Filosofia da química e atomismo A p o n t a m e n t o s d e J ö n s J a k o b B e r z e l i u s , o «p a i » d o a t o m i s m o q uímico, o u, como refere Ala n R ocke*, «Se John Dalton foi o pai da teoria atómica, então Jacob Berzelius foi a parteira e o pai adoptivo, cumprindo talvez o papel mais importante no desenvo lvimento do atomismo tanto qu ímic o como físico durante as segunda, terceira e quarta décadas do século XIX.» «Todas as tentativas de aplicar métodos matemáticos no estudo de questões químicas é profundamente irracional e contrário ao espírito da química ... se a análise matemática alguma vez tiver um lugar proeminente em química - uma aberração que é felizmente quase impossível - daria lugar a uma rápida e generalizada degeneração desta ciência» Auguste Comte, Cours de Philosophie Positive, 1830. Esta frase, que poderia constar da antologia de grandes erros do Carlos, ajudou-me a perceber, ainda enquanto aluna, a aparente contradição de em todas as minhas aulas de química, de química analítica a química orgânica passando por bioquímica, a constituição atómica da matéria ser apresentada como um dado adquirido para os químicos do século XIX, enquanto nas aulas de física me era reiterado peremptoriamente que a atomicidade e existência de moléculas só tinham sido estabelecidas sem sombra de dúvidas por Einstein no seu Annus Mirabilis. Não parece existirem quaisquer dúvidas da existência de átomos na química desde pelo menos o início do século XIX, com o trabalho de Jakob Berzelius (que propôs igualmente o primeiro modelo de ligação química), e de moléculas desde que Amedeo Avoga dro resolve u em 1811 os problema s ap ontados por Josep h Lou is Gay-Lussac 6 a nos a ntes, distingu indo átomos de agre gados de átomos a que chamou moléc ulas. A hipótese de Avogadro esta va de acordo com as observações de Gay-Lussac e implicava que as massas relativas das moléculas podiam ser determinadas sem ser necessário observar um átomo ou molécula individual. Em Setembro de 1860, Stanislao Cannizzaro distribuiu aos participantes no International Congress of Chemists em Karlsruhe o artigo famoso em que descrevia o seu novo sistema de determinação de pesos atómicos. Entre os presentes contava-se Dmitri Ivanovitch Me ndelee v, um do s pais da tabela pe riódica, p ublicada n o livro «Princípios da Química » e m 1869 e igualmente desenvo lvi da, de for ma indepe ndente, por Ju lius Lo tha r Me yer. Dois anos antes da publicação dos «Princípios », August Kekulé, um químico orgânico proeminente que propôs a estrutura cíclica do benzeno em 1865, tinha escrito: «Eu espero que co nsigamos um dia descobrir a explicação matemático-mecânica para aquilo a que chamamos agora átomos e q u e e x p l i q u e a s s u a s p r o p r i e d a d e s ». Isto é, umas largas décadas antes de Einstein publicar o a rtigo «Ace rca d o movimento de pequena s pa rtíc ulas em suspensão num líquido como requerido pela teoria cinética-molecular do calor » e a sua tese de doutoramento «Uma no va determinação das d i m e n s õ e s m o l e c u l a r e s », q u e v e m o s f r e q u e n t e m e n t e d e s c r i t o s c o m o os artigos fundamentais para o estabelecimento da Teoria Atómica e Molecu lar, os químico s nã o só nã o tinham dú vidas sobre a existência de átomos e moléculas como descreviam as estruturas tridime nsionais destas últimas e a ven ta vam os primeiros modelos de ligação química (isto é, entre átomos). De facto, ainda no séc ulo XIX, em 1874, o primeiro Nobel da Química, Jacobus Hendricus Van’t Hoff, resolveu o problema de Pasteur com a actividade óptica de sais de ácido tartárico (ácido 2,3-di-hidroxi-succínico), um constituinte das uvas. Achille Jacques Le Bel e Van’t Hoff, independentemente, explicaram porque dois isómeros ópticos roda vam o plano de pola rização da luz em se ntidos opostos propondo assimetria na estrutura molecular destas substâncias, nomeadamente propondo a existência de carbonos assimétricos, isto é, carbonos liga dos a quatro grupos difere ntes. Sempre me intrigou esta ignorância do papel fundamental do atomismo na química, praticamente desde o seu nascimento como ciência, mas a o bservação de Comte e o parto tardio da química ajudam a explicar que se considere que a Teoria Atómica e Molecular só foi reconhecida (pela física) com os artigos de Einstein. Embora a maioria dos historiadores de química tracem o seu n a s c i m e n t o à p u b l i c a ç ã o e m 1 6 6 1 d o T h e S c e p t i c a l C h e m i s t , ( «O Q u í m i c o C é p t i c o ») , d e R o b e r t B o y l e , s e g u i d a c i n c o a n o s m a i s t a r d e p o r « A O r i g e m d a s F o r m a s e Q u a l i d a d e s », a r e a l i d a d e é q u e o estabelecimento da química como ciência foi um processo demorado e com recaídas. Muitos cientistas respeitados - como Johann Becher, Georg Ernst Stahl (o introdutor do flogisto que Lavoisier demonstrou inexistente) ou mesmo Isaac Newton fizeram incursões mais ou menos abertas pela alquimia em pleno s é c u l o X V I I I . C o m o r e f e r i n o p o s t «O F i m d a a l q u i m i a », a s g r a n d e s «guerras» da química neste século tinham a ver com a demarcação da alquimia, considerada uma charlatanice pura e dura que impedia o progresso da ve rdadeira ciência, a química. Isto é, a química estabeleceu-se depois de as «guerras» do atomismo te rem sido tra vadas e os principais o bstác ulos – teológicos, experimentais e teóricos – terem sido ultrapassados pela física e pela filosofia. No início do século XVII, o atomismo e ra u ma filosofia proscrita, uma explicação a teísta que ameaça va a visã o e scolá stica do mundo e como tal e ra de vidamente condenada (em França, por exemplo, o atomismo foi proibido em 1624 e a sua defesa era merecedora da pena de morte). No século XVIII a constituição atómica da matéria era já uma hipótese «co nservad ora » e a c iência, a filo sofia e a religiã o começava m a dissociação que muitos hoje em dia contestam, pelo menos na parte que à religião diz respeito. Assim os químicos aderiram imediata e e n t u s i a s t i c a m e n t e à o b r a d e D a l t o n p u b l i c a d a e m 1 8 0 8 , «A N e w Syste m of Chemical Philo sophy». Por outro lado, até ao século XX a química era encarada como a ciência quasi estritamente experimental que apenas se ocupava da natureza da matéria e, especialmente, das suas t ransfo rmaç ões. I sto é, nin guém ima ginava o ri gen s filosóficas pa ra o atomismo químico mas abundavam o bjecções filosóficas em relação ao atomismo físico. Nem alguém se referiria a um químico, como o fez Einstein em relação a Ernst Mach, um anti-atomista, como um bom cientista mas u m filósofo deplorável. Prova ve lmen te porque não há muitas lucubrações filosóficas a extrair de uma síntese química ou de uma purificação - excepto talvez para um Pr imo Le vi - enquanto muitos grandes nomes da física e matemática se destacaram igualmente pelas suas reflexões filosóficas, é muito raro encontrar um químico-filósofo, pecha que continua (Ilya Prigogine ou Michael Polanyi são excepções) e se manifesta ainda na raridade de filósofos da química. De facto, se olharmos para as publicações de filosofia das ciências descobrimos que se a física tem a parte de leão e a biologia, ciências cognitivas e afins começaram a merecer muita atenção nos últimos tempos, é preciso u m e sforço co nsiderá vel para descobrir algo sobre filosofia da química. Isto é, dir-se-ia que a combinação química e filosofia é essencialmente não-ligante (ou mesmo anti-ligante), talvez porque a física consegue traçar as suas origens claramente à filosofia e a química, excluindo a alquimia, traça as suas origens à física. Como refe re este artigo que incide sobre a ne gligê ncia na filosofia da química (formato pdf), ainda hoje muitos consideram a química apenas como uma pequenissima parte da física, a parte que se restringe à escala dos nanómetros e ao electromagnetismo, e como tal consideram que todas as questões filosóficas interessantes em química são cobertas na filosofia da física. Na realidade, há sobreposição (e colaboração) das duas ciências em muitas áreas, nomeadamente no que os físicos chamam física-química e os químicos química-física, na física de estado sólido ou na termodinâmica (física ou química). Mas há não só áreas completamente distintas como abordagens diferentes ao me smo prob lema, que se manifestam inclusive na forma como químicos e físicos enunciam, por exemplo, a segunda lei da Termodinâmica, para nós dirigida essencialmente ao equilíbrio químico. Assim, embora o post sobre o átomo e a liberdade de expressão tenha proporcionado uma discussão muito interessante, antes de continuar a história do atomismo gostaria de frisar que para a maioria dos químicos, desde que a química se estabeleceu como ciência, o atomismo é estritamente científico sem quaisquer implicações filosóficas - exceptuando, claro, aquelas que integrámos no método científico. *Alan J. Rocke, Chemical Atomism in the Nineteenth Century – From Dalton to Cannizzaro, página 66, Ohio State University Press, 1984. Fonte: Blog De Rerum Natura Data: Agosto 2007 Au tor: Palmira F. da Silva