelmente, tenha escrito para cristãos romanos. Parece claro que Marcos escreve a gentios, pela tradução que faz de expressões aramaicas, pela explicação que dá de costumes judaicos (tal como o lavar as mãos antes de comer [7.3-4]) e, nos poucos textos que ele inclui sobre o assunto, 4 HALE, David Broadus. Introdução ao Estudo do Novo Testamento. Rio de Janeiro: JUERP, 1983. p. 56. 5 MIRANDA, Osmundo Afonso. Estudos Introdutórios Nos Evangelhos Sinóticos. p. 194. 5 Pr. Rafael Alves pelo seu interesse na cessação dos elementos rituais da lei mosaica (veja 7.1-23; esp. v. 19; 12. 32-34).6 Muito pouco se sabe do povo para quem o evangelho de Marcos foi endereçado, que abraçara a mensagem do evangelho pregado por Pedro em Roma. Mais provavelmente este era um povo heterogêneo, pela evidência que temos em Romanos 16,3-16, onde nos é dada uma grande lista de nomes de hebreus, gregos, asiáticos, e latinos. Era gente dos subúrbios mais populares de Roma, verdadeiros romanos, escravos, libertos, imigrantes; gente que na pobreza e na opressão encontrava no cristianismo uma voz de esperança e de conforto. Era gente concreta, que queria ver o ensino encarnado nos fatos. Talvez por esse motivo, Pedro e Marcos ensinassem, narrando fatos históricos vívidos e concretos, nos quais aparecia o poder e a bondade divina de Jesus.7 Foi em meio ao caos da guerra Judaico – Romana que Marcos escreveu o seu evangelho. Ao recordar as memórias das palavras e dos feitos do Senhor ele anunciava a salvação próxima para o povo. 1.5 O Objetivo de Marcos Quanto ao propósito do evangelho de Marcos, também não há um consenso entre os estudiosos do Novo Testamento. O evangelho não tem a pretensão de ser uma biografia da vida de Jesus, pois lhe falta elementos essenciais que o caracterizem como tal, nada é dito acerca do seu nascimento ou infância, nem de traços físicos. É correto dizer que Marcos tinha um objetivo teológico, que foi o princípio mais importante na organização do material e da informação a respeito de Jesus. Já no título do livro revela o seu objetivo teológico: “Princípio das Boas Novas de Jesus, o Messias (Cristo), Filho de Deus” (Mc 1.1).8 O livro caracterizado como evangelho tem um aspecto teológico em sua redação. 6 CASON D. A. Introdução ao Novo Testamento. p. 112. BATTAGLIA, Oscar. Introdução aos Evangelhos: Um estudo histórico-crítico. p. 181. 8 MIRANDA, Osmundo Afonso. Estudos Introdutórios Nos Evangelhos Sinóticos. p. 171. 7 6 Pr. Rafael Alves Segundo o escrito de Eusébio, Marcos teria sido persuadido a escrever o livro que leva o seu nome a pedido dos ouvintes da pregação de Pedro: A luz intensa da religião resplandeceu na mente dos ouvintes de Pedro, de tal maneira que não se satisfizeram com simplesmente ouvir a proclamação ou com o simples ensino oral. Visto que Marcos, cujo evangelho existe, era discípulo de Pedro, persuadiram-no a escrever os ensinos que lhes haviam sido transmitidos oralmente. Fizeram um pedido insistente. Por esta razão, foi escrito o evangelho chamado Marcos.9 Através desse escrito, podemos então, compreender o porquê de Marcos ter sido escrito. 1.6 Algumas Peculiaridades de Marcos Algumas características peculiares que compõem o evangelho de Marcos são: Se o evangelho de Marcos foi o primeiro a ser escrito, é dele que temos o testemunho mais antigo, portanto, mais próximo daquilo que Jesus fez e ensinou; ao descrever Jesus o evangelho destaca a admiração que ele provocava nas pessoas (Marcos 1,22; 1,27; 4,41; 6,51; 10,24-26;); Marcos também ressalta de forma marcante o aspecto humano na pessoa de Jesus, fazendo referência às suas emoções e necessidades físicas (Marcos 3,5; 6,6; 6,34; 7,34; 8,12; 8,33; 10,14; 10,21; 11,12; 6,31). A sua brevidade em escrever, é também, uma característica peculiar de Marcos, pois ele é bem mais curto do que os outros evangelhos. Marcos é um evangelho rítmico, rico da conjunção Kai. (e), que apresenta-nos Jesus em constante movimento, pregando, curando, exorcizando, em confronto com a liderança religiosa e andando de uma parte para outra. Essa característica peculiar de Marcos, onde a narrativa está sempre mudando de cena, nos apresenta um esboço dinâmico do evangelho. 1.7 Um Esboço de Marcos 9 EUSÉBIO. História Eclesiástica. II 15.2. Apud MIRANDA, Osmundo Afonso. Estudos Introdutórios Nos Evangelhos Sinóticos. p. 195-196. 7 Pr. Rafael Alves A Introdução ao Novo Testamento de D. A. Cason, Douglas J. Moo e Leon Morris, apresenta o seguinte esquema do evangelho de Marcos: Essa narrativa de ritmo rápido é marcada por seis parágrafos ou afirmações de transição, que dividem o relato de Marcos em sete seções básicas. Antecedentes do ministério (1.1-13). [...] Primeira parte do ministério na Galitêia (sic) (1.16—3.6/ O importante sumário em 1.14-15; [...] A seção atinge o clímax com os herodianos conspirando para tirarem a vida de Jesus. Segunda parte do ministério na Galiléia (3,13—5.43). [...] A seção atinge o clímax com quatro milagres, sendo que cada um deles representa um tipo dos milagres de Jesus: o acalmar da tempestade (um milagre da natureza, 4.35-41); a expulsão de uma "legião" de demônios para fora de um homem na região dos gerasenos (um exorcismo, 5.1-20); o estancamento da hemorragia de uma mulher (uma cura, 5.25-34); e o despertar, dentre os mortos, da filha de Jairo (uma ressurreição, 5.21-24, 35-43). A fase final do ministério na Galiléia (6.7—8,26), [...] Na resultante quarta seção de seu evangelho (6.7—8.26), Marcos amplifica notas que ele já fez soar nas duas seções anteriores — as surpreendentes ações poderosas de Jesus, a crítica de Jesus a certos costumes judaicos e a crescente oposição a ele. [...] O caminho da glória e do sofrimento (8.27—10.52). O evangelho de Marcos atinge o clímax com o reconhecimento, por Pedro, do caráter messiânico de Jesus (8,27-30), [...] O ministério final em Jerusalém (1 LI—13.37). A entrada de Jesus em Jerusalém assinala o início da próxima etapa principal do evangelho; os dias de confronto com vários grupos e autoridades judaicos e que antecederam a paixão (11.1—13.37). [...] As narrativas da paixão e do túmulo vazio (15,1—16.8). A última seção do evangelho de Marcos possui duas partes: a 8 Pr. Rafael Alves narrativa da paixão (caps, 14-15) e o relato do túmulo vazio (cap. 16).10 A partir dessa panorâmica geral do evangelho de Marcos, versaremos no capítulo seguinte a respeito do tema que vai permear por todo o evangelho. O anúncio da chagada do reino de Deus, que constitui-se como o conteúdo central da mensagem de João Batista e de Jesus Cristo. 10 CASON, D. A. Introdução ao Novo Testamento. p. 99-101.