Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno 1517 Madrid, fol. 1562

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HISTÓRIA DA LÍNGUA P ORTUGUESA
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(IVO
CASTRO)
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Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno
(ed. IS Révah, Rech. sur les oeuvres de Gil Vicente. I: Edition critique du premier «Auto das Barcas», Lisboa, 1951).
1517
daquesta
eu so
araviara
nossa
soma
samicas
entra
nelo
nõ
era má
pero vinagre
Madrid, fol.
daquela
eu soo
naviarra:
vossa
=
samica
entrai
nela
não
iera má
1562 Copilaçam, fol. 45v
Houaiss atribui esta forma a 1517
erro de 1562
em suma
talvez
omissão de 1562
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Sobre variantes linguísticas e textuais
[Paul Teyssier, A Língua de Gil Vicente, Lisboa, INCM, 2005: 20-1]
«1) Toda uma série de grafias e de formas são "remoçadas" pela Copilaçam. Enquanto
a edição de Madrid emprega, por exemplo, 5 vezes o verbo leixar (com l) e ignora a
forma deixar, a Copilaçam escreve 2 vezes leixar e 3 vezes deixar, única forma que
sobreviveu na língua moderna. O mesmo aconteceu com a primeira pessoa do
presente do indicativo do verbo ser: em 8 casos a forma "recente" sou não se encontra
uma única vez na edição de Madrid e no entanto é empregada cinco vezes na
Copilaçam. De igual modo alguns arcaísmos característicos, como a grafia vinraa em
vez de viraa, aparecem na edição de Madrid e são suprimidos na Copilaçam.
Observaremos, entretanto, que não se pode exagerar o alcance de comparações
pormenorizadas feitas assim de termo a termo. O português do século XVI é uma
língua em plena evolução: a mesma palavra é muitas vezes atestada em duas, três ou
mesmo quatro formas diferentes: dezia-dizia, avesso-averso-adverso, assossegar-sossegarassessegar-sessegar, etc. Pode a edição de Madrid dizer fegura, apercebida, ainda, Gracia e
a Copilaçam nos mesmos lugares figura, percebida, inda, Garcia, mas tais oposições não
têm nenhuma significação particular no que respeita à autenticidade do texto. Esta
reserva, todavia, não deve fazer perder de vista a importante constatação que
acabámos de fazer: a Copilaçam rejuvenesce em certa medida a língua de Gil Vicente.
2) Este rejuvenescimento, no entanto, diz respeito sobretudo às palavras e às formas
que pertenciam à língua normal e não àquelas que caracterizavam a maneira de falar
de algumas personagens particulares. Assim, leixar-deixar, dezia-dizia, etc., são
variantes destituídas de significação estilística e o emprego de uma ou de outra era
muito certamente inconsciente. Os copistas e os impressores substituíam uma forma
por outra sem qualquer prevenção e, com o passar do tempo, verificou-se assim um
deslizar geral e espontâneo de toda a língua. Porém, quando o Parvo da Barca do
Inferno diz samica(s), quando a Alcoviteira diz dizede em vez de dizee-dizei, quando o
Judeu diz Deu em vez de Deos, a Copilaçam não moderniza nem corrige as lições da
edição de Madrid: todas estas formas lá se encontram.»
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Bernardim Ribeiro, Menina e Moça, ed. Ferrara 1554
fol. 4v-5r
Neste monte mais alto de todos que eu vim buscar pela soidade deferente dos outros
que nele achei, passava eu minha vida como soía, ora em me ir pelos
fundos destes vales que o cingem ao derredor, ora em me pôr do mais alto dele a
olhar a terra como ia acabar ao mar, e depois o mar como se estendia logo após ela,
para se ir acabar onde o ninguém visse. Mas quando vinha a noute, aceita a meus
pensamentos, que via as aves buscar os pousos, ũas chamarem as outras, parecendo
que queria assossegar a terra mesma, então eu triste com os cuidados dobrados dos
com que amanhecera, me recolhia para minha prove casa, onde só (Deus me é boa
testemunha de como as noites dormia) assi passava eu o tempo. Quando ũa das
passadas pouco haveria, alevantando-me eu, vi a menhã como se erguia fermosa,
estender-se graciosamente por entre os vales e deixar indo os altos, que já o Sol,
alevantado até os peitos, vinha tomando posse nos outeiros, como quem se queria
senhorear da terra. As doces aves, batendo as asas, andavam buscando ũas as outras.
Os pastores, tangendo as suas frautas e rodeados dos seus gados, começavam
d'assomar já pelas semeadas. Pera todos parecia que vinha aquele dia assi ledo. Os
meus cuidados sós vendo como vinha o seu contrário, ao parecer poderoso,
recolherom-se a mim, pondo-me ante os olhos pera quanto prazer pudera aquele dia
vir, senã fora tudo tã mudado; por onde o que fazia alegre todas as cousas, a mim só
teve causa de fazer triste. E como os meus cuidados, para o que tinha a ventura já
ordenado, me começassem d'entrar pola lembrança de algum tempo que foi, e que
nunca fora, ensenhorearam-se assi de mim, que me nã podia já sofrer a par da minha
casa, e desejava ir-me por lugares sós onde desabafasse em suspirar. E ainda bem nã
foi alto dia, quando eu (parece que o senti) determinei ir-me pera o pé deste monte
que de arvoredos grandes e verdes ervas e deleitosas sombras cheio é, por onde corre
um pequeno ribeiro de água de todo ano, que nas noites caladas o rugido dele faz no
mais alto deste monte um saudoso tom que muitas vezes me tolheu o sono a mim.
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Como os gramáticos viam a língua
Língua de homens assentados
é muito de culpar este defeito das calidades serem diversas, nas quais tem domínio as
condições do céu e terra em que vivem os homens: vem que uas gentes formam suas vozes
mais no papo, como caldeus e arábigos, e outras nações cortam vozes, apressando-se mais em
seu falar: mas nós falamos com grande repouso, como homens assentados. E não somente em
cada voz per si, mas também no ajuntamento e no som da linguagem pode haver primor ou
falta antre nós. Não somente nestas, mas em muitas outras cousas tem a nossa língua
avantagem; porque ela é antiga, ensinada, próspera e bem conversada, e também exercitada
em bons tratos e ofícios. (Fernão de Oliveira, Gramática da linguagem portuguesa, 1536, A2v-A3)
Entre-Douro-e-Minho
A mi muito me contentam os termos que se conformam com o latim, dado que sejam antigos, ca
destes nos devemos muito prezar, quando não acharmos serem tão corrutos que este labéu lhe faça
perder sua autoridade. Não somente os que achamos per escrituras antigas, mas muitos que se
usam antre Douro e Minho, conservador da semente portuguesa, os quais alguns indoutos
desprezam, por não saberem a raiz donde nacem. (João de Barros, Gramática da Língua Portuguesa,
Lisboa, 1540, 56v)
Português e Galego
... e das de Galliza e Portugal, as quaes ambas eram antigamente quasi uma mesma, nas palavras, e
nos ditongos, e pronunciação que as outras partes de Espanha não tem. Da qual língua Galega a
Portuguesa se aventajou tanto quanto na cópia e na elegância dela vemos. O que se causou por em
Portugal haver Reis e corte, que é a oficina onde os vocábulos se forjam e pulem e donde manam pera
os outros homens, o que nunca houve em Galiza. Era a língua Portuguesa, na saída daquele cativeiro
dos Mouros, mui rude e mui curta e falta de palavras e cousas, por o mísero estado em que a terra
estivera. (Duarte Nunes de Leão, Origem da língua portuguesa, Lisboa, 1606, 32)
Variação diastrática
tornemos a falar das dições alheas, as quais também com algum trato vem ter a nós, como de
Guiné e da Índia, onde tratamos, e com arte, não somente quando a arte vem novamente a terra,
como veo a da impressão, mas também nas artes já usadas quando de novo usam algum
costume, os alfaiates em vestidos, e os sapateiros em calçado, e os armeiros em armas de novas
feições, e assi os outros, porque os homens falam do que fazem e, portanto, os aldeãos não sabem
as falas da corte, e os sapateiros não são entendidos na arte do marear, nem os lavradores d’Antre
Douraminho entendem as novas vozes que est’ano vieram de Tunes com suas gorras.
(Fernão de Oliveira, Gramática, C5v)
Variação diatópica
As dições usadas são estas que nos servem a cada porta (como dizem), estas, digo, que todos
falam e entendem, as quais são próprias do nosso tempo e terra. E quem não usa delas é
desentoado, fora do tom e música dos nossos homens d’agora. (...) E por em de todas elas ou são
gerais a todos, como Deus, pão, vinho, céu e terra, ou são particulares: e esta particularidade ou se
faz antre ofícios e tratos, como os cavaleiros que têm uns vocábulos e os lavradores outros, e os
cortesãos outros, e os religiosos outros, e os mecânicos outros, e os mercadores outros; ou
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também se faz em terras esta particularidade, porque os da Beira têm uas falas e os d’Alentejo
outras. E os homens da Estremadura são diferentes dos d’Antre Douro e Minho, porque assi
como os tempos, assi também as terras criam diversas condições e conceitos. E o velho, como tem
o entender mais firme com o que mais sabe, também suas falas são de peso e as do mancebo mais
leves. (Fernão de Oliveira, Gramática, D2r-v)
A língua companheira do Império
O estado da fortuna pode conceder ou tirar favor aos estudos liberais, e esses estudos fazem mais
durar a glória da terra em que florecem. Porque Grécia e Roma só por isto ainda vivem: porque
quando, senhoreando o mundo, mandaram a todas as gentes a eles sujeitas aprender suas
línguas, e em elas escreviam muitas bõas doutrinas. E não somente o que entendiam escreviam
nelas, mas também trasladavam par’elas todo o bom que liam em outras. E desta feição nos
obrigaram a que ainda agora trabalhemos em aprender e apurar o seu, esquecendo-nos do nosso.
Não façamos assi, mas tornemos sobre nós, agora que é tempo e somos senhores, porque milhor é
que ensinemos a Guiné ca que sejamos ensinados de Roma, ainda que ela agora tevera toda sua
valia e preço. E não desconfiemos da nossa língua, porque os homens fazem a língua e não a
língua os homens. (Fernão de Oliveira, Gramática, A3v-A4)
Estilo polido (culto)
se não deve ouvir uma seita de homens, que querem que o que se fala ou escreve seja per
palavras costumadas e antigas e que os homens do vulgo entendam, sem inovar vocábulos, que é
razão de homens de pouco discurso e sem erudição. Porque se essa regra se guardara e não
renováramos vocábulos, ou não os tomáramos emprestados quando os não temos nossos,
estivera a língua Portuguesa, e as outras mais de Espanha, na torpe rudeza em que a princípio
estavam (...) e os que daquela opinião são tanto monta como quererem que, despois de achado o
trigo e os manjares que hoje temos, tornemos a comer a lande e bolotas e frutos silvestres, como a
princípio dizem os Poetas que faziam os primeiros homens, e julgarem por melhor a poesia
antiga dos Portugueses e Castelhanos daqueles tempos antigos, que a polidíssima destes, que se
pode igualar a Grega e Latina. (Duarte Nunes de Leão, Origem, 141)
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Carta de D. Gonçalo da Silveira, de Cochim, Janeiro de 1557
Bibl. Ajuda, 49-IV-50, 49v-54r
A. Silva Rego, Documentação para a história das missões do Padroado Português do Oriente, VI
(Índia), Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1951
... E assi como os homens que primeira vez se viram na hora da morte lhes parece que
nunqua ouviram fallar nella, assi quem se vio em aquelles golfãos não lhe alembrava cousa
que lhe tivessem dito da verdade e terror presente, e sua, que passada, nem bem imaginar se
pode. Assi, e sem mais nem menos, a angustia e agonia em que se vem os passajeiros desde
occidente ao oriente, em que estamos os que nos vemos fora dela (ainda que o trabalhemos)
nunqua a podemos vivamente representar comnosco mesmos, quanto mais pintar sem errar
o mais a quem esta em Portugal e em Lisboa e tão seguro de navegar se não for em
baregatim1 de Lisboa para Almada.
Nunqua se virão suores de morte como os que se suão na costa da Guine. Nunqua se virão
membros frios como os que cortão os ventos de Boa Esperança. Nunqua se virão desmaios
mortaes, como os que se passão nos balanços que as naos fazem neste cabo. Nunqua se virão
dar golpes na vida, como as machadadas que dão os mares neste cabo. Nunqua se viram
termos de morte e tão pranteados, como trazem consigo os pes de ventos que fuzilam2 neste
cabo. Nunca se vio morrer homem cercado de termores e saudades do que neste mundo
deixa e no outro se spera, como os que se vem nesta carreira, vendo muytos mortos e
lançados ao mar e todos os outros, antre os quaes ficam velhos ainda para morrer de fome,
de sede, de doenças gravissimas e de perigos do mar innumeraveis, de baxos, de penedos, de
costas, de encontros de naos e de sorvo de mares. Vossa Reverencia imagine como se pode
escapar a morte que spera a tantos portos quantos palmos ha de Portugal a India. De modo
que se pode dizer que tantas vezes morrem os que fazem esta viajem, quantos pontos de
morte vem claramente que ande3 passar, tendo tão provado ficar em algum delles.
... Assi fiz o principio em Chaul e digo a Vossa Reverencia que parecia a devação de Lisboa
tão frequente e de tanta gente de toda a parte; parecerão-me na devoção com os do Porto que
eu tenho por mais e melhores devotos que os de Lisboa.
He a gente daquella cidade muy honrada e riqua e certo que me espantei de ver a multidão
de homens e mulheres portugueses naquella terra, gente que não se contentava com ouvir,
mas com vos buscar e perguntar muy particularmente e notar os avisos de devoção e
salvação.
... A [festa] da tarde, não foi muito menor porque se guardou para ella hum solemne baptismo
em que eu baptizei quarenta e cinco christãos; delles homens, delles molheres, meninos e
mininas. E tais avia que estavam dormindo, mamando nas mães e os estavamos perfilhando com
Deos e quando vinha para fazer as cerimonias, que lhes era necessario tomar-lhe a mama hum
poucochinho, elles a chorar e Deos a santificar.
bragantim (< it. brigantino), veleiro de vela quadrada,
trovejar: Para Houaiss, a 1ª atestação é 1572: «Mas para o Ceo Vulcano fuzilando, / A frota co as
bombardas o festeja» Lus. II, 106
3 hão de
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