DEFINITIVAMENTE AS BAHAMAS O ESTRANHO CORPO DA OBRA

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DEFINITIVAMENTE
AS BAHAMAS
O ESTRANHO CORPO
DA OBRA
MARTIN CRIMP X 2
Teatro Nacional São João
4-6 dezembro 2014
Teatro Nacional São João
11-13 dezembro 2014
DEFINITIVAMENTE O ESTRANHO
AS BAHAMAS
CORPO DA OBRA
DEFINITELY THE BAHAMAS (1986)
DE MARTIN CRIMP
tradução Isabel Lopes
encenação Fernando Mora Ramos
cenografia José Carlos Faria
desenho de som Carlos Alberto Augusto
desenho de luz Carina Galante, Filipe Lopes
interpretação Inês Barros, Isabel Lopes, Carlos Borges
produção Teatro da Rainha
estreia 13Fev2014 Sala-Estúdio do Teatro da Rainha
(Caldas da Rainha)
dur. aprox. 1:20
M/12 anos
qui-sáb 21:30
Espetáculos em língua portuguesa, legendados
em inglês
Quatro Pensamentos Indesejados
Contra a Parede
Menos Emergências
FOUR UNWELCOME THOUGHTS (2004)
FACE TO THE WALL (2002)
FEWER EMERGENCIES (2001)
DE MARTIN CRIMP
tradução Isabel Lopes (Quatro Pensamentos
Indesejados), Paulo Eduardo Carvalho
(Contra a Parede + Menos Emergências)
encenação Fernando Mora Ramos
dispositivo cénico e figurinos Teatro da Rainha
música Carlos Alberto Augusto
desenho de luz Carina Galante
interpretação Isabel Lopes, Mariana Reis, Carlos
Borges, Paulo Calatré e Carlos Alberto Augusto
(interpretação do blues)
produção Teatro da Rainha
estreia 4Out2012 Centro Cultural e de Congressos
das Caldas da Rainha
dur. aprox. 1:00
M/16 anos
qui-sáb 21:30
O TNSJ É MEMBRO DA
1
milly: O silêncio. Eu estou a dizer que foi por isso
que viemos para aqui. Porque eu disse ao Frank,
não foi Frank, eu disse que aqueles aviões estavam
mesmo a dar connosco em doidos. E depois quando
vimos o programa na televisão, não foi Frank, sobre
as drogas, claro que aquilo fez-nos decidir.
frank: Era sobre os ratos.
milly: Sim, os ratos. (Ligeira pausa.) O que é que eu
disse, Frank?
frank: Droga. Tu disseste droga.
milly: Ah foi? (Pausa.) Foi? (Pausa.) De maneira que
quando chegámos aqui a primeira coisa que fizemos
foi ir ao jardim. Eu tenho a certeza que disse ratos.
Porque nessa altura tivemos um verão maravilhoso.
E o Frank pegou-me no braço e ficámos debaixo da
macieira por um instante para evitarmos o calor.
Aquela fruta toda. Eu disse credo Frank o que é que
vamos fazer com esta fruta toda, só nós dois. E ele
disse não te rales com isso, escuta. Não foi Frank.
E eu disse o que é que tu queres dizer Frank, escuta.
E ele disse, nada, escuta apenas.
(Longo silêncio.)
DEFINITIVAMENTE AS BAHAMAS
Os encenadores estão encurralados no canto do
fundo à esquerda de um enorme quadrado negro
de tinta. O texto explicativo diz “isto transmite a
tensão do teatro” – mas esta massa negra rodeando
as três cabeças humanas não será antes um
dispositivo para iludir a insignificância do quadro
e portanto do pintor?
O escritor fica muito satisfeito consigo próprio
quando pensa nestas coisas. Começa a fazer
mentalmente uma lista do que é impossível
agora: o retrato pintado (como é óbvio), a peça
bem‑feita (hilariante), o gesto radical (oh, a sério?),
empenhamento político (ah! ah! ah!). Quantos
mais exemplos de impossibilidades e falhanços
ele descobre, mais contente fica. Quanto mais
sangue derramado, quanto mais morte (já agora,
ele teve sempre razão acerca desta guerra), quanto
mais caos, quanto mais terror. Quanto mais
má‑fé, quanto mais mau sexo, quanto pior a arte.
Fantástico! E agora, a coroar tudo, este suposto
“retrato” dos encenadores a serem despejados
dos seus confortáveis teatros para o canto de um
quadrado escuro. Isto só pode confirmar os seus
piores receios – que foram sempre o que ele mais
desejou na vida.
QUATRO PENSAMENTOS INDESEJADOS
2
3
O teatro de Crimp
FERNANDO MORA RAMOS
Definitivamente as Bahamas
1. Um verdadeiro Cavalo de Tróia, crítico e cruel
No teatro de Crimp, procuramos a convenção e não a encontramos.
Os instrumentos da sua leitura não são os mesmos, nem do teatro mais
reconhecido como tal, nem das experiências do teatro de Beckett, do teatro
testamentário da visão retrospectiva, a vida olhada do seu termo, nem do
combate de Brecht pelo épico, revalorizando o narrativo e a interrupção da
acção. Há, no entanto, no teatro de Crimp, influências de Beckett e mesmo
a utilização de uma espécie de técnica do estranhamento, que lhe permite
usar o narrativo num tipo de teatralidade que é descoberta sua e em que
a herança de Brecht aflora. O que nos surpreende é que as categorias
tradicionais da história, do desenvolvimento da acção, do desenlace e das
personagens sejam completamente ignoradas. Não sabemos muito bem
onde agarrar. É ele que faz a ironia acerca das coisas hoje impossíveis,
falando exactamente da morte da peça bem-feita, morte aliás que vem
de Woyzeck, morte antiga, portanto.
O que, depois, no trabalho de traduzir e pôr em cena, vamos descobrindo
(porque à leitura a estranha crueldade deste teatro capturou-nos) é que
se trata de uma escrita que deslocou o eixo enérgico para a relação
cena‑sala, numa espécie de diálogo que sobreleva a relação dos actores com
espectadores, a que submete – sem subalternizar – as relações das vozes
entre si na cena, vozes que são, por assim dizer, assumidas por números,
por porta-vozes, digo eu. Esta operação é radical: Crimp escreve para este
regime de tensão e não para o resultado que a tensão da acção dramática
projecte na sala. É um escritor de teatro, mais que um dramaturgo,
e o palco é um lugar de liberdade total, como aquela que é própria do
romance. A narrativa tudo pode, pois as suas materializações dependem
apenas da imaginação do autor e do leitor, como aqui do escritor de teatro
e do espectador.
Este teatro é muito exigente e, por assim dizer, dirige-se para um
território de emancipação. E traz-nos à mente aquilo que diariamente
“consumimos” de um modo que é permanentemente banalizado e
irrelevante: um massacre numa escola primária (Contra a Parede), a revolta
violenta das periferias que se sentem segregadas (Menos Emergências),
as histórias nada edificantes da sociabilidade e autenticidade das vidas
dos escritores (Quatro Pensamentos Indesejados). O que é enorme,
monstruoso, trágico e inaceitável é trazido a cena de uma forma cruel,
que ele constrói como uma espécie de indiferença a materializar no jogo
dos actores como “estranhamento”. Crimp fala dos espectadores, e de
todos nós, de si mesmo, no fundo, retratando a passividade conformista
dominante, o contentamento de cada um nos ambientes que concretizam
4
5
O Estranho Corpo da Obra
o que apelida de uma “cultura do contentamento”, estreitamente ligada aos
rituais de consumo. Quem é que aguenta que se conte a morte violenta e
prematura, inexplicável, explicável como um entretém? Mas não será isso
que os game-boys educam?
A sua escrita, a mais recente, é musical, as vozes são propriedade de
instrumentos, corpos e inteligências, não são sujeitos/personagens, são
momentos fragmentários e crispações, rotinas, posições previstas de
casta e classe social. O teatro é aqui, portanto, um compromisso entre
uma imagem que nunca é sugerida como cenografia, nem explicitada
(isso é liberdade de quem faz, embora a indicação “espaço neutro”
e “tempo neutro” sejam recorrentes), e uma partitura vocal que estabelece
um primado acústico para este teatro. Como era entre os gregos, pouca
variação na imagem visiva e liberdade total da palavra, essa sim, capaz
de convocar todas as paisagens imagináveis que o verbo dá a “ouver”
e todas as situações comportamentais.
O que mais surpreende é que Crimp constrói as suas casas (que são
casas estranhas e não acabadas, cujas salas dão de repente para as salas de
casas que não são a mesma e que são inacabadas) a partir do preconceito,
da ideologia comum, das cabeças moldadas pelo consumo e pelo sistema
mediático, daquilo que no fundo parece legitimar, para cada um, o seu
reino, a sua segurança, o discurso da autocomplacência e o narcisismo
como razão de ser. Neste território onde o indivíduo não olha a liberdade
de todos como horizonte, cada um exerce o seu egocêntrico ser na
renúncia de um gesto que seja realmente transformador, a transformação
é um lugar de frustração, uma blague para cínicos, território para graças,
humor negro, verrina.
Sem, por assim dizer, politizar estas questões, Crimp faz teatro
político, explicitando com humor cruel o que é consequência de um
sistema de impotência aceite. Fala do que somos, essa classe média
generalizada, mas mostra também claramente que os verdadeiros
terroristas, os donos do mundo são outros. A crítica do projecto europeu
centrado nessa noção consumista da tal “qualidade de vida”, horizonte
imediato a substituir-se a uma liberdade alargada a todos e a condições
planetárias de vida digna para todos, é em Crimp devastadora.
O teatro de Crimp é um verdadeiro Cavalo de Tróia crítico e cruel,
cómico, no interior das consciências e do sistema burguês parlamentar
“representativo” que serve o financismo.
2. Surdez recíproca, incomunicabilidade egocêntrica, tendência homicida
Na convenção teatral burguesa, um diálogo deve ser bem urdido,
carpinteirado (que palavra), deve correr atrás da lógica sequencial,
da silogística e da argumentação contrapontada, da complementaridade
simétrica. Uma coisa segue-se a outra. Portanto: nem pensamento no
sentido da sua potencialidade (em bruto, fora de sítio, emergindo), nem
desrazão, surdez psicológica, menos ainda incapacidade expressiva,
vulgaridade a explorar no que a realidade oferece, matérias-primas de
escritas. Nesta tradição, o diálogo bem-feito da peça bem-feita sobrepõe-se
às virtualidades do real, mais inventivas que qualquer regra ou bom gosto
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7
e fruto de condicionamento ideológico (ideias mais comportamentos)
nos territórios em que agem os sujeitos reais cujas situações nos
interessam reconstruir artisticamente, diagnosticar, tendo exercitado
dramaturgicamente a compreensão da sua complexidade sem a intenção
de dar lições a quem quer que seja, antes de suscitar interrogações, novos
olhares, fazer luz sobre penumbras e escuros de um modo que só o teatro
é capaz de fazer, em assembleia e prazer.
Revelar o escondido nos mundos próximos, expor a inumanidade
feita rotina, é um objectivo do teatro desde o pós-guerra. Na sociedade
do hipercontrolo massivo, a realidade é já outra, o poder omnipresente
do consumismo engendra as monstruosidades que o quotidiano deita
para fora, como o rio que transborda e expulsa do leito o que no seu devir
imparável arrasta e sucumbe à força. O meu reino por umas sapatilhas
de marca, diz um adolescente; a minha vida por um corte de cabelo na
moda; o meu futuro é um carro; a minha cozinha, um céu; os duzentos
canais televisivos, o próprio Olimpo.
Crimp diz que escreve sobre o que as pessoas falam, estrutura as coisas
que ouve, observa e desenvolve experiências rítmicas e microestruturas
dialogais que são recorrentes. Os diálogos tropeçam no mesmo e vão
avançando por movimentos concêntricos, até que se fecha um círculo
maior que os contém. Em Definitivamente as Bahamas, o casal volta
ao mesmo momento enquistado de uma crispação dialogal; repete um
assunto que é disputa competitiva – por exemplo, discutir se o filho esteve
nas Bahamas ou nas Canárias (a memória esvai-se) – e avança no tempo
parando sobre um vazio que os toma para, no fim da peça, regressar ao
princípio: a descoberta nova-rica do valor do silêncio na casa nova (a antiga
era sob uma rota de aviões). Um silêncio que para eles pode ter estrelas de
qualidade hoteleira, mas que ameaça ser tumular à medida que nada de
novo são capazes de dizer um ao outro. Um ao outro? Mas quem são e o que
age neles senão um exterior que está muito para além do que nomeiam?
As formas dialogadas de Crimp não significam troca individual, fluxo
afectuoso, subjectivação, mas essa crueldade das relações humanas que
desvenda subtilmente – nas entrelinhas da mente, no lapso de memória,
no erro involuntário, na linguagem – uma espécie de fascismo quotidiano
instalado nas relações e exercido por identidades cristalizadas. Não
esqueçamos que o sistema é, no fundo e em plena fabricada efervescência
do consumo, o mesmo que engendrou o nazi-fascismo.
Não são diálogos o que escreve, mas surdez recíproca, incomunicabilidade
egocêntrica, agressão, tendência homicida. Em muitos casais, como na peça,
o homicídio “involuntário” de longa duração é prática diária, a crueldade,
um estado de alma recorrente.
Crimp diz que as pessoas reais dizem coisas incrivelmente cruéis.
Em Definitivamente as Bahamas, existe um pólo sul e um pólo norte que
se atraem: Milly e Frank. Atraem-se dos extremos em que estão, de uma
distância inultrapassável mas irmanada. A caracterização polar também
é de Crimp.
Milly e Frank são um casal nos sessentas, ficcionado por um autor de
trinta. Crimp diz que lembram os pais mas não são os pais. Assim é a
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ficção, um desvio, um afastamento do que é para lá se regressar, pensando
que os espectadores têm um papel a desempenhar; o contrário do
consumo, uma leitura, não um entretém, prazer real e não passatempo –
o prazer é uma experiência interior, o charadismo entretenedor é um fora
em que as pessoas projectam uma sociabilidade que é ritual, fingimento
de comunidade, amontoado de pessoas.
E há a jovem Marijka, holandesa em Erasmus, o assunto do casal,
do filho Mike e da nora Irene, que laqueou as trompas depois de um
aborto pouco claro quanto às razões. Marijka tirou aquela família da
sua rotina: o seu inglês é estranho, a racha na saia é um exagero de estilo,
a sua informalidade, sem regra, o seu sex appeal parece motivar um
estremecimento na família, presa num voyeurismo algo perverso e sem
assunto vital, o futuro (um neto) necessitando de estímulo exterior, tal
como quem está num coma de passividade conformada e confortável.
Para Mike, Marijka é uma excitação, um caso fácil, um motivo de
exacerbação do seu sexismo mal vivido. Irene parece longe do desejo,
virada para a casa e os azulejos. Mesmo os pais de Mike projectam um
suposto par Mike/Marijka, e Irene fotografa-os numa proximidade
promissora.
Milly é uma máquina falante e Frank um complemento, a sua
resistência passiva encontra nas ausências mentais uma forma de
fuga. Quando Milly está incontinente verbal, ele está em nenhures,
entorpecido por um vazio que o toma; nela, o vazio é gritante, presença
vocal, torrente. Em outras ocasiões, ele tem qualquer coisa de Milly
também, uma maldade contra o mundo unifica-os. São pólos opostos,
mas o conservadorismo de ambos solda-se em torno de uma moderação
defensiva de Frank, machista em território específico (dos “homens” em
geral), e de um extremismo militantemente britânico de Milly, capaz de
um racismo de apartheid.
O desejo dela é uma piscina, o dele, um fim-de-semana de visita aos
bolbos na Holanda. Tanto a piscina como o fim-de-semana são em conta:
ela arranja um homem barato para escavar um buraco e o fim-de-semana
dele está em promoção. Há aqui uma divergência profunda... De resto,
efabulam a sua vida através de terceiros: o filho, a nora, Mike e Joan, a
amiga de Milly. São corpos desistentes, enfiados nos sofás. Ir à cozinha é
uma épica. O reaccionarismo de ambos é um imobilismo, enterrados nos
sofás, falam, falam, ela fala, fala pelos cotovelos, interminavelmente.
Para Milly, tudo o que é exterior, estrangeiro, é bárbaro, só no seu
universo e na sua regra doméstica as coisas são elevadas; para Mike, as
coisas são também assim: Marijka, a jovem holandesa, sabe certamente
afrikaans (qualquer holandês o sabe) e é uma potencial mulher de montra
nas Walletjes – na realidade, os que são outros são estereotipados por ele.
Frank e Milly são reféns da sua pobreza cultural, parecidos com tudo o
que nos vem cercando com a progressão da hegemonia americanizada
dos modos de vida. Como em Menos Emergências, extraordinária peça
curta, o lá fora é a barbárie, o mundo civilizado são eles fechados nos seus
medíocres castelinhos domésticos, a olhar de longe a realidade e a olhar
de perto a água parada de uma piscina. Giorgio Agamben define esta
9
pequena burguesia planetária como a ausência total de identidade, essa
capacidade de vestir constantemente a camisola de um outro qualquer
cultural que vá preenchendo o seu fechamento chauvinista e globalizado.
Ser americano é ser globalmente senhor do mundo, naquele sentido em
que se tem o comando do planeta na mão como quem tem um comando
de televisão.
3. Afinal ficcionar é viver
O autor mete o prefácio na obra e
Desobra1
Foi-lhe imposto
Contrafaz humoradamente no
lugar do prefácio o que um
prefaciador encartado faria
Um tijolo fora da construção
previsível, não explica o que não se
explica, introduz mas fá-lo como se
entrasse na obra por portas de
ficção a sua tarefa é
Desconstruir obreiro artesão de
escritas a obra de um modo que
voe
Estou-me nas tintas para
academismos isso é para eles lá nas
universidades entretenham-se a
esterilizar o que se cria comprem
esse sal que traz citações enlaçadas
como salsichas alemãs e semeiem
com ele a terra de que se
apoderaram – são proprietários de
cátedras e borlas e capelos e – e
logo verão o que sai
São aquela coisa dos cadáveres a
procriar
Vai no meio do trânsito a pensar
nas peças curtas que escreveu,
duas, uma sobre um massacre
numa escola primária – que
explicará esta banalização da morte
do próprio futuro – e outra sobre
um veleiro veraneando na orla do
10
mundo enquanto Bobby é atingido
na anca Bobby a criança em
segurança o hiperprotegido
Ao lado carros esventrados
acendem a noite com chamas de
metal reluzente
O actor recusa dizer o texto e
inventa uma desculpa para fugir à
francesa
O autor meteu na cabeça que a
obra é uma merda não tem solidez
As réplicas são impossíveis de dizer
Soletradas parecem ruído informes
Afinal ficcionar é viver
Panica-se como se nos fosse cair
em cima um andar
Já não se fazem casas a partir dos
alicerces e os alicerces são telhados
O actor foge portanto portanto
Portanto a obra que não se alicerça
em nada certo, imperfeita, o
estuque a cair
Os encenadores num canto assim
de castigo cercados de negro num
canto da extensa caixa negra
Desempregados e sem teatros
Uma pintura de lutos com
probabilidade forte num mundo ao
jeito caótico deles mandantes
O edifício tem agora quatro
histórias e duas peças
O Estranho Corpo da Obra
Afinal não exibe o coto pela esmola
Os direitos de autor de uma
terceira peça que perfazia as três
anteriores chegaram chumbados
O que raio tenho na cabeça pensa o
autor
Nas quatro histórias temos: os
encenadores estão encurralados
quando o actor se põe a andar
senti-me tão estúpido
quando o escritor se mata
A mesma vertigem e as mesmas
incoerências da estrutura
Pelos vistos a estrada está aberta
Só é pena que o branco a meio do
jantar volante no copo esteja quente
Enfim: não há poentes
1 Escritos em 2004, Quatro Pensamentos
Indesejados (“Quando o actor se põe a andar”,
“Senti-me tão estúpido”, “Os encenadores
estão encurralados” e “Quando o escritor
se mata”) foram publicados como prefácio a
Martin Crimp: Plays Two, livro publicado em
2005 pela Faber and Faber.
(Nota do editor.)
Textos escritos de acordo com a antiga ortografia.
Os de iates armados e do veraneio
eterno
O autor que foge do maneta que
afinal é como ele passageiro e não
pedinte muito menos assaltante
suspira de alívio
Pior que custarem ouro têm trela
Por fim a morte do jovem autor
que leva com ele o génio e que é
uma extraordinária manobra de
autopromoção
O sentido da radicalidade – isso
existe?
Da militância – bem embrulhada
em consumo, curtida, festivaleira,
rotina, contraposição mecânica,
sobrevivência burra esperta?
E não se trata de Que fazer? Será
mesmo fazer e fazer ver enquanto
se faz
11
“Pode dizer-se que permiti
o banal na minha obra”
peça e sugeri que talvez pudesse escrever uma nova peça curta para
a acompanhar. Foi assim que Play House surgiu.
Definitivamente as Bahamas foi inicialmente escrita como peça
radiofónica…
É verdade. Ganhou o prémio Radio Times Drama e foi transmitida pela
BBC em 1987. Definitivamente as Bahamas demora cerca de uma hora
e para mim é um pouco curta – se bem que as peças estejam a ficar mais
pequenas. Por isso, decidi escrever outra peça curta para a acompanhar.
Primeiro, para tornar a sessão mais longa e depois porque eu gosto dum
desafio formal, o que era o caso: como é que crio material novo para
emparelhar com material antigo? Ora, Definitivamente as Bahamas é
sobre a vida de um casal nos seus cinquenta e tais/sessentas, e foi escrita
quando eu tinha apenas trinta anos. Então, o meu conceito foi partir dum
ângulo inverso, e da perspetiva dos meus cinquenta e tais escrever sobre
um par muito mais novo.
ENTREVISTA A MARTIN CRIMP. POR ALEKS SIERZ.*
aleks sierz Estamos aqui no Orange Tree Theatre, onde começou a sua
carreira. Sente isto como um regresso a casa?
martin crimp Embora seja verdade que o diretor artístico Sam Walters
montou seis das minhas peças durante os anos 1980, há que lembrar que
este teatro mudou radicalmente desde então. Quando a minha primeira
peça, Living Remains, foi aqui encenada em 1982, o teatro era no sótão de
um bar em frente ao sítio onde está agora. Pode ver alguns cartazes nas
paredes do rés-do-chão que publicitam essas minhas peças iniciais, mas
isso realmente foi há muito tempo. Portanto, esta experiência é mais uma
aventura de descoberta de um novo espaço do que um regresso.
E está a encenar…
Sim, não só isto é um teatro totalmente novo para mim como é uma
experiência nova, porque estou a dirigir um trabalho meu pela primeira
vez. À partida, não me estava a ver como encenador e pensei que talvez
pudesse trabalhar com um dos jovens encenadores que conheci através
dos workshops que fiz no Royal Court, mas como isso não funcionou
decidi propor-me a mim próprio. E o Sam aceitou. Ele deu-me a primeira
oportunidade como escritor e agora deu-me a primeira oportunidade
como encenador.
Que importância teve Sam Walters e o Orange Tree na sua vida de
dramaturgo?
Oh, uma enorme importância. Sam montou toda a minha obra na
década de 1980 e um compromisso desse género é incrivelmente valioso.
Hoje em dia, os escritores que sejam apoiados por um teatro para uma
peça, ou talvez duas, podem dar por si rejeitados, sem espaço para
desenvolvimentos. O enorme sucesso da nossa cultura, assente na nova
escrita, significa que existem inúmeros escritores, que inevitavelmente
há um grande número de pessoas a competir por um pequeno número
de oportunidades. E, claro, a nossa cultura teatral enfatiza a novidade
em prejuízo do compromisso.
Foi encorajado para continuar a escrever?
Não exatamente. Nunca ninguém precisou de me encorajar a escrever nessa
época. Embora o façam agora. [Risos.] Mas quando estava a começar, Sam
foi muito recetivo em relação ao meu trabalho – e acolheu-o. Na altura,
provavelmente tomei isso como um dado adquirido. Só em retrospetiva vejo
a grande dádiva que foi.
Este espetáculo tem um programa duplo: para além de Play House, uma
nova obra, inclui Definitivamente as Bahamas, uma peça curta dos anos
1980. Como é que surgiu este programa duplo?
No início, Sam queria uma peça de dimensão normal completamente
nova, mas eu disse-lhe que não me sentia capaz de escrever uma peça
nova num curto espaço de tempo, porque acho isso cada vez mais
difícil. E a peça Definitivamente as Bahamas, que escrevi em 1986, tinha
sido recriada há pouco tempo em Paris. Portanto, eu propus-lhe essa
12
* Excertos de
“Q&A: Playwright
Martin Crimp”.
www.theartsdesk.com
(10 March 2012).
Enquanto encenador, como é que vê a encenação de Definitivamente
as Bahamas?
Decidimos pô-la em cena como uma emissão radiofónica ao vivo. A ideia
era que o público estivesse a assistir a uma transmissão direta da peça de
1986 a ter lugar agora, em 2012, no Orange Tree Theatre. Assim, o palco
está cheio de equipamento de som – como quando se vai a um concerto
que está a ser transmitido. Isto presta homenagem quer ao Orange Tree
quer à BBC Radio 3, que foram coautores do começo da minha carreira.
Quando revisitei Definitivamente as Bahamas, foi muito claro para
mim que acontece num momento histórico particular. Milly, por
exemplo, fala sobre “todas essas reformas” – uma referência à revogação
final do famigerado “Immorality Act”1 na África do Sul. Uma das coisas
que trouxemos para a sala de ensaios foi um exemplar do Daily Telegraph
de agosto de 1986, espantosamente próximo do mundo da peça. Mas,
embora a peça tenha lugar nesse ano, não quis recriar aquela era no
palco usando figurinos ou música dos anos 1980. Em vez disso, quis
que o público imaginasse pela peça, pela linguagem, o mundo de 1986
que as personagens recriam em cena.
Evidentemente, o que é interessante ao olhar uma peça como
encenador é dar-me conta de certas passagens a que estou ligado
enquanto escritor mas que, como encenador, posso tranquilamente
13
cortar. Também reparei que naquela altura tinha carregado demais nas
pausas. É mais uma coisa a ser calmamente repensada. [Risos.]
Ao encenar o texto, é para mim bem claro, de uma forma que de facto
não o era quando escrevi a peça, que de alguma maneira estava a pensar
nos meus pais. Como é óbvio, Frank e Milly não são tal qual os meus
pais, mas o seu comportamento alude de certo modo a eles – e talvez ao
comportamento de todos os casais de uma certa idade, não acha? [Risos.]
Penso que a tarefa com que me tinha comprometido era captar alguma
coisa da maneira como as pessoas realmente falam. E esta é a primeira
das minhas peças em que senti que tinha feito isso de uma forma
inteiramente adequada.
Na nova peça, Play House, temos um jovem casal, Simon e Katrina.
Como é que a peça surgiu?
Como disse, gosto da ideia de ter um elemento concreto e depois
utilizá-lo para fazer uma nova obra. Queria escrever sobre dois jovens
e também fazer algo que nunca tinha feito antes, ou seja, escrever umas
quantas cenas muito curtas e rápidas. Foi a primeira vez que o fiz
e é muito exigente, mas divertido.
Definitivamente as Bahamas tem uma estrutura circular – parte
do silêncio e volta ao silêncio – e Play House alude a essa circularidade
porque a primeira cena e a cena final são ambas declarações de amor.
Mas Play House tem um final mais aberto – talvez mais apropriado para um
jovem casal que não possui nenhuma das certezas válidas para a geração de
Frank e Milly. O que eu estou – estarei? – a tentar explorar em Play House
é a fragilidade e sobretudo a volatilidade de uma relação. E perceber até que
ponto, no mundo de hoje, os indivíduos estão preparados para se adaptarem
uns aos outros em nome do amor.
Usei a imagem dos ímanes para apresentar as peças aos atores.
Em Definitivamente as Bahamas, Milly e Frank são como os polos positivo
e negativo – aproximamos os dois e, aconteça o que acontecer, eles ficam
colados. Simon e Katrina, o casal de Play House, são mais como dois
polos idênticos – quanto mais próximos, mais eles vibram e resistem.
Repelem‑se no final? Ou mudam de direção e acabam por ligar-se?
Voltemos ao princípio. Quando deixou a Universidade de Cambridge,
decidiu obviamente tornar-se escritor. Pode falar um pouco sobre como
abordou o Orange Tree?
Primeiro, vamos só esclarecer essa ideia do “decidiu tornar-se”.
Não envolveu uma decisão porque escrever não era para mim um dado
adquirido. Mesmo a palavra “escritor” me parece contestável porque
pressupõe uma profissão ou carreira, ou estrutura, ou algo de igualmente
mundano, e essa maneira de encarar a escrita como se fosse uma opção
de carreira como outra qualquer – investimentos bancários – teria sido
um anátema para mim nesse tempo, e numa certa dimensão ainda é.
Portanto, não é surpreendente que eu não tivesse a mínima ideia de
como abordar os teatros, não tinha noção do que estava a acontecer;
eu não sabia o que eram agentes literários. Assim, tomei a iniciativa
de enviar manuscritos das minhas peças para diversos teatros. Um deles
era o Orange Tree que, por sorte, era perto do sítio onde eu vivia. Então,
já que vivia ao pé da porta, fui chamado.
Definitivamente as Bahamas
Quais são as suas influências?
[Pausa.] Para mim, olhando para trás, é óbvio que fui profundamente
influenciado por Beckett. Claro que é uma influência perigosa, mas de
certa forma não é propriamente uma má influência. É melhor do que
influência nenhuma. [Pausa.] Ao mesmo tempo, penso que já estava
presente algo de mais pessoal – ia chamar-lhe sátira. Mas talvez não seja
a palavra certa. Jonathan Swift é, com certeza, outro escritor irlandês
que sempre admirei e continuo a ler. Na adolescência, era um grande
admirador de Ionesco, e devo ter montado algumas das suas estranhas
peças na escola: A Lição, O Novo Inquilino e uma peça sobre a personagem
Macbeth. Mas era completamente desconhecedor da nova vaga de…
Kitchen-sink?2
Não, Kitchen-sink não. Peças do género das do [Edward] Bond, peças
cheias de raiva. Peças políticas. O que eu só descobri muito mais tarde.
14
15
Ora, eu vinha de um sítio que agora me parece um pouco estranho e
isolado. Nessa época, a viver em Yorkshire, li Alain Robbe-Grillet, Nathalie
Sarraute, livros que encontrei no York Book and Record Exchange. Nem
sempre faziam sentido para mim. Mas deixaram uma marca subliminar.
No que diz respeito à dramaturgia britânica, havia definitivamente um
desfasamento de uns dez anos entre mim e todos os outros.
Desde o início, em todas as peças iniciais não publicadas, tais como
Four Attempted Acts e Variety of Death-Defying Acts, há um interesse
pela crueldade e domínio. Até que ponto estava consciente disso?
Não penso que estivesse especialmente consciente. A crueldade é
instintiva, se quiser. [Risos.] Para mim, o diálogo é intrinsecamente cruel.
Há algo de intrinsecamente cruel nas pessoas a falar umas com as outras.
E eu não sei o que é. As constantes discussões dos meus pais quando era
criança têm possivelmente alguma coisa a ver com isso. Nos anos 1980,
quando estávamos a gravar uma das minhas primeiras peças radiofónicas
malucas ou, se preferir, autistas, conheci o ator Alec McCowen, e ele
disse-me: “Martin, David Mamet é alguém que devias ler, e penso que
vais gostar”. Então eu pensei, “OK, vou ler algum Mamet”. Fiz isso, li
Glengarry Glen Ross e, claro, foi um grande estímulo. De súbito, descobri
este modo de escrever diferente, veloz, que de imediato me arrastou
para longe dos antecedentes absurdos – se quiser, para o mundo real.
Se eu estivesse a escrever uma tese sobre a minha obra – a propósito,
o meu pior pesadelo –, diria que em Dealing with Clair [1988] o velho
estilo conflui no novo estilo. E o velho estilo é tipificado por James, que
é a personagem ligeiramente barroca, emocionalmente vazia, habitando
um mundo abstrato, que encontra as novas personagens que eu tinha
acabado de descobrir, os moradores dos subúrbios, cujo diálogo tem
um “combustível” completamente diferente. Pode dizer-se que permiti
o banal na minha obra. E o banal é extraordinariamente revigorante.
[…] Ficou bloqueado após The Treatment [1993], que foi um êxito no
palco principal do Royal Court, porque não queria repetir a mesma
fórmula? Estava consciente disso?
Sim, bem consciente. Eu não lhe chamaria fórmula. [Pausa.] O facto é
que não temos nenhuma herança formal nas artes digna de confiança;
portanto, temos sempre de encontrar maneira de começar do nada.
[…] Regressemos a essa ideia de estar bloqueado…
Eu disse isso? Às vezes penso que “bloqueado” é uma dessas palavras,
como “rascunho”, que dão à escrita um jargão profissional que, de facto,
é estranho ao ato de escrever como eu o vejo. Porém, é verdade que parte da
aprendizagem de ser escritor passa por assumir que existem hiatos. A não
ser que tenhamos a sorte suficiente de ser um génio. Não há regras para
a criatividade. Escrever está associado à nossa identidade e não é tanto o
não poder escrever que é frustrante, mas sim o sentimento de desaparecer
quando não se consegue escrever. É como estar ausente, que é uma coisa
sobre a qual eu escrevo – quer dizer, onde está Anne?3
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É uma boa ligação. Pode dizer-me qual foi a origem de Attempts on
Her Life [1997]?
No intervalo entre The Treatment e Attempts on Her Life, cheguei a um
ponto de saturação com aquilo a que poderíamos chamar o processo
normal de escrita, estava completamente saturado com os diálogos do
tipo “ele diz” e “ela diz”. Estava frustrado com o drama psicológico e
aborrecido com o chamado teatro experimental. Escrever não é bom
senão quando há prazer nisso. E durante um período após The Treatment,
tive prazer em escrever pequenas histórias sob a forma de diálogo.
Senti mesmo necessidade de escrever desta forma. Foi assim que surgiu
Attempts on Her Life. Continuei a escrever peças assim e depois olhei
para elas e disse: “Desculpa, Martin, mas isto não é uma peça”. Então,
por fim, pensei: “Claro que é”. Eu estava satisfeito com a escrita – sentia-a
inteiramente como minha, e funcionou.
Sim, concordo. Mas algumas outras peças o influenciaram na altura?
Lembro-me de falar com um crítico alemão em Amesterdão, quando por
lá estreou Attempts on Her Life, e ele pôs-me esta questão irritante sobre
os autores que me influenciaram. E eu disse: “Bem, eu li muito James
Joyce na universidade, mas acho que isso agora não tem nada a ver com
o meu trabalho”. E o tipo disse-me: “Ah, sim, eu consigo perceber o que é
que isso tem a ver com o seu trabalho: é o facto de ao construir uma peça
usar os temas como uma forma de ligar as coisas”, e eu dei-me conta de
que ele estava absolutamente certo. Portanto, apesar de eu já não estar
interessado nessas experiências formalistas do Joyce, alguma coisa delas
se filtrou no meu trabalho. E é muito mais fácil para as outras pessoas ver
essas coisas do que para mim.
Mas houve um ponto em que percebeu que forma e conteúdo
se tinham unido?
Oh, sim. O momento em que Anne ou Anny se torna num carro. É um desses
momentos em que estás ali sentado, sorrindo para ti próprio, e percebes que,
embora tenhas inventado esta estrutura à primeira vista limitativa, ela é
na realidade ilimitada. Abre-se em todas as direções. Se Anny pode ser um
carro, ela pode ser tudo. E sou livre! [Risos.] Tim Albery, o encenador da
peça, incentivou essa liberdade. Sempre me senti confiante com o que ele
estava a fazer e, nas nossas conversas antes de fazer um texto final para os
ensaios, encorajou-me a ir tão longe quanto quisesse. Ele foi sempre muito
profissional com o que entregava ao público. Foi a primeira estreia de que
gostei desde há muito tempo.
A sua versão de O Pequeno e o Grande de Botho Strauss é uma das suas
muitas traduções e adaptações. Essas peças ajudaram-no a desenvolver
a sua escrita?
Não penso que traduzir seja em si muito útil em relação à linguagem.
Comparo isso a uma espécie de – se calhar estou sempre a fazê-lo –
exercício em que se fletem os músculos que normalmente não se usam;
ou pode-se também comparar a ser purgado – é um pouco como ser
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“Um novo teatro da
crueldade”
linguisticamente expulso. Não estou certo da sua utilidade. Interagir
com um texto – de Sófocles, ou Tchékhov, ou Strauss – é bastante
diferente porque é desafiante, porque nos leva para áreas que no nosso
trabalho podemos ter considerado tabu. Isto deve-se ao facto, claro, de
que adquirimos hábitos quando trabalhamos e, como acontece com todo
o género de artistas, uma parte do querer evoluir está no quebrar velhos
hábitos, quebrar velhos modelos de trabalho.
PAULO EDUARDO CARVALHO*
1 “Immorality Act” foi uma lei promulgada pelo regime de apartheid da África do Sul que,
entre outras coisas, proibia “atos indecentes ou imorais” e relações sexuais entre brancos
e gente de outras “raças”, conceito que se sobrepunha à verdadeira etnicidade dos acusados.
As condenações, que podiam ir até aos sete anos de prisão, estiveram em vigor desde 1927,
só sendo eliminadas em 1985.
2 Kitchen-sink (à letra, lava-louça). O termo teve origem numa pintura de John Bratby e
corresponde a uma expressão concebida para descrever o movimento cultural britânico que
se desenvolveu no final dos anos 1950, início dos anos 1960, no teatro, arte, literatura, cinema
e televisão. Para expor uma visão política de temas sociais, recorria a um estilo de realismo
social que frequentemente retratava situações domésticas do proletariado urbano, vivendo
em casas degradadas, falando calão e gastando as suas horas livres a beber. Este realismo social
debruçava-se sobre a banalidade do quotidiano e a feia realidade da vida contemporânea,
manifestando simpatias pela classe trabalhadora e pelos pobres.
3 Personagem de (A)tentados, tradução portuguesa de Paulo Eduardo Carvalho, que só existe
através da referência de terceiros. Ela é uma ausência e a sua identidade flutua, na voz dos
outros, pelo modo como cada um a refere.
Tradução e notas José Carlos Faria.
* Excertos de
“Martin Crimp:
Um Universo
Dramatúrgico
em Expansão”.
In Martin Crimp –
Peça com Repetições;
(A)tentados.
Trad. Paulo Eduardo
Carvalho. Porto:
Campo das Letras,
2000.
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O percurso de Martin Crimp é, a diversos níveis, o característico resultado
das muitas oportunidades criadas pelo sistema teatral inglês, apostado
na criação dramatúrgica original. No seu caso, tudo começou com as
oficinas e seminários de escrita e os pequenos espetáculos em um ato,
apresentados à hora do almoço, promovidos pelo Orange Tree Theatre, em
Richmond; seguiram-se as experiências de “residência” artística, primeiro
em Nova Iorque, em 1991 (já no âmbito de um programa de intercâmbio
com o Royal Court Theatre para novos dramaturgos), e depois (1997) em
Londres, no próprio Royal Court. Este tipo de experiência parece ter como
vantagens inegáveis a aproximação do dramaturgo à realidade quotidiana
da criação teatral, integrando-o na dinâmica, exigências e preocupações
que lhe são próprias, potenciando a natureza (desejavelmente) coletiva
do gesto teatral.
Depois de ter concluído os seus estudos em Literatura Inglesa em
Cambridge, em 1978, Martin Crimp surge como dramaturgo intimamente
associado à atividade do pequeno Orange Tree Theatre, em Richmond,
onde, entre 1982 e 1989, estreou as suas primeiras seis peças: Living Remains,
Four Attempted Acts, A Variety of Death-Defying Acts, Definitely the
Bahamas, Dealing with Clair e Play with Repeats [Peça com Repetições].
Pelo meio, escreve duas peças radiofónicas, com as quais conquista dois
prémios. A partir de 1990, o seu destino como dramaturgo surge associado
à atividade do Royal Court, onde estreia mais cinco peças: No One Sees the
Video, Getting Attention, The Treatment, Attemps on Her Life [(A)tentados]
e The Country.
O conjunto de peças publicadas, produzidas entre 1988 e 2000, permite
a identificação de uma coerência temática e formal só parcialmente
rompida (talvez seja mais correto dizer “expandida”) em 1997 com a
estreia de (A)tentados. Até essa data, a carreira de Martin Crimp surge
uniformemente caracterizada por uma sistemática, ainda que peculiar,
exploração combinada da comédia de maneiras e do teatro de ideias,
uma tradição complexa com cultores muito diversos no panorama da
dramaturgia britânica do século XX. O ambiente e as personagens são de
classe média, a superfície do texto surge povoada por reproduções de tipos
e tiques reconhecíveis, a intriga obedece a uma lógica interna, a peça é
(requintadamente) “bem-feita”. Outra inscrição pacífica de Crimp na tradição
dramática britânica recente resulta da temática das suas peças, nunca muito
distante das preocupações do realismo social, simbolicamente consagrado a
partir de 1956 com a estreia de Look Back in Anger, de John Osborne.
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20
O Estranho Corpo da Obra
No One Sees the Video (1990) é uma peça fria, dura e ferozmente divertida
sobre a nossa era consumista, desenvolvendo uma intriga em torno das
pesquisas de mercado, em que a personagem central se vê, forçada pelas
circunstâncias, a defender tudo aquilo que mais detesta; na introdução
à publicação da peça, o próprio Crimp define-a como “uma peça
pós‑consumista”, isto é, descrevendo “um mundo no qual a identificação
entre consumo e felicidade já não é debatida, tendo-se tornado tão
simplesmente axiomática para a vida de todos os dias como a mecânica
newtoniana”.1 Getting Attention (1991), por seu lado, “tenta cartografar”,
também nas palavras do autor, as “passagens de negação, brutalidade e
profunda confusão humana – o labirinto emocional que rodeia as crianças
vítimas de maus tratos e de abusos”;2 as suas características estratégicas
elípticas servem uma estranha cadeia de acontecimentos, que começam
com a mais tranquila exibição de normalidade, evoluindo para o domínio
do pesadelo. De pesadelo é a visão dominante na última peça deste ciclo,
The Treatment (1993), que encena a história de Anne (homónima da
ausente protagonista de (A)tentados), em fuga do marido que a mantinha
fechada no seu apartamento, encontrando refúgio em Manhattan,
onde dois produtores cinematográficos se oferecem para comprar a sua
história, acabando por comprar também o seu corpo e o seu espírito;
o universo diretamente retratado é o do funcionamento implacável
de Nova Iorque, com uma sátira feroz ao mundo do espetáculo, mas
associada a uma exploração da natureza (involuntariamente) fáustica
da relação entre artista e objeto.
A breve apresentação deste conjunto de peças de Crimp sugere já
aquilo que pode distinguir o universo das suas preocupações temáticas
e explorações formais. Existe, contudo, uma reconhecível “influência”,
modelo ou paradigma dramatúrgico próximo, isto é, britânico, ao qual
a produção de Crimp foi desde cedo comparada. Ainda recentemente,
as críticas à estreia de The Country foram unânimes na denúncia das
semelhanças com o marcante universo de Harold Pinter. Apesar desta
insistência numa relação de recorte epigonal, o próprio Crimp parece
assumir descomplexadamente essa afinidade criativa: convidado em
1999, pelo Royal Court, a dirigir uma leitura encenada de uma peça sua
favorita, o dramaturgo escolheu precisamente Old Times, de 1971.
Não obstante a sensibilidade de Pinter às questões de poder, traduzida
num comentário social “obscurecido” pela ilogicidade e pelo
reconhecimento do poder manipulativo da linguagem, características
das suas peças dos anos 50 e 60, a abertura a temas de natureza política
mais imediata é relativamente tardia, impondo-se sobretudo a partir dos
anos 80, com peças como One for the Road (1984), Mountain Language
(1988) e Party Time (1991), dominadas por preocupações concretas
ligadas à guerra nuclear, ao desrespeito pelos direitos humanos e à
crueldade governamental. Se este tipo de topicalidade surge como
próxima de alguns dos objectos da crítica social presente nas referidas
peças de Crimp, as principais razões para a legítima aproximação dos
dois universos são, sobretudo, de ordem técnica e formal. Os textos de
Crimp mostram-se claramente seduzidos pela extrema sofisticação da
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natureza elíptica dos diálogos “pinterescos”, num equilíbrio tecnicamente
muito controlado entre o natural e o estranho, ou oblíquo, sendo notória
a dívida formal na utilização musical e dramática das pausas. Na sua
primeira peça publicada, Dealing with Clair, Crimp inclui, a abrir o texto,
a seguinte nota de abertura: “As indicações já muito estafadas de ‘pausa’,
‘pequena pausa’, etc., surgem substituídas por uma simples vírgula numa
linha separada. A duração exata de cada hiato deverá ser determinada
pelo contexto”; em Peça com Repetições, o texto seguinte, a nota é
simultaneamente mais breve e mais contundente: “É sugerida uma pausa
através da colocação de uma vírgula numa linha separada. Esta indicação
deve ser tão respeitada como uma pausa numa partitura musical”.
Numa evolução peculiar, o texto abre-se assim a uma notação musical,
assinalada por pausas, dramaticamente exploráveis como momentos de
hesitação, pontos de crise ou espaços a serem preenchidos pelo não-dito.
António Durães, encenador português de Peça com Repetições, mostrou-se sensível à importância desta idiossincrática notação crimpiana:
“As vírgulas impostas pelo autor são espaços para crescer. São pequenas
clareiras abertas no texto, sítios para se encher o peito e crescer para
a emoção seguinte, depois de ter sido vagamente anunciada nas deixas
anteriores”. 3
“cólera, consternação e desilusão”.4 Sarah Kane e Mark Ravenhill são
talvez os melhores exemplos daquilo a que já alguém chamou uma
“estética alucinada”, 5 associada a um realismo de situação, que parece
apostada em tocar o público na carne através de eletrochoques cénicos,
numa concretização possível de um novo teatro da crueldade.6
1 Martin Crimp, Introdução a Getting Attention: Two Plays and a Fiction. Londres: Nick Hern
Books, 1991.
2 Idem, ibidem.
3 António Durães, “Um mundo em declínio: o espelho e o eco em obras”, in Programa
de Peça com Repetições. Porto. ASSéDIO, 1999.
4 Cf. Michael Billington, “Grande-Bretagne: L’engagement des jeunes dramaturges”, in
1er Forum du Théâtre Européen 1996, Du Théâtre, fora de série, n.º 6, fevereiro de 1997.
5 Cf. Nicole Boireau, “Le paysage dramatique en Angleterre: consensus et transgression”,
in Alternatives Théâtrales, n.º 61, Écrire le théâtre aujourd’hui. Dossier coordenado por
Joseph Danan e Julie Birmant, julho de 1999.
6 A violência não é, aliás, propriamente uma novidade no teatro britânico das últimas
décadas: basta lembrarmo-nos de Saved de Edward Bond (1965) ou de The Romans in Britain
de Howard Brenton (1980).
Neste esforço cartográfico de situar a obra de Martin Crimp no contexto
da produção dramatúrgica britânica contemporânea, falta uma referência
à variedade e vitalidade de dramaturgos que, ao contrário de Pinter,
surgiram nesta última década, também eles revelados sobretudo por
esse verdadeiro “viveiro dramatúrgico” que é o Royal Court (sob direção,
a partir de 1995, de Stephen Daldry), mas também por outros teatros
como o Bush, o Hampstead, o Tricycle, e companhias como a Out of Joint
(dirigida por Max Stafford-Clark, que entre 1979 e 1993 foi diretor do
Royal Court) e o próprio National Theatre, em Londres, o Birmingham
Repertory Theatre, ou o Traverse, em Edimburgo. Muitos destes autores
são já conhecidos do público português, mercê da sua presença recorrente
nas temporadas do Teatro Aberto ou da curiosidade e iniciativa de outras
companhias: é o caso, respetivamente, de Jim Cartwright, Nick Grosso,
Kevin Elyot, Patrick Marber, Conor McPherson, e de Martin McDonagh,
Mark Ravenhill… Outros nomes ainda menos conhecidos entre nós
são os de Jez Butterworth, Joe Penhall, David Eldridge, Peter Whelan,
Sarah Kane (revelada entre nós pelos Artistas Unidos), Ayub Khan-Din,
Anthony Neilson, Jonathan Harvey, etc. Muito do sucesso internacional
destas peças deve-se em parte à centralidade das questões (e das situações
sexuais) que tematizam e configuram, frequentemente acompanhadas
de uma extrema violência que parece traduzir uma raiva sincera e
visceralmente poderosa contra a sociedade herdada do thatcherismo.
Num jogo nem sempre claro de atualização de “raivas” já antigas e de
renovação da capacidade interpelativa da expressão teatral, as frentes
de combate são o materialismo, a decadência social, a falta de idealismo,
a ausência de valores morais, o racismo, a xenofobia, a homofobia, numa
mistura ainda pouco clara de, na formulação de Michael Billington,
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FICHA TÉCNICA TEATRO DA RAINHA
direção de produção Ana Pereira
operação de luz/som Carina Galante
operação de som/luz Filipe Lopes
FICHA TÉCNICA TNSJ
coordenação de produção Maria João Teixeira
assistência de produção Maria do Céu Soares,
Mónica Rocha
direção de palco Rui Simão
direção de cena Pedro Guimarães, Ana Fernandes
luz Filipe Pinheiro (coordenação), Abílio Vinhas,
Adão Gonçalves, José Rodrigues, Nuno Gonçalves
maquinaria Lídio Pontes, Paulo Ferreira
som António Bica
operação de legendagem Cristina Carvalho
APOIOS TNSJ
Teatro da Rainha
Sala Estúdio
Rua Vitorino Fróis, Largo da Universidade, Edifício 2
Apartado 255
2504-911 Caldas da Rainha
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T 262 823 302 | 96 618 68 71
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4050-449 Porto
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Rua de São Bento da Vitória
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APOIOS À DIVULGAÇÃO
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EDIÇÃO
Departamento de Edições do TNSJ
coordenação João Luís Pereira
design gráfico Joana Monteiro, Paul Hardman
fotografia Margarida Araújo (versos de capa e
contracapa; p. 4), Paulo Nuno Silva (p. 7, 14 e 21)
impressão Empresa Diário do Porto, Lda.
AGRADECIMENTOS TNSJ
Câmara Municipal do Porto
Polícia de Segurança Pública
Mr. Piano/Pianos – Rui Macedo
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Não é permitido filmar, gravar ou fotografar
durante os espetáculos. O uso de telemóveis ou
relógios com sinal sonoro é incómodo, tanto para
os intérpretes como para os espectadores.
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