licença para (não) reproduzir: os direitos sexuais e reprodutivos no

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Licença para (Não) Reproduzir: Os Direitos Sexuais e Reprodutivos
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LICENÇA PARA (NÃO) REPRODUZIR: OS DIREITOS
SEXUAIS E REPRODUTIVOS NO ESPAÇO MEDIÁTICO
MARIA JOÃO SILVEIRINHA
(Instituto de Estudos Jornalísticos – Faculdade de Letras – Universidade de Coimbra)
Introdução
A fertilização in vitro fez manchetes em 1978 quando nasceu Louise
Brown, o primeiro “bebé-proveta”. Em Portugal, a primeira criança a ser
concebida por este procedimento nasceria em 1986, com destaque na
imprensa nacional. Vinte anos depois, era promulgada a primeira lei sobre
Procriação Medicamente Assistida, também esta com destaques na
imprensa. Algum tempo antes, um novo referendo sobre o aborto colocara
também as questões da saúde sexual e reprodutiva das mulheres na agenda
política e dos media. Num relativo curto espaço de tempo, as agendas
feminista, social, política e dos media cruzavam-se, assim, em torno de
questões relacionadas com a saúde sexual e reprodutiva das mulheres. O
que neste texto nos propomos fazer é uma reflexão que dê conta não só
das especificidades de cada uma destas agendas, como, e sobretudo, da
configuração de sentido que o seu cruzamento no espaço público produz.
Temas como o aborto, o controlo de nascimento, o planeamento
familiar e as tecnologias reprodutivas são hoje discutidos e regulados por
instâncias nacionais e internacionais, mas a sua presença pública deve-se à vanguarda do trabalho feminista que, desde cedo, exigiu a autonomia
da acção das mulheres no que toca à reprodução. Em sistemas patriarcais,
onde as questões da reprodução eram factores de opressão ou diminuição
das mulheres, as feministas desencadearam um trabalho de exigência de
reconhecimento destas problemáticas que, nas últimas duas décadas, seria
finalmente materializado em documentos internacionais. Nesse sentido,
o Plano de Acção adoptado a partir da Conferência Internacional sobre
População e Desenvolvimento (Cairo, 1994) define a saúde reprodutiva
como “um estado completo de bem-estar físico, mental, e social (...) A
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saúde reprodutiva implica (…) que as pessoas são capazes de ter uma vida
sexual segura e satisfatória e que possuem a capacidade de se reproduzir
e a liberdade para decidir se, quando e com que frequência devem fazê-lo” 1. Também a Declaração de Pequim e a respectiva Plataforma da
Acção (Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres, 1995) repetem
esta definição, afirmando no seu 96º parágrafo que “os direitos humanos
das mulheres incluem o seu direito de controlar e decidir livremente e com
responsabilidade em matérias relacionadas com a sua sexualidade,
incluindo a saúde sexual e reprodutiva, sem coerção, discriminação e
violência”2. Este reconhecimento dos direitos reprodutivos das mulheres
tem sido, no entanto, difícil de implementar e é matéria de uma luta
contínua, tanto a níveis nacionais como internacionais3. Uma parte desta
luta é precisamente a estabilização do significado social e político destes
direitos que deve recolher suficiente consenso para que as leis que sobre
eles versam tenham a necessária legitimidade.
Portugal não é excepção ao trabalho de regulação dos direitos sexuais
e reprodutivos que se incluem no espectro das questões da saúde até
porque, como Graça Carapinheiro (2006) faz notar, esta sempre foi
fortemente impulsionada por orientações internacionais. Por isso, nos
1
Plataforma de Acção da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, adoptada a 18 Out. 1994, U.N. GAOR, Cap.. VII, § 7.2, U.N. Doc.
A/CONF.171/13 (1994).
2 Relatório da Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres, Declaração de
Pequim e Plataforma de Acção, adoptada a 17 Out., U.N. GAOR, 50ª Sess., §§
94-96, U.N. Doc. A/CONF. 177/20 (1995); ver também Relatório do Comité para a
Eliminação da Discriminação contra as Mulheres na sua 20ª sessão: Recomendação
24, U.N. GAOR, 54th Sess., Supp. N o . 38, Pt. I, § 23, U.N. Doc. A/54/38/Rev.1, cap.
I (1999).
3 Rebecca J. Cook & Mahmoud F. Fathalla, “Advancing Reproductive Rights Beyond
Cairo And Beijing”, In Women And International Human Rights Law Vol. 3, At 73–90
(Kelly D. Askin & Dorean M. Koenig Eds., 1999); Maja Kirilova Eriksson, “Abortion
And Reproductive Health: Making International Law More Responsive To Women’s
Needs”, In Id. At 71; Rishona Fleishman, The Battle Against Reproductive Rights: The
Impact Of The Catholic Church On Abortion Law In Both International And Domestic
Arenas, 14 Emory Int’l L. Rev. 277 (2000); Doris Elisabeth Buss, Going Global: Feminist
Theory, International Law, And The Public/Private Divide, In Challenging The Public/
Private Divide: Feminism, Law, And Public Policy 360 (Susan B. Boyd Ed., 1997);
Catharine A. MacKinnon, Feminism Unmodified: Discourses on Life and Law
(Cambridge, Mass., 1987); Mary Ann Glendon, Abortion And Divorce In Western Law
(1987); Drucilla Cornell, The Imaginary Domain: Abortion, Pornography & Sexual
Harassment 31–37 (1995).
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últimos anos, com avanços e recuos, o país tem produzido legislação sobre
matérias como o aborto e a procriação medicamente assistida.
É, pois, no quadro das lutas simbólicas subjacentes ao significado do
que os direitos sexuais e reprodutivos implicam que estes temas têm
aflorado o espaço mediático. Para além do referendo sobre o aborto, que
agitou de um modo muito intenso e particular o espaço público nacional,
os acontecimentos ligados à genética em geral e a recente legislação sobre
Procriação Medicamente Assistida produziram intervenções no que
Habermas chama uma “esfera pública em descanso” mas que, no plano
ideal, deve resultar de uma influência das deliberações públicas quotidianas sobre os discursos formais, institucionalizados e constitucionais
(Habermas, 1996, p. 379).
Numa tentativa de compreensão da dimensão pública de uma matéria
particularmente relevante para a igualdade de género, é o tema da
Procriação Medicamente Assistida e das lutas simbólicas por ela desencadeadas que nos ocupará neste texto. Na verdade, o desenvolvimento
técnico-científico na área da saúde reprodutiva não tem uma leitura social
e política unívoca. Fruto da investigação biomédica que tem tornado o
parto e o aborto mais seguros, a contracepção e tratamento da infertilidade
mais eficaz e a medicina reprodutiva mais sofisticada, o tema, ao
projectar-se para além do estrito domínio científico, encontra defensores
e opositores que, em confronto e em conjunção com operadores de sentido
como os introduzidos pelos media, produzem uma visibilidade pública
particular que simultaneamente traduz e constrói visões de nós mesmas/
os e da nossa vida em comum.
Na verdade, os direitos reprodutivos são centrais à concepção da nossa
individualidade e penetram fundo na nossa vida quotidiana pessoal e
colectiva. Em particular, tocam as áreas íntimas da vida das mulheres e dos
seus estilos de família e interceptam quase todas as suas esferas de acção
e de pensamento – desde a autonomia pessoal, à ética pessoal e profissional,
às crenças religiosas. Por esta razão, são uma matéria que alimenta dilemas
e disputas públicas, abarcando no mesmo espaço de interacção um grande
leque de actores sociais, como médicos, leigos, políticos, sociedade civil,
empresas e especialistas. É a esse espaço, que encontra nos media
contemporâneos o seu principal elemento de circulação, que, entendido no
seu sentido normativo, chamamos espaço público.
Tendo adquirido, apenas nas últimas décadas, visibilidade pública, o
tema da saúde sexual e reprodutiva, como já referimos, constitui-se como
tendo enorme relevância para as mulheres, tocando não só a sua esfera
íntima e privada como o seu lugar na vida pública. Na verdade, se uma
mulher não tiver o direito de controlar a sua própria vida reprodutiva –
quando engravidar, quando manter e quando terminar uma gravidez ou
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como ter ou não filhos de um modo autónomo ou partilhado – como pode
ter outros direitos? Por exemplo, como ficam os direitos relativos à sua
carreira, à sua vida afectiva? Se não lhe for permitido fazer escolhas
autónomas em termos de contracepção e aborto, decisões que se ligam à
integridade do seu próprio corpo, é questionável que, noutras áreas da sua
vida, possa agir de modo independente. Isto não significa a precedência
da questão reprodutiva, mas ilustra a sua profunda ligação a outros
direitos políticos.
Estamos hoje, portanto, longe do tempo em que a sexualidade e a
reprodução eram temas estritamente privados, ou mais do que isso, eram
o mais privado dos temas. Com a sua publicitação e transformação em
matérias de cidadania vêm também novas questões: o que acontece aos
direitos reprodutivos quando projectados no espaço público? De que modo
este nos devolve a subjectividade e o político associados a estas questões?
Que definições e que poderes de criar essas mesmas definições estão em
causa quando os direitos sexuais e reprodutivos se transformam em
matéria de discussão pública? O que constitui o espaço público neste
domínio? Nestas interrogações, são diversos os domínios a convocar.
Em primeiro lugar, é a identidade de género que está em causa: o
processo da reprodução é central à compreensão da diferença sexual, no
sentido em que a capacidade de conceber e dar à luz é geralmente
considerada a característica que distingue a mulher e o homem. Na
verdade, ainda que a antropologia dê a conhecer outros modelos, “a
compreensão cultural ocidental dominante [da reprodução] é a de
matrigénese, segundo a qual a mulher dá a vida a uma criança. Também
a relação de mãe-criança é conceptualizada como um produto da natureza
– instinto maternal – ao passo que não há conceito correspondente da
paternidade como um fenómeno natural” (Lie, 2002, p. 384). Esta ligação
à natureza da mulher através da maternidade é precisamente o que é
separado com o advento da ciência, das Novas Tecnologias Reprodutivas
(NTR)4 e das narrativas que as acompanham. Perante elas, as sociedades
são obrigadas a repensar as relações de parentesco e as bases da sociedade
em termos das identidades que lhe dão forma: o que é a família, o que é
o parentesco, o género e o que significa ser mãe ou pai. Afinal, como
referia em título um jornal nacional “mãe não há só uma”.
Por outro lado, associados às NTR e à sua projecção no espaço
público, processos como a fecundação in vitro permitem vislumbrar um
processo mais vasto de medicalização e de tecnologização do corpo que
4
Por uma questão de economia de espaço daqui em diante será utilizada a
abreviatura NTR para nos referirmos às Novas Tecnologias Reprodutivas.
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criou novos sujeitos de intervenção médica, que também impulsionaram
a reconsideração dos nossos corpos. Na verdade, na medida em que se
constituem como poderosos instrumentos de visualização e de controlo
dos fetos e das mulheres que os geram, muitas das tecnologias associadas
à maternidade afectam as concepções de nós mesmas como sujeitos desse
controlo. A proeminência da medicalização e da tecnologização do corpo
gerou também todo um discurso em torno da infertilidade e da necessidade da reprodução biológica dos casais que importa estudar.
Em terceiro lugar, quando as NTR são projectadas no espaço público
fazem-no necessariamente no quadro de uma linguagem própria que é a dos
media. O lugar dos meios de comunicação social na constituição do espaço
público não pode, com efeito, ser ignorado: antes de mais, porque por eles
passa a visibilidade e opacidade dos temas em questão; por outro lado, porque
os media recontextualizam – na linguagem que lhes é própria e que é
devedora do seu entendimento autónomo de como essa recontextualização
se deve fazer – as informações parcelares dos diferentes actores envolvidos,
projectando para o espaço público as exigências culturais e normativas que
lhes estão associadas. Assim, quando as notícias e as discussões nos media
abordam as novas tecnologias reprodutivas – seja através da narrativização
de histórias pessoais, das notícias de ciência ou das discussões públicas das
normas que as regem – vemos em jogo questões de legitimidade identitária,
da face pública do poder da medicina sobre os nossos corpos e da própria
compreensão pública da ciência.
Por fim, está em causa a constituição do próprio espaço público: o
que ele significa quando organizado em torno das NTR e o que coloca
em jogo em termos da nossa vida em comum.
No que se segue, procuraremos, então, pensar as Novas Tecnologias
Reprodutivas mediante estes quatro nódulos que inevitavelmente se
cruzam: as novas tecnologias reprodutivas e as identidades das mulheres;
a medicalização e a tecnologização do corpo e da reprodução; as questões
da ciência no espaço mediático; e as questões do espaço público como
lugar de distribuição e reconhecimento.
As Novas Tecnologias Reprodutivas e as identidades das mulheres
Como já dissemos, nas sociedades Ocidentais, o direito à liberdade
de decidir, de planear e de ter um maior controlo sobre a gravidez foi
conseguido a partir do direito à saúde reprodutiva reconhecido depois da
Conferência Mundial de Pequim sobre as Mulheres. Mas, particularmente
desde os anos 1980, a posição feminista sobre a importância das
diferenças sexuais viria a desenvolver-se sob diferentes influências,
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dividindo-se na sua posição face ao significado da biologia, da maternidade e das novas tecnologias reprodutivas.
No tocante a estas últimas, e num inevitável quadro de abordagem que
marca, por exemplo, as questões do aborto como sendo questões de
“escolha”, todas as feministas abordam as NTR a partir da convicção de
que o controlo próprio da reprodução das mulheres é uma capacidade
importante. Nem todas as feministas, no entanto, partilham do significado
que se pode atribuir a esse controlo. Neste ponto, como em muitos outros,
o feminismo não é, como nunca foi, um movimento uniforme.
Para uma boa parte das teóricas agrupadas sob o “feminismo da
igualdade”, as novas tecnologias reprodutivas significam, entre outras
possibilidades, a capacidade de deslocar ovócitos ou embriões do corpo
da mulher criando, desse modo, opções que, na linha das feministas da
segunda vaga, contêm um forte potencial de emancipação. Já em 1949
Simone de Beauvoir descreveu apaixonadamente a escravização da mulher
ao que ela chamou as “forças exteriores” das suas biologias reprodutivas:
[A mulher] é entre todas as fêmeas de mamíferos a que se acha mais
profundamente alienada e a que recusa mais violentamente esta alienação;
em nenhuma a escravização do organismo à função reprodutora é mais
imperiosa nem mais dificilmente aceite: crises da puberdade e da menopausa, ‘maldição’ mensal, gravidez prolongada não raro difícil, parto
doloroso e por vezes perigoso, doenças, acidentes, são características da
fêmea humana (de Beauvoir, 1975, p. 61).
Ao contrário dos homens, cujos sistemas endócrinos não criam crises
significativas, uma mulher deve esforçar-se por manter a sua individualidade e resistir à sua “escravização” perante as exigências da reprodução
biológica que não têm fisiologicamente nenhum benefício para ela (de
Beauvoir 1975, p. 54-61, Roberts, 2007). O papel subordinado da mulher
não pode, no entanto, ser explicado pela biologia, mas por um processo
social e cultural.
Firestone é a mais famosa e uma das primeiras proponentes das NTR
como libertadoras “da tirania da reprodução” (1970, p. 193). Em The
Dialectic of Sex assinala que a desigualdade inicial entre mulheres e
homens radica numa fonte concreta e material: o corpo. Por isso, se a raiz
da opressão feminina é biológica, só uma revolução na biologia pode
mudar a posição social das mulheres. Em última análise, a causa da
subjugação da mulher é a sua função sexual/reprodutiva e as diferenças
biológicas que a separam dos homens. O simples facto de as mulheres
darem à luz e criarem os filhos mostra como, ao contrário dos homens,
estão fundamentalmente ligadas e dependentes de outros. Este desepp. 461-494
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quilíbrio de poder repercute-se depois no desequilíbrio entre crianças e
adultos e são esses desequilíbrios biológicos que marcaram desde sempre
todas as sociedades. Para serem verdadeiramente autónomas, as mulheres
precisam de se libertar da carga associada à produção de filhos com os
seus próprios corpos, uma carga que as limita e degrada fisicamente. No
entanto, para Firestone, a biologia não precisa de ser uma prisão sem
escape. Se a raiz da opressão da mulher está na anatomo-fisiologia, a
solução deve estar na tecnologia, que permitirá aumentar o controlo da
concepção e da gestação fora do útero. Afirmando aberta e claramente
que “a gravidez é bárbara” (Firestone, 1970, p. 188), Firestone defende
que os desenvolvimentos tecnológicos na reprodução poderiam acabar
com a tirania da família biológica. A gestação extra-uterina constitui-se,
assim, como uma estratégia de libertação, pondo fim à imposição da
maternidade biológica.
Toda uma linha de feminismo, no entanto, não seguiria o impulso de
Firestone, tendendo antes a rejeitar as NTR. Mais do que ver na
reprodução artificial um meio de eliminar a opressão dentro de um sistema
patriarcal, outras feministas viram no facto de só as mulheres poderem
reproduzir uma fonte de poder que elas deveriam controlar, em vez de
colocarem nas mãos dos homens a oportunidade de intervir nos seus
corpos. Como explica Lam (2004, p. 3), nesta linha de pensamento:
A tecno-ciência (…) é uma tecnologia de apropriação do nascimento
projectada e usada pelos homens para superar a sua alienação reprodutiva
da natureza. Enfim [com esta tecnologia] os homens podem reclamar os
poderes da reprodução para si manipulando os processos reprodutivos
femininos e recriando-os fora do corpo feminino humano.
Assim, começando por uma perspectiva ética, a partir de uma reacção
negativa ao foco nos direitos individuais, o feminismo relacional
desenvolveu uma posição crítica das NTR, defendendo antes uma ética
do cuidado que permitisse desenvolver um sistema de interligação e um
sentido de responsabilidade mútua. Partindo de Carol Gilligan, que
investigou as diferenças entre rapazes e raparigas no seu desenvolvimento
moral, encontrando processos morais analíticos distintos, avançou-se esta
ideia: os processos reprodutivos “naturais” da mulher são uma fonte de
identidade feminina, um bastião de poder e solidariedade da mulher que
é única e exclusivamente sua.
Desde muito cedo o feminismo radical seria pensado também em
termos fortemente maternalistas. Para Adrienne Rich (1976) em particular,
o patriarcado alienou as mulheres do potencial da sua capacidade
procriativa, distorcendo a maternidade para uma instituição opressora.
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A maternidade como instituição era pouco recomendável mas, livre das
distorções que lhe haviam sido impostas, podia ser um lugar de auto-actualização feminina, permitindo às mulheres recuperar o sentido próprio
dos seus corpos. A maternidade continha um potencial corporal imanente
e esse potencial – mais do que produção física de crianças – podia ser fonte
de autonomia e de sentido próprio. Na verdade, a fonte do problema da
desigualdade de género não estaria na biologia, mas no modo como esta
foi institucionalizada pelo patriarcado, separando a mente do corpo e
distorcendo a experiência feminina. É nesta separação, argumentou Rich,
que reside a capacidade do patriarcado sobreviver. Se as mulheres
conseguissem reclamar a maternidade como uma experiência, mais do que
como uma instituição, poderiam ser mais autónomas nas suas vidas, ligarse umas às outras e em última análise alterar o curso da história.
Também a natureza historicamente opressiva dos processos médicos e
tecnológicos sobre os corpos das mulheres, em especial na utilização das
Novas Tecnologias Reprodutivas, foi igualmente desde cedo uma das
principais preocupações do feminismo radical. Patricia Spallone descreveu
a tecnologia reprodutiva como mais um meio de estender o controlo
masculino da reprodução para o meio da concepção. Não se trata, na
verdade, de dar às mulheres uma outra “escolha” reprodutiva: os interesses em causa são apenas as “várias necessidades e os desejos dos cientistas
médicos, cientistas sociais, e o Estado para avançar o ‘progresso’
tecnológico e ajudar objectivos de controlo demográfico” (Spallone, 1989,
p. 2). A autora descreve o poder das mulheres a partir da experiência
colectiva, procurando restabelecer a capacidade de acção das mulheres por
oposição a uma excessiva confiança na medicina altamente tecnologizada.
Uma perspectiva da diferença sobre as NTR recusa-as como instrumentos
masculinos e coloca a tónica na necessidade de serem as mulheres a assumir
o controlo dos seus corpos, como acontece com a sua decisão de abortar.
Na mesma linha de pensamento, diz Robyn Rowland:
O que as feministas na verdade querem dizer ‘com o direito de uma mulher
de escolher’ é ‘o direito de uma mulher de controlar’. As mulheres reclamam
o direito à integridade do seu corpo, à autonomia e ao respeito como seres
humanos morais capazes de tomar decisões difíceis nesta área. As mulheres
precisam do acesso ao aborto para controlar as suas vidas num mundo menos
do que perfeito. Temos de colocar a mesma questão relativamente à
tecnologia reprodutiva: elas aumentam necessariamente o controlo das
mulheres sobre as suas vidas? (Rowland, 1992, p. 285).
Para Rowland, a resposta é negativa. A fertilização in vitro não parte
das causas conhecidas e que podem ser sujeitas a prevenção, mas da
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premissa da causa como um problema médico. Por detrás, está todo um
aparelho justificativo da super-ovulação, a colheita de ovócitos e a
fertilização nos laboratórios que não são mais do que processos levados
a cabo por uma profissão médica masculina para controlar a fertilidade.
E, enquanto a tecnologia reprodutiva for controlada pelos homens, não
será usada para dar poder às mulheres, mas para consolidar o poder
masculino (Corea, 1985). Elaine Denny resume assim a perspectiva
feminista radical:
Um dos temas principais do feminismo radical é o do poder e controlo. A
fertilização in vitro é parte de uma tentativa masculina de controlar a
sexualidade e fertilidade femininas e precisa de ser colocada dentro deste
contexto mais vasto. Embora a fertilização in vitro seja promovida como um
tratamento da infertilidade, a ênfase na tecnologia é sobre o controle da
capacidade reprodutiva. (...) Na ideologia feminista radical, o desejo das
mulheres de terem crianças é alimentado por uma ideologia pro-natalista,
explorado por homens ansiosos de dominar a natureza (Denny 1994, p. 70).
Nem todas as mulheres, no entanto, se colocam de um modo tão
polarizado face aos benefícios ou perdas de autonomia quando
confrontadas com as NTR. Na bibliografia é ainda possível encontrar um
conjunto de trabalhos que procura indagar empiricamente as experiências
individuais das mulheres, dando conta da sua grande diversidade e da
impossibilidade de as generalizar. Carla Lam (2004) chama a estes
trabalhos “ambivalentes”:
Ao recusar as experiências das mulheres como falsa consciência, o
feminismo radical nega-lhes precisamente o mesmo que o patriarcado lhes
nega (…) do mesmo modo como o patriarcado culpa as mulheres pelos
problemas que emanam de fora da família, mas que se manifestam no interior
da família, também as feministas localizam o pró-natalismo como um
problema dos inférteis. Os inférteis são uma manifestação altamente visível
da ideologia pró-natalista, mas não são a sua fonte. (Lam, 2004, p.78)
Em qualquer destes casos e seja qual for a perspectiva adoptada, o
que parece certo é que os corpos femininos permanecem centrais a
questões de poder e de liberdade de uma forma que Beauvoir antecipou
com enorme visão. Também a aparente contradição na sua posição – a
formação de uma mulher é um processo social/cultural mas as mulheres
constantemente lutam contra as forças poderosas da biologia – exprime
um dilema que continua hoje dentro da teoria feminista. Até que ponto
as mulheres têm posições subordinadas socialmente sob o efeito das suas
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biologias e quais são as possibilidades de modificação contra as “forças”
biológicas?
No coração deste dilema, como recorda Roberts (2007), residem
significações diferentes de “biologia” e deslizamentos periódicos entre a
biologia como ciência e a biologia como corpo material. Seria esse dilema
que se traduziria no conhecido debate “sexo/género” e que, depois do
trabalho de Beauvoir, respondendo à naturalização das diferenças de género
inerentes a esta perspectiva clínica, pedia uma distinção mais clara entre
sexo e género. Outras reconheceram as diferenças biológicas entre homens
e mulheres, mas argumentaram que o seu significado era social. O sexo e
o género não podem ser vistos como separáveis, mas também não se ligam
de uma forma inevitável. As ligações entre sexo e género são vividas pelo
corpo, mas são sempre “social e historicamente específicas”.
A crescente consciência da historicidade da experiência e a constituição performativa dos discursos sobre os nossos próprios corpos
contribuiu fortemente para novas perspectivas sobre a identidade
feminina, mas agora a partir do corpo vivido e utilizado de formas
específicas, representado por e constitutivo de sistemas de sentido e de
representação. Este pensamento sobre a construção cultural do corpo
colocou, no entanto, novas interrogações sobre a natureza da diferença.
Se afirmássemos alguma diferença entre homens e mulheres quanto ao
corpo, tal implicaria algum tipo de afirmação biológica e, portanto, um
argumento essencialista ou, por outro lado, correríamos o risco de
estabelecer um corpo impossivelmente flexível, em que todas as
diferenças eram sociais e mutáveis? A investigação e as intervenções
políticas das feministas negras e lésbicas tornaram o debate ainda mais
complexo. Na verdade, em causa passou a estar o próprio questionamento
da categoria “mulher”, motivo de crise na teoria feminista. Se não há
nenhum ponto essencial (biológico ou outro) comum entre as mulheres,
podem elas ser consideradas um grupo capaz de fazer exigências
normativas?
A fortificação e o retrabalhar do termo “género” não facilitaram uma
resposta a este dilema, como pode ser visto em particular no trabalho de
Judith Butler. Ao pedir ao feminismo que abandone uma pretensão forte
de identidade psico-sexual como base de uma teoria e de uma política
feminista, o seu trabalho é, na reconsideração da identidade feminina,
central. A publicação de Gender Trouble e o seu desenvolvimento nas
obras seguintes teve um enorme impacto no estatuto da palavra “género”
e na sua relação com o “sexo” e “o corpo”. Em causa estava a préexistência dum corpo a-significante sobre o qual se inscreveriam as
expressões do género. A história, por definição, produz o apagamento do
corpo e, por isso, o corpo não é algo totalmente impresso pela história
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ou pela cultura (patriarcal) – não sendo portanto a construção cultural
inescapável que as narrativas feministas de algum modo pressupuseram.
Pelo contrário, a identidade de género produz-se por uma sequência de
actos performativos. Do mesmo modo, tão-pouco podemos compreender
o sexo e o género como os elementos resultantes de uma pré-relação entre
eles. Para Butler, nem o sexo nem o género são “naturais”: ambos são
produzidos como os efeitos das acções repetidas que são culturalmente
inteligíveis. Butler opõe-se assim à ordem de relações que se estabelecem
num pensamento como aquele que equaciona, por exemplo, que uma
fêmea (biológica) se defina por traços femininos e que, numa prática
compulsória da heterossexualidade, tenha como objecto de desejo os
homens. Um sistema de heterossexualidade pode explicar a formação de
identidade sexuais binárias, mas não explica a microdinâmica das
identidades psico-sexuais. Na verdade, defende, nem o sexo nem o género
são naturais ou uma “substância” e, não sendo o género natural, não há
nenhuma relação necessária entre o corpo e o género. O sexo e os corpos
sexuais materializam-se pela operação do género, uma operação que é
obscurecida. Mas o trabalho de os distinguir – tarefa de que as feministas
se ocupam há muito – é infrutífero. Se o género não é algo natural, é o
resultado de um conjunto de normas sociais que, mediante palavras,
acções, e desejos, produzem e defendem a ficção da coerência
heterossexual reprodutiva, provocando a ilusão de que esse é o único
modo de ser possível – e não porque o corpo seja algo passivo e dado,
mas porque também ele é uma construção reguladora. O sexo é, desde
logo e sempre, género, não havendo um corpo natural pré-existente à sua
inscrição cultural. O género é produzido dentro de determinados
constrangimentos culturais – “matriz de esquemas – que, embora não
fixos temporalmente, não são fáceis de resistir”. No entanto, defende, os
constrangimentos são necessários à produção do género: os actos
performativos que constituem o género não podem ser entendidos fora
da repetição forçada de normas e convenções culturais (Butler 1993,
pp. 94-95). Deste modo, o género não “é”, mas “faz-se” – constrói-se
como uma série de actos (performativos).
A análise pós-estruturalista expandiu, pois, as investigações feministas
na formação e desenvolvimento da identidade de género e sobretudo do
significado de mulher universal. Mais do que compreender o género e os
papéis de género como uma experiência universal, procurou-se realçar
como o conceito de mulher é o subproduto de um complexo conjunto de
relações sociais e culturais (Flax, 1990, pp. 52-53). Assim, à maternidade
não é conferido um significado universal, mas entende-se que também ela
é o produto das próprias estruturas que definem o conceito “mulher”.
Deste modo “o foco da interrogação feminista muda para a desconstrução
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dos valores que rodeiam o social e as funções biológicas da reprodução
que constroem o conceito ‘mulher’” (Guerrina, 2001, p. 37).
As feministas da diferença basearam o seu entendimento das NTR na
capacidade de uma mulher de estar materialmente ligada a outra vida
humana, nomeadamente de um feto. Essas ligações dão às mulheres
direitos e responsabilidades diferentes face a outras entidades implicadas
no processo reprodutivo – não só o feto, mas também os homens e o
Estado. Neste domínio, portanto, o feminismo da diferença concentrou-se nas necessidades especiais da mulher, destacando a necessidade de
desafiar estruturas sociais, económicas e políticas actuais baseadas no
padrão masculino de trabalho e cidadania.
As questões da identidade quando olhadas a partir das NTR não se
limitam, no entanto, aos dilemas femininos. Mais em geral, mesmo
considerando a reprodução um processo natural, compreende-se que o que
está em causa é também um processo profundamente embutido nas
instituições sociais, especialmente nas de parentesco e de família. É nesse
sentido que a ideia antropológica do parentesco, que remete para o
entendimento de que os factos da natureza são, na verdade, construções
sociais e culturais, tem aplicações muito claras no domínio das novas
tecnologias da reprodução. Como a antropóloga Sarah Franklin observa,
num estudo sobre a construção social da infertilidade “está mais em jogo
do que um dilema reprodutivo: não só a capacidade biológica dos casais
para reproduzir, mas a necessidade da reprodução social e cultural de
definições específicas de paternidade e procriação, dos valores da família
tradicional e dos arranjos sexuais convencionais” (Franklin, 1990, p. 226).
Na construção pública do significado das novas técnicas reprodutivas,
o ponto da referência é ainda a reprodução natural, mas esta é
simultaneamente reinterpretada e apresentada de novos modos (Franklin,
1995; Lie, 2002). Ora, como Foucault há uns anos nos mostrou, o poder
de reinterpretar e redefinir os grandes quadros de compreensão das
problemáticas em torno das NTR reside, em grande parte pelo menos, no
corpo de profissionais especializados que as operacionalizam. Vejamos,
então, o que significa a sua intervenção nos processos de sentido.
Medicalização e tecnologização do corpo e da reprodução
A associação das NTR ao discurso médico passa por uma
patologização da infertilidade que se afasta consideravelmente das
perspectivas que focam as condições sócio-culturais da condição de não
ter filhos. Esta patologização, nomeadamente quando associada ao
discurso do “impulso maternal”, no entanto, não toca apenas a condição
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de infertilidade, mas a própria mulher, contribuindo sobretudo para
patologizar a mulher sem filhos. Isso mesmo é visível quando, por
exemplo, a própria mulher se torna responsável pela patologia, pondo fim
ao tratamento da infertilidade: ainda que, em muitos casos, essa decisão
não seja “uma escolha”, mas algo forçado por factores como a idade,
ausência de recursos ou a recusa do parceiro, o poder do vazio criado nas
mulheres inférteis fá-las distanciar-se dos seus próprios corpos, que são
construídos como relativos à disfunção e não como aquilo que elas
esperariam do seu próprio corpo (Throsby, 2004).
A medicalização e a tecnologização são, pois, aspectos importantes
da experiência da fertilização in vitro. No entanto, recorda Throsby, não
explicam tudo, e a abordagem que delas fazem muitas feministas como
base de análise para as questões da reprodução não tem em conta a sua
ambiguidade e ambivalência. Numa boa parte deste discurso, as
tecnologias são construídas como artefactos neutrais, a ser usadas ou
abusadas, ou como instrumentos patriarcais inerentemente “maus”, isto
é, instrumentos de opressão das mulheres. Mas, ainda que os significados
das tecnologias sejam forçados por determinados discursos dominantes de
reprodução e tecnologia, esses significados são “sempre provisórios e
nunca absolutos” (Thorsby, 2004, p. 46). Por isso, para Thorsby, só as
abordagens pós-estruturalistas, Foucaultianas, permitem uma exploração
dos significados contingentes e dinâmicas e as relações de poder das
tecnologias reprodutivas, um argumento que é partilhado por outras
feministas neste campo.
Os escritos históricos de Foucault constituíram, como é bem sabido,
um forte impulso na compreensão dos discursos como poder. Os seus
clássicos como Loucura e Civilização, O Nascimento da Clínica e os três
volumes da História da Sexualidade, apesar de não terem considerado o
tratamento dos corpos femininos, mapearam o estabelecimento de uma
“genealogia” dos discursos e constituição das práticas médicas contemporâneas que puseram em dúvida “as verdades” das interpretações históricas e mostraram como as redes do poder produzem os conhecimentos e
as experiências médicas. O corpo é o lugar último de controlo político e
ideológico, vigilância e regulação. Assim, para Foucault, o encontro
médico é um exemplo supremo da vigilância, pelo qual o médico
investiga, questiona, toca a carne exposta do paciente, testa e examina,
enquanto o paciente se submete e abandona a sua jurisdição do corpo,
passando-a para o médico. Em casos severos de doença ou incapacidade
física, o corpo é “possuído” pelo sistema médico, enquanto na doença
mental o corpo é o aparelho que guarda e contém o cérebro. O corpo
humano é, enfim, o sujeito de toda a investigação e conhecimento na
análise da dimensão social da medicina, podendo ser entendido nas quatro
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formas (necessariamente fluidas) que Frank (1990, p. 134) identifica: o
corpo medicalizado; o corpo sexual; o corpo disciplinado; e o corpo de
discurso. Como refere Teresa Levy (2004):
As biociências, as ciências médicas e as biotecnologias viajam pelo corpo
medicalizado, tentando romper a densidade oculta do corpo, de modo a
torná-lo descritível e explicável em termos biológicos. Ao fazê-lo definem
fronteiras, instituem normas, definem modos de nomeação e estratégias para
lidar com os transgressores. A medicina define a saúde como norma e policia
as suas fronteiras, separando os saudáveis e os doentes, os tratáveis e os
intratáveis, os puros e os infectados, isolando os grupos de riscos. Nunca será
de mais frisar a importância reguladora e normativa das disciplinas e práticas
à volta da doença e da saúde, da vida e da morte.
Remoaldo e Machado (2006, p. 13) fornecem-nos exemplos práticos
desse poder disseminado, concluindo da sua investigação sobre a
infertilidade na zona de Guimarães que “um dos principais resultados do
nosso estudo é a preferência dada à paternidade biológica e o sentido de
que ter um filho biológico era o maior sonho da mulher”. Também Amélia
Augusto (2006) se refere ao facto de os especialistas, nos seus discursos,
reforçarem implicitamente a ideia do pressuposto da heteronormatividade
que é assumido com o estado natural das relações. Tal está claramente
assumido pelos condicionalismos da actual Lei sobre Procriação
Medicamente Assistida.
O discurso da ciência liga-se a outros discursos poderosos, como o
judicial, no controlo e regulamentação do comportamento sexual e
procriativo da mulher. Diz ainda Helena Machado a propósito do uso
judicial de exames genéticos para investigação de paternidade:
O crescente interesse do sistema jurídico português pela “bio-identidade”,
ou identificação genética de um indivíduo, alicerça-se na crença de que esta
prova biológica veio introduzir uma maior “certeza” da paternidade no
direito da filiação. A crença na quase “certeza” absoluta da determinação da
paternidade é substanciada pela imagem de neutralidade e rigor que veicula
o discurso da comunidade científica que realiza os testes genéticos a pedido
dos tribunais (Machado, 1999, p. 18).
No mesmo sentido, antropólogos e sociólogos da saúde e da doença
começaram a pôr em dúvida as pretensões de “verdade” e neutralidade
política do conhecimento biomédico. O que se afirma como “verdade”
deveria ser considerado o produto de relações de poder e, como tal, nunca
neutral, mas sempre ligado aos interesses de alguém. Todos os
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conhecimentos são inevitavelmente os produtos das relações sociais,
modificando-se. O conhecimento não é uma realidade universal, independente, mas participa na construção da realidade. Neste sentido, também os
sujeitos humanos podem ser examinados como constituídos em e por
discursos e práticas sociais que têm histórias complexas. Na sua relação com
a biomedicina, entende-se que os estados e as experiências de saúde e doença
são conhecidas e interpretadas através da actividade social e por isso devem
ser examinadas pela análise cultural e social. Do mesmo modo, o conhecimento médico não deve ser considerado como uma progressão em direcção
a um conhecimento mais refinado e melhor, mas como uma série de
construções relativas que dependem dos ambientes socio-históricos que os
rodeiam e que obrigam à sua constante renegociação.
O modo como os corpos são tratados na medicina e a forma como
podem ser experienciados e formados via sexo ou género aliaram-se num
crescente questionamento do corpo. Nos últimos anos, com efeito, a
compreensão do corpo natural foi exaustivamente questionada e escrutinada
por cientistas sociais, historiadores e filósofos que radicalmente colocaram
em causa a ordem sexo versus género de uma nova forma: “poder-se-ia
dizer que as investigadoras feministas antes procuraram alargar o alcance
dos factores sociais e culturais, isto é, o género, diminuindo assim os efeitos
da biologia. O contributo dos estudos de ciência, no entanto, consistiu em
destabilizar o sexo como natureza” (Lie, 2002, p. 386).
A ciência fornece-nos importantes modelos culturais (Lupton, 1994;
Lie, 2002). Conta-nos histórias sobre o nosso mundo biológico e social,
em modos que podem, por exemplo, explicar a diferença sexual num
enquadramento largamente heteronormativo. Desse modo, Emily Martin
(1991) mostrou-nos o romance do óvulo e do esperma e forneceu-nos uma
explicação de como os papéis de género são atribuídos às células. Do
mesmo modo, Laqueur conta como, depois da descoberta das células de
óvulo e esperma, as relações sexuais foram representadas como um
casamento: “a fertilização tornou-se uma versão miniaturizada do
matrimónio monogâmico, onde o animálculo/marido conseguiu passar
pela abertura única do óvulo/esposa, que então se fechou” (Laqueur, 1990,
p. 172). Mas uma das críticas mais profundas que se pode fazer às
explicações científicas (biológicas) modernas da concepção é, como
recorda Franklin (2006), compreender que elas têm dois objectivos
primários: explicam a casualidade da concepção como um mecanismo
biológico em particular e, pela sua própria acção, demonstram (simbolica
e literalmente) o poder dessas explicações em geral. A versão científica
da concepção assistida confirma ainda mais este processo: é porque temos
uma explicação exacta, efectiva, científica, e objectiva dos mecanismos
da concepção que a ciência moderna pode intervir com sucesso para
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consertá-los. Apesar desta auto-referencialidade, a ciência, na verdade, não
se limita a “dar uma ajuda” à natureza, mas substitui todo o ciclo da
concepção por um outro. Mas estes aspectos paradoxais são diluídos
quando a ciência se apresenta como “uma tecnologia de esperança”
(Franklin, 1997) articulada com investimentos personificados em valores
culturais específicos, como progresso científico.
São múltiplos os efeitos de se considerar a relação dos corpos com a
ciência e a tecnologia. A ela vem associada, por exemplo o problema do
desaparecimento do corpo (disembodiment). Com efeito, como refere
Carla Lam (2004), uma das formas mais óbvias de profunda transformação do papel outrora central da mulher na reprodução é o modo
como ela se torna literalmente invisível pelas NTR, podendo mesmo
argumentar-se que as tecnologias de visualização fetais eliminam
literalmente as mulheres e transformam os embriões/fetos em seres
independentes. Aqui, as consequências da intersecção entre tecnoconhecimento e desaparecimento de mulher são claras, mostrando também
a intersecção entre a descorporização física e conceptual.
O discurso da ciência é, naturalmente, o primeiro a produzir os corpos
com género. Definindo óvulo e esperma como versões metonímicas de
mulheres e homens, Spilker e Lie defendem que o debate norueguês
contemporâneo sobre a doação de ovócitos contém uma “guerra sexual
implícita” combinado com uma ênfase explícita nas oportunidades iguais.
“O aspecto da guerra sexual” refere-se à questão da paternidade: uma mãe
é mais importante para uma criança do que um pai, ou são simplesmente
iguais? Se existe há tanto tempo acesso à doação de esperma, porque não
permitimos a doação de ovócitos? Há alguma diferença básica - e isto é
uma questão de igualdade ou diferença sobre as células, ou sobre
mulheres e homens? (Spilker e Lie, 2007, p. 329-330).
Para Laqueur (1990), o reconhecimento das diferenças biológicas
como decisivas para as diferenças de género sociais é uma construção
cultural que apareceu numa determinada época da história ocidental, dado
que, noutros tempos, outras teorias da diferença eram proeminentes. Mas
a questão da semelhança e da diferença sexual como núcleo da identidade
dividiu profundamente as feministas. Por isso Donna Haraway (1990) vai
mais longe na sua análise, não se limitando a reconhecer os aspectos
culturais desta construção ou a referência à biologia frequentemente
acusada de “essencialista”. Na sua crítica aos discursos que procuram
definir uma identidade feminina, ela propõe a ideia de ciborgue – um
organismo cibernético que impede essa definição. Dada a sua posição
híbrida, a capacidade de esta figura ilustrar o apagamento das fronteiras
entre humanos e máquinas, humanos e imagens, resistindo à própria
definição do orgânico ou do corpo “natural” personifica também um
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desafio das categorias convencionais de raça, género, natureza e
humanidade, colocando em dúvida a impermeabilidade de todas estas
categorias. O ciborgue exprime um ideal de “um híbrido humanóide”,
combinação de humanidade e tecnologia em que as categorias de
sexualidade, étnica, género e a própria distinção entre humanidade e
tecnologia são indeterminadas e fluidas. Os ciborgues transcendem assim
os processos dualistas sobre os quais a modernidade ocidental, o
patriarcado e o colonialismo foram fundados, falando não da hierarquia
da humanidade, tecnologia e natureza, mas da interdependência e permeabilidade de todas essas categorias. Esta é, pois, a figura pela qual Haraway
que procura envolver-se na agenda de uma biopolítica crítica, resistindo
simultaneamente a tendências puritanas e considerando todos os aspectos
a que havia que resistir – como o conceito de tecnosciência.
Apesar da radicalidade destas críticas pós-modernas às narrativas
fundacionais que tendem a produzir um relativismo e ausência de bases
operacionais, é possível, como defendem Fraser e Nicholson, reconciliálas com a força da crítica social do feminismo, gerando “a contraparte
teórica de uma solidariedade feminista mais vasta, mais rica, mais
complexa e multifacetada, o tipo de solidariedade que é essencial para
superar a opressão de mulheres na sua ‘variedade infinita e semelhança
monótona’” (Fraser e Nicholson, 1990, p. 35). Uma forma de gerar essa
solidariedade é, precisamente, compreender como os feminismos, que
percorrem o espectro que vai do essencialismo biológico às perspectivas
construcionistas sociais, se podem articular publicamente.
Em todas as expressões do feminismo moderno ou pós-moderno, ou
do debate igualdade/diferença, com efeito, estão em causa perspectivas
relativas ao alargamento e protecção dos direitos das mulheres. A posição
das “feministas de igualdade” procura minimizar o impacto das diferenças
sexuais no processo legislativo, defendendo que a sociedade deve tratar
as pessoas segundo as suas características, independentemente do género,
mais do que acentuar as diferenças individuais e reforçar os pressupostos
sociais baseados em estereótipos. Justificam esta posição defendendo que
pôr de parte as questões sobre a natureza e os papéis da mulher permite
ao movimento feminista, no plano político, focar a realização dos direitos
iguais, salários e mesmo oportunidades iguais, melhorando a posição das
mulheres na esfera pública (Phillips, 1987, pp. 5-7). Pretende-se, assim,
expandir a igualdade formal, alargando as ideias liberais tradicionais que
promovem a autonomia individual e o privado. O facto de as autoridades
legais reconhecerem hoje a importância da autonomia pessoal e do
privado na arena dos direitos reprodutivos, defendendo o direito de uma
mulher de terminar a sua gravidez e de procurar novas tecnologias de
reprodução é, em grande parte, resultado deste trabalho. No outro lado
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do debate, “as feministas da diferença” favorecem o desenvolvimento de
políticas baseadas nas necessidades das mulheres como mulheres. O seu
pressuposto é que “para as mulheres terem um direito igual a trabalhar,
por exemplo, podem precisar, de facto, de mais do que os homens”
(Phillips, 1987, p. 8).
Como se pode, então, equacionar este debate com as questões do espaço
público? Para pelo menos esboçar um princípio de resposta, precisamos de
convocar mais alguns actores-chave: a ciência e o modo como ela se
articula publicamente num espaço essencialmente mediatizado.
Ciência, espaço público e espaço mediático
Os meios de comunicação constituem a principal arena onde as
controvérsias e as questões científicas chegam ao público, aos grupos de
interesse e aos decisores políticos. Não só influenciam a atenção dos
actores políticos e do público, como moldam o modo como as questões
da tecnologia e da ciência são definidas, simbolizadas e, enfim, resolvidas.
Numa democracia mediada, com efeito, os eventos que se realizam na
esfera política e os grupos que competem no sistema político não são
simplesmente reflectidos nos meios de comunicação, mas são também
formados por eles. Nesse sentido, os media são uma instituição política,
que tem contacto directo com o domínio político, seleccionando fontes e
histórias possíveis e definindo as problemáticas com determinadas ênfases
e ângulos de abordagem.
Neste espaço mediatizado, as questões são produzidas por processos
de definição colectiva, mas o que poderíamos reconhecer como
propriedades objectivas intrínsecas não explicam como o problema é
constituído. A definição dos problemas é, antes, uma construção social
contínua, uma luta interpretativa que não tem lugar em qualquer domínio
vago como “a sociedade” ou “a opinião pública”, mas em determinadas
arenas públicas concretas, onde os problemas sociais são articulados e
enquadrados (Maeseele, 2007). Estas arenas não são uma só: são múltiplas
e recobrem instituições como as universidades, os centros de investigação,
os governos, os parlamentos, as instituições político-jurídicas, as ONG e,
certamente, os meios de comunicação que incluem notícias, espaços
informativos da mais diversa índole da Internet, blogues, etc.. Dado não
só o seu alcance social, como a sua centralidade na pressão pública sobre
os líderes políticos para agir de determinadas formas, é à arena pública
dos media que os estudos de comunicação de massa prestam uma atenção
particular. E os media são, de facto, um lugar importante para estudar as
definições colectivas e a construção social contínua, cuja análise deve
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necessariamente ser mais complexa do que o habitual olhar que sobre eles
se lança. Longe de serem uma simples correia de transmissão de uma
comunicação que parte de um qualquer centro “autorizado” de emanação
das definições “certas” para um público que as recebe de modo acrítico
e passivo, precisamos de entender o seu papel na criação do significado
relacionado com saúde, doença e medicina.
Uma grande parte da investigação em torno desta questão tem sido
fundada no pressuposto de que os media têm pelo menos alguma
influência cognitiva, afectiva, e/ou comportamental sobre os destinatários
das suas mensagens. Nesse sentido, procura-se avaliar as mensagens a que
as pessoas são expostas, centrando-se no que é dito nesses retratos
(Hodgetts & Chamberlain, 2006, Augusto, 2004). Ainda que haja
numerosos métodos específicos para a análise dos textos mediáticos, a
maior parte destes estudos tende, no entanto, a adoptar a análise de
conteúdo e, em menor grau, a abordagem analítica ou interpretativa/
crítica. Menos trabalho se tem concentrado em investigar como se produz
a cobertura de saúde a partir das salas de redacção e da relevância das
culturas jornalísticas. Menos estudos ainda exploraram as respostas do
público ao conteúdo de saúde nos media (Kline, 2006).
Nesta literatura, a ideia mais recorrente é que os media, por um lado,
enfatizam excepcionalmente o progresso médico, muitas vezes ignorando
ou exagerando os insucessos da medicina e, por outro, relatam os
problemas, medos e inquietudes associados aos avanços da ciência em
termos irrealistas e sensacionalistas. No entanto, essa análise é com
frequência falaciosa. Por um lado, é difícil sincronizar a informação
fornecida por fontes científicas com a que surge nas notícias e determinar
qual o grau de compatibilização de informação complexa e contingente que
é passada aos jornalistas, que têm habitualmente como registo discursivo
o texto directo, sucinto e por vezes dramático, um registo que quase sempre
conta uma “história”. Por outro lado, uma boa parte do campo de
investigação e prática que normalmente aparece como “comunicação de
saúde” é ainda dominada por modelos psicológicos comportamentalistas e
perspectivas teóricas que devem muito ao modelo de comunicação estímulo-resposta e a ideais de comunicação estratégica que colocam o poder de
criar “boas mensagens” num “saber comunicar” que basicamente procura
construir o sentido de um modo estratégico e interessado.
Dorothy Nelkin (1987) caracteriza a década de 1970 como uma época
em que o jornalismo abordava o campo científico com “espanto e
desconfiança”. Foi sobretudo com espanto que o advento das tecnologias
reprodutivas, protagonizado pelo nascimento de Louise Brown, o primeiro
“bebé-proveta”, foi visto na imprensa britânica e nos seus ecos
internacionais, incluindo os jornais portugueses. Este “acontecimento
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mediático” produziu uma verdadeira “histeria” nos media. Não sendo
totalmente acríticos, os jornais narraram uma história onde, “a maior parte
(…), tanto no Reino Unido como na América, assumiu a posição implícita
de que o homem activo havia agido, uma vez mais, fazendo um enorme
favor às mulheres passivas” (O’Brien, 1979, p. 61). O mesmo espanto e
também preocupação encontraremos em outras notícias posteriores, como
mostra Cristina Ponte (2002) na sua análise das notícias internacionais do
nascimento de Adam Nash. As formas narrativas, o uso das citações e a
contextualização nacional são estratégias jornalísticas que a sua análise
explora, delimitando “um território a estudar, onde a simples dramatização
e a canalização para o ‘interesse humano’ pode constituir uma limitação
à necessária contextualização e problematização política, cultural e social
das questões na esfera pública” (Ponte, 2002, p. 82).
Pelo seu lado, os cientistas foram tomando consciência da importância
da sua imagem pública e progressivamente foram alterando o modo como
se relacionam com a imprensa. Hoje, refere Van Dyck (1995, p. 46), “a
informação tornou-se um bem valioso para os cientistas, ou mais
precisamente, para os investidores no campo da saúde”. Daí, o crescente
profissionalismo com que a ciência se “apresenta” aos e nos media.
O facto de a ciência fornecer aos jornalistas um imenso manancial de
histórias e de o jornalismo ser necessário aos cientistas aproxima os dois
campos. Nesta aproximação, algumas das ferramentas profissionais
parecem fundir-se, nomeadamente no modo como as invenções científicas
aparecem como “factos da vida”, normalmente indisputáveis. A
apresentação dos “factos” e do ideal da objectividade é no jornalismo,
como na ciência, um meio de auto-legitimação que presume a ausência
de um sujeito narrador. Todo o aparato de infografias, imagens e
estatísticas que vemos hoje nos media, quando falamos de saúde, é um
domínio jornalístico especializado que trabalha de muito perto com os
cientistas. O resultado é uma crescente legitimação dos respectivos
poderes: o de fazer ciência “pública” e o de fazer informação “pública”.
Uma análise destes campos implica ir além da análise da superfície
dos textos e o primeiro passo para isso será reconhecer que a cobertura
de saúde não é apenas um canal da transmissão da informação sobre esta,
mas um fórum da construção social de compreensões públicas do risco,
da doença e da saúde e que é central à reprodução de relações sociais e
estruturas que as envolvem (Lupton, 1994b; Wallack, 2003). Neste
aspecto, a investigação indica que a cobertura noticiosa tende a acentuar
uma abordagem médica à saúde, concentrando-se nos esforços dos
médicos e dos investigadores biomédicos, nas necessidades de estilo de
vida individuais e nas respectivas possibilidades “curativas” (Seale, 2003).
Isto resulta na despolitização da saúde, transformando-a num objecto e
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numa responsabilidade individual e não tanto numa questão de acção
colectiva (Hodgetts, Bolam & Stephens, 2005, Hodgetts & Chamberlain,
2003, 2006). Diz Wallack (2003, p. 338):
A importância dos media depende da forma como conceptualizamos a
natureza das questões de saúde pública e portanto das suas soluções (…).
Se os problemas de saúde pública forem examinados como basicamente
enraizados nos comportamentos pessoais que resultam de uma falta do
conhecimento, então os media são importantes porque podem ser um
mecanismo para dar a informação certa às pessoas (…) para promover a
modificação pessoal. Se, por outro lado, os problemas de saúde pública
forem examinados como basicamente enraizados na desigualdade social que
resulta da forma como usamos a política de organização da nossa sociedade,
então os media são importantes porque podem ser um veículo para aumentar
a participação na vida cívica e política e no capital social para promover a
mudança social.
Assim, um dos trabalhos mais citados sobre as representações
populares da infertilidade é o da antropóloga Sarah Franklin, que as
identificou deste modo:
A descrição típica do infértil enfatiza o seu “desespero”, a sua “angústia”
e “sofrimento” e refere-se a elas como as “vítimas de não poder ter
filhos”, os que “não têm filhos contra a sua vontade”, os que “não têm
filhos involuntariamente”, os “que sofrem de infertilidade”. Justapostas
a estes contos do “desespero” aparecem as histórias dos casais felizes que
ganharam a batalha contra a ausência de filhos produzindo um “bebé-milagre” com a ajuda da moderna ciência médica (Franklin, 1990,
p. 200).
Esta “linguagem do desespero”, com frequência usada para caracterizar a busca de concepção por mulheres e casais inférteis, articula-se com
três grandes tipos de discurso que organizam as representações médicas
e mediáticas da infertilidade: o discurso da perda social, do destino
biológico e da esperança médica (Franklin, 1990, 1997). Maioritariamente,
as narrativas sobre casais ou sobre mulheres sem filhos desenvolvem-se
mediante a história do desespero por uma criança e o aparecimento das
novas tecnologias reprodutivas como a sua “solução óbvia”. Deste modo,
estas mesmas histórias normalizam as tecnologias, ignorando as taxas de
insucesso, os custos envolvidos, os processos traumáticos por que a
mulher tem de passar e as questões éticas e morais levantadas. Nas suas
palavras:
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É a perturbação da progressão normal nas vidas da ‘maior parte dos
indivíduos’ que lhes faz ‘sentir que perderam o controle’ e sofrer das
‘ansiedades’ sobre a sua infertilidade. Social e emotivamente, o stress da
ausência de filhos é atribuído ao fracasso na realização dos papéis adultos
convencionais e ao fracasso de ‘fundar uma família’. A causa ‘do desespero’,
noutras palavras, é representada como um fracasso de conformar-se às
normas sociais (Franklin, 1997, p. 91)
E Franklin mais adiante continua:
Neste domínio altamente naturalizado, então, introduz-se a ciência médica,
em nome dos casais estéreis ‘desesperados’ para quem ‘a progressão de vida’
foi mantida refém da injustiça da lotaria da natureza de os tornar incapazes
de conceber. É esta a ligação crítica nas representações de meios de
comunicação populares (Ö) onde o desejo ‘desesperado’ de uma criança
fornece o caminho para ‘a esperança médica de uma cura’ (Franklin, 1997,
p. 92).
Além disso, os media e as explicações médicas invariavelmente
associam a ausência de filhos a casais casados, heterossexuais, deixando
de fora as razões estruturais como o desemprego, os baixos rendimentos,
os cuidados infantis, a preferência sexual ou o estado civil. A “cura” para
a infertilidade, assim, surge nos media mais frequentemente retratada
como tratamento médico e não tanto associada à mudança social
(Franklin, 1990, p. 220-221).
Os discursos dominantes da fertilização in vitro tendem, por outro
lado, a ficar entre dois pólos: a fertilização in vitro como a ciência benigna
dando a mulheres desesperadas (e não aos casais) uma ajuda, e a fertilização in vitro como um pesadelo que ameaça a ordem “natural” da
reprodução para cumprir visões Frankensteinianas (Thorsby, 2004, pp.
2-4). Comummente, o factor de união dos cenários desiguais na percepção
pública é a ideia de que a fertilização in vitro é geralmente “um êxito”
que resulta num nascimento vivo. O que os retratos públicos não reflectem
é a sua “experiência mais mundana, diária” (Thorsby, 2004, p. 6) e a
experiência do insucesso que é significativa com todas as diversas técnicas
reprodutivas, sejam elas a inseminação artificial, a fertilização in vitro, a
transferência intra-tubária de zigotos ou gâmetas ou a injecção
intracitoplasmática.
Jana Sawiki (1991, p. 73) faz notar que muito do discurso das
feministas radicais é demasiado pessimista e unidimensional, demonizando as tecnologias e os homens que as criaram. Por outro lado, ignora
os múltiplos papéis das mulheres e a diversidade de formas como os
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úteros das mulheres podem ser disciplinados e controlados: enquanto
mães, trabalhadoras, donas de casa, parceiras sexuais, etc.. Por isso, são
necessárias mais análises que clarifiquem por que as mulheres acham
essas tecnologias benéficas e é necessário encontrar os lugares de
resistência. As mulheres não são vítimas colectivas das tecnologias e da
instituição médica, nem tão-pouco são simplesmente suas beneficiárias.
Anne Balsamo sugere que
As feministas pensam sobre as tecnologias como formações em e de si próprias
– não como processos isolados ou artefactos materiais (…). Uma das
consequências desta mudança é compreender que haverá menos pressão para
produzir e defender uma avaliação-base de uma dada tecnologia. Isso encorajará
as feministas a pensar de um modo mais complexo sobre as inter-relações entre
os dispositivos tecnológicos, o conhecimento especializado, as práticas científicas, e um contexto cultural mais vasto que é historicamente determinado de
várias formas e materialmente enraizado (Balsamo, 1996, p. 96).
É precisamente esse contexto e as estruturas que lhe estão subjacentes
que formam o quadro de interacção entre os vários intervenientes que
vemos (e não vemos) presentes no espaço público mediático.
Espaço público e tecnologias reprodutivas
Uma perspectiva que concebe a sociedade em termos habermasianos
e que nos pode ser útil para pensarmos o espaço público é a de Graham
Scambler (1987). Numa arquitectura habermasiana da sociedade, o bem-estar social depende de um equilíbrio crítico entre, por um lado, os
processos sociais que reproduzem as tradições culturais, integração social
e a identidade pessoal (o mundo da vida) e, por outro lado, as actividades
relacionadas com operações económicas/produtivas necessárias para a
sobrevivência física (os sistemas). Os sistemas são o lugar da reprodução
material (economia e administração do Estado) por oposição à reprodução
simbólica da vida social, função que compete ao mundo da vida, lugar
da transmissão do conhecimento cultural e da resolução de discordâncias
sobre matérias éticas e normativas. Scambler segue a tese habermasiana
do desequilíbrio causado pela preponderância da racionalidade própria dos
sistemas sobre o mundo da vida. Equaciona, assim, as manifestações
profissionais e institucionais da medicina científica moderna com o
“sistema”, argumentando que a racionalização do sistema na esfera da
saúde e doença, de facto, levou a uma colonização médica do mundo da
vida. Tomando como exemplo principal a “medicalização” do parto, para
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Scambler esta colonização é visível “na mudança da casa para o hospital
como o lugar típico para o parto (isto é, o crescimento do poder
territorial), e na crescente ênfase da gestão activa do trabalho e do parto
(isto é, o crescimento do poder tecnológico)” (Scambler, 1987, p. 175).
No entanto, poderíamos pensar nos mesmos termos relativamente a outras
condições como a menopausa ou a infertilidade: ao serem apropriadas
pelo domínio especializado, técnico e tecnocrático, mais dificilmente se
tornam questões de discussão na esfera pública, onde as questões de
natureza moral e prática poderiam ser equacionadas. A medicina, nestes
termos, torna-se um sistema perito enormemente poderoso situado numa
esfera onde a apropriação das definições médicas não pode ser facilmente
desafiada. Apesar disso, é importante realçar, como o faz Graça
Carapinheiro, que
Quando os saberes profissionais entram em relação nos diferentes contextos
de saúde, fazem-no não só a partir de referências culturais diversas, presas
aos particularismos lógico-formais dos seus saberes e às especificidades
sócio-culturais dos seus modelos normativos de acção, como também o
fazem a partir de posições estruturais diversas na divisão do trabalho, onde
se inscrevem autoridades diferenciadas, poderes desiguais e relações de
trabalho em conflitualidade social (Carapinheiro, 2006, p. 148).
Por outro lado, precisamos de alargar a nossa compreensão dos modos
de circulação e de experiência do saber que são constitutivos de nós
mesmas/os. Giddens (1990) argumentou que, numa sociedade
caracterizada pela reflexividade, a perícia técnica é constantemente
reapropriada pelos agentes leigos, como parte da sua forma de lidar
regularmente com ela. Ninguém se pode tornar perito, no sentido da posse
de pleno conhecimento, em mais do que alguns pequenos sectores do
complexo sistema de conhecimento. No entanto, a interacção com
sistemas abstractos implica que ela seja situada também no mundo da
vida, pela apropriação de alguns dos princípios rudimentares em que os
sistemas se baseiam (Stevenson e Scambler, 2005).
Se entendermos as questões da saúde sexual e reprodutiva como um
domínio de justiça, onde os actores afectados por elas têm uma palavra
a dizer, teremos que reconhecer que a mobilização em torno da desejada
mudança política e estrutural, por avanços substantivos na esfera pública,
só pode ser conseguida pelas políticas dos novos movimentos sociais que
se podem aliar ao activismo, nas fronteiras entre o sistema e o mundo da
vida (Scambler, 1996, p. 578 ).
A circulação de discursos no interior do espaço público pressuporia,
no entanto, um dialogismo de que a comunicação pública de saúde está
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longe, especialmente no que toca à ênfase das campanhas de educação
de saúde. Exercida “de cima para baixo” são facilmente identificados
nesta comunicação traços paternalistas, onde os que têm o conhecimento
médico ou conhecimento de saúde pública – médicos ou outros
profissionais dos cuidados de saúde – percebem o seu papel como
disseminador da mensagem “certa” às massas, para seu bem. Neste
processo, os membros do grande público são muitas vezes considerados
apáticos e ignorantes e a quem é difícil comunicar (Lupton, 1994a, p. 56).
A esta ausência de fluxo comunicativo regular e paritário liga-se outro
factor que faz do espaço público sobre as Novas Tecnologias Reprodutivas
um espaço desigual: a centralidade que nele têm os media. O problema
com esta centralidade é que, segundo uma boa parte da investigação
crítica, os media marginalizam certos interesses e privilegiam outros,
ainda que também se possa argumentar que há mais multivocalidade no
discurso político do que estas análises supõem (Kline, 2006). Ora, isto é
importante porque importa conhecer os contornos de uma aparente
hegemonia que contribui para a manutenção de certos interesses ou para
a afirmação de discursos binários ou de oposição, constituindo, desse
modo, diferenciais de poder social, no privilegiar dos grupos poderosos
e na marginalização dos grupos subordinados.
Essa análise, no entanto, deve contemplar uma compreensão dos media
que, por um lado, dê conta da sua lógica interna, dependente não só de
estruturas económicas como, e sobretudo, de procedimentos profissionais
e que, por outro lado, dê igualmente conta da sua dependência da linguagem
do mundo da vida, de onde os media são enxertados.
Na verdade, não basta estudar as representações mediáticas como algo
que reflecte de modo positivo ou negativo as questões da saúde, mas
também não podemos ignorar que estas mensagens influenciam - muitas
vezes de modo não intencional – os conhecimentos e ideologias públicos
sobre doença e saúde (Kline, 2006). Mais do que procurar visões
“estereotipadas”, “certas” ou “erradas” nos media é importante situar os
discursos neles e por eles produzidos num nexo de vozes com maior ou
menor poder para intervir no espaço público, engendrando desse modo,
em articulação com o discurso jornalístico, focos plurais e alternativos à
mera construção hegemónica de uma certa importância da necessidade da
ciência. Isto é especialmente crucial quando, como no caso das Novas
Tecnologias da Reprodução, estão em causa elevados interesses económicos privados e onde o argumento do “mercado livre” e da “escolha”
(leia-se, o estilo de vida), é com frequência usado para reforçar as
injustiças sociais e as práticas discriminatórias.
Por outro lado, é preciso ainda localizar nesse espaço mulheres e
homens que não são apenas consumidores dos produtos de saúde ou
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consumidores de informação, mas que constroem sentidos de modos
próprios e constitutivos das suas identidades. Assim, quando uma mulher
exige a legitimidade de viver uma vida como mãe sozinha, sem qualquer
relacionamento afectivo ou sequer contacto físico com um possível pai
biológico da sua criança, por exemplo, na verdade está a fazer duas
exigências: por um lado, que lhe seja reconhecido o direito a desenvolver
uma identidade e um modo de vida cultural diferente do da norma familiar
e parental; por outro, que lhe seja concedido o poder material de fazer
essa opção.
O domínio de justiça onde esta exigência de direito reprodutivo se
insere toca, pois, dimensões culturais e materiais. A dimensão pública
normativa da saúde sexual e reprodutiva em geral e das Novas Tecnologias Reprodutivas (NTR) em particular pode, assim, ser entendida à luz
da teoria da justiça de Nancy Fraser, que aborda as práticas normativas
que competem pela legitimidade no espaço público em termos do que ela
chama “reconhecimento” e “distribuição”, isto é, tratando “cada prática
simultaneamente como económica e cultural” (Fraser, 2003, p. 63). Com
efeito, uma análise do que são as questões das NTR, quando colocadas
no espaço público, não se pode limitar a uma perspectiva de justiça
unidimensional, que trate apenas da identidade cultural ou apenas dos
recursos materiais que lhe estão associados e da sua distribuição. Na teoria
da justiça de Fraser, o reconhecimento refere-se às lutas que derivam da
tensão entre normas igualitárias e hierarquias de status e a transposição
para o espaço público das NTR traduz precisamente essa tensão. Assim,
além da dimensão cultural das identidades nas questões da saúde sexual
e reprodutiva que analisaremos de seguida, defendemos que elas dizem
simultaneamente respeito a um bem que deve ser distribuído de forma
equitativa. Isto é, não dizem respeito apenas a uma questão de “escolha”
de um determinado estilo de vida, ou não são apenas uma questão de vida
boa, mas são relativas a direitos que, não sendo respeitados, traduzem uma
forma de opressão e uma subordinação sistémica que é também
económica e de poder. Para as compreender, procuraremos explorar alguns
dos seus contornos paradoxais, centrando-nos nas suas dicotomias para,
enfim, diz Fraser (2003), as derrotar.
A forma como nos organizamos subjectiva e colectivamente constitui
o modo de acesso tanto ao poder discursivo como ao poder político, isto
é, à justiça entendida como distribuição de recursos culturais e materiais.
Para as mulheres, a fragmentação da maternidade tem sido acompanhada de uma desintegração de vozes segundo eixos identitários, como
atrás demos conta. Talvez isso seja inevitável dada a sua pluralidade e
diversidade; mas, precisamente por isso, importa pensar no espaço público
como uma arena útil, constituída por diversos “círculos”, para examinar
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as implicações de uma justiça que articula questões de subjectividade e
autodeterminação com matérias de regulação colectiva. Esta regulação,
nas esferas “formais” de decisão (governos, parlamentos, aparelho
jurídico), necessita dos inputs desses círculos para se constituir como a
base legítima da autodeterminação, encontrando uma forma constitucional
e uma garantia de institucionalização. Um espaço público paritário, por
outro lado, conjuga autonomia e autoridade. Como referem Myra Ferree
e William Gamson: “a autonomia tem que ver com a governação do
género, ou com as formas como a sociedade e o Estado controlam a
autodeterminação das mulheres e homens como indivíduos, e a autoridade
tem que ver com o ‘gendering’ da governação, ou o acesso que os homens
e as mulheres têm à tomada de decisões que regulam a vida comum dos
grupos sociais” (Ferree e Gamson, 2003, p. 37).
O espaço público, nestes termos, implica a inclusão pela participação
e influência sobre o significado da cidadania. Construindo-se a partir da
identificação de uma gramática moral da exclusão, da desvantagem e da
marginalização da vida social e indo simultaneamente além das fórmulas
do universalismo individual, este espaço público articula autonomia com
poder, coloca de um modo explícito as questões da identidade no seu
centro e faz do reconhecimento a principal estrutura da criação de
exigências sobre cidadania e justiça.
Como estrutura de cidadania, o espaço público é o resultado de
constrangimentos e oportunidades para avançar exigências de reconhecimento, alterar práticas de exclusão e realçar direitos participativos que
afectam a redistribuição de recursos. Numa democracia “realmente
existente”, como Nancy Fraser (1992) já lhe chamou, estas dimensões são
equacionadas em torno de questões concretas que trazem à luz formas de
compreensão da subjectividade individual e colectiva e do poder
discursivo que moldam as próprias exigências articuladas publicamente.
Assim é com o domínio das tecnologias reprodutivas, como vimos. Mas
se as elas dividem as mulheres no que toca ao reconhecimento de uma
subjectividade associada ao que essas tecnologias envolvem, o que é
essencial é que sejam criadas condições formais para uma verdadeira
paridade no avanço das exigências.
O discurso dos media é, certamente, uma poderosa forma de moldar
essas exigências, e não pode ser ignorado que ele convoca actores com
lógicas próprias de mediação que não coincidem necessariamente com as
dos restantes actores envolvidos. Apesar disso, não podemos esquecer que
a ligação entre os conceitos de “espaço público” e “espaço público
mediático” é muito forte e complexa, não podendo ser reduzida a dois
domínios interligados simplesmente por correias de transmissão.
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Conclusão
Ao longo deste texto, fomos desenvolvendo a premissa que as
questões reprodutivas (concepção, contracepção, maternidade, fertilidade,
etc.) não são simplesmente explicáveis pela natureza biológica, mas que
adquirem significados através das crenças culturais e se formam pela
acção das instituições sociais, médicas e políticas. Nesta construção
cultural intervêm vários autores que se cruzam no espaço público com as
suas lógicas próprias, construindo publicamente os seus significados.
O lugar privilegiado da visibilidade dessa construção são os media que
ocupam uma posição central no espaço público e que, por isso, são um
alvo preferencial nos estudos sobre o entendimento da saúde. No entanto,
a compreensão da comunicação da saúde não pode limitar-se à análise da
superfície dos textos mediáticos, como se eles fossem apenas o resultado
individual de escolhas jornalísticas idiossincráticas; não pode sequer
limitar-se a julgá-las como mais próximas ou mais distantes de uma
suposta “verdade científica”, ignorando as dimensões políticas e sociais
que, em articulação com outras, produzem esse discurso. Como vimos,
há cada vez maiores ligações entre o discurso jornalístico e o discurso
da ciência que colaboram no sentido de apresentarem ao público uma
informação “distanciada”, “factual” e objectiva. Os contornos dessa
proximidade e também diferença deverão ser explorados a partir de um
conhecimento das lógicas de cada um dos campos sociais. Por outro lado,
é igualmente fundamental interrogar criticamente o significado e
implicações da compreensão pública da saúde no quadro de um espaço
público normativo, entendido a partir das transformações culturais que
caracterizam as sociedades contemporâneas. Os desenvolvimentos na
teoria feminista, sociológica, filosófica, histórica, e antropológica sobre
o corpo como um lugar de controlo e de articulação da subjectividade, o
discurso médico como poder e a medicina como uma instituição do
controlo social têm muito a oferecer à compreensão da dimensão
sociopolítica do encontro médico e das crenças leigas sobre a saúde.
A perspectiva crítica face às Novas tecnologias Reprodutivas assume
uma abordagem publicamente política, interrogando os valores da
biomedicina e concentrando-se na identificação dos factores políticos,
económicos e históricos que formam as respostas culturais aos conceitos
de saúde, doença e tratamento, reconhecendo-os também como produtos
dos sistemas sociais e processos ideológicos. A teoria cultural crítica
mostrou que as formas comuns de conceptualizar a doença ou a ameaça
da doença na sociedade Ocidental incorporam muitas vezes imagens e
metáforas a partir de uma série identificável de discursos que incluem
noções de higiene e asseio, a guerra, a invasão, o medo, a morte, a
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violência, o apocalipse, a masculinidade/feminilidade, a tecnologia/
maquinismo, o desastre e o milagre (Lupton, 1994b). Assim, como diz
Deborah Lupton:
Até a comunicação de saúde como um campo novo e multidisciplinar
reconhecer os recentes desenvolvimentos na teoria social e política, dos media
e estudos culturais, da análise de discurso, e da sua aplicação à comunicação
nos cuidados de saúde, fica destinada a permanecer uma versão derivada,
paternalista, e estreita da educação para a saúde (Lupton, 2004a, p. 64).
É este quadro de compreensão que deve moldar as nossas abordagens
ao discurso social sobre as experiências de infertilidade que são, como
todas as outras experiências, afectadas pelos discursos que as envolvem:
médico, profissional, político, económico e jornalístico, que constroem
uma certa visão dela (Letherby, 2003 , p. 50).
Muitos dos discursos médicos e profissionais que constituem a via
privilegiada de acesso aos media centram-se em definições oficiais
aparentemente neutras e estritamente “científicas”, mas que estão sempre
embuídas de implicações morais (Turner 1996, p. 97). Por outro lado, a
saúde pública contemporânea é hoje também um empreendimento político
e económico que se situa dentro de um discurso que, por um lado,
sublinha as responsabilidades e os deveres que os indivíduos devem
assumir em relação aos seus corpos, em troca do privilégio da cidadania
(Petersen & Lupton, 1996) e que, por outro, faz emergir um “empresário
de si mesmo”. Este é o sujeito de quem se espera que viva a vida de um
modo prudente e planeado, bem informado e atento aos riscos ao corpo
- uma visão profundamente ligada a uma política de distribuição que é
produto do fim do Estado de bem-estar e da crescente confiança nos
mercados para regular os espaços do privado e do público.
É precisamente aqui que, como vimos, entra o segundo elemento da
teoria bi-focal de Nancy Fraser. O foco sobre de quem são os direitos a
proteger e que tipo de organização social é preferido constitui o poder
de inclusão e de exclusão que molda a distribuição de recursos
(económicos e culturais), determinando, desse modo, a configuração das
nossas sociedades.
A transparência com que o discurso liberalizador da saúde e do
“cuidado de si” aparece nos media corresponde, na verdade, a uma forte
opacidade dos mecanismos de poder que se jogam no discurso jornalístico
e nas representações populares que constroem uma dada visão ideológica
da sociedade. Mas esses discursos e essas visões não podem ser
entendidos como o simples produto dos recursos próprios que constituem
o domínio da profissão jornalística. Do mesmo modo, não basta
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simplesmente avaliá-los em termos da sua correcção ou incorrecção face
a um discurso prévio que lhes competia “transmitir”. O discurso
jornalístico concentra em si o espectro maior do espaço público, onde
interagem actores, movimentos sociais, especialistas, leigos, com as suas
experiências e visões do mundo. É nesse espaço que se jogam os direitos,
a dignidade humana, as relações normativas e éticas que nos unem e,
enfim, a nossa própria subjectividade.
As questões da fertilização e da genética em geral têm produzido
um certo manancial de histórias nos nossos media. Mas poderemos
afirmar que existe um espaço público em torno delas? Remoaldo e
Machado (2006) referem como a questão da infertilidade ainda se
mantém bastante invisível no nosso país, não havendo sequer dados
certos sobre a sua extensão em Portugal. Onde estão as vozes das
feministas, das mulheres? Qual o grau da sua inclusão? Quem tem,
afinal, o poder de definir os temas para a sua compreensão pública?
Do ponto de vista feminista, como podemos incluir nele os profundos
dilemas que parecem atravessar, como vimos, as questões da reprodução assistida?
No espaço público os discursos diários são “fornecidos de oportunidades desiguais para exercer a influência” e são “infiltrados pelo poder
administrativo e social e dominados pelos media” (Habermas, 1996, p.
364). Assim, as deliberações públicas diárias dos cidadãos (incluindo a
dos próprios profissionais da saúde, como vimos) podem ser inibidas por
condições e desvantagens estruturais da desigualdade que permitem que
o dinheiro e o poder organizacional levem à manipulação da opinião
pública, facilmente suprimindo ou impedindo a sua re-elaboração e
influência no sistema político.
Por fim, há que recordar as palavras de Nancy Fraser: “‘Na sociedade
em rede’”, diz, “a viragem feminista para o reconhecimento misturou-se
de um modo demasiado confortável com um neoliberalismo hegemónico
que nada mais quer do que reprimir a memória socialista” (Fraser, 2007,
p. 24). Trabalhar pela justiça no espaço público, enfim, significa não
apenas jogar nele os dilemas identitários que nos fragmentam, ignorando
os aspectos materiais da desigualdade, mas identificar as desvantagens
estruturais da desigualdade das mulheres que inibem o discurso público
e as condições de verdadeira paridade que nos podem unir. Essa
identificação é certamente uma das principais tarefas dos estudos
feministas da comunicação.
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