Rio de Janeiro, segunda-feira, 05 de maio de 2008 ENTREVISTA Obstáculos para para o trem-bala Especialista em ferrovias defende que Rio e São Paulo reestrurem primeiro o sistema de transporte local Marcelo Copelli Na última semana, o secretário de Transportes do Rio, Julio Lopes, apresentou na Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados, em Brasília, o projeto de implantação do Trem de Alta Velocidade (TAV) que vai ligar Rio, São Paulo e Campinas. Pelo projeto, a viagem seria feita a até 360 Km/h, entre a Central do Brasil, no Rio, e a Estação da Luz, em São Paulo, em pouco mais de uma hora. Um estudo pouco detalhado feito pela empresa italiana Italplan apontou que os custos seriam da ordem de US$ 9 bilhões e seriam arcados totalmente pela iniciativa privada e investidores internacionais. Além disso, prevê uma demanda anual de cerca de 32 milhões de passageiros. Entretanto, de acordo com o diretor técnico da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e do Instituto Militar de Engenharia (IME), Marcus Quintella, os números passam longe da realidade brasileira. Para ele, as questões são mais complexas do que aparentam. "A Italplan chegou ao ponto de dizer que se tratava de um projeto privado. Não tem como. O transporte ferroviário no mundo inteiro tem subsídios governamentais", afirma. Em relação à demanda apresentada, Quintella garante que a mesma é fantasiosa e irreal. "Não chegaria a oito milhões por ano. É só ver que a ponte aérea não atinge 4 milhões e a ponte rodoviária não apresenta 3 milhões de usuários no mesmo período". Ferrenho defensor das ferrovias, o professor aposta no desenvolvimento através dos trilhos, mas observa que, antes da implantação do projeto, o dinheiro público deveria ser usado para atender as carências das cidades envolvidas no que se refere ao sistema de transportes urbanos locais. "Vamos 'resolver' os problemas entre estados, mas não nas cidades. Tais questões devem ser ou concomitantes ao trem-bala ou antes do mesmo", diz. TRIBUNA DA IMPRENSA - Qual a sua concepção a respeito do projeto governamental de implantação do Trem de Alta Velocidade (TAV) que vai ligar o Rio de Janeiro a São Paulo e a Campinas? MARCUS QUINTELLA - O Trem de Alta Velocidade é um conceito mundial atualmente, já que praticamente a Europa toda é cortada por trens desse tipo, além do Japão, Coréia, entre outros. Só os Estados Unidos que ainda não atuam muito no setor. O projeto na verdade ressurgiu no Brasil, uma vez que o primeiro relativo ao trem-bala data de 1999. Na época, o antigo Geipot (Grupo Executivo de Integração da Política de Transportes) elaborou um projeto que unia Rio, São Paulo e Campinas. Agora, a história surgiu novamente. Inicialmente incluindo Rio e São Paulo e, mais recentemente, voltaram a falar em Campinas. Isso para tentar resolver o problema do tráfego aéreo. Mas a questão não é só essa. O problema é mais complexo. Na época veio uma empresa italiana, a Italplan, que fez uma proposta ao boverno brasileiro. Foi um projeto básico, nada muito detalhado. Apresentou alguns números e convenceu as pessoas que o trem-bala era fantástico para ligar Rio e São Paulo, a um custo de U$ 9 bilhões, criando uma demanda de 32 milhões de passageiros por ano. Comecei a atuar e estudar o projeto, pois já estava fazendo um trabalho no Instituto Militar de Engenharia (IME), onde sou professor de Mestrado em Transportes. Logo vi que isso não existia. Nem na Europa. A França não tem essa demanda toda. No Rio e São Paulo então, jamais. Não chegaria a 8 milhões por ano. É só ver que a ponte aérea não atinge 4 milhões e a ponte rodoviária não apresenta 3 milhões de usuários no mesmo período. É um número irreal. Veja bem, não sou contra o trem-bala, afinal sou um ferroviário, um diretor de uma empresa de trens urbanos e altamente favorável às ferrovias. O problema todo é a maneira que vai ser feito isso aí. Então, um estudo detalhado apontaria fatores de maior complexidade para o desenvolvimento do TAV? Eles (Italplan) criaram essa demanda irreal e começaram fazer a mídia sobre o assunto. Aí as pessoas começaram a pensar "o trem vai nos transportar em 1h30, a um custo de US$ 60 a passagem". Maravilha! Só que a sociedade tem que entender a complexidade da obra. Ela vai ter que ser construída (a obra). Não vamos estar aproveitando uma linha existente, até porque essa é de carga, onde antigamente se fazia aquela romântica viagem no "trem de prata" que ligava Rio-São Paulo e demorava 11h de viagem. Na época se convivia com a carga, e tínhamos que se esperá-la passar. A linha para ser construída exige uma complexidade absurda, porque só em termos de túneis e viadutos nós temos quase 300 quilômetros. Não podemos contornar o morro com rampas. A obra é muito cara e não vai ficar só nas estimativas apresentadas certamente. Além disso, temos o problema da demanda irreal citada. O senhor, então, diria que as propostas e as estimativas apresentadas pela empresa italiana, na época, estariam bem distantes da realidade brasileira? Após várias críticas minhas e de vários especialistas, o bom senso prevaleceu no governo federal que determinou ao BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social ) a assumir o comando dos estudos de viabilidade. Felizmente caiu em um órgão competente, que poderá entrever o que realmente vai acontecer nesse corredor e paralelamente criar a modelagem financeira. A Italplan chegou ao ponto de dizer que se tratava de um projeto privado. Não tem como. O transporte ferroviário no mundo inteiro tem subsídios governamentais. É preciso termos dinheiro público. Em momento algum foi levantada a possibilidade de uma Parceria Público-Privada (PPP) ou a injeção de dinheiro durante a construção e durante a operação. Agora, pelo que parece, o presidente Lula parece estar convencido da necessidade do estudo e tem falado ainda timidamente sobre trem-bala. Está ainda no Ministério dos Transportes, o que eu não acho correto. Acredito que é um projeto que envolve duas grandes metrópoles brasileiras. É um problema de cidades. Não basta transportar Rio-São Paulo-Campinas. Temos que entender que quando "jogarmos" milhares de pessoas por hora nas cidades, vamos ter um problema de integração viária e de transportes de cada uma delas. Imagine só, como podemos usar a Central do Brasil como a estação de trem-bala? Ou seja, fazer conviver um nível de Trem de Alta Velocidade com o trem de subúrbio do Rio. Não temos nenhuma estrutura, um ponto de integração de transporte, um ponto de táxi preparado, o metrô não vai dar vazão, o trem de subúrbio não é o público-alvo, os ônibus ali não têm condição alguma. Temos que repensar isso. Poderia ser lá na Leopoldina, onde está abandonado, na estação da Francisco Bicalho. Seria um centro exclusivo. Em São Paulo tem o caso da Estação da Luz, que também tem que ser revisto e analisado. Assim acontece também em Campinas, onde terá que ser observado o problema da integração. É preciso o gerenciamento com uma visão sistêmica, e não só pontual entre Rio e São Paulo. O senhor acredita que seria possível realizar o projeto sem comprometer recursos do Tesouro do Estado do Rio e de São Paulo? Eu nem vejo a questão como sendo Rio e São Paulo, mas de governo federal. Ambos não têm condição, estão endividados. É dinheiro público federal. O projeto é inviável sob o ponto de vista privado. Afirmo, sem fazer estudo profundo, e o BNDES vai concluir da mesma forma. Outra coisa, a Italplan foi citada em alguns artigos meus em um jornal italiano no que se refere a minha resistência aqui no Brasil sobre o trem-bala. E lá, os próprios italianos criticaram a empresa, mostrando que ela não é uma organização de grande porte na Itália, não tem representatividade e nem experiência em trem de alta velocidade. Felizmente o Brasil não embarcou nessa. Devemos esquecer trem-bala privado, não tem jeito. Não há matemática financeira que viabilize. A sua sustentabilidade operacional dependerá de subsídios governamentais. Mesmo que acontecesse a absurda e fantasiosa demanda anual estimada pela empresa italiana de 32,6 milhões de passageiros, está em xeque a viabilidade financeira do trem-bala brasileiro para a tarifa anunciada de US$ 61 e para os duvidosos US$ 9 bilhões de investimentos. A questão político-partidária entre os estados pode atrapalhar o desenvolvimento do projeto? O governo estadual do Rio saiu na frente dessa luta, representado muitas vezes pelo secretário de Transportes, Júlio Lopes. É um defensor muito forte. Mas ele não vem encontrando muita concordância do governador de São Paulo, José Serra. Ou seja, não há uma união. Acredito que o governo federal é que tem que conduzir o processo. Envolve duas unidades da federação e quem vai ser o líder? Lógico que não vai dar certo, pois temos as questões político- partidárias. A União assumindo, os estados serão parceiros, assim como os municípios. Na sua opinião, o projeto do TAV é conveniente ou se choca com as deficiências atuais das cidades no que se refere aos sistemas de transporte? Volto a enfatizar, sou um partidário das ferrovias. Jamais serei contra qualquer coisa sobre trilhos. Entretanto, particularmente acho que poderiam existir outras prioridades em termos de gastos do dinheiro público no momento. As cidades carecem de sistemas de transportes urbanos locais. Vamos "resolver" os problemas entre estados, mas não nas cidades. Tais questões devem ser ou concomitantes ao trem-bala ou antes do mesmo. Se eu estivesse conduzindo uma política de transportes, primeiro dotaria as duas cidades nesse sentido. Então, seria até uma contradição implantar o projeto sem que antes, ou ao menos, paralelamente, se estruturasse melhor as cidades nesse sentido? São Paulo, a maior cidade da América Latina, só tem 60 quilômetros de metrô. Santiago do Chile tem 80 quilômetros, uma cidadezinha infinitamente menor. A Cidade do México tem 280 quilômetros, Nova York tem 1.000 quilômetros. E com isso, São Paulo está parando. A tendência da velocidade média é de se chegar a 7 Km/h. É um absurdo, inviável. Isso só se soluciona com grandes sistemas de massa, a exemplo do metrô. Agora, no Rio o sistema de transportes urbanos é todo desestruturado, mal conduzido, desintegrado, não tem visão sistêmica, nem abrangência. Um indivíduo que mora em Saracuruna, na Baixada Fluminense, e que vá para o Centro, passa de quatro a seis horas por dia dentro de um meio de transporte, de forma desconfortável e desumana. Isso tudo deveria ser revisto e analisado. É preciso usar o dinheiro público para dotar as cidades de um sistema de transportes que resolva o problema da população. Enquanto isso, mal ou bem, temos um sistema entre as cidades que funciona. Vai ser bonito, a gente chega e faz uma viagem de 1h20 de São Paulo até o Rio, solta na Francisco Bicalho e demora quase o mesmo tempo para chegar no Leblon, por exemplo. E em São Paulo a mesma coisa, o cidadão salta na Estação da Luz e demora 1h30 para chegar em Moema. Em transporte tem que haver visão sistêmica e integração. São palavras chaves. Devido ao fato de o projeto exigir vários anos para que se torne realidade, existe a possibilidade de descontinuidade dos trabalhos, uma vez que os mesmos irão atravessar outros mandatos governamentais. Na sua opinião, o que seria necessário para evitar o fracasso no decorrer do período? É outro problema gravíssimo, o risco da construção. Certamente o empreendedor privado vai questionar a continuidade política de fluxo de recursos. É necessário que seja despido de vaidades nesse sentido, e acredito que se o governo Lula tiver o altruísmo de ser o detonador do processo, não haverá nenhum desmerecimento quanto a isso. O sujeito vai ter que entender que estará fazendo isso para posteridade, para o bem das cidades. Não se pode pensar em dividendos políticos, mas em dividendos sociais. Além disso, caso venha de fato a ser o responsável pelo início do processo, o governo atual tem que disponibilizar as condições orçamentárias para que possa haver uma continuidade por quem quer que venha a assumir futuramente. O projeto até ser implantado definitivamente vai levar uns dez anos. Meu receio é que o trem-bala se torne uma nova Transamazônica ou uma nova Ferrovia do Aço, que foram dois grandes fracassos de projetos no Brasil. Na hipótese de o êxito na implantação do sistema ligando Rio, São Paulo e Campinas, o senhor acredita que os reflexos sobre o setor aéreo seriam representativos ou ainda não é possível fazer tais previsões? É só nos basearmos no que acontece na Europa. Certamente a partir do momento em que é ofertado um transporte de 1h20, sem problemas de intempéries e de tráfego aéreo, a perda da ponte aérea será significativa. Talvez não possamos dizer que a demanda será praticamente zerada, mas a "fatia" abocanhada será bem grande, com certeza. O custo e o tempo serão bem menores. No caso do trem-bala, o indivíduo compra o seu ticket e vai embora, sem nenhuma preparação prévia de check-in ou a necessidade prévia de se chegar uma hora antes. Mas volto a repetir, o trembala tem que estar casado dentro de uma visão sistêmica de transporte entre as duas cidades, porque é muita incoerência chegar e dizer "somos um país que não tem transporte de passageiros em suas cidades, mas tem trem-bala". Tendo em vista as diferenças geográficas entre Rio e São Paulo, o trajeto para execução do trem de alta velocidade irá exigir grande complexidade. Quais serão os grandes desafios? A topografia dos trechos, de fato, é uma grande desafio. A distância rodoviário entre Rio e São Paulo dá cerca de 430 quilômetros pela Via Dutra. As distâncias ferroviárias geralmente são maiores do que as rodoviárias. Mas nesse caso é diferente, é menor. O projeto básico deve ter cerca 400 a 410 quilômetros. A grosso modo falando, é quase em linha reta, com raios muito longos, rampas com inclinação menor, e para isso é necessário muito túnel e muito viaduto, em virtude do tráfego de alta velocidade. Não podemos ter curvas fechadas ou rampas elevadas. Vamos ter que disponibilizar de um traçado que precisa vencer a Serra das Araras, que é o maior obstáculo geográfico que temos ali, por exemplo. Esse é o custo da obra, vencer tais obstáculos. Mas é necessário ir lá ver e analisar os solos, as rochas, porque de acordo com as futuras surpresas o custo pode ser muito maior. Diante de todas as condições que o senhor citou, falar em início das obras já para o próximo ano então seria precipitado? Lógico. Estamos praticamente na metade de 2008. O próprio presidente Lula já falou que talvez até o fim do ano anuncie os estudos que estão sendo feitos pelo BNDES. Só a partir dos estudos consistentes é que ele poderá dizer que existem condições, para então licitar e fazer. Só que uma licitação desse porte abrange no mínimo um ano. Daí até assinar um contrato, se tudo der certo e Deus ajudar muito, em meados de 2010 começaria a obra, e com isso terminaríamos em 2020, se não tivemos problemas políticos e de recursos ao longo da década. Eu, no mesmo período, faria muito metrô e trem urbano. Chegaria em 2020 com a cidade de São Paulo com 200 quilômetros de metrô, e o Rio com outros 100 quilômetros. A história seria outra. E concomitantemente faria o trembala. Mas teríamos recursos para isso? Certamente que não. É um jogo de xadrez político. O que será necessário para colocar o brasileiro novamente nos trilhos? Trem! Passageiros é o que mais temos. A espinha dorsal de qualquer cidade tem que ser o sistema metroferroviário. Precisamos no Brasil de metrô e trem urbano, e a partir daí conseguiremos desenvolver e estruturar. O problema do transporte público no país passa por um negócio chamado trilho urbano. Mas, saliento, não adianta também colocar trem se não tiver integração, com alimentação dos novos transportes. Temos que pensar nisso. Ronaldo se diz "arrependido" de episódio com travestis Voltar País/Cidades