18. Pia consideratio O que dizia sobre o termo "considerar", é muito importante para deixar de aprofundálo. Dizia que São Bento nos pede para converter a nossa contemplação das estrelas, a nossa sede de absoluto, a nossa busca do sentido maior da vida e do universo, a "consideratio" que nos une às estrelas, para que se torne "pia consideratio" (RB 37,3) para que se torne misericordiosa, caridosa, um ato de amor em nosso coração e em nosso olhar, e assim, do nosso comportamento para com o próximo. É como se dissesse que devemos olhar para o irmão, para irmã, pobre e fraco, como se sondássemos o céu, para contemplar a beleza e o mistério das estrelas e descobrir o nosso destino infinito. É como se nos chamasse a escrutar no irmão fraco, uma beleza misteriosa pela qual o nosso coração é feito, e na qual, se cela o nosso destino, o sentido da nossa vida. O próximo na necessidade, é como as estrelas para os beduínos no deserto ou para o marinheiro que navega na noite: somente destas vêm uma boa direção, que permite nos orientar e chegar na destinação. Mas o próximo na necessidade, não nos mostra apenas uma direção geográfica, não nos ajuda apenas a chegar ao fim de uma viagem: o próximo na necessidade, é uma estrela que nos leva ao destino final da vida, que nos leva ao Céu além das estrelas, ou seja, para a Casa do Pai. O ser humano, desde da sua origem pré-histórica, certamente descobriu e desenvolveu sua religiosidade olhando para as estrelas. Levantando o olhar ao céu noturno estrelado, descobriu que seu coração foi feito para o infinito, para se maravilhar diante do mistério infinito, do qual, o universo é um sinal. Por isso, não somente a palavra "considerar" vem da palavra sidus, estrela, mas também o termo "desejar - desiderare". Parece que "desejar" signifique literalmente "desprender-se ou separar-se das estrelas", portanto, sentir a sua falta. Durante a noite, uma pessoa se satisfaz com a beleza das estrelas, mas estas desaparecem pela manhã, então o homem passa o dia desejando as estrelas. Sublinho a densidade do significado destes termos, porque isto nos ensina a densidade com que São Bento concebe tudo aquilo que podemos fazer, a serviço dos outros. É como se Bento nos dissesse: "Olha, quando cuidas de um enfermo, quando serves um irmão fraco e doente, quando tratas com doçura os idosos e as crianças, quando és pacientes com suas exigências, quando perdes tempo e energia por eles, não estás apenas fazendo um trabalho obrigatório, não estás realizando uma profissão: estás realizando o teu destino, pelo qual existes, e satisfazes o desejo de infinito do teu coração, aquele desejo que se desperta em ti quando contemplas o céu estrelado, ou um pôr do sol, ou a imensidão do mar, ou para as montanhas nevadas ou a harmonia de uma rosa..." Esta densidade de concepção da vida, nos ensina, em primeiro lugar, a Sagrada Escritura, e se manifesta perfeitamente em Jesus. Há uns dias citava o Salmo 8: "Quando contemplo o firmamento, obra de vossos dedos, a lua e as estrelas que lá fixastes: Que é o homem, digo-me então, para pensardes nele? Que são os filhos de 1 Adão, para que vos ocupeis com eles? Entretanto, vós o fizestes quase igual aos anjos, de glória e honra o coroastes" (Sl 8,4-6). Aqui está o significado de "considerar sempre a fragilidade" do próximo. Significa ter o olhar profundo de Deus que cria as estrelas, e mesmo assim, se inclina para sondar o homem, para cuidar dele. Diz também um trecho do Salmo 146, um dos mais comoventes do Saltério, na minha opinião: O Senhor "cura os que têm o coração ferido, e pensa-lhes as chagas. É ele que fixa o número das estrelas, e designa cada uma por seu nome" (Sl 146,3-4). É o mesmo Deus que cria cada estrela, que conhece seu número infinito, e que se ocupa do coração partido e ferido da pequena criatura humana. O mesmo amor infinito que se expressa na criação do universo, se concentra em cada coração humano que sofre, e o enfaixa, isto é, se ocupa, cuida, cura, consola. A misericórdia de Deus tem esta espessura infinita, que abrange a realidade como um todo, e não perde de vista, mas considera cada coração, cada ferida de cada coração. E cada coração, tem para Ele, mais valor que todas as estrelas, porque cada coração é criado à sua imagem e semelhança, é criado para ser misericordioso como o Seu, para ter um olhar de misericórdia, uma "pia consideratio", como Ele. Quando o homem contempla as estrelas e o céu infinito, sente uma saudade, e especialmente, se sente pequeno, insignificante comparado o universo. Uma vez no ônibus, ouvi alguém que dizia uma frase terrível: "No fundo, o que são todos os sofrimentos da humanidade, todos os milhões de Hebreus exterminados por Hitler, em comparação com as dimensões infinitas das galáxias, do universo?". Percebi, então, quanto seja importante e humana, a revelação judaico-cristã, que nos liberta de um sentimento pagão diante do universo. Porque a revelação feita por Deus a Moisés e aos Profetas, a revelação que culmina em Cristo, nos salva da tristeza abissal que sentimos diante das estrelas, revelando e provando que Aquele que faz as estrelas e as chama pelo nome, é o mesmo que se inclina para dizer "Tu" a cada pequeno coração humano, que se inclina para cuidar da tristeza de cada coração humano, e que para Ele, cada coração vale mais que todas as estrelas, mais que todo o universo. O nosso Deus, é um Deus que cuida de todas as feridas do nosso coração, e ao mesmo tempo, conhece pelo nome cada estrela do firmamento! Se fôssemos realmente conscientes disto, quanto profundo sentimento teríamos da realidade, de toda a realidade! Imaginem como olharíamos, com um sentimento de unidade e totalidade, cada detalhe da realidade inteira! Porque existe algo que coloca em relação a ferida do meu pobre e pequeno coração, com toda a realidade, com as últimas estrelas da última galáxia do universo. Mas não em um sentido panteísta, materialista ou espiritualista; não em um sentido que nivelaria todos os seres do universo, e nos espalharia no universo como partículas de poeira. Porque aquilo que cria a unidade, que cria a relação entre meu coração e as estrelas não é a matéria, nem mesmo o espírito, mas Alguém, um TU imenso e, todavia, tão perto e familiar, que conhece o menor sofrimento do menor coração humano! 2