Artigo SBPJor – anais – teste

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SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo
12º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo
Santa Cruz do Sul – UNISC – Novembro de 2014
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Representações e sentidos da dor no Programa Bem Estar
Amanda Souza de Miranda
Re sumo: A partir dos conceitos de vivência e experiência analisamos um corpus de catorze
imagens veiculadas pelo programa Bem Estar, da Rede Globo, com o objetivo de entender a
forma como este representa e compartilha a dor em seus produtos jornalísticos. Entendendo o
jornalismo como um dos motores da construção social da realidade, problematizamos a
prerrogativa a ele consentida de tomar como experiência social e compartilhada sentimentos
particulares e abstratos. No diálogo entre jornalismo e estética, percebemos que há imagens que
se repetem e outras que são substituídas por texto e por dramatização devido à complexidade
das sensações envolvidas.
Palavras-chave : jornalismo especializado em saúde; imagens; experiência; vivência; estética.
1. Introdução
Não existe humanidade sem dor. Logo, é natural supor que ela também se faça
presente no jornalismo, que entendemos aqui como um dos motores da construção social da
realidade. Mas a dor representada no e pelo jornalismo por meio de suas imagens e narrativas
se aproxima da dor que sentimos e vivenciamos? Afinal, somos “donos” da nossa própria dor
ou conseguimos compartilhá-la por meio de representações e imagens que extravasam seus
sentidos mais abstratos? Existe dor que não possa ser representada em figuras ou imagens?
Tais questões começaram a nos instigar ao longo de uma das séries do médico
Drauzio Varella no programa dominical Fantástico, exibido pela Rede Globo. Ao falar sobre
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as chamadas “doenças da alma”, dentre elas a depressão, a síndrome do pânico e o
transtorno obsessivo compulsivo, o produto jornalístico exibia imagens que buscavam unificar
a experiência da dor a partir de detalhes e escolhas visuais. O preto e branco, o foco no olhar
perdido do doente e a própria inquietude da câmera parecem ter o objetivo de afetar o
telespectador, ainda que ele não compartilhe dos reais sintomas da doença.
Estas questões podem começar a ser discutidas com mais profundidade ao levarmos
em conta conceitos da estética em suas intersecções com o jornalismo. É a partir deste
universo, constituído de definições, diálogos e inquietações filosóficas que pretendemos
investigar de forma exploratória as representações da dor veiculadas pelo programa Bem
Estar, exibido de segunda a sexta-feira nas manhãs da Rede Globo.
Nosso interesse, neste momento, se dá pelo processo por meio do qual a dor, uma
experiência pessoal, abstrata e complexa, é transformada em uma imagem com sentidos
praticamente universais, que levam o telespectador a entendê-la e até mesmo a compartilhá-la
com aqueles que decidem torná-la pública. Nossa primeira hipótese é de que existe, no
repertório das imagens do telejornalismo, representações que simulam ou evidenciam
situações de dor, revelando uma necessidade de provocar uma aproximação com a
experiência e a vivência do doente.
Para tanto, analisaremos três reportagens que tratam dos chamados “males da alma”.
A escolha por este objeto se deu justamente pelo fato de ele se referir a uma das formas mais
abstratas de dor de que se tem conhecimento. Um homem pode até ser capaz de reunir
definições que aproximem o outro de uma dor de dente ou de uma dor de barriga. Mas e
quando esta dor nos atinge emocionalmente, no plano psíquico, como fazer para representá-la
e compartilhá-la? A partir deste texto, buscaremos tratar do tema de forma exploratória, com
um olhar para as imagens e para o universo das estéticas, que muitas vezes se completam e se
integram.
2. A dor: experiência abstrata, representações concretas
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A dor é representada nas artes sob as mais variadas formas e nos mais diversos
tempos históricos. Trata-se de uma temática comum entre pintores e escultores,
independentemente das escolas nas quais se insiram. Sobre isso, Sontag (2003) ensina que “o
horripilante nos convida a ser ou espectadores ou covardes, incapazes de olhar” (p. 39).
Mesmo tendo como foco de análise as imagens fotográficas construídas em períodos de
guerra, a autora reconhece e destrincha que a temática sempre foi comum, inclusive na
antiquidade:
A iconografia do sofrimento tem uma longa linhagem. Os sofrimentos
mais comumente considerados dignos de ser representados são
aqueles tidos como fruto da ira, divina ou humana (...) A escultura de
Laocoonte e seus filhos a se retorcerem, as inúmeras versões da Paixão
de Cristo em pintura e em escultura e o inesgotável catálogo visual das
diabólicas execuções dos mártires cristãos – essas são obras
seguramente destinadas a comover, estimular, instruir e dar exemplo. O
espectador pode condoer-se ante a dor do sofredor – e, no caso dos
santos cristãos, sentir-se admoestado ou encorajado pela fé e pela
força moral exemplares –, mas esses são destinos situados além da
lástima e da controvérsia. (p. 37).
As representações da dor têm relação direta com o contexto de produção das obras.
No barroco, por exemplo, a principal temática explorada era a dor das pessoas simples, que
estavam na dependência de uma elite e viviam sob condições cruéis (Pereira, 2005). Neste
caso, a dor é social e transmite uma preocupação para além das subjetividades.
No expressionismo, de acordo com Pereira (2005), o objetivo era outro. O discurso
do momento e suas representações apontavam para uma dor existencial, muito mais
relacionado a conflitos psíquicos, como “uma dor psicológica, que dilacera a carne” (p. 3).
Talvez o principal representante desta escola no que diz respeito aos modos de se traduzir a
dor seja Edvard Munch, d’ O Grito, amplamente reproduzido nos mais diferentes meios.
No século XX, outra artista reconhecida pela representação da dor foi a surrealista
mexicana Frida Kahlo, que viveu intensas experiências de dor durante a infância e a
adolescência, ao contrair poliomielite. Mais tarde, passou por um acidente grave, que lhe tirou
a fertilidade e gerou obras como “A Coluna Partida”, um autorretrato deste período.
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No Brasil, um dos artistas que fez uso da temática da dor foi Cândido Portinari, que
explorou as questões sociais do país no século XX. “O Menino Morto”, “Retirantes” e o
painel “Guerra e Paz” retratam a angústia social que perpassava a arte do pintor, apontando
para uma inquietude situada mais no plano moral do que no plano físico.
O longo histórico da representação da dor nas artes plásticas é uma defesa de sua
existência na sociedade e uma clara demonstração de sua manifestação, seja na sua forma
física ou psíquica, nos artistas ou nos contextos aos quais estavam submetidos.
Seja a dor pessoal, íntima, seja a dor social, coletiva, o fato é que as representações
revelam uma preocupação com o tema, que atinge a humanidade e, por consequência, não
escapa ao jornalismo. Mas se o artista tem liberdade para representar o abstrato em suas
mais variadas linguagens, o mesmo não ocorre com o jornalista, que lida com situações
concretas e com limites éticos do que pode ou não pode tornar-se público em imagens.
Sontag (2003) trata do tema ao estudar imagens fotográficas feitas em tempos de
guerra. Ao artista é dada a liberdade para criar, ainda que a criação choque e provoque
sentimentos de dor e ojeriza, mas ao fotógrafo caberiam outras atribuições.
As fotos objetificam: transformam um fato ou uma pessoa em algo que
se pode possuir. E as fotos são uma espécie de alquimia, a despeito de
serem tão elogiadas como registros transparentes da realidade.
Muitas vezes, uma coisa parece, ou dá a sensação de que parece,
‘melhor’ numa foto. Com efeito, uma das funções da fotografia
consiste em aperfeiçoar a aparência normal das coisas (...). Embelezar é
uma das operações clássicas da câmera e tende a empalidecer qualquer
reação moral àquilo que a foto mostra. Enfear, mostrar algo no que tem
de pior, é uma função mais moderna: didática, ela solicita uma reação
mais enérgica. Para apresentar uma denúncia e, talvez, modificar um
comportamento, os fotógrafos precisam chocar (p. 69).
No telejornalismo, as imagens obedecem a uma norma parecida. Muito embora as
encenações e produções sejam usadas com frequência, no sentido de valorizar os sentidos
estéticos, a representação da dor é absolutamente diferente das abstrações e subjetividades
do universo das artes. Ao lidar com o concreto, há que se reconhecer a possibilidade de
chocar o telespectador e a possibilidade de levá-lo a partilhar uma sensação privada e
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pessoal. A imagem gera a sensação de proximidade, conforme aponta Jost (2007), ao fazer
crer que ela “parece falar de mim quando fala dos outros, ou ao menos quando fala dos meus
semelhantes.” (p.46).
Porém, ao trazer a guerra como causadora da dor, Rosa (2008) lembra que o
incômodo de quem está visualizando as imagens tende a ser minimizado quando certas
imagens passam a ser exploradas com muita frequência:
(...) Quando a guerra está longe, se dá na distância, ela se parece
apenas com uma imagem e a dificuldade de olhar se dissipa facilmente.
O outro é encarado como alguém para ser visto, mesmo que ele também
veja. Assim, expor a dor do outro é propiciar uma espécie de
experimentação daquela dor e, mesmo que seja possível trocar de
canal, virar a página, acessar outro site, ainda assim prevalece o valor
da agressão, quase tangível, feita por meio da imagem. Têm-se o hábito
de afirmar que as imagens, de tão banalizadas que estão, perderam a
capacidade de tocar, de chocar. No entanto não é que as imagens
tornem os seres insensíveis, mas a exploração demasiada de certas
imagens leva a seu esvaziamento (p.87)
De fato, entendemos que a banalização de imagens e a repetição de representações
no telejornalismo tendem a afastar o telespectador ao invés de aproximá-lo e de levá-lo a
partilhar a sensação de dor. Na sequência deste texto, faremos um breve sobrevoo pelos
conceitos de experiência e vivência na estética, buscando justamente refletir sobre as imagens
da dor e seu papel no contexto da informação jornalística.
3. Experiência, vivência e dor
Antes de mais nada, convém explicitar, aqui, que estamos entendendo os conceitos
que permeiam e atravessam as noções de estética do ponto de vista das suas relações com o
campo da comunicação. Por conta disso, é interesse desse artigo refletir sobre
representações fornecidas a partir de imagens de um programa popular de televisão.
Utilizamos a estética nas artes como ponto de partida para compreender a forma como a dor,
essa vivência pessoal e abstrata, pode tornar-se uma experiência partilhada por meio da
linguagem audiovisual.
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Conforme Talon-Hugon (2009), “além da arte, ainda há o imenso domínio do sensível
do sentido, da sensorialidade e da sensibilidade” (p.99). Por conta disso, aponta que
recentrar a estética no sensível é “abrir-se a todas as formas do sentir quer o seu objeto seja
uma obra de arte, um objeto natural ou artificial, um acontecimento ou uma experiência”
(p.99). Também compartilhamos com a reflexão segundo a qual, da parte do sujeito, a
estética do sensível deve explorar “a atitude, a experiência, a emoção ou as emoções, o juízo
e a avaliação estéticos” (p.100).
Convém explicitarmos, aqui, que compreendemos a experiência como uma dimensão
essencial ao campo da estética. Nosso entendimento é de que a experiência nos aproxima e
nos torna humanos. Queré (2010) nos faz refletir sobre a experiência social e a vivência, um
dos elementos da experiência, transitando pelos caminhos da linguagem e das discussões
filosóficas. Ele nos lembra, de antemão, que, “por causa da nossa linguagem e das nossas
maneiras de falar, somos levados a atribuir à vivência (impressões, sensações, vivências de
significação) mais importância do que ela tem na realidade” (p. 21). O pensador utiliza-se de
tal reflexão para reafirmar que o que importa, “na consideração da vivência é encontrar a
maneira certa de falar dela” (p.22).
Sob esse aspecto, voltamos ao nosso objeto de estudo para refletir sobre a forma
como o programa Bem Estar, o qual descreveremos mais rigorosamente no capítulo que se
segue, vem partilhando a vivência da dor sob a forma de imagens. A vivência é pessoal, mas
torna-se comum na adoção de uma linguagem que visa transformá-la em experiência social,
cujos signos de representação são corriqueiramente ligados às sensações e às vivências da
dor.
Queré também se aproxima da filosofia da linguagem para definir experiência e
vivência. Ele retoma reflexões de Wittgeinstein, segundo o qual seria preciso construir uma
linguagem especial para descrever “experiências presentes que imediatamente nos escapam”
(Wittgeinstein, apud Queré, 2009, p. 22), tal como as descrições do aroma do café, cujo
repertório de palavras não seria suficiente para abranger sua complexidade. O autor também
utiliza a dor como uma analogia ao seu pensamento:
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A dor real faz parte do jogo da linguagem que jogo então, que não é
feito apenas de palavras – a dor também faz parte dele; mas ela não é
coisa física que acompanha o comportamento; ela é um componente do
comportamento de dor em sua globalidade, comportamento no qual o
enunciado expressivo prolonga e substitui o gemido (...) Em suma, a
linguagem não se aplica a nossas sensações, a nossos estados
internos ou a nossas vivências, como faz aos estados de coisas, aos
objetos ou aos acontecimentos do mundo que nos cerca. (p.56)
Nosso entendimento, neste artigo, é de que inexiste em nosso repertório uma maneira
precisa e adequada para falar sobre a dor ou descrevê-la como vivência. Além disso, também
seria improvável que nós, como sujeitos, conseguíssemos descrever a vivência de um outro
indivíduo, que passa por outras experiência, sobre a qual não conseguimos ponderar a partir
de vivências similares individuais e pessoais. Queré também resgata este aspecto e o situa
como uma das armadilhas da vivência: nós não podemos defini-la a partir de sensações
privadas.
A luz do autor, a experiência, antes, é parte de um contexto social amplo. Ela reflete,
sim, uma ação entre o sujeito da experiência, o objeto e o mundo. Nesta argumentação,
Queré faz uso das reflexões de Dewey (1941), segundo o qual a experiência não pertence a
um sujeito. No caso da fome, por exemplo: nós não temos fome, no sentido de
pertenciamento. Nós temos a fome como “um modo de comportamento observável,
manifestado, por exemplo, pela colocação em movimento do corpo e por uma atividade de
busca de alimento” (p. 30).
Em uma nova aproximação com nosso objeto de estudo: nós não temos dor como
algo a ser experimentado, mas sim como uma experiência behavorial: “ela é uma questão de
ação, comportando elementos motores, nas interações de um organismo com o ambiente que
o circunda”. (p.31). O mundo, como ambiente, passa, dessa forma, a ser um dos fatores da
experiência. E é deste mundo que o jornalismo, em suas representações, busca modelos
globais da manifestação da dor para torná-la representável na linguagem audiovisual.
4. Representações da dor no programa Bem Estar
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O programa Bem Estar é exibido de segunda a sexta-feira, na faixa das 10h, pela
Rede Globo de Televisão. Entendemos que seu formato é híbrido, pois conta com entrevistas,
quadros fixos, reportagens, entradas ao vivo e mudança de cenário de acordo com a temática
do dia, sempre relacionada à saúde e à qualidade de vida.
No seu comando estão dois jornalistas, Mariana Ferrão e Fernando Rocha, além de
oito consultores, médicos de diferentes especialidades que assumem o posto de
comunicadores, também de acordo com a temática do programa exibido na data. Este é o
grande diferencial do programa, que conta com a presença diária de especialistas em sua
bancada, que atuam como entrevistados fixos, que respondem a dúvidas de telespectadores e
internautas.
Por ser um programa recente, o Bem Estar não foi alvo de estudos acadêmicos
profundos desde o seu lançamento. Vaz (2012) utilizou-o como objeto em uma discussão,
com o intuito de analisá-lo como sendo um representante do gênero de jornalismo utilitário,
que busca prestar serviço ao receptor, com informações que podem e devem ter alguma
utilidade para a vida prática do público. Concordamos com sua análise, mas acreditamos que
sejam necessárias novas investigações para situá-lo como um produto jornalístico
diferenciado.
Para analisar de forma exploratória as representações da dor do matinal, escolhemos
três edições que tratam de uma temática comum: as chamadas dores psíquicas ou dores da
alma. Escolhemos esse tema justamente por entender que representar a dor que não se
manifesta em um órgão específico é um desafio para o telejornalismo em particular, que se
constrói a partir de imagens e no qual, como bem lembra o ditado popular, “uma imagem vale
mais que mil palavras”. Como tornar comum uma experiência individual manifestada em um
sentimento abstrato, que difere em todas as suas características de doenças com sintomas
mais evidentes do ponto de vista social?
No conjunto das três reportagens, nos ocuparemos de uma exibida no dia 5 de
fevereiro de 2013 – Síndrome do pânico é desencadeada pelo desequilíbrio do sistema de
alerta do organismo; outra no dia 27 de fevereiro de 2013 – Saiba como conhecer os sinais
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da depressão; e, por fim, uma segunda reportagem desta mesma data – Depressão pós parto
pode ser causada por variação hormonal.
Evidentemente, em se tratando de um conjunto de reportagens transmitidas pela
televisão, os componentes do texto e da imagem são importantes para uma análise ampla e
aprofundada. Porém, no espaço do qual dispomos e devido a natureza exploratória desse
estudo, trabalharemos somente com o registro da imagem.
No total, as reportagens não ultrapassam os quatro minutos de duração. De modo
geral, os textos são objetivos e resumem mensagens que alertam para o reconhecimento dos
sintomas e das causas da depressão, síndrome do pânico e depressão pós-parto. Apenas em
um deles – Depressão pós parto pode ser causada por variação hormonal – identifica-se um
indivíduo diretamente afetado pela dor como fonte do material jornalístico. Nas demais, como
informaremos a seguir, há atores que trabalham na encenação do texto jornalístico (algo que
não se percebe, por exemplo, nos telejornais tradicionais). Em duas das reportagens, o texto
é apresentado pelo médico psiquiatra consultor do programa Bem Estar, já no material sobre
depressão pós-parto é uma repórter quem conduz a matéria.
Como não nos ocuparemos da relação texto e imagem, que poderia ser estudada em
um trabalho mais complexo e com outras finalidades, selecionamos, como corpus, duas
imagens da Reportagem 1 (Síndrome do Pânico); oito imagens da Reportagem 2 (Depressão)
e quatro imagens da Reportagem 3 (Depressão pós-parto), em um total de catorze
representações escolhidas justamente por se referirem à temática deste estudo. O objetivo foi
reunir um corpus em que se cristalizasse algum tipo de referência e de representação à dor,
algo facilmente detectado nas três reportagens. Conforme discutiremos a seguir, também
compõem o corpus duas imagens bastante similares relacionadas à sensação de cura.
De forma geral, fica bastante evidente um cuidado por parte da produção em
representar a dor real, sentida por seres humanos reais, que concordam em oferecer seu
relato à reportagem. Isso pode ser destacado a partir da seleção de imagens da Reportagem
3, que destoa por completo da seleção de imagens das Reportagens 1 e 2.
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A personagem, de fato, é vítima da depressão pós-parto. Mas ela não aparece com
representações em preto e branco ou com expressões faciais que sugerem medo ou dor. Ela
é representada como uma mãe comum, que amamenta o filho cuidadosamente (figura 1), é
afetuosa em seu papel de mãe (figura 2) e carinhosa (figura 4), como sugere o instinto
materno. A exceção é a figura 3, em que um ligeiro close mostra um semblante diferente,
aparentemente com pouca vivacidade. Neste momento, é possível que nos tornemos mais
próximos da dor da mãe, ainda que de forma ligeira e fugidia.
Figura 1 – Amamentação
Figura 2 – Afeto
Figura 3 - Close
Figura 4 - Cuidados
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Mas por que não conseguimos ver a dor da qual trata a reportagem de forma clara e
evidente? Uma das possibilidades é a de que, ao envolver personagens reais, frutos de
histórias verídicas, o telejornalismo, no que diz respeito à dor, distancia seu foco da imagem
para aproximar-se do poder da expressão oral.
Ora, se eu tenho um depoimento, uma mulher que fala sobre sua própria dor, o
compartilhamento da vivência e da experiência pode se dar pela fala, não pela imagens, não
pelo seu semblante doentio. Que indivíduo gostaria de ver-se representado com aspecto de
dor e de sofrimento, em um programa veiculado para todo o Brasil? Aqui, fazemos uma
primeira reflexão: quando a dor é real, mais abstrata será a sua representação imagética,
muito embora seja possível admitir que a concretude esteja na fala do entrevistado e na
construção narrativa da reportagem.
Em contrapartida, as reportagens 1 e 2 ilustram um cenário diferente: não há
entrevistados, nem vítimas reais da dor psíquica. Nos dois casos, o texto é lido pelo psiquiatra
consultor do Bem Estar, que também aparece ao longo das reportagens. No caso da
reportagem 1, recuperamos duas figuras que nos chamam a atenção. A primeira (figura 5)
revela angústia e medo. Há, também, a presença de um filtro que sugere um olhar em tom
sépia, como se a vida daquele indivíduo tivesse perdido sua coloração.
Figura 5 - Sépia
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É nítido que se trata de uma encenação, não de uma situação comum, vivida por um
ser humano real. A personagem encena a dor do outro, como se sua expressão de medo
fosse capaz de reproduzir o medo real. O lugar privilegiado que o telejornalismo ocupa, no
sentido de ser compreendido como construção do real, é o que pode levar o telespectador a
se identificar com essa dor simulada:
O jornalista, produtor do discurso realista, situa-se no mesmo
plano do artista realista que, para Barthes (2000), nunca
identifica a origem do seu discurso com a realidade, mas,
sempre e somente, tão longe, quanto se possa ir, com um real
já escrito, com um código prospectivo, ao longo do qual, a
perder de vista, nada mais se pode encontrar do que um
conjunto de cópias.
Quanto confrontado com seu conceito de verdade, o
jornalista reage como o artista plástico que não faz mais nada
do que citar o código supremo, fundado de todo o real, e que
é a arte, de onde derivam as verdades e as evidências. Tal
como o artista plástico, o jornalista é infalível não pela
segurança das suas performances, mas pela autoridade da
sua competência; é ele quem conhece o código, a origem, o
fundamento, e quem se assume, assim, como assegura,
testemunha e autor da realidade. (Vizeu e Correia, 2008, p. 24).
Já na figura 6, ainda com relação à Reportagem 1, vê-se a imagem que representa a
cura, como discurso de contraposição à dor. E esta cura é ligada diretamente à noção de luz.
O que antes estava em tom sépia, quase marrom, agora cede lugar ao sol em um céu azul.
Figura 6 – A cura
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Como também veremos adiante, esta representação é repetida de forma idêntica na
reportagem 2, o que indica que a cura nada mais é do que a luz, o reencontrar-se com o sol.
A metáfora acaba remetendo ao dito popular de que “existe luz no fim do túnel” e se liga à
mensagem de que ninguém está sujeito a sofrer, a sentir dor a vida inteira.
Na Reportagem 2, as representações são muito semelhantes às da Reportagem 1, o
que sugere uma certa padronização nas imagens e nas mensagens que se quer passar.
Novamente, são atores que representam a tristeza, relacionada à depressão, em tom sépia e
com baixa luminosidade. Isso pode ser facilmente percebido nas figuras 7, 8, 9 e 10. Os pés
caminhando por um trilho sem cor, sóbrio, remetem a um problema não identificado. As mãos
entrecruzadas atrás da nuca revelam uma sensação de angústia, assim como a mão posta sob
a testa. A ideia em representar a dor da depressão a partir de imagens da cabeça também
mostram que existe uma intenção de estabelecer um ele do problema com o campo da
psiquiatria.
Figura 7 - Pés
Figura 8 – Mãos na nuca
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Figura 9 – Mãos na testa
Figura 10 - Angústia
De maneira também semelhante à da reportagem 1, percebemos as imagens que
remetem à cura totalmente amparadas ao conceito de luminosidade. Novamente, o céu azul
com o sol aparecendo ganha destaque (figura 11). Na figura 12, percebe-se a tentativa de
ilustrar a cura a partir de uma representação baseada na ideia da cor: é o fim do período
negro e o início de uma vida nova, colorida, que pode, inclusive, abrir espaço para um
relacionamento amoroso.
Figura 11 – A cura
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Figura 12 - Recomeço
Mas o que gostaríamos de chamar a atenção nesta reportagem, especialmente,
refere-se ao conteúdo das figuras 13 e 14. As palavras TRISTEZA e IRRITAÇÃO
aparecem em lettering. A primeira acompanhada com uma aparente metáfora – um copo
cheio de água. A segunda disposta em um fundo negro, com pequenos trechos de luz.
Figura 13- Tristeza
Figura 14 - Irritação
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Entendemos que, nestes dois casos, a palavra surge no lugar da imagem justamente
porque o conjunto de representações disponíveis para esses dois sintomas da depressão não
é impactante o suficiente para fazer o telespectador se aproximar da imagem e compartilhar
desta dor a partir dela. Entendemos que a ausência de imagem constitui uma informação de
que estes sintomas são totalmente abstrato, não podendo, assim, serem representados,
mostrados ou compartilhados.
5. (In)conclusões
Seria prematuro tecer qualquer conclusão a respeito deste trabalho, que é uma análise
exploratória a partir de conceitos que compreendem o vasto campo da estética ou das
estéticas da comunicação. Nosso objetivo foi direcionar o olhar para imagens destacadas no
programa Bem Estar com o intuito de entender como suas representações indicam a dor, que
é uma vivência quase sempre pessoal, mas que possui maneiras de ser representada a partir
de um repertório baseado em uma experiência social.
Um estudo mais aprofundado certamente iria requerer um olhar também para o texto,
não somente para as imagens, afinal, é este conjunto “texto e imagem” que vai representar a
dor registrada pela televisão. Esta pesquisa pode ser feita futuramente, a partir de outros
objetos de estudo, como as séries do médico Dráuzio Varella ou as reportagens segmentadas
sobre saúde exibidas em programas especiais, como o Globo Repórter, por exemplo.
Nesta direção, pretendemos, nesta reflexão final, apontar muito mais inconclusões do
que definições. A tradição do telejornalismo de lidar com imagens da vida real, por exemplo,
pode ser questionada a partir das imagens que trouxemos para a análise. Se existe uma dor
real, qual o sentido de apresentá-la a partir de gestos de dramatização? Qual o impacto que
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esta dor imaginada e encenada pode provocar no receptor? Com base em qual conceito de
experiência essas imagens são retratadas?
Ao mesmo tempo, a imagem que não representa uma dor, mas sim um indivíduo que é
vítima verdadeira dela, gera comoção no sentido de que nos aproxima de alguém de carne e
osso, que se expõe a uma câmera revelando suas fragilidades, ainda que esta mesma câmera
não consiga captá-la por meio das imagens, mas sim por meio da fala. A dor concreta de um
personagem que se mostra deixa de ser representada por meio das imagens para ser
representada a partir do discurso. Esta reflexão também nos leva a considerar que o
telejornalismo precisa constituir-se com base na ética, daí o fato de ele se eximir de exibir
situações de dor real em determinados horários e em determinados perfis de programa, como
é o caso do Bem Estar.
Também entendemos que o telejornalismo, mais especificamente o especializado em
temas de saúde, revela as abstrações da dor ao optar por ilustrá-la por meio de letterings
quando se dá conta de que qualquer imagem seria insuficiente para passar a mensagem
pretendida. O choro, por exemplo, poderia ser adequado para ilustrar um momento de
tristeza. Mas a tristeza da depressão é muito mais complexa, exige representações mais fiéis,
ou novamente repetiriam os sentidos que se pretende criar com uma mera representação.
No início desta pesquisa, tínhamos como hipótese a ideia de que a dor do outro
representada na televisão poderia ser compartilhada. Neste instante, o do ponto final,
compartilhamos nossa dúvida de que isso realmente ocorra. Dor é vivência e é experiência. E,
sendo assim, tudo o que disser respeito a ela pode ser pensado como fruto da subjetividade,
ainda que suas representações utilizem-se de repertórios que apontem muito mais para a
experiência social.
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