Integralidade nas Políticas de Saúde Mental

Propaganda
Integralidade nas Políticas de Saúde Mental
Domingos Sávio Alves
Abordaremos a integralidade no contexto do que chamamos de “os novos paradigmas da
atenção em saúde mental”. Ao discutir a integralidade, levando em conta o referencial acima
delineado, vamos trabalhar a natureza do cuidar e duas questões que obrigatoriamente
compõem essa natureza: oferta/seleção e inclusão/exclusão.
Iniciaremos exemplificando a prática usual a ser superada, pois nela a seleção é o critério
básico da oferta de programas: até há pouco tempo, para ser atendido no Instituto dos
Cegos, qualquer outra incapacidade adicional (por exemplo, ser portador de deficiência
auditiva ou ser paraplégico) era impeditivo de inclusão nos programas daquela instituição,
pois para eles existem o Instituto de Surdos e a ABBR. Se o paciente é psicótico e, além
disso, está em cadeira de rodas, conseqüentemente não tem possibilidade de acompanhar
os diversos programas existentes nos ambulatórios – em geral estes têm escadas ou não
têm banheiros adaptados, pois, afinal, é um serviço para psicóticos. Ou seja, a presença de
várias deficiências ou desvantagens torna o cliente não selecionável para o “programa” e
ainda hoje o critério de exclusão é o hegemônico, pois a premissa de política pública
aplicada durante várias décadas somente leva em conta “um” problema.
Essas práticas têm como base a forte determinação nosológica ou taxonômica das
intervenções em saúde, sobretudo a partir da influência norte-americana na formação dos
profissionais de saúde, o chamado modelo flexneriano, implantado a partir dos anos 40 do
século passado. Portanto, seleção e exclusão caminham juntas.
No final da década de 80 e início de 90, nós trabalhamos com outros paradigmas
relacionados com atenção aos portadores de transtornos mentais, substituindo
intencionalmente a palavra “tratar”, que sempre pressupõe uma nomeação diagnóstica, por
“cuidar”, termo mais adequado que incorpora vários “problemas” a serem superados,
negando, a princípio, critérios habituais de seleção e/ou exclusão. A integralidade, portanto,
lida necessariamente com os seguintes conceitos: inclusão, exclusão, seleção e cobertura.
A saúde mental é o primeiro campo da medicina em que se trabalha intensiva e
obrigatoriamente com a interdisciplinaridade e a intersetorialidade. Quando falarmos das
experiências inovadoras, esses dois conceitos estarão juntos. Para entendermos como
chegamos até este ponto, colocaremos uma sistematização, menos preocupados com o
rigor científico, mas com elementos conceituais e práticos que determinaram uma ou outra
organização dos serviços e suas conseqüentes formas de intervenção:
Assistência Psiquiátrica – Modelos de Atenção – Período Pressupostos Serviço
Até os anos 70 Preventivismo Simplificado Especialização Hospícios
Anos 70 – 80 Especialização Hospícios ou AMB Setorização Especializados
Anos 80 – 90 Racionalidade Porta de entrada Regionalização Rede serviços regionais
Hierarquização Referência / contra-referência Intensidade
Anos 90 Território Responsáveis regionais Diversificação Único / integral
Complexidade Rede social
Tendência no ano 2000 Inversão modelo PSF / PACS Cidade saudável Sem serviço
Internação domiciliar
Por essa sistematização, observa-se que as premissas às quais nos referimos, tais como
seleção e conseqüente exclusão, permeiam as políticas para a área de saúde mental, desde
a incorporação da loucura como objeto da medicina, ocorrida no século XVIII, até o início
1
dos anos 90. Vejam como as palavras de ordem são: especialização, racionalidade,
hierarquização dos problemas, intensidade.
A partir da década de 90, já sob forte influência dos postulados da Psiquiatria Democrática
italiana e de sua então estimulante experiência de substituição dos hospitais psiquiátricos,
outros pressupostos definem as políticas: noção de responsabilidade territorial / regional e
oferta diversificada de programas, entendendo que os problemas são complexos e
“diversos”. Tornaram-se assim ultrapassadas, em tese, as premissas de seleção e exclusão.
Para entender melhor a necessidade dessa ruptura, levada a cabo inicialmente na já referida
exitosa experiência italiana, deve-se mencionar, mesmo que de maneira superficial e
sucinta, o surgimento da Psiquiatria enquanto especialidade da medicina. Como já foi dito,
deu-se no século XVIII, no auge do Positivismo e da influência da recente identificação da
bactéria por Pasteur.
Jean Tenon, influente teórico das Humanidades, onde se incluía a Medicina de então,
aplicou aos portadores de transtornos mentais a mesma máxima aplicada às bactérias: “é
preciso isolar para conhecer e conhecer para intervir”. Estava fundado o hospício e com ele
a Psiquiatria.
As diversas iniciativas, a partir do pós-guerra, no Ocidente, de substituir ou diminuir o papel
do hospital psiquiátrico, passaram pela Antipsiquiatria, pelo preventivismo, pelas
comunidades terapêuticas e finalmente pelos pressupostos da reforma italiana, que
sinteticamente poderiam ser assim colocados: a incapacidade da Psiquiatria, enquanto
campo do conhecimento, de dar conta isoladamente, da questão da loucura; da
inadequação do hospital psiquiátrico enquanto dispositivo da intervenção técnica e o direito
dos portadores de transtornos mentais de terem cidadania reconhecida (opinar no
tratamento, negar-se a procedimentos violentos e administrar seu destino).
Esse novo paradigma configurou as políticas de saúde mental de vários países ocidentais a
partir da década de 80, e na América do Sul exerceu forte influência, manifestada na
Conferência Regional para Reorientação da Assistência Psiquiátrica no Continente,
patrocinada pela Organização Pan-Americana da Saúde e realizada em Caracas, em
novembro de 1990.
O seu produto mais conhecido e importante foi a Declaração de Caracas, uma conclamação
aos governos e demais atores do campo da saúde mental a promoverem radicais mudanças
na assistência, condenando o papel segregador e iatrogênico do modelo tradicional de
tratamento, denunciando os freqüentes martírios no interior dos hospícios e as legislações
incompatíveis com o grau de avanço das conquistas de várias minorias no campo do Direito
Civil.
Essas recomendações da OPAS tiveram conseqüência em diversos países, dentre eles o
Brasil, que além de já vir passando por recentes experiências inovadoras, teve novo
ordenamento jurídico do setor saúde, a partir de 1990, com a promulgação da Lei Orgânica
da Saúde.
E onde entra a questão da integralidade? Entram aqui questões de natureza ideológica e de
natureza técnica. A primeira diz respeito à condenação da segregação, por ferir direitos à
convivência e ao livre arbítrio, e a segunda, ao negar o isolamento como instrumento
terapêutico, paradigma essencial à sobrevivência do hospício.
A negação do papel do isolamento, aliada à compreensão de que o que deve ser cuidado é
o indivíduo e seus problemas e não somente o seu diagnóstico, determinam um olhar
“integral” da situação. A pergunta que se segue é: que modelo adotar para atender à
integralidade?
2
Temos acompanhado a formulação proposta por Benedetto Saraceno, diretor do
Departamento de Saúde Mental da OMS, segundo a qual ele insiste na necessidade de se
superar a idéia de modelos e trabalhar com premissas. A que melhor define a qualidade de
um programa ou projeto em saúde mental é a decorrente do conceito de acessibilidade, que
ele assim sistematiza:
ACESSIBILIDADE
Geografia: local; fluxo viário; barreiras físicas ou outras
Turnos de funcionamento: serviço único ou integrado
Menu de programas : assistência; reinserção; lazer; hospitalidade; trabalho
A integralidade está implícita nos três indicadores propostos por ele, com destaque no menu
de programas, onde assistência é apenas um dos itens obrigatórios de qualquer proposta
abrangente, cidadã e ética.
Desde 1991, os regulamentos da Política Nacional de Saúde Mental – Portarias n. 189/91 e
224/92 – definem claramente a integralidade como componente obrigatório dessa política e,
mais recentemente, a Lei Federal que reorienta a assistência psiquiátrica – n. 10.216, de
06/04/2001, em seu artigo 4º, §2º – determina que: “O tratamento em regime de internação
será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos
mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de
lazer e outros”.
Um exemplo bem claro do que entendemos como integralidade é o que acontece no Projeto
de Volta à Cidadania, compartilhado entre o Instituto Franco Basaglia e a Funlar, órgão da
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social do Rio de Janeiro. São 34 crianças
portadoras de graves deficiências físicas e mentais, com graus variados de dependência de
cuidados, morando em três casas no Grajaú e que participam de oficinas na Funlar, em Vila
Isabel, ou em outras instituições; freqüentam ambientes com atividades recreativas, culturais
e/ou esportivas na Mangueira; algumas estudam e outras não. Estão matriculadas em
escolas comuns, pois não as colocamos em escola especial. Para nós, “especial” é a
criança; não consideramos a escola especial, em princípio, como lugar adequado para
qualquer tipo de pessoa. A escola normal é que deverá criar uma atividade especial. Se
valorizarmos a opção pela “escola especial”, vamos ter escola para todo tipo de problema
(mais detalhes nas Sugestões de Bibliografia).
Consideramos componentes indissociáveis da integralidade: a intersetorialidade e a
diversificação. Se nos propusemos a lidar com problemas complexos, há que se diversificar
ofertas, de maneira integrada, e buscar em outros setores aquilo que a saúde não oferece,
pois nem sempre lhe é inerente.
Por isso, o dispositivo estratégico mais eficiente de substituição do hospital psiquiátrico têm
sido os Centros ou Núcleos de Atenção Psicossocial (CAPS/NAPS), também chamados de
serviços comunitários de saúde mental, que por e para serem comunitários, têm que atender
aos postulados de acessibilidade, e portanto, de qualidade, sugeridos por Saraceno. Se
estes são comunitários, se inserem em determinada cultura, em território definido, com seus
problemas e suas potencialidades, arena onde as “crises” devem ser enfrentadas, resultado
que são, geralmente, de fatores do indivíduo, de sua família, eventualmente de seu trabalho,
e seguramente de seu meio social.
A diversificação de programas é fundamental para se acolher alguém de forma integral, já
que, com um menu variado e diversificado de possibilidades, reduz-se muito a tentação da
seleção.
3
Aqui os maiores problemas são, além da forte influência do modelo tradicional de cuidado, a
grande dificuldade dos profissionais para renunciarem a “um” papel específico – afinal são
especialistas, e compartilhar saberes é exercício contínuo e muito difícil.
As principais estratégias para superar esse desafio têm sido a disseminação de cursos de
especialização em saúde mental, tentando suprir aquilo que não se aprende comumente na
graduação e nas pós-graduações de formato clássico, além da supervisão permanente e
sistematizada nos serviços comunitários de saúde mental, locais privilegiados para
incorporação de um conhecimento de fato “coletivo”.
O que temos de novo e de mais radical, não especificamente na saúde mental, mas no
campo das políticas públicas de saúde, é a implantação do Programa de Saúde da Família.
Por isso a referência, em nossa sistematização dos períodos e respectivos modelos de
atenção à “Inversão de Modelo” e “Ausência de Serviços”, à tendência imaginada para este
século. De fato, propõe-se aquilo que desde o final da década de 80 era consenso entre os
sanitaristas a mudança da lógica do modelo assistencial, do coletivo para o individual.
Não podemos cair na tentação de considerar que os problemas agora equacionados, do
ponto de vista da saúde pública – pois apesar de ser um modelo defensável, justo
socialmente, dirigido aos mais carentes e de financiamento decente, tanto no que se refere
aos insumos, como farmácia básica, quanto à valorização profissional – devem ser
entendidos como estratégia de reorganização da assistência.
Qualquer simplificação em relação a este Programa, uma expectativa demasiado otimista,
ou sua cristalização como modelo e não como estratégia, pode levá-lo a um retumbante,
caro e frustrante fracasso. Seria também ingênuo apegar-se à terminologia do Programa,
pois há que se lembrar sempre que essa “família” nem sempre existe, ou, quando existe,
seu núcleo pode estar esfacelado, mas isto deve ser compreendido e não pode se constituir
em empecilho, mas em desafio a ser superado. Os resultados das experiências mais
duradouras do PSF – mais de dois anos – já são visíveis, mudando para melhor vários
indicadores sanitários (ver Sugestões de Bibliografia).
No campo da saúde mental, alguns sanitaristas e especialistas ainda divergem quanto à
pertinência e eficácia do Programa. O consenso dificilmente será atingido, mas há um
significativo avanço de sua compreensão enquanto estratégia, e que, para a área de saúde
mental não há nenhuma contradição com os postulados, hoje hegemônicos, entre os
formuladores da política da Reforma Psiquiátrica. No PSF estão contempladas, de forma
quase insuperável, pois inerentes a ele, a integralidade e a noção do problema enquanto
conjunto, aí incluídos o indivíduo, sua família e seu meio social. Então, onde estão as
divergências?
Aqui temos dois tipos de problema: o primeiro, e mais importante, diz respeito ao formato
como se organiza o PSF: tende a repetir o já tradicional modelo médico biológico, com uma
hierarquia na relação de conhecimento e “mando” tão nefasta à prática da saúde pública. E,
no campo da saúde mental, a superação dessa prática é conquista relativamente recente e
nos é muito cara, pois compartilhar saberes, renunciar ao mandato médico, naquilo que ele
tem de pior, e trabalhar de fato em “equipe multiprofissional”, tem sido a marca do cuidar nos
serviços comunitários de saúde mental. Portanto, não é propriamente uma divergência, mas
uma desconfiança legítima.
Pensamos que é uma questão superável: haverá PSFs e PSFs e, em alguns, prevalecerá,
de fato, o modelo tradicional, hierárquico e biológico. O Programa, no entanto, é, como
concebido e formulado pelo Ministério da Saúde e vivido nos diversos municípios, uma
estratégia de agregação de conhecimentos. Além disso supõe, para seu sucesso, que tenha
um olhar “integral” do problema, do contrário não faria sentido ser local, territorial e portanto,
comunitário.
4
Um segundo problema tem sido levantado e nos parece, salvo grande engano, irrelevante: a
possibilidade de se criar uma demanda impossível de ser atendida, pois ao se entrar “nas
famílias”, problemas psicológicos de toda ordem serão encontrados, e do ponto de vista
ético, deverão ser atendidos.
Inicialmente, este não tem sido o relato da maioria das experiências em curso (ver
Sugestões de Bibliografia) e, por outro, há diversas formas de se lidar com os chamados
“problemas menores”, pois o conhecimento da Psicanálise, da Farmacologia e de outro
instrumental não quer dizer que somente estes possam e devam ser usados. Há que se ter
grande cuidado para não se psicologizar o cotidiano, tentação que vem sendo vencida nos
últimos anos.
Cabe novamente uma sugestão de Benedetto Saraceno: ao se organizar um programa de
saúde pública, há que se priorizar recursos, na lógica, de que “quem mais precisa é quem
deve receber primeiro”. Isto quer dizer que a avaliação dos problemas tem que ser feita a
todo momento, mas que alguns eventos devem merecer, por sua gravidade e custos social e
financeiro, prioridade. Cita, nesta ordem: psicoses, dependência química, grave
dependência institucional e deficiência mental.
Está então colocado para nós um bom desafio: nos incorporarmos ao PSF, valendo-nos do
que ele tem de inovador e reorganizador da assistência e contaminá-lo com nossa prática
exitosa de compartilhar saberes e olhar os problemas no conjunto, para cuidar de forma
integral.
Novos Sujeitos, Novos Direitos: O Debate em Torno da Reforma Psiquiátrica
Cad. Saúde Pública v.11 n.3 Rio de Janeiro jul./set. 1995
Castel relata que Jules Falret, encarregado pela Sociedade Médico-Psicológica de Paris de
visitar a aldeia belga de Gheel, onde alienados trabalhavam e habitavam em harmoniosa
convivência com os camponeses, declarou na reunião de 30 de dezembro de 1861: " Fica-se
verdadeiramente estupefato e assustado quando se vê os camponeses deixarem circular
livremente os alienados no seio de suas famílias, de suas filhas e das crianças, confiar-lhes
armas e ferramentas. (...) O sentimento que predomina em Gheel (...) é a confiança, na
verdade exagerada, nos alienados e em seu caráter inofensivo" (Castel, 1978: 254). Mas,
anteriormente, o próprio Pinel já afirmava: "Em geral é tão agradável, para um doente, estar
no seio da família e aí receber os cuidados e as consolações de uma amizade tenra e
indulgente, que enuncio penosamente uma verdade triste, mas constatada pela experiência
repetida, qual seja, a absoluta necessidade de confiar os alienados a mãos estrangeiras e
de isolálos de seus parentes" (Castel, 1978: 86).
A doença mental, objeto construído há duzentos anos, implicava o pressuposto de erro da
Razão. Assim, o alienado não tinha a possibilidade de gozar da Razão plena e, portanto, da
liberdade de escolha. Liberdade de escolha era o prérequisito da cidadania. E se não era
livre não poderia ser cidadão. Ao asilo alienista era devotada a tarefa de isolar os alienados
do meio ao qual se atribuía a causalidade da alienação para, por meio do tratamento moral,
restituir-lhes a Razão, portanto, a Liberdade.
No contexto da Revolução Francesa, com o lema "Liberdade, Igualdade e Fraternidade", o
alienismo veio sugerir uma possível solução para a condição civil e política dos alienados
que não poderiam gozar igualmente dos direitos de cidadania mas que, também, para não
contradizer aqueles mesmos lemas, não poderiam ser simplesmente excluídos. O asilo
5
tornou-se então o espaço da cura da Razão e da Liberdade, da condição precípua do
alienado tornarse sujeito de direito.
A repercussão que teve a Revolução Francesa para a nova ordem mundial fez com que
estes princípios alienistas fossem adotados na maior parte do mundo ocidental. O asilo
psiquiátrico tornouse assim o imperativo para todos aqueles considerados loucos,
despossuídos da Razão, delirantes, alucinados. O asilo, lugar da liberação dos alienados,
transformou-se no maior a mais violento espaço da exclusão, de sonegação e mortificação
das subjetividades.
"História da Loucura na Idade Clássica", de Michel Foucault, como se sabe, foi fundamental
para reescrever a história da loucura, da psiquiatria e de toda a forma da sociedade
moderna em lidar, não apenas com a loucura mas, ainda, com todas as formas de
diferenças, desvios e divergências sociais e culturais. Muitas obras importantes contribuíram
para esta inversão, dentre as quais destacam-se as de Rosen, Castel, Szazs, Goffman a
Burton, para exemplificar apenas algumas. No Brasil são de igual importância as obras de
Joel Birman, Jurandir Freire Costa a Roberto Machado.
Em 1978, no contexto da redemocratização, surge, no Rio de Janeiro, o Movimento dos
Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), que virá a tornarse o ator social estratégico pelas
reformas no campo da saúde mental. O MTSM, num primeiro momento, organiza um teclado
de críticas ao modelo psiquiátrico clássico, constatandoas na prática das instituições
psiquiátricas. Procurando entender a função social da psiquiatria e suas instituições, para
além de seu papel explicitamente médico-terapêutico, o MTSM constrói um pensamento
crítico no campo da saúde mental que permite visualizar uma possibilidade de inversão
deste modelo a partir do conceito de desinstitucionalização.
Em dezembro de 1987, no encontro dos trabalhadores em saúde Mental, em Bauru, surge
uma nova e fundamental estratégia. O movimento amplia-se no sentido de ultrapassar sua
natureza exclusivamente técnico-científica, tornando-se um movimento social pelas
transformações no campo da saúde mental. O lema "Por uma Sociedade Sem Manicômios",
construído neste contexto, aponta para a necessidade do envolvimento da sociedade na
discussão e encaminhamento das questões relacionadas à doença mental e à assistência
psiquiátrica. Deste ano até hoje, o Movimento vem organizando inúmeras atividades
culturais, artísticas e científicas nos estados e nas principais cidades do país, com o objetivo
de sensibilizar e envolver novos atores sociais na questão: de lá para cá foram organizadas
dezenas de associações de familiares, voluntários e usuários de serviços psiquiátricos. Da
mesma forma, inúmeras entidades da sociedade civil passaram a incluir o tema em seus
debates e pautas de atuação.
Em 1989, dois outros acontecimentos marcaram esta trajetória. O primeiro foi a intervenção,
pela Prefeitura de Santos, na Casa de Saúde Anchieta, de um hospício privado que contava
com mais de 500 internos. Possibilitada pelo processo de municipalização do sistema de
saúde, a intervenção deu início ao fechamento do hospício e à substituição do modelo
assistencial, com a criação de Centros de Atenção Psicossocial (que funcionam 24 horas,
atendendo quaisquer situações de crise psiquiátrica e/ou social relacionada ao estado
mental, inclusive com leitos de suporte para hospedagem em situações mais graves), de
projetos culturais e artísticos – a exemplo do Projeto TAMTAM –, de Lares Abrigados para
exinternos ou para novos pacientes que não tenham casa ou condições de moradia, e de
uma cooperativa de trabalho que oferece condições de trabalho para as populações
carentes, com ou sem problema especificamente psiquiátrico.
Com a repercussão da experiência de Santos, o outro fato importante foi o surgimento do
Projeto de Lei Paulo Delgado, que propõe a extinção progressiva do modelo psiquiátrico
6
clássico, com sua substituição por outras modalidades assistenciais e tecnologias de
cuidados.
O certo é que este conjunto de fatos e iniciativas tem propiciado um importante movimento
de transformações no campo da Saúde Mental no Brasil. Autor de vários livros em
psiquiatria e saúde mental, assessor de saúde mental da Organização Mundial da Saúde
(OMS), Editor da Revista Psiquiatria Pública, diretor da Rede de Serviços Comunitários de
Saúde Mental de Madri (onde promove um importante processo de desinstitucionalização),
Manuel Desviat é um importante psiquiatra europeu. Em seu último livro, intitulado "La
Reforma Psiquiátrica", Desviat dedica um capítulo à reforma psiquiátrica brasileira, que
considera um dos mais frutíferos, promissores e vigorosos processos de transformação no
campo da saúde mental e da psiquiatria. Este é apenas um exemplo do interesse
internacional pelo processo brasileiro.
As portarias 189/91 a 224/92 do Ministério da Saúde abriram a possibilidade, até então
inexistente, para que o Sistema único de saúde (SUS) possa financiar outros procedimentos
assistenciais que não o simples leito/dia ou consulta ambulatorial. De 1991 até abril de 1995,
os leitos psiquiátricos caíram da casa dos 86 mil para 72 mil. Portanto, uma redução de 14
mil leitos, considerando que 30 hospitais privados tiveram suas atividades encerradas. No
mesmo período foram criados 2.065 leitos psiquiátricos em hospitais gerais e mais de 100
núcleos e centros de atenção psicossocial.
Sabemos que o mundo do confinamento não serviu apenas à ordem política e econômica,
que necessitava esquadrinhar o espaço público destinando lugares de inclusão e exclusão
social. Serviu também, e nisso o Brasil foi praticamente inigualável, a uma promissora
"indústria da loucura", como, com muita propriedade, a denominou Carlos Gentile de Mello,
consolidada a partir do Plano de Pronta Ação do Ministro Leonel Miranda, que operou a
maior privatização da assistência psiquiátrica de que se tem notícia. Tais empresários
resistem às reformas no campo da saúde mental, mesmo sabendo que poderiam participar
do novo sistema, uma vez que se propusessem a constituir os novos serviços, embora não
fôsse possível incluí-los, automaticamente, como veremos, no contexto da
desinstitucionalização, já que esta não significa apenas a administração de serviços não
hospitalares.
Alguns destes empresários, movidos pela ameaça que representa a reforma psiquiátrica, e
não apenas o projeto Paulo Delgado, vêm aterrorizando familiares, deturpando os princípios
da reforma, dizendo-lhes que o que se propõe é o fechamento dos hospícios e a devolução
dos internos aos familiares ou o abandono dos mesmos nas ruas. Tal iniciativa já se faz
presente na criação de uma entidade de familiares financiada por estes mesmos
empresários, para oporem-se às reformas.
Outro setor que vem levantando questões contrárias ao processo da reforma é o acadêmico
psiquiátrico clássico. Refutam a idéia de Franco Basaglia, de que a psiquiatria colocou o
doente entre parênteses para ocupar-se do estudo da doença, tendo assim construído um
objeto fictício, pois não existe a doença sem o sujeito de sua experiência. Seguindo a
tradição husserliana, entende Basaglia que seria necessário promover uma redução
fenomenológica (épochè), colocando a (doença mental) entre parênteses, para poder
ocuparse do doente em sua experiência concreta de sofrimento. Este procedimento
epistemológico inscrevese no contexto do primeiro uso da complexidade, tal como proposto
por Isabelle Stengers, que está no desafio de resgatar a singularidade da operação que o
conceito oculta, sem que esse desmascaramento signifique "descobrir" a verdadeira
realidade do objeto, mas sim reabrir a possibilidade de sua re-complexificação.
7
Carvalhal Ribas costumava dizer que o mal maior da psiquiatria era o doente mental que
não se dobrava ao saber psiquiátrico. Mesmo assim a psiquiatria não aceita debater seu
paradigma.
Um argumento de outra natureza, comumente utilizado por estes mesmos setores, é o de
que a reforma foi tentada e fracassada em outros países. Utilizam como exemplo mais
comum a experiência dos E.U.A., que é a qual a experiência brasileira explicita maior
distanciamento, por ter reduzido o conceito de desinstitucionalização à meras medidas de
desospitalização, sem a necessária construção de uma nova rede de serviços e cuidados.
Em todo o caso, o argumento corresponderia a dizer que, uma vez que ainda se cometem
crimes a violências contra negros, mulheres a crianças, a luta contra esta violência não teria
nem eficácia nem razão de ser. Finalmente, o modelo psiquiátrico clássico favorece ainda o
modelo profissional "liberal", que reduz a atitude terapêutica a sessões individuais, à
psicoterapias, à administração de fármacos – sem um maior esforço cotidiano –, ou a uma
verdadeira tomada de responsabilidade, como proposto por Giuseppe Dell'Acqua, isto é, o
ocuparse do doente em sua experiência-sofrimento.
Vimos que não estamos falando de fechar hospícios (ou hospitais psiquiátricos, se
preferirem) e abandonar as pessoas em suas famílias, muito menos nas ruas. Vimos que
não estamos falando em fechar leitos para reduzir custos, no sentido do neoliberalismo ou
no sentido do enxugamento do Estado (aliás, em princípio, a rede de novos serviços e
cuidados tende a requerer maior investimento não apenas técnico e social, mas também
financeiro). Estamos falando em desinstitucionalização, que não significa apenas
desospitalização, mas desconstrução. Isto é, superação de um modelo arcaico centrado no
conceito de doença como falta e erro, centrado no tratamento da doença como entidade
abstrata. Desinstitucionalização significa tratar o sujeito em sua existência e em relação com
suas condições concretas de vida. Isto significa não administrar-lhe apenas fármacos ou
psicoterapias, mas construir possibilidades. O tratamento deixa de ser a exclusão em
espaços de violência e mortificação para tornar-se criação de possibilidades concretas de
sociabilidade a subjetividade. O doente, antes excluído do mundo dos direitos e da
cidadania, deve tornar-se um sujeito, e não um objeto do saber psiquiátrico. A
desinstitucionalização é este processo, não apenas técnico, administrativo, jurídico,
legislativo ou político; é, acima de tudo, um processo ético, de reconhecimento de uma
prática que introduz novos sujeitos de direito e novos direitos para os sujeitos. De uma
prática que reconhece, inclusive, o direito das pessoas mentalmente enfermas em terem um
tratamento efetivo, em receberem um cuidado verdadeiro, uma terapêutica cidadã, não um
cativeiro. Sendo uma questão de base ética, o futuro da reforma psiquiátrica não está
apenas no sucesso terapêutico-assistencial das novas tecnologias de cuidado ou dos novos
serviços, mas na escolha da sociedade brasileira, da forma como vai lidar com os seus
diferentes, com suas minorias, com os sujeitos em desvantagem social.
A proposta de reabilitação psicossocial de Saraceno: um modelo de
auto-organização?
Rev. Latino-Am. Enfermagem v.14 n.3 Ribeirão Preto maio/jun. 2006
INTRODUÇÃO
A partir da década de 1950, diversos esforços interdisciplinares foram dedicados ao estudo
do fenômeno da Auto-Organização, que ocorre quando um sistema aberto altera seus
8
padrões organizacionais, impelido por linhas de força endógenas. Tais estudos levaram à
elaboração de uma Teoria da Auto-Organização, que se contrapõe epistemologicamente ao
paradigma oriundo da física newtoniana, no qual as causas explicativas do comportamento
de um sistema são procuradas no seu exterior. Ao longo da evolução recente da ciência e
da filosofia da ciência, a Teoria da Auto-Organização tem sido aplicada em diversas áreas
do conhecimento, da física microscópica até os sistemas humanos. Sabe-se que "há autoorganização cada vez que, a partir de um encontro entre elementos realmente (e não
analiticamente) distintos, se desenvolve uma interação sem supervisor (ou sem supervisor
onipotente) - interação essa que leva eventualmente à constituição de uma 'forma' ou à
reestruturação, por 'complexificação', de uma forma já existente" (1).
Para a definição dos processos de auto-organização adota-se aqui, os seguintes critérios: a)
o sistema em questão deve abarcar diversos fatores independentes entre si; b) do jogo entre
esses fatores se desenvolve uma nova forma organizacional no sistema; c) apesar do
sistema receber perturbações externas, o que determina a nova forma são as interações
entre os fatores internos; d) o sistema não apresenta uma descontinuidade total em função
das alterações decorrentes do processo, pois, no caso de uma ruptura radical, ele não
poderia ser considerado como sendo o mesmo sistema(2).
Uma aplicação da Teoria da Auto-Organização à área de saúde seria desejável para
propiciar melhor entendimento da multiplicidade de fatores que regem o processo saúdedoença, e de como esses fatores interagem no tempo e no espaço de forma singular,
constituindo a história de vida da pessoa(3). Na área de Saúde Mental, por meio dessa teoria
pode-se melhor entender como diversas dimensões ou categorias da experiência de vida de
uma pessoa interagem, criando condições para sua saúde mental ou desencadeando crises
que podem aumentar a suscetibilidade ao transtorno mental (4-5). Para realizar esse enfoque,
começa-se aqui, com uma análise da proposta de Reabilitação Psicossocial elaborada por
Saraceno, a qual tem tido grande influência na reforma do atendimento em saúde mental no
Brasil. Pensa-se que essa discussão pode respaldar a prática do enfermeiro no contexto
atual da Reforma Psiquiátrica, visto que alguns autores (6) destacam a dificuldade desse
profissional em abandonar o modelo organicista, como referencial de sua atuação prática, e
incorporar os conceitos psicossociais inerentes ao contexto dos serviços substitutivos de
atenção em saúde mental.
A PROPOSTA DE REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL DE SARACENO
A reabilitação psicossocial, que tem em Saraceno um de seus principais representantes,
destina-se a aumentar as habilidades da pessoa, diminuindo as deficiências e os danos da
experiência do transtorno mental. Tal noção de reabilitação se baseia em importante
distinção terminológica proposta pela Organização Mundial da Saúde, ou seja, "Doença ou
Distúrbio (condição física ou mental percebida como desvio do estado de saúde normal e
descrita em termos de sintomas e sinais); Dano ou Hipofunção (dano orgânico e/ou funcional
a cargo de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica); Desabilitação
(disabilitá, limitação ou perda de capacidades operativas produzidas por hipofunções);
Deficiência (desvantagem, conseqüência de uma hipofunção e/ou desabilitação que limita ou
impede o desempenho do sujeito ou das capacidades de qualquer sujeito)" (7).
Considerando as definições apresentadas acima, a reabilitação seria compreendida pelo
conjunto de ações que se destinam a aumentar as habilidades do indivíduo, diminuindo,
conseqüentemente, suas desabilitações e a deficiência, podendo, também, no caso do
transtorno mental, diminuir o dano. Para que ocorra uma efetiva reabilitação, é importante a
reinserção da pessoa na sociedade. Quando a própria pessoa acredita que é incapaz ou
impotente frente à dinâmica de sua vida, há o surgimento de um estado de inércia e
diminuição de sua condição para o enfrentamento das dificuldades vividas, situação que
pode ser modificada à medida que o apoio da rede social se amplia.
9
Assim, a cisão entre sujeito e contexto social, própria da psiquiatria tradicional, é superada
pelo conceito de reabilitação psicossocial, que envolve "profissionais e todos os atores do
processo de saúde-doença, ou seja, todos os usuários e a comunidade inteira". Nesse
sentido, o processo de reabilitação consiste em "reconstrução, um exercício pleno de
cidadania e, também, de plena contratualidade nos três grandes cenários: hábitat, rede
social e trabalho com valor social"(8). A reabilitação psicossocial também pode ser
considerada como um "processo pelo qual se facilita ao indivíduo com limitações, a
restauração no melhor nível possível de autonomia de suas funções na comunidade"(9).
Ainda se pode definir "reabilitar" como "melhorar as capacidades das pessoas com
transtornos mentais no que se refere à vida, aprendizagem, trabalho, socialização e
adaptação de forma mais normalizada possível"(10).
A vulnerabilidade psicológica de uma pessoa se define como a capacidade de reação a
acontecimentos estressantes. Os acontecimentos podem levá-la ao desenvolvimento de
transtornos mentais, quando exigem, para seu enfrentamento, habilidades que não foram
elaboradas pela pessoa. Os fatores de vulnerabilidade são inversamente proporcionais à
capacidade de enfrentamento de acontecimentos estressantes. Tais fatores podem ser
inespecíficos (como isolamento, falta de sono, doenças somáticas e efeitos do uso de
tóxicos) e específicos (crises existenciais, reações de perda pessoal, eventos traumáticos e
conflitos insolúveis).
Durante a vida, uma pessoa pode deparar-se com situações difíceis, nas quais sua
capacidade de enfrentamento se encontra reduzida, e assim vir a desencadear um processo
que conduz ao transtorno mental. A crise vivida pode trazer para o sujeito mudanças e
crescimento; porém, se não for acompanhada de resolução saudável poderá trazer rupturas
no processo existencial(11). Esses autores enfatizam a possibilidade de desenvolvimento das
habilidades de enfrentamento de situações sociais, desse modo reduzindo o patamar de
vulnerabilidade da pessoa.
A reabilitação não é a passagem de um estado de desabilidade para um estado de
habilidade, ou de incapacidade para a capacidade. Essas noções não se sustentam quando
descontextualizadas do conjunto de determinantes presentes nos locais em que ocorrem as
intervenções, o que leva a pensar que a reabilitação é ampliada de acordo com as
possibilidades de estabelecimento de novas ordenações para a vida. Desse modo, não há
uma fronteira delimitadora dos que passaram a estar aptos e não aptos à vida, seja ela no
âmbito pessoal, social, ou familiar(8). Várias pesquisas epidemiológicas atuais constataram,
contrariamente aos postulados da psiquiatria tradicional, que a cronificação e o
empobrecimento do portador de transtorno mental não são intrínsecos à doença, mas
ocasionados por um conjunto de variáveis externas ao indivíduo, em geral ligadas ao
contexto da família e da comunidade, passíveis de modificação por meio de um processo de
intervenção. Por serem essas variáveis ligadas ao meio ambiente do paciente, pressupõem
intervenções no nível ambiental que se distanciam das intervenções tradicionais do modelo
psiquiátrico de abordagem biológica. Assim, afirma-se que "uma intervenção sobre a psicose
tem sentido, desde que conduzida sobre 'todo o campo', influindo assim sobre a complexa
constelação de variáveis que constituem os fatores de risco e os de proteção. [...] Nesse
sentido, a necessidade de reabilitação coincide com a necessidade de se encontrarem
estratégias de ação que estejam em relação mais real com as variáveis que parecem mais
implicadas na evolução da psicose"(7). Dessa forma, observa-se que a proposta de
reabilitação de Saraceno considera a complexidade do indivíduo, enfocando diversos fatores
em interação, sendo, portanto, compatível com os princípios da auto-organização.
SUPERAÇÃO DOS MODELOS COMPORTAMENTALISTAS
Saraceno discute quatro modelos conceituais e operativos utilizados em reabilitação
psiquiátrica, a saber: 1) os modelos de treinamento de habilidades sociais (Social Skills
10
Training ou SST); 2) os modelos psicoeducativos; 3) o modelo de Spivak e 4) o modelo de
Luc Ciompi. Aqui, deter-se-á na análise do primeiro, terceiro e quarto modelos(7).
Os modelos de treinamento de habilidades sociais têm como alicerce o conceito de sistema
biopsicossocial, o qual considera as interações entre vulnerabilidade, stress, enfrentamento
e competência como sendo determinantes do transtorno mental. A vulnerabilidade
psicológica do indivíduo se manifesta, em termos de sintomas psicóticos, frente a situações
estressantes no ambiente familiar, social ou de trabalho interferindo em suas habilidades de
enfrentamento. Assim, o SST compreende o desenvolvimento e/ou reforço de habilidades de
enfrentamento por meio de mecanismos de aprendizagem, ou seja, por meio da aquisição
de hábitos desenvolvidos no setting terapêutico e transferidos para o ambiente natural do
paciente(7). Esse modelo seria ineficaz na reabilitação psicossocial, se as atividades que
incluem situações de enfrentamento são programadas pelo terapeuta de forma fragmentada
e fora do setting da vida real da pessoa que sofre o transtorno mental sem, no entanto,
intervir em situações sociais estressantes para o paciente.
Aponta-se uma afinidade entre esse modelo e os mecanismos de aprendizagem que
ocorrem em redes neurais artificiais por meio de treinamento supervisionado por reforço. No
treinamento supervisionado, a rede recebe um padrão de entrada com um padrão de saída
desejado, esperando-se que encontre, por meio de mecanismo de aprendizagem, "os pesos
adequados das conexões que lhe possibilitem associar o padrão de entrada ao padrão de
saída estabelecido por um supervisor". O treinamento por reforço ocorre de modo similar,
porém sem o fornecimento de um padrão exato de saída, mas apenas indicadores de que o
comportamento está adequado ou não. Tanto no primeiro como no segundo caso, existe a
dependência frente a um supervisor e, portanto, não são considerados processos que se
auto-organizam(12). Dessa forma, observa-se que os modelos de treinamento de habilidades
sociais não possibilitam um processo de reabilitação auto-organizada do indivíduo, visto que
o terapeuta funciona como supervisor do processo, excluindo, assim, toda espontaneidade e
autonomia do indivíduo.
O modelo de Spivak assume como objeto principal de análise a cronicidade psiquiátrica,
dando ênfase não a rótulos diagnósticos, mas à descrição de comportamentos e processos
que levam à dessocialização progressiva, a qual tem como base, possivelmente, um déficit
de competência pessoal e social(13-14). Uma característica fundamental desse modelo é a
consideração de fatores ambientais no processo de dessocialização do paciente.
Juntamente com a "incompetência da pessoa em satisfazer as próprias exigências e de
quem interage com elas, Spivak leva em consideração qual o fator de máxima importância
presente em um processo de dessocialização e de progressiva diminuição das articulações
sociais, as ações e as reações das pessoas que constituem o ambiente no qual vive e age o
paciente"(7).
Observa-se que ao considerar tais fatores ambientais no processo de dessocialização do
paciente, o modelo de Spivak pode abrir possibilidades para a ocorrência de um processo
auto-organizado de reabilitação. Porém, deve-se analisar como acontecem as interações
entre paciente e meio ambiente para constatar tal ocorrência. Analisando o desenvolvimento
de um processo de cronificação a partir da teoria de Spivak, é possível ressaltar que existe
uma ligação entre o insucesso nas competências sociais e as interações que elas produzem,
ou seja, a diminuição da competência social do paciente provoca reações negativas nas
pessoas que fazem parte de seu ambiente (como, por exemplo, frustração e decepção), que
podem levar à recusa, que, por sua vez, provoca "sentimentos de falência no paciente, que,
nesse ponto, começará a evitar as situações e as interações que se mostram mais prováveis
às falências e à recusa dos outros", manifestando, assim, isolamento social cada vez mais
acentuado que pode levá-lo à internação psiquiátrica(7).
11
Aponta-se que essas interações se caracterizam por relações circulares, nas quais os
efeitos de uma relação realimentam a mesma(15). Essas relações estão presentes em
sistemas complexos e, portanto, pode-se argumentar que o modelo de reabilitação, proposto
por Spivak, também considera a complexidade do indivíduo, considerando que a forma de
neutralizar a cronicidade seria por meio de um processo de reabilitação que aumente as
articulações sociais entre o paciente e seu ambiente, desenvolvendo suas competências de
forma a permitir um sucesso no ambiente social. Para que isso seja possível, ressalta-se
que é necessário realizar um levantamento das competências sociais deficitárias do paciente
em seu ambiente, considerando cinco áreas vitais: moradia, trabalho, família e amigos,
cuidado de si e independência, atividade social e recreativa(14). Dessa forma, por meio de um
programa de intervenção, os comportamentos incompetentes do paciente, relacionados a
essas áreas, devem ser eliminados e os comportamentos competentes devem ser
desenvolvidos, de modo que o paciente se readapte às normas da comunidade.
No entanto, apesar desse modelo considerar os fatores ambientais no processo de
dessocialização do indivíduo que apresenta um transtorno mental, "o tratamento é focalizado
sobre a adaptação do indivíduo não socializado às demandas normativas de um contexto
que, todavia, nunca vem submetido à crítica e sobre o qual não se prevê agir no sentido de
uma redefinição e modificação"(7). Dessa forma, argumenta-se que durante o processo de
intervenção propriamente dita, com fins reabilitativos, as interações entre o paciente e seu
ambiente, as quais foram justamente consideradas no processo de cronificação, são
desconsideradas, e o processo se torna unidirecional e orientado por um supervisor externo
(no caso, o terapeuta), banindo a possibilidade de um processo auto-organizado. Assim,
pode-se concluir que, apesar do modelo de Spivak considerar aspectos relevantes presentes
em um processo de auto-organização, como a complexidade do indivíduo e as interações
entre o indivíduo e o meio ambiente, o controle exercido pelo supervisor implica que a autoorganização ocorreria somente durante a dessocialização, o que se caracterizaria de fato
como uma auto-desorganização.
O modelo de Luc Ciompi é de relevada importância na área de reabilitação psicossocial,
pois, além de contribuir para uma interpretação da cronicidade do transtorno mental,
enquanto um fator social, explora "o papel preditivo das expectativas no campo da
reabilitação"(7). De acordo com esse modelo, assim como nos anteriores, o transtorno mental
está relacionado à elevada condição de vulnerabilidade do indivíduo, que o leva a manifestar
uma crise frente a condições ambientais estressantes. Essa crise pode levar o indivíduo ao
colapso do processo existencial ou, ao contrário, pode promover um processo de mudança e
crescimento. Considerando o papel do ruído ou perturbação (12) como desencadeador da
auto-organização do sistema, tornando-o mais apto para enfrentar as mudanças ambientais,
pode-se argumentar que a crise pode ser considerada um ruído ou perturbação capaz de
impulsionar um processo de auto-organização. O processo de cronificação do indivíduo
portador de transtorno mental está relacionado às respostas sociais ocasionadas pelo
episódio de crise, e a reabilitação é considerada um processo, cujo objetivo é a reinserção
do sujeito na vida social e produtiva normal(11), o que se aproxima da idéia de autoorganização a partir de uma perturbação.
A compreensão da cronicidade como decorrente de processos psicossociais valoriza o
espaço social "como cenário único e possível para o trabalho, seja ele reabilitativo ou
clínico"(7). Em estudo realizado a fim de verificar a eficácia de um programa de reabilitação,
destinado a pacientes psicóticos crônicos hospitalizados e potencialmente reabilitáveis,
foram examinadas todas as variáveis relevantes para essa população, definindo-se dois
eixos para a avaliação do sucesso do processo reabilitativo: o eixo casa e o eixo trabalho.
Esses eixos são diferenciados em sete níveis, que vão desde uma situação de dependência
até a independência total. Em cada um dos eixos são identificados comportamentos sobre
os quais deve investir o trabalho reabilitativo. Assim, estudando longitudinalmente os dados
12
dessa pesquisa, os autores correlacionaram as variáveis sociais e psicopatológicas ao
sucesso do processo de reabilitação. Os resultados demonstraram que cerca da metade dos
pacientes estudados apresentava possibilidade de reabilitação global e que as variáveis
sociais influenciam mais o sucesso ou insucesso do processo reabilitativo que as varáveis
psicopatológicas ou diagnósticas(11).
Em outro estudo longitudinal(11), os autores procuraram identificar a importância das
variáveis sociais, psicopatológicas e psicodinâmicas sobre o prognóstico e o sucesso da
reabilitação. Os autores apontam, nesse caso, correspondência entre o sucesso da
reabilitação e a manutenção das expectativas por parte dos profissionais integrantes da
equipe de saúde mental, dos familiares e dos próprios pacientes e as relações sociais no
ambiente de trabalho. Observa-se que o modelo de reabilitação de Ciompi poderia ser
considerado um processo de reabilitação auto-organizado, ao considerar a crise como um
possível desencadeador de um processo de mudança e de crescimento do paciente, e as
interações entre ele e o ambiente como responsáveis pelo sucesso ou insucesso do
programa de reabilitação. No entanto, como argumenta Saraceno, teme-se que o modelo
"não consiga romper os limites dos cenários onde Ciompi 'pensa' a reabilitação e o trabalho,
para assumir até o fim a responsabilidade conseqüente de ter mostrado o artifício social
colocado sob a naturalidade da doença"(7), isto é, as interações entre paciente e ambiente
social nas intervenções reabilitativas ainda são restritas. Para que um processo de
reabilitação possa ser considerado um processo auto-organizado, é necessário que o
conceito de ambiente social do indivíduo seja ampliado, assumindo-se a possibilidade de
interação entre os espaços sociais, desencadeando processos transformadores.
AVALIAÇÃO DA PROPOSTA DE BENEDETTO SARACENO
A proposta de reabilitação biopsicossocial de Saraceno assume estrutura triádica sem a
ocorrência de relações de liderança, o que pode se constituir em indícios de um processo de
auto-organização. Para que se possa propor um programa de reabilitação a um indivíduo é
necessário saber, anteriormente, "quais práticas e quais conceitualizações são condições
necessárias para poder discutir reabilitação, para identificar eixos prioritários de ação e as
modificações do campo de intervenções ineludíveis"(7).
O primeiro ponto de discussão ressaltado por Saraceno se refere ao lugar onde se
desenvolve o programa de reabilitação. Conforme o autor, os dois primeiros modelos nada
discutem a respeito dos contextos nos quais se dá a prática reabilitativa, seja o serviço de
Saúde Mental, o domicílio do paciente ou a comunidade, já o modelo de Ciompi considera o
contexto como parte do processo de reabilitação. O que se vê, em geral, nos serviços que
se propõem a desenvolver um programa de reabilitação psicossocial, é que a prática
realmente vivenciada se constitui de "constelações de condutas que são a resultante de
variáveis conexas ao paciente, à sua família, ao serviço e à sua organização". Em outras
palavras, apesar da diversidade de diagnósticos e da variedade de modelos teóricos, os
tratamentos utilizados pelos serviços são poucos e sempre repetitivos, não satisfazendo as
necessidades reais dos pacientes. Portanto, "é a partir dessa ausência de especificidade da
psiquiatria que devemos raciocinar para compreender como entrar em relação com as
variáveis reais que mudam as vidas reais das pessoas reais"(7).
A padronização e o caráter estigmatizante do diagnóstico psiquiátrico são os fatores que
mais contribuem para o fracasso das técnicas terapêuticas utilizadas pelos serviços de
reabilitação. Além da pobreza do diagnóstico como fator preditivo da eficácia de programas
de reabilitação, esse não é um instrumento que permite obter informações a respeito do
contexto da vida real do indivíduo. Uma análise crítica sobre o diagnóstico "deve nos ajudar
a compreender que as 'informações' (as variáveis) que o paciente carrega consigo e que é o
que nós podemos efetivamente considerar como patrimônio (de risco ou de proteção), estão
13
na realidade mais conectadas à vida do paciente do que à sua doença, cuja identidade
autônoma da vida é um artefato da clínica"(7).
Além do contexto do paciente referido acima, é importante considerar a concepção do
sujeito "como um sistema complexo e indivisível (assim como indivisível é para qualquer
indivíduo a relação-vínculo entre sujeito e intersubjetividade)", compreendendo que, por
meio de uma relação terapêutica, não é possível conhecer "um sujeito em si e portanto uma
doença em si", mas sim as interações compreendidas por esse sujeito e seu ambiente. "São
essas interações operativas (entre paciente e outros, entre paciente e vida material, entre
paciente e as respostas que ele recebe, entre pacientes e lugares) o patrimônio ao qual se
pode, ter acesso e que pode se modificar sob a força de uma intervenção que crie as
condições para que o sujeito possa exercitar 'mais' escolhas"(7). Desse modo, ao ampliar os
espaços de troca do paciente, o profissional da equipe de reabilitação estará criando
condições para que as relações entre esse paciente e o meio ambiente se multipliquem e
ocorram de forma autônoma, podendo possibilitar um processo auto-organizado de
reabilitação. Somente um serviço psiquiátrico complexo consegue trabalhar com a
complexidade do paciente. Um serviço complexo ou "de alta qualidade" é aquele que
consegue se ocupar de todos os pacientes, considerando a singularidade de cada um, e que
seja capaz de oferecer um processo de reabilitação a todos que se possam beneficiar de tal
processo, sem criar anéis hierarquizados de clientela reabilitável e não reabilitável. Assim,
esse serviço "deveria ser um 'lugar' (constituído de uma multiplicidade de
lugares/oportunidades comunicantes) permeável e dinâmico, onde as oportunidades [...]
encontram-se continuamente à disposição dos pacientes e dos operadores" (7). Dessa forma,
argumentamos-se que o próprio serviço é constituído por diversidade de lugares que
interagem entre si e, portanto, do próprio serviço poderiam emergir processos reabilitativos
auto-organizados.
O serviço de reabilitação deve ser um lugar de produção de recursos não somente
numéricos, mas primordialmente afetivos, na rede de relações dos pacientes. Esses
recursos seriam os profissionais, os familiares e a comunidade, não esquecendo de que a
família é parte da comunidade, mas essa não se restringe somente ao contexto familiar. "As
instituições formais da comunidade e as informais representam recursos potenciais de um
serviço: da paróquia ao sindicato, das associações esportivas às agregações mais ou menos
formalizadas dos cidadãos, a rede de lugares, recursos e oportunidades é infinita e infinitas
são as articulações individuais serviço/paciente/comunidade, capazes de produzir sentido,
contratualidade, bem-estar"(7). Observa-se aqui uma diferença fundamental entre a noção de
reabilitação elaborada por Saraceno e o modelo proposto por Ciompi. A noção de
comunidade para Saraceno é muito mais ampla do que a de Ciompi, que parece conceber
família e comunidade como dois contextos separados, e restringir as relações com a
comunidade somente no tocante ao trabalho.
Um outro contexto importante na orientação de um processo de reabilitação é o contexto de
leis e normas de uma comunidade. Elaborar um programa de reabilitação onde o hospital
psiquiátrico deixou de existir legalmente é muito diferente de elaborar tal programa em um
lugar onde o hospital continua sendo local de referência. Assim, cabe aos reabilitadores o
movimento de modificações das normas no sentido de melhorá-las a favor do processo de
reabilitação(7).
Partindo da análise das variáveis do contexto dos pacientes e dos serviços, observa-se que
não existem habilidades ou desabilidades descontextualizadas do conjunto de determinantes
composto pelos lugares nos quais ocorrem as intervenções, pelas organizações dos
serviços, pelas articulações entre ações sanitárias e sociais territoriais, e pelos recursos
disponibilizados. Dessa forma, a reabilitação não é simplesmente a passagem da
desabilitação para a habilitação, mas "um conjunto de estratégias orientadas a aumentar as
14
oportunidades de troca de recursos e de afetos: é somente no interior de tal dinâmica das
trocas que se cria um efeito 'habilitador'". Por meio dessas trocas materiais e afetivas se cria
uma "rede de negociação", as quais aumentam a participação e o poder de contratualidade
dos indivíduos menos favorecidos em uma sociedade(7).
O aumento da capacidade contratual dos portadores de transtorno mental se constrói sobre
os eixos: hábitat, família e trabalho. O hábitat compreende as noções de casa e habitar,
sendo que a noção de casa se refere ao espaço físico concreto e a noção de habitar ao
envolvimento afetivo e de apropriação do indivíduo em relação a esse espaço. Assim, o
processo de reabilitação deve trabalhar com essas duas noções, as quais devem ser
separadas em nível teórico para a compreensão de que "as funções da reabilitação aludem
seja a uma conquista concreta (a casa), seja à ativação de desejos e habilidades ligadas ao
habitar", e unidas no nível prático da intervenção. Dessa forma, existe uma diferença entre o
eixo hábitat, apresentado por Saraceno, e o eixo casa descrito por Ciompi, sendo que para a
reabilitação é primordial o eixo hábitat e não o eixo casa(7).
Quanto ao eixo família, há necessidade de conscientização por parte da equipe de
trabalhadores dos serviços de saúde mental em relação ao co-envolvimento dos familiares
do indivíduo portador de transtorno mental nos projetos de reabilitação, criando formas de
intervenção em que a família desse indivíduo "deixe de ser cúmplice ou vítima da
psiquiatria", e passe a ser "protagonista responsável pelos processos de tratamento e
organização do mesmo (e da reabilitação)"(7).
Em relação ao trabalho como produção e troca de mercadorias e valores, é necessário partir
da noção de trabalho enquanto promotor de "articulação do campo dos interesses, das
necessidades, dos desejos"(7). Para que o trabalho possa ser um recurso de produção de
troca, é fundamental que ele perca a ênfase terapêutica e que o problema da relação entre
trabalho e transtorno mental seja enfrentado a partir de um referencial alternativo.
É no âmbito das discussões sobre as noções de psiquiatria e saúde mental que se pode
compreender melhor o conceito biopsicossocial, assumido por Saraceno como abordagem
da sua proposta de reabilitação, e vê-se o surgimento de várias teorias sobre o
funcionamento do aparelho psíquico, entre elas o modelo psicossocial/biológico. Esse
modelo sustenta que o aparelho psíquico se constitui por uma estrutura hierárquica
complexa de sistemas de referência afetivo/cognitivos que se desenvolve por meio de um
processo contínuo de ações concretas, ou seja, por repetidas experiências. Os aspectos
afetivos da experiência são armazenados tornando-se estrutura básica da construção de
processos cognitivos(16). Tal modelo do psiquismo considera que a esquizofrenia se
desenvolve por meio da ação interativa de aspectos biológicos, psicológicos e sociais. Em
outras palavras, a esquizofrenia, como qualquer outro tipo de transtorno mental seria "o
resultado de processos biopsicossociais complexos que interagem entre si" (7). Esses
modelos do transtorno mental tentam superar o problema da relação mente-corpo
evidenciado pela abordagem dualista cartesiana, sempre presente no contexto da
psiquiatria, com a inclusão de uma terceira variável, ou seja, "o ambiente - a interação entre
sujeito biopsíquico de um lado e contexto de outro"(7).
Observa-se que, apesar de Saraceno considerar o ambiente como uma das variáveis
fundamentais para a compreensão da saúde e transtorno mental, ele não formula uma visão
sistêmica completa da relação mente-corpo-ambiente, pois em sua concepção de interação,
é evidente que o ambiente não é um continuum da relação mente-corpo, isto é, existe uma
interação, porém mente-corpo de um lado e ambiente de outro. Além disso, o que é mais
importante, a abordagem de Saraceno considera uma variedade de fatores ambientais nas
interações entre indivíduo e ambiente, porém não enfoca explicitamente a autonomia dos
sujeitos no seio das interações. Uma das condições fundamentais para a ocorrência de um
processo auto-organizado é que exista uma decisão autônoma de engajamento no processo
15
de reabilitação, porém esse aspecto não é citado em nenhum momento na proposta de
Saraceno.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta de Reabilitação Psicossocial de Saraceno, aqui discutida, abrange vários
aspectos de um processo de auto-organização, deixando apenas de considerar a autonomia
dos sujeitos, e as conseqüências da mesma para a assistência em Saúde Mental.
Considerando-se a autonomia, conclui-se que o profissional de Saúde Mental não
estabelece, de fora, um novo padrão de organização, mas age como facilitador, no sentido
de se atingir uma reorganização da vida pessoal e das relações sociais do paciente
psiquiátrico. É o próprio sujeito, no interior do sistema de relações em que se encontra no
momento da assistência, que poderá desenvolver novas formas de autonomia que
possibilitem sua estabilização e relativa independência dos cuidados dos profissionais do
sistema de saúde. Mesmo que a doença mental não apresente remissão, é possível
desenvolver potencialidades afetivas que diminuam a vulnerabilidade e possibilitem a
formação de vínculos sociais.
Essa estratégia não é possível no paradigma tradicional do atendimento e internação
hospitalar, que se mostra como promotor de exclusão social dos portadores de transtorno
mental. Nesse modelo, centrado na doença e que oferece tratamento em nível biológico, é
previsível o agravamento da crise de vida da pessoa, uma vez que se retira do paciente a
possibilidade de construir sua autonomia. Espera-se que nos serviços abertos ou
substitutivos, ao contrário, se procure oferecer, juntamente com a medicação, subsídios que
permitam uma auto-organização dos diversos aspectos da história de vida dos sujeitos,
tornando possível que esse evolua para quadros de estabilidade em que se estabeleçam
novos padrões de organização que facilitem sua inserção social e desenvolvimento de
potencialidades encobertas pela experiência de convívio com o sofrer psíquico.
A diversidade de fatores a serem trabalhados na reabilitação psicossocial corresponde à
variedade de aspectos existentes na vida de uma pessoa. Assim, o profissional de Saúde
Mental pode, através de um processo de comunicação, de escuta, de acolhimento e de
atividades prático-criativas, junto com o portador de sofrimento mental, agir como facilitador
na construção de novas configurações mentais, nas quais o sistema de relações que
compõe a vida dessa pessoa possa se auto-reorganizar, desse modo, se estabilizando em
um novo padrão de relações.
O contexto em que ocorre a reabilitação psicossocial é polissêmico, tendo em vista a
pluralidade de sujeitos envolvidos, o que solicita formas de atuação que lhe sejam
adequadas. Encontrar possibilidades singulares a cada pessoa, nas diferentes situações de
suas vidas, pede a todo instante o olhar e a escuta que reconhecem as subjetividades.
Assim, a relação humana é o veículo para se compreender a dimensão simbólica do
sofrimento. Desse modo, a proximidade com a pessoa que sofre a experiência de transtorno
mental coloca em confronto as diversas possibilidades interpretativas, interroga
competências, pede sensibilidade do profissional, e o entendimento de que o sofrer psíquico
não pode ser visto como algo a ser eliminado ou combatido, mas pode levar à redescoberta
do real, da compreensão da experiência emocional de quem a sofre.
Direitos das pessoas com transtorno mental autoras de delitos
Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(9):1995-2012, set, 2007
16
Entre os diversos segmentos populacionais que demandam atenção diferenciada, destacase o das pessoas com transtorno mental autoras de delitos. Este é um tema cuja área de
interesse vai além da Psiquiatria Forense e transborda os limites de um campo que pode ser
definido de forma ampla e genérica como o da Psiquiatria a serviço da Justiça 1. A
necessária interdisciplinaridade que o tema envolve exige uma interlocução efetiva com o
Direito, a Psicologia, a Saúde Pública, as Ciências Sociais, o Serviço Social, a Jus-Filosofia,
entre outros. A articulação entre saúde mental e direitos humanos interessa à sociedade,
aos profissionais, aos pacientes e às respectivas famílias 2. Já não se justifica a dicotomia
do binômio indivíduo/sociedade, pois a discussão sobre a dignidade da pessoa,
independentemente de ser paciente ou autor de delitos, plasma conteúdos de Ciências da
Saúde, das Ciências Jurídicas e das Ciências Sociais.
Embora a interação com diferentes campos do saber e da prática se configure relevante
para a abordagem de vários fenômenos humanos, no que diz respeito às pessoas com
transtorno mental autoras de delitos, encontra um vértice muito peculiar que é o da
discussão de um dos direitos humanos: o direito à saúde. Este trabalho objetiva, portanto,
discutir o direito à saúde dos internos nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico
(HCTP) na perspectiva dos direitos humanos.
Aspectos históricos
O modelo assistencial psiquiátrico hegemônico passou a ser discutido a partir do final da
década de 1940. As críticas se fundamentam no anacronismo e na ineficácia do modelo 3,4.
As denúncias recorrentes de violência nas instituições psiquiátricas têm sido objeto de
mobilizações da sociedade civil e de profissionais de saúde. O crescente clamor social
contra as diversas formas de desrespeito aos direitos humanos tem fortalecido uma
consciência acerca da importância da luta pelo direito à singularidade, à subjetividade e à
diferença. A ampliação da compreensão a respeito da natureza discriminatória dos
estabelecimentos psiquiátricos envolveu familiares, comunidade e outros atores sociais na
discussão da cidadania dos internos nos manicômios judiciários.
Em relação às ações necessárias para a garantia dos direitos humanos dessas pessoas,
Costa 5 (p. 143) reitera o caráter segregador desses estabelecimentos afirmando que o
hospital psiquiátrico tornou-se um “emblema da exclusão e seqüestro da cidadania”,
considerando, ademais, sua repercussão na vida dos padecentes de transtornos mentais ao
longo dos últimos duzentos anos.
O início da assistência psiquiátrica pública no Brasil data da segunda metade do século XIX.
As pessoas que enlouqueciam e eram provenientes das camadas sociais desfavorecidas
eram recolhidas aos asilos, onde padeciam de maustratos.
Sobre isso, Costa 5 (p. 148) comenta, “ficavam presas por correntes em porões imundos
passando frio e fome, convivendo com insetos e roedores, dormindo na pedra nua sobre
dejetos, sem nenhuma esperança de liberdade”.
Sem muita diferença dos tempos atuais, a sociedade do século XIX via no louco uma
ameaça à segurança pública, sendo o recolhimento aos asilos a única maneira de lidar com
a pessoa com transtorno psiquiátrico. Esse recolhimento, autorizado e legitimado pelo
Estado por meio de textos legais editados pelo Imperador, pretendia oferecer proteção à
sociedade.
A crescente pressão da população para o recolhimento dos alienados “inoportunos/as” a um
lugar de isolamento e o questionamento de alguns médicos e intelectuais frente às
condições subumanas das instituições asilares, fizeram com que o Estado Imperial
determinasse a construção de um lugar específico com o objetivo de tratá-los. Nesse
contexto foi criado o Hospício Pedro II, inaugurado em 1852, na cidade do Rio de Janeiro.
17
De forma gradativa, esse modelo assistencial se desenvolveu e se ampliou em todo o
território nacional, consolidando e reproduzindo no solo brasileiro o hospital psiquiátrico
europeu como o espaço socialmente legitimado para a loucura. Entre as unidades
hospitalares criadas com o cunho segregacionista, encontram-se os HCTP para as pessoas
com transtornos mentais que cometeram delitos. A ênfase dessa instituição hospitalar
estava no processo de apartação social descomprometida com o cuidado à saúde e com a
reinserção psicossocial.
O modelo assistencial asilar/carcerário para o tratamento das pessoas com transtornos
mentais é o de exclusão, tanto nos hospitais psiquiátricos para loucos não infratores como
naqueles para loucos infratores, onde a exclusão é mais incisiva. As práticas exercidas nos
hospitais psiquiátricos brasileiros demonstram que o tratamento dispensado tem legitimado a
segregação. Tais instituições configuram-se como espaços de estigmatização e de
obscuridade.
O manicômio judiciário
Os hospitais específicos para acolher os loucos infratores foram instituídos no Brasil a partir
da segunda década do século XX com a denominação de manicômios judiciários. A sua
implementação foi precedida pela discussão acerca de qual seria o encaminhamento
institucional que deveriam ter indivíduos que eram considerados loucos e criminosos. Desse
modo, além dos hospitais psiquiátricos para pessoas com transtornos mentais, começaram a
funcionar no país os espaços asilares para receber e tratar os ditos loucos criminosos.
O manicômio judiciário pode ser caracterizado como uma instituição total, uma vez que
reforça a exclusão individual e limita a interação com o mundo exterior 6. Nas instituições
com essa configuração, as sociedades contemporâneas preservam suas pretensões de
controle e de dominação. O manicômio judiciário passou a ser denominado como HCTP,
conforme previsão do Código Penal brasileiro nos seus artigos 96 e 97 e na Lei de Execução
Penal 7 no artigo 99. A permanência do modelo manicomial tem acirrado a discussão sobre
os direitos humanos de pessoas com transtorno mental autoras de delito e sobre o direito
das famílias acompanharem e assistirem os seus entes internados.
Conforme Carrara 8 (p. 148), “a idéia central é de que ‘loucos perigosos ou que estivessem
envolvidos com a justiça ou polícia’ deveriam ser separados dos alienados comuns,
constituindo-se em objeto institucional distinto”. Configurava-se, assim, uma nova categoria,
a dos “loucos-criminosos”, cujo destino deveria estar absolutamente desvinculado do
Hospício Dom Pedro II. Emer gia a compreensão a respeito da necessidade de construir
uma nova instituição para recolhimento asilar desse segmento populacional. Forjava-se,
dessa maneira, a demanda por um “manicômio criminal”. Essa nova instituição emergia,
pois, correspondendo à convergência dos interesses da área de saúde e do âmbito jurídico,
atendendo à necessidade de zelar pela segurança da sociedade.
A iniciativa, compatível com o pensamento da época e o poder-dever do Estado, excluía a
possibilidade de qualquer integração sócio-familiar do denominado “louco-criminoso”.
O primeiro manicômio judiciário do Brasil e da América Latina foi inaugurado na cidade do
Rio de Janeiro, em 1923. Em relação a esse evento, Carrara 8 (p. 194) comenta que
“coroava-se então um processo muito mais amplo que, atingindo as práticas jurídico-penais
como um todo, fez com que nossos tribunais, como bem apontou Foucault, passassem, a
partir de finais do século XIX, a não julgar mais atos criminosos, mas a própria alma do
criminoso”.
Com a implementação do manicômio judiciário vislumbrava-se uma solução de interesse da
sociedade cujo tecido fora agredido pelo delito da pessoa com transtorno mental. Ao
apresentar-se como instituição prisional, sustentava-se na premissa de que o indivíduo,
18
ainda que com transtorno mental, deveria pagar pelos crimes cometidos. Enquanto
instituição de custódia, guardava uma natureza diferenciada, a de satisfazer as
interpretações patologizantes e biodeterminantes do indivíduo 8. O manicômio judiciário se
caracterizava, portanto, como um lugar social específico para o encontro entre crime e
loucura.
Desse modo, essa instituição apresenta, desde a sua origem, uma estrutura ambígua e
contraditória. Enquanto instituição predominantemente custodial, revela, com grades e
intervenções psiquiátricas, a dupla exclusão que sofrem as pessoas com transtorno mental
autoras de delitos.
No que tange à legislação brasileira, o Código Penal de 1890 dispunha que não são
criminosos os que “por imbecilidade nativa ou enfraquecimento senil forem absolutamente
incapazes de imputação” e “os que se acharem em estado de completa privação dos
sentidos e da inteligência no ato de cometer o crime”. E ainda preceituava que “os indivíduos
isentos de culpabilidade em resultado de afecção mental serão entregues às suas famílias
ou recolhidos a hospitais de alienados, se o seu estado mental assim exigir para a
segurança do público”.
Cinqüenta anos depois, o Código Penal de 1940 instituiu o chamado sistema do “duplo
binário”, que apresentava dois tipos de reação penal: de um lado, a pena, medida segundo o
grau de culpabilidade do sujeito e a gravidade de seu ato; e, de outro, a medida de
segurança, fundada na avaliação do grau de periculosidade do acusado.
A medida de segurança deveria atingir os “loucos criminosos” e algumas outras classes de
delinqüentes não-alienados. Assim, configurava-se a aplicação dupla de pena e medida de
segurança.
Com a Reforma Penal de 1984, foi adotado o sistema vicariante: o fundamento da pena
passa a ser exclusivamente a culpabilidade, enquanto a medida de segurança encontra
justificativa somente na periculosidade aliada à incapacidade penal do agente 7,9. A partir
daí, a medida de segurança passou a ser aplicada apenas aos inimputáveis, tendo tal
instituto a natureza preventiva e não a punitiva. Com tal Reforma, portanto, as medidas de
segurança, que visavam a garantir a proteção tanto do indivíduo com transtorno mental
quanto da sociedade, são alteradas no artigo 96 do Código Penal e passam a significar
obrigatório tratamento psiquiátrico; seja em internação em HCTP ou, à falta de outro
estabelecimento adequado, a sujeição ao tratamento ambulatorial.
Assim, conceitos de culpabilidade, de imputabilidade e periculosidade emergem plasmando
a terminologia jurídica à da Psiquiatria.
A imputabilidade é definida como a capacidade de entendimento psíquico do caráter ilícito
do comportamento delituoso, de acordo com o que prevê o artigo 26 do Código Penal
brasileiro 10. O conceito de periculosidade tem sido objeto de muitos debates nas áreas
médica e jurídica, constituindo-se relevante desde o século XIX. Segundo Foucault 11 (p.
85): “a grande noção da criminologia e da penalidade em fins do século XIX foi a
escandalosa noção, em termos de teoria penal, de periculosidade. A noção de
periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de
suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei
efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam”.
Assim, o conceito da periculosidade presumida justificou a criação e a manutenção do
instituto da medida de segurança como forma de proteger a sociedade daquele que é
perigoso a priori. Dessa forma, quando se suspeita que o indivíduo que praticou ato
delituoso apresenta algum transtorno mental, deve ser feita uma solicitação de exame
médico-legal para que se avalie a imputabilidade com vistas à formação do processo de
19
Incidente de Insanidade Mental 12. Após a finalização do exame de insanidade mental, este
é remetido ao juiz, que poderá acatar ou não o parecer dos peritos. Caso a insanidade
mental tenha sido argüida e o juiz acate o parecer, absolverá o acusado e aplicará a medida
de segurança. O juiz, com a competência jurisdicional específica, uma vez observado o
devido processo legal, deve aplicar a medida de segurança, que tem tempo indeterminado
em face da situação considerada de periculosidade do indivíduo e deverá ser cumprida num
HCTP, sendo que o internamento do indivíduo em tal instituição se destina ao tratamento
psiquiátrico 13.
Destacando a natureza reducionista da compreensão do ser humano quando se elege a
periculosidade como a única expressão possível do sujeito, Barros 14 afirma a inobservância
do equacionamento de suas necessidades. Esse reducionismo compromete o cuidado
integral à saúde da pessoa com transtorno mental e a garantia dos seus respectivos direitos.
A medida de segurança surge como sendo uma pena de caráter aflitivo. Em que pese
constituir-se em um processo terapêutico, a estabilização do quadro patológico
diagnosticado anteriormente não marca o término da medida de segurança, configurando,
assim, uma situação de desrespeito aos princípios dos direitos humanos pela circunstância
de perpetuar a restrição de ir e vir de uma pessoa. Nessa perspectiva crítica das medidas de
segurança, Corrêa 15 (p. 147) acrescenta que elas “continuam sobre conceitos incertos e
ambíguos, e espelham um tipo de conceito indeterminado”.
Baseando-se, portanto, no potencial de periculosidade do infrator, a medida de segurança
possibilita uma segregação indeterminada, pois se o laudo psiquiátrico concluir que não
cessou a periculosidade do paciente, este deverá permanecer internado. Resta ao juiz da
Vara de Execução Penal acatar esta circunstância de caráter médico-psiquiátrico. A medida
de segurança configura, para o interno, a falta de perspectiva do seu retorno ao convívio
comunitário. Este potencial rompimento dos laços sócio-familiares constitui uma das
dimensões pelas quais os direitos humanos repelem a indeterminação do tempo de
internação no HCTP.
Segundo Corrêa 15, a assistência psiquiátrica custodial encontra respaldo na legislação
penal vigente e na organização do Estado. Ambas, pretendendo proteger as pessoas com
transtorno mental autoras de delito, acabam propiciando situações de desrespeito aos
direitos individuais previstos pela Constituição, seja pelo isolamento nos HCTP, seja pela
não garantia das condições mínimas de vida.
A partir de uma nova concepção da doença mental e da situação em que vivem as pessoas
internadas, argumenta-se sobre a pertinência, tanto para a pessoa com transtorno mental
autora de delito quanto para a própria sociedade, não ser aquela considerada irresponsável.
Propõe-se que ela venha a ser julgada e, se condenada, receberá uma pena pelo ato
praticado. Assim, configurando-se necessário o seu tratamento psiquiátrico, a pessoa autora
de delito deve ter acesso ao mesmo, de acordo com as suas características e necessidades
individuais.
Política de saúde mental contemporânea
Ao longo do século XX, foram empreendidos esforços para alterar a realidade asilar
mediante o desenvolvimento de outros modelos de atenção, capazes de promover um maior
grau de interação e de democracia nas relações existentes entre os profissionais e os
internos da instituição psiquiátrica.
O advento do Movimento da Reforma Psiquiátrica marca um novo período, a partir do final
da década de 1990, propondo a superação do modelo hegemônico de caráter excludente e
discriminatório.
20
Diversos setores das áreas de saúde pública e dos direitos humanos convergiram esforços
na tentativa de ruptura, construindo, como proposta alternativa, a estruturação de uma rede
de serviços de atenção diária em saúde mental de base territorial, correspondente ao
modelo dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), cujo projeto integra os usuários às
suas respectivas famílias e à comunidade 16.
Esse processo de superação da centralidade do hospital psiquiátrico tem sido
contemporâneo da dinâmica de descentralização das ações e dos serviços de saúde,
inaugurada formalmente na Constituição Federal de 1988, artigos 1o e 204, juntamente com
as Leis Orgânicas de Saúde – Lei nº. 8.080/90 e Lei nº. 8.142/90 – e as Normas
Operacionais do Sistema Único de Saúde (SUS). A consolidação normativa do Estado
Democrático de Direito refletiu, portanto, também na esfera dos interesses dos cidadãos,
inclusive daqueles com transtorno mental.
A Política Nacional de Saúde Mental foi objeto de recentes reformulações: uma nova
perspectiva no ordenamento jurídico do país em relação à pessoa com transtorno mental
ensejou, com a sanção presidencial, a Lei nº. 10.216, em 6 de abril de 2001 17. Essa
legislação especial dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos
mentais e sobre a reformulação do modelo assistencial em saúde mental, refletindo, assim,
os princípios da Reforma Psiquiátrica.
Essa Reforma visa, entre outros aspectos, a criar uma rede de serviços diversificados,
regionalizados e hierarquizados que promova a efetiva contextualização e reabilitação
psicossocial da pessoa com transtorno mental. Nessa perspectiva, a Reforma apresenta
como princípios: a centralidade da proteção dos direitos humanos e de cidadania das
pessoas com transtornos mentais, a necessidade de construir redes de serviços que
substituam o modelo hospitalocêntrico e a pactuação de ações por parte dos diferentes
atores sociais 18. Contemplando mudanças significativas no modelo de atenção psiquiátrico,
o advento dessa nova política se identifica com o paradigma da co-responsabilidade da
sociedade e do Estado, com evidente perspectiva da descentralização administrativa que já
fora inaugurada em normas anteriores relativas ao segmento infanto-juvenil, em 1990, à
saúde, por meio das Leis Orgânicas de Saúde e da própria Lei Orgânica da Assistência
Social.
As orientações dispostas no texto da Lei nº. 10.216/2001 subvertem a lógica das instituições
totais, inovando em diversos procedimentos e estabelecendo os direitos das pessoas com
transtornos mentais. Essa lei afirma o direito ao tratamento respeitoso e humanizado das
pessoas com transtorno mental, preferencialmente em serviços substitutivos, estruturados
segundo os princípios da territorialidade e da integralidade do cuidado. De acordo com essa
legislação, a internação psiquiátrica configura-se como último recurso terapêutico a ser
adotado, sendo a sua concretização condicionada à emissão de parecer médico com a
devida explicitação de seus motivos. Embora a lei não mencione explicitamente a
circunstância de internação na eventualidade de autoria de delito por pessoa com transtorno
mental, trata da internação compulsória em geral, ou seja, quando for judicialmente
determinada.
De acordo com a norma, independentemente das circunstâncias que precipitaram a
internação psiquiátrica, esta deve se configurar como um recurso terapêutico
compromissado com a reintegração social dos internos. Nesse compromisso situa-se a
garantia do direito à saúde de toda pessoa com transtorno mental. No caso particular
daquela autora de delito, propõe-se que a internação compulsória em HCTP mantenha-se
coerente com os mesmos princípios éticos de garantia de direitos humanos, de forma que a
penalização da pessoa não se sobreponha ao direito de uma atenção integral às suas
necessidades de saúde. Ademais, a penalização legal da pessoa com transtorno mental
21
autora de delito deve observar o princípio da definição temporal da pena, cujo final implica a
reinserção do apenado ao convívio familiar e comunitário.
A construção de uma proposta inovadora na atenção à saúde mental, de acordo com Costa
5 (p. 173), almeja “a cidadania e a recuperação das garantias e direitos fundamentais dos
portadores de Transtornos Mentais”. O autor reconhece, ainda, que “torna-se cada vez mais
relevante a atuação dos organismos da sociedade responsáveis por essa proteção e
garantias constitucionalmente asseguradas”.
Nessa perspectiva, a experiência acumulada há cinco anos pelo Tribunal de Justiça de
Minas Gerais, por meio do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ),
aponta algumas possibilidades concretas de reorientação da atenção à saúde das pessoas
com transtorno mental autoras de delito. O PAI-PJ promove o tratamento em saúde mental
na rede pública de saúde, através do acompanhamento da aplicação das medidas de
segurança ao agente infrator, oferecendo ao juiz subsídios para decisão nos incidentes de
insanidade mental. Estruturado de forma multidisciplinar, esse programa, pioneiro no país,
sugere a aplicação a cada caso de uma medida singular, tensionada pelos princípios
normativos universais 19,20. O PAI-PJ inaugura, assim, uma ruptura com o processo
histórico e dogmático, instaurando, segundo Barros 19 (p. 3), “o conceito da inserção no
cerne de sua ação, atuando em qualquer processo criminal onde um portador de sofrimento
mental esteja na condição de réu”.
Uma das questões centrais trazidas por esse programa está no fato de possibilitar a
convocação da pessoa com transtorno mental autora de delito a responder pelo seu ato:
respondendo publicamente por sua ação através dos estabelecimentos das penas
substitutivas e, ao mesmo tempo, tendo o acompanhamento de saúde necessário.
A experiência do PAI-PJ, diferenciando-se das práticas tradicionalmente exercidas em
relação aos “loucos infratores”, revela que a responsabilidade pelo crime cometido restaura
a dignidade perdida quando foi decretada a inimputabilidade. O seu diferencial é percebido
na realização da mediação entre a clínica, o ato jurídico e o social.
Vislumbra-se, assim, a possibilidade de operacionalizar uma dinâmica que assimile tanto o
princípio da Integralidade quanto o da Eqüidade, na perspectiva do SUS e dos Direitos
Humanos.
Essa lógica, centrada na singularidade do ser humano e na cidadania da pessoa, supera o
modelo assistencial hegemônico, inspirado na presunção de periculosidade, que faz com
que tais pessoas sejam segregadas no HCTP até que cesse o perigo que anunciam.
Considerações finais
A Reforma Psiquiátrica não tem contemplado a reorientação das práticas assistenciais
desen volvidas no âmbito dos HCTP. A manutenção do modelo hegemônico de atenção
psiquiátrica aos loucos infratores tem favorecido uma assistência custodial, impossibilitando
mudanças que venham a integrar a pessoa à sua comunidade e, especialmente, o respeito
aos direitos individuais previstos pela Constituição de 1988. Considera-se que os
dispositivos do Código Penal que criaram a inimputabilidade e a medida de segurança estão
ultrapassados e inadequados, necessitando de mudanças que passem a considerar todas
as pessoas como efetivamente iguais perante a lei, sem a inimputabilidade ou
irresponsabilidade e a medida de segurança.
Na administração do HCTP, o Estado incorpora a demanda punitivo-segregacionista
produzida socialmente, voltando-se para os internos com uma estrutura alicerçada na
violência, amparada pelo medo, controladora e reprodutora da desconfiança. Assim, o que
se evidencia é a presença de uma tradição fundada na negação dos direitos humanos dos
pacientes psiquiátricos que não contam com uma rede de serviços de atenção à saúde
22
mental estruturada, capaz de prestar assistência de forma contínua e integral. São escassas
as políticas públicas de promoção à saúde mental, de promoção à convivência familiar e de
prevenção aos transtornos mentais.
Mesmo o Programa Saúde da Família (PSF), implementado a partir de 1994, como proposta
de reorientação da atenção básica, não tem propiciado, de forma sistemática, uma atenção
à saúde mental nas comunidades assistidas. Evidencia-se, assim, a pertinência da
discussão e da integração de ações entre o Ministério da Justiça e o Ministério da Saúde,
com participação, em todos os níveis, de representantes do Ministério Público, do Poder
Judiciário, da sociedade civil, dos profissionais de saúde, entre outros. Justifica-se, ademais,
a inclusão do tema na formação dos profissionais de saúde, visando a potencializar os
contatos destes com as famílias, seja no âmbito da unidade de saúde ou nos espaços
comunitários, para a identificação dos casos e para o desenvolvimento da cidadania por
meio de uma abordagem dialógica 21. Salienta-se, sobretudo, a importância de trazer para a
instância de formação dos operadores jurídicos a perspectiva do direito à saúde 22.
Embora o direito à saúde tenha sido assimilado de diferentes formas ao longo do século XX,
entende-se que a política de saúde mental deve ser baseada em princípios mais equânimes,
observando-se a promoção da saúde dentro do espectro de políticas econômicas e sociais.
Assim, o tema do direito à saúde das pessoas com transtorno mental autoras de delitos
corresponde a um direito social a ser perseguido 22.
Cabe aos agentes do Estado a materialização da responsabilidade no cumprimento da
função social a ele destinada. Nesse sentido, o Estado, em co-responsabilidade com a
sociedade, deve promover a efetiva reorientação do modelo de atenção à saúde das
pessoas com transtorno mental autoras de delitos.
Dentre os instrumentos de proteção e defesa dos direitos humanos das pessoas com
transtornos mentais encontra-se a Lei nº. 10.216/2001, a qual assimilou os princípios e os
objetivos da Reforma Psiquiátrica. Nesse sentido, considera-se fundamental estender os
benefícios dessa legislação aos internos e egressos de HCTP, de forma a promover a
integralidade e a humanização dos serviços prestados a essas pessoas, o respeito a seus
direitos e a melhoria da qualidade de suas vidas, na perspectiva dos direitos humanos.
23
Download