36º Encontro Anual da Anpocs MR20 – Perspectivas comparativas nos estudos africanos A vocação comparativa da antropologia: caminhos para novas investigações Juliana Braz Dias (Universidade de Brasília / University of Pretoria) A vocação comparativa da antropologia: caminhos para novas investigações A antropologia destaca-se entre as ciências sociais pela maneira como aborda o particular, mas não podemos esquecer sua vocação comparativa, que lhe permite alçar voos mais amplos. É recuperando esse caráter dual da antropologia que proponho uma reflexão sobre as possibilidades futuras dos estudos africanos realizados a partir do Brasil. Neste breve ensaio, que alinhava algumas das discussões propostas para a mesa-redonda “Perspectivas comparativas nos estudos africanos” no 36º Encontro Anual da Anpocs, sugiro uma revisão do método comparativo na história da antropologia e a sua retomada enquanto ferramenta de investigação, em particular nas pesquisas que se debruçam sobre realidades sociais em África. Em seguida, aponto alguns dos caminhos através dos quais tal discussão pode nos guiar, tomando como exemplo o caso dos estudos cabo-verdianos. O método comparativo em perspectiva A especificidade do fazer antropológico tem sido em larga medida definida a partir das particularidades metodológicas da disciplina, incluindo o trabalho de campo, a observação participante e, ainda, a utilização de uma abordagem comparativa. A antropologia é uma ciência fundamentalmente comparativa. Como aponta Louis Dumont, “(...) social anthropology is comparative at heart even when it is not explicitly so” (Dumont 1977, p. 3). A comparação apresenta-se como uma ferramenta essencial na tentativa de lidar com a alteridade, bem como na busca da compreensão de nossa própria sociedade. Perspectivas analíticas fundadas na comparação têm se mostrado presentes em toda a história da antropologia, embora revelando variações particulares a cada autor. Alguns desses autores procuraram deixar essas diferentes perspectivas mais claramente estabelecidas e singularizadas como parte do método por eles empregado. Gostaria de expor brevemente três tendências comparativas que apareceram no desenvolvimento da disciplina. A seleção dos autores aqui abordados é um tanto arbitrária, tendo como intuito apenas destacar o papel central do método comparativo ao longo da história da antropologia, ao mesmo tempo em que se evidencia as diversas acepções da ideia de comparação. Ainda que se apresente como uma constante nas tentativas de realizar o movimento fundamental entre o particular e o geral, a noção de comparação pode assumir sentidos diversos, associados a diferentes perspectivas teóricas, uma vez que método e teoria apresentam-se sempre intrinsecamente relacionados. A primeira perspectiva que procuro esboçar aqui é a proposta metodológica delineada cuidadosamente por Radcliffe-Brown em Estrutura e Função na Sociedade Primitiva (1973). Radcliffe-Brown foi um precursor do que poderíamos chamar de uma comparação tradicional na antropologia, fundamentada na concepção de uma ciência positiva da sociedade. O modelo que o autor propunha para a disciplina era inspirado nas ciências físicas e biológicas e, dentro dessa proposta, o estudo comparativo de fenômenos sociais concretos era o ponto de partida para o estabelecimento de formulações científicas. Radcliffe-Brown insistia na necessidade de um conhecimento sistemático das “leis naturais” que governam a sociedade humana e era somente através da comparação que o autor poderia estabelecer a passagem do particular para o geral, chegando ao que denominou de "leis sociológicas". A matéria-prima para a comparação proposta deveria ser encontrada nas etnografias densas. Após a apreensão da relação de determinada instituição dentro do sistema particular do qual faz parte, o antropólogo deveria procurar determinados princípios fundamentais ou tendências que aparecem em todas as sociedades, ou ao menos em todas que apresentam determinado tipo. “São essas tendências gerais que incumbe de modo especial à antropologia social descobrir e explicar” (Radcliffe-Brown 1973, p. 31). A necessidade de uma abordagem comparativa, portanto, é reforçada na proposta metodológica delineada por Radcliffe-Brown. Para alcançar as classificações sistemáticas buscadas pelo autor, o estudo comparado das sociedades se mostrava como um empreendimento fundamental. Um outro modelo de comparação ao qual podemos aqui nos referir é aquele apresentado por Leach em Rethinking Anthropology (1971). Procurando repensar as questões mais básicas da antropologia para compreender as razões do que, para o autor, se mostrava como uma dificuldade de estabelecer generalizações comparativas na disciplina, Leach propõe uma variedade de generalização que se define por contraposição à proposta de Radcliffe-Brown. A partir da crítica à construção de tipologias, denunciando que as hipóteses taxonômicas têm um caráter tautológico, além de apresentarem uma tendência etnocêntrica, Leach propõe uma antropologia pensada de forma matemática. Seguindo uma outra variedade de generalização comparativa que o autor remete a Lévi-Strauss, Leach propõe que a generalização deve se dar pensando nas ideias organizacionais que estão presentes em qualquer sociedade constituindo um padrão matemático. É a comparação desses padrões matemáticos que deve constituir a tarefa do antropólogo, pois só assim, segundo o autor, torna-se possível alcançar princípios universais, isto é, padrões estruturais que não estão restritos a determinados tipos de sociedades. Portanto, uma comparação entendida como classificação das coisas de acordo com seus tipos e subtipos é rejeitada em nome de uma comparação pensada como uma ferramenta para a delimitação de possíveis padrões gerais nos fatos específicos de etnografias particulares. Os fatos antropológicos são traduzidos para uma linguagem matemática e a comparação formal entre esses padrões permite alcançar universalizações que, para Leach, são um passo à frente das generalizações no estilo desenvolvido por Radcliffe-Brown. Os dois modelos acima apresentados distinguem-se de uma terceira tendência à qual gostaria de me referir. Trata-se do método comparativo utilizado por Marcel Mauss. Em especial na paradigmática obra Ensaio sobre a Dádiva, Mauss realiza uma comparação que abrange um largo campo, temporal e geograficamente, em busca de fatos sociais totais e universais. O autor explicita seu método: Our method is one of careful comparison. We confine the study to certain chosen areas, Polynesia, Melanesia, and North-West America, and to certain well-known codes. Again, since we are concerned with words and their meanings, we choose only areas where we have access to the minds of the societies through documentation and philological research. This further limits our field of comparison. Each particular study has a bearing on the systems we set out to describe and is presented in its logical place. In this way we avoid that method of haphazard comparison in which institutions lose their local colour and documents their value. (Mauss 1967, p. 2-3) Esta citação de Mauss ressalta certas características fundamentais do método utilizado pelo autor. Primeiramente, podemos perceber que a comparação apresenta um lugar de destaque no trabalho realizado por Mauss, cuja obra se tornou um exemplo brilhante de utilização do método comparativo. Em segundo lugar, podemos notar a preocupação do autor em ter acesso às "mentalidades" das sociedades estudadas. Mauss atua fundamentalmente no campo das representações e dos valores, apresentando um cuidado especial com a contextualização de seu objeto de estudo. Um terceiro ponto, que não aparece na citação acima mas é evidente na obra de Mauss, é a preocupação em fazer uma comparação entre as instituições "arcaicas" que estuda e as instituições de sua própria sociedade, buscando nesse movimento a compreensão de ambas. A proposta metodológica desenvolvida por Mauss reverbera na obra de outro autor para quem a comparação também assume lugar especial no fazer antropológico: Louis Dumont. Em Homo Hierarchicus (1992), Dumont apresenta uma de suas maiores contribuições para a antropologia, tanto no plano teórico quanto no etnográfico. É nessa obra que o autor delineia de maneira mais precisa seu projeto e onde ele torna explícito o método utilizado no desenvolvimento do seu trabalho. A ambição de Dumont está estreitamente relacionada com a própria concepção que o autor tem da disciplina. Para Dumont, o grande interesse gerado pela antropologia está na sua capacidade de, através da compreensão de diferentes culturas e sociedades, fornecer provas da unidade da humanidade (Dumont 1992, p. 50). Foi com base nessa ideia que o autor procurou encontrar na Índia o que há de universal à humanidade (e, concomitantemente, o que há de particular àquele contexto) para, a partir disso, melhor compreendermos a nós mesmos – o que, aliás, assemelha-se à proposta de Marcel Mauss. Na busca pelo universal, Dumont realiza uma “perspectivação” de sua própria sociedade. Esse duplo movimento desenvolvido por Dumont, que procura ao mesmo tempo universalizar a Índia e pôr em perspectiva seus próprios conceitos, tornase possível justamente pela utilização delicada do método comparativo. Comparar significa aqui, em primeiro lugar, pôr-se em perspectiva, contextualizar os conceitos utilizados pelo próprio pesquisador, para só assim apropriar esses conceitos comparativamente na compreensão da alteridade que se coloca como objeto de análise. O autor propõe uma busca do universal que vai além da elaboração de generalizações. Como afirma, O universal só pode ser atingido na espécie através das características próprias, e sempre diferentes, de cada tipo de sociedade. (...) Definitivamente, só aquele que se volta com humildade para a particularidade mais ínfima é que mantém aberta a rota do universal. (Dumont 1992, p. 52) A partir do momento em que deixamos de procurar encaixar o “outro” em nossas próprias categorias e, ao contrário, distanciamo-nos de nossas categorias nativas, contextualizando-as dentro da tradição da qual fazemos parte, voltamo-nos para uma comparação em outro plano. É apenas uma comparação de particularidades devidamente localizadas que leva ao universal. E o inverso também é verdadeiro. Alcançando o universal, podemos compreender mais facilmente as particularidades. A realização da comparação, segundo Dumont, está totalmente condicionada à perspectivação do pesquisador. É preciso que o antropólogo coloque a si mesmo e suas categorias nativas como um dos pontos de comparação e busque nas particularidades do “outro” o segundo termo desse exercício comparativo, a fim de alcançar a compreensão de ambos. Colocar-se em perspectiva é ter uma base de comparação fora de si mesmo: (...) one cannot move a mass from within; one needs na extenal fulcrum. (...) comparison is the fulcrum. To “see ouselves in perspective,” as the late Sir Edward Evans-Pritchard put it, is a way to understand ourselves better. (Dumont 1977, p. 11) Podemos mesmo argumentar que esse posicionamento do antropólogo enfatizado por Dumont é, de alguma maneira, um procedimento constitutivo da própria disciplina antropológica. Como indica Luís R. Cardoso de Oliveira (1993), mesmo que alguns autores não afirmem explicitamente, nem façam disso um objeto de reflexão, a comparação está sempre presente no empreendimento levado a termo pelos etnógrafos, tendo como um dos pontos de referência as próprias categorias nativas do pesquisador. Cardoso de Oliveira argumenta que a assunção de uma consciência hermenêutica, com o reconhecimento do caráter contextualizado do conhecimento produzido pelos antropólogos, acrescida de uma preocupação com questões de validade, conforma um “dilema constitutivo” da disciplina. A experiência do estranhamento, reforçada na prática do trabalho de campo característico na antropologia, leva necessariamente a um mínimo de crítica das categorias nativas de entendimento do pesquisador. É interessante lembrar neste momento a questão epistemológica fundamental colocada por Geertz (1983) ao discutir a polêmica gerada pela publicação do diário de Malinowski (1989): como fica o conhecimento antropológico quando percebemos a impossibilidade de ver as coisas do ponto de vista do nativo? A resposta a essa questão encaminha-se em direção à ideia de que o antropólogo não precisa virar um nativo, mas se expor ao outro de forma a proporcionar uma espécie de “fusão de horizontes” (Gadamer 1982). A interpretação deve ser articulada a partir da construção de um ponto de conexão com o “outro”. Cardoso de Oliveira (1993, p. 74) ressalta que até mesmo a construção do objeto de pesquisa deve se dar nesse ponto de conexão, quando os problemas definidos na comunidade de pesquisadores encontram respaldo nas representações da sociedade estudada. É na interseção entre a sociedade do pesquisador e a sociedade pesquisada que se dá a interpretação do antropólogo, produto de um diálogo entre o material etnográfico e as categorias de entendimento do pesquisador (categorias estas compartilhadas com os atores sociais de sua sociedade de origem). Notamos, assim, que a ideia de comparação pode ser colocada em diversos planos. Atentos à história de formação da antropologia, observamos uma sequência de propostas teórico-metodológicas que vão da ideia de comparação como ferramenta de uma ciência positiva que leva a “leis gerais” à noção de comparação como um exercício de hermenêutica, um procedimento indispensável na interpretação do “outro” e, portanto, como um elemento constitutivo da disciplina. O que venho ressaltar é a necessidade de que essa vocação comparativa da antropologia não esteja presente apenas como um fator intrínseco ao empreendimento etnográfico, mas como uma questão sujeita a reflexão e como uma proposta metodológica explicitamente delineada. A percepção do valor fundamental da comparação na antropologia deve nos guiar numa retomada da disciplina, investindo no desenvolvimento do método comparativo, revigorado. Como apontam Hann e Hart, (…) for about a century now, anthropologists’ preoccupation with fieldwork-based ethnography has led them to focus on present time within narrow spaces; and that earlier agenda [focused on world history] has largely slipped from view. We do not belittle the achievements of the twentieth-century ethnographers. Bronislaw Malinowski, Raymond Firth and their followers rejected “conjectural history” because joining people where they live allowed them to focus on their contemporary behaviour in all its rich complexity. Their monographs on tribal economies in Oceania and elsewhere remain classics. But we have deliberately emphasized broader regional and global perspectives. (Hann e Hart 2011, p. 164-165) Em outras palavras, é preciso aliar os alcances da etnografia à potencialidade do método comparativo. A pesquisa de campo etnográfica baseada na observação participante tem sido considerada, já há longo tempo, uma marca registrada da antropologia, delineando seus limites em relação a disciplinas vizinhas. Como apontado por Mintz (2000, p. 169), os antropólogos têm modificado gradualmente sua própria percepção sobre o trabalho de campo; ainda assim, o método etnográfico permanece essencial à definição da antropologia como profissão. Exercício semelhante deve ser feito, como proponho, em relação ao método comparativo. Mesmo sabendo que a noção de comparação apresenta significativa variedade quando contrapomos diversas tendências teórico-metodológicas na antropologia, é preciso cuidar para que a perspectiva comparativa permaneça como uma ferramenta fundamental do fazer antropológico. Só ela permite realizarmos a passagem do detalhe etnográfico para a construção de um quadro mais amplo, tanto em termos espaciais quanto temporais, permitindo localizarmos os dados de nossas investigações dentro de uma história em âmbito mundial. É este potencial analítico presente no método comparativo que procuro destacar na discussão sobre o futuro dos estudos africanos realizados a partir do Brasil. Os estudos africanos no Brasil Acompanhando um movimento de internacionalização das agendas de pesquisa nas ciências sociais no Brasil, o campo dos estudos africanos tem atraído um número crescente de investigadores vinculados a centros de pósgraduação no país. Esses profissionais não conformam um grupo homogêneo. Diversas são suas trajetórias acadêmicas e as perspectivas teóricas que orientam seus trabalhos. Muitos desses profissionais são brasileiros, formados no Brasil. Outros não são brasileiros, embora tenham tido parte substancial de sua formação no país. Ainda outros, de nacionalidade brasileira ou não, tiveram sua formação acadêmica fora do país e integram hoje centros de ensino e pesquisa no Brasil. Quando observamos o cenário escolhido por esses profissionais para realização de suas pesquisas, deparamo-nos também com considerável variedade de contextos abordados. Muitos têm desenvolvido seus estudos no que poderíamos vagamente chamar de “África portuguesa” (ou países africanos de língua oficial portuguesa), especialmente em Cabo Verde e Moçambique. É importante notar que, já aqui, enumeramos um conjunto de países um tanto diversos. Embora relacionados em alguma medida por compartilhar determinados aspectos do seu passado colonial, abrigam populações tradicionais com muito pouco em comum e vivenciam hoje situações políticoeconômicas muito distintas (cf. Dias, Thomaz e Trajano Filho 2008). E a multiplicidade de contextos africanos estudados por cientistas sociais no Brasil é mais vasta. Atravessando a fronteira linguística (ainda de maneira um pouco tímida), alguns passos começam a ser dados em direção a outras regiões do continente. Já são hoje tomados como objeto de investigação fenômenos que têm por cenário países tão diversos como Benim, Uganda, Namíbia e África do Sul, entre outros. Tratamos, portanto, de um campo cuja unidade é um pouco frágil, demandando uma atenção especial. Diante de tal quadro, cresce a necessidade de sistematização dos debates no interior desse campo emergente. Mostra-se oportuno um esforço em melhor articular esse conjunto de trabalhos, dando a conhecer o que se tem produzido, adensando o diálogo, conferindo sólida base teórica à análise do material empírico que se acumula e, sobretudo, discutindo as possibilidades futuras dos estudos africanos realizados a partir do Brasil. No intuito de colaborar para a construção de uma agenda para os estudos africanos no Brasil, proponho um enfoque na potencialidade dos trabalhos de caráter comparativo. O intuito é colocar em relação variadas realidades sociais africanas, bem como analisar semelhanças e diferenças entre determinados contextos em África e outros observados fora do continente. Trata-se, como já enfatizado, de uma retomada da dupla vocação da antropologia, onde o conhecimento gerado por meio de pesquisas empíricas torna-se alvo de olhar comparativo, permitindo o desenvolvimento de um debate de maior amplitude. Nos termos aqui propostos, a comparação pode ser pensada por diferentes vias. Primeiro, ela pode retomar algumas premissas dos antigos estudos de área, de maneira renovada. Tomemos, por exemplo, o trabalho clássico realizado por Herskovits, em “The Culture Areas of Africa” (1930). Nesta obra, Herskovits partia daquilo que entendia como um complexo de traços culturais distribuídos de maneira relativamente homogênea em um contínuo geográfico, em contraste com áreas vizinhas. A proposta de Herskovits recebeu muitas críticas nas décadas que se seguiram, por conta de alguma arbitrariedade nas fronteiras entre as áreas culturais que delineava – ou, em outras palavras, pela arbitrariedade dos critérios escolhidos para definir tal classificação. Sobretudo, sua proposta perdeu vigor por se basear em uma ideia de cultura que não se sustenta nos debates teóricos mais recentes. Contudo, a ideia de submeter a um olhar comparativo o material etnográfico originado em pesquisas realizadas em determinadas zonas socioculturais mantém-se de alguma maneira. Ainda que evitem o conceito já ultrapassado de “áreas culturais”, é recorrente nos estudos africanos a menção a determinadas regiões (como “Alta Costa da Guiné” ou “África Austral”), tomadas como categorias plenas de sentido. Os estudos de cunho comparativo no interior dessas zonas socioculturais revelam-se enriquecedores, iluminando a compreensão do material etnográfico obtido na investigação de sociedades específicas. Uma segunda via comparativa aqui sugerida prioriza a dimensão do contraste. Em vez de mantermos o foco nas semelhanças entre realidades socioculturais encontradas numa mesma região, podemos também aventurarmos na comparação entre experiências históricas consideravelmente distintas. É o que observamos, por exemplo, nos poucos mas significativos estudos que colocam lado-a-lado diferentes experiências coloniais em África. Para citar apenas um exemplo oriundo do campo dos estudos africanos realizados a partir do Brasil, faço referência ao trabalho de Peter H. Fry (2005). Podemos também, por fim, adensar a discussão sobre as perspectivas comparativas nos estudos africanos trazendo para o debate a diáspora africana e os trânsitos no espaço atlântico, com especial ênfase nas relações entre África e Brasil. Por meio da comparação, as informações detalhadas e as análises atentas às particularidades de diferentes contextos africanos podem ser colocadas em perspectiva. Torna-se possível, assim, a construção de um quadro maior, que inclui também o Brasil, em nossas relações históricas e mais recentes com o continente africano. A seguir, tomo o caso cabo-verdiano como breve exemplo na sugestão de caminhos analíticos que têm na comparação sua base. Trata-se de uma realidade social que tem atraído diversos pesquisadores no Brasil (ver, por exemplo, Dias 2004; Lobo 2007; Trajano Filho 2009). Cabo Verde é um pequeno arquipélago na costa oeste da África, reunindo em torno de 500.000 habitantes. A pequenez dessa sociedade não diminui a potencialidade das pesquisas ali desenvolvidas que, por sua vez, podem ganhar nova luz quando colocadas num quadro mais amplo. Cabo Verde em comparação Enquanto vários pesquisadores se empenham em aumentar o corpo de obras etnográficas sobre a sociedade cabo-verdiana, sugiro o exercício de pensarmos vias de comparação que permitam colocar o país dentro de um quadro maior. Para tanto, permito-me realizar um diálogo com outro trabalho, nos mesmos moldes, desenvolvido pelo antropólogo português João Vasconcelos. Em “Filhos das terra, ou Lamarck em Cabo Verde”, um working paper apresentado no 3º Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia (Lisboa, abril de 2006), Vasconcelos mergulha em um exercício semelhante ao aqui proposto: toma Cabo Verde por uma via comparativa a fim de melhor compreender uma dimensão específica daquela realidade sociocultural, qual seja, a noção de “crioulidade”. Com o objetivo de mapear os sentidos associados à palavra “crioulo” tal como ela é usada em Cabo Verde, o autor parte do material de pesquisa recolhido durante seu trabalho de campo na ilha de São Vicente, mas soma à análise de cunho etnográfico um viés comparativo. Em especial, confronta seus dados de campo com o material revelado nos estudos realizados em sociedades do Caribe, região que, como sugere o autor, corporiza o protótipo da crioulidade nos imaginários anglófono e francófono. As sociedades caribenhas, assim como Cabo Verde, são realidades sociais formadas no âmbito da expansão europeia. Foram, no passado colonial, marcadas pelo regime escravocrata e pelo trânsito de gente. Ainda hoje, estão estruturalmente vinculadas ao movimento de pessoas – migrantes que partem das ilhas rumo a países da Europa e Estados Unidos, prioritariamente. Cabo Verde e as sociedades caribenhas compartilham essa dimensão do que poderíamos chamar de “dupla diáspora”. São ainda igualmente marcados pela vida em um contexto insular. Semelhanças como estas podem inspirar pesquisadores interessados em trabalhar temáticas como migração, reprodução social e parentesco, abarcando esse conjunto de sociedades que compõem o espaço atlântico. É por esse mesmo caminho que Vasconcelos elabora sua análise. Faz isso, contudo, para evidenciar que há limites nos usos generalistas da noção de crioulidade. O autor compara o campo semântico e afetivo vinculado ao termo “crioulo” em Cabo Verde com a compreensão etnográfica da crioulidade em sociedades caribenhas. Mais especificamente, compara o caso cabo-verdiano ao material apresentado em três estudos: o trabalho de Michel Leiris (1955) sobre a Martinica e Guadalupe; o de Lee Drummond (1980) sobre a Guiana; e o de Daniel Miller (1994) sobre Trinidad. São todas elas sociedades cujos membros designam “crioulas”, isto é, um resultado da mistura de pessoas e costumes de origens diversas. O que cabe aqui destacar é que a perspectiva analítica desenvolvida por Vasconcelos leva-o a defender um uso ad hoc da noção de crioulidade, atento aos sentidos atribuídos ao termo por agentes sociais em diferentes espaços e tempos. Propondo outro caminho comparativo, sugiro que a discussão sobre crioulidade em Cabo Verde pode receber nova luz se optamos pelo contraste entre tal caso e outras realidades sociais em África que atribuem significados muito distintos à ideia de mistura. Neste sentido, a comparação entre as experiências coloniais e pós-coloniais em Cabo Verde e na África do Sul, por exemplo, abre um campo fértil para análise. Mais do que uma visão simplista que aponte para casos emblemáticos de valorização e desvalorização dos encontros interculturais, tal olhar comparativo, baseado em material etnográfico oriundo de pesquisa de campo intensiva, pode apontar uma dinâmica mais sutil de ressignificação da mistura e da hibridez conforme o contexto social. Ainda, se tomamos a temática do movimento (de pessoas, objetos, informações, etc.) como questão fundamental para compreensão da crioulidade cabo-verdiana, podemos também estender a perspectiva comparativa a outras sociedades africanas que, diferente de Cabo Verde, caracterizam-se por uma percepção claramente negativa sobre o movimento de gente e pela valorização da autoctonia (ver, por exemplo, Geschiere 2009). São todos estes caminhos possíveis que podem inspirar os cientistas sociais no Brasil a construir uma agenda de pesquisas sobre realidades sociais em contextos africanos, contribuindo para um olhar renovado sobre essas sociedades. Bibliografia CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. “A Vocação Crítica da Antropologia”. In: Anuário Antropológico/90. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 67-81. 1993. DIAS, Juliana Braz. Mornas e Coladeiras de Cabo Verde: versões musicais de uma nação. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Universidade de Brasília. 2004. 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