Integralidade nas Políticas de Saúde Mental Domingos Sávio Alves Abordaremos a integralidade no contexto do que chamamos de “os novos paradigmas da atenção em saúde mental”. Ao discutir a integralidade, levando em conta o referencial acima delineado, vamos trabalhar a natureza do cuidar e duas questões que obrigatoriamente compõem essa natureza: oferta/seleção e inclusão/exclusão. Iniciaremos exemplificando a prática usual a ser superada, pois nela a seleção é o critério básico da oferta de programas: até há pouco tempo, para ser atendido no Instituto dos Cegos, qualquer outra incapacidade adicional (por exemplo, ser portador de deficiência auditiva ou ser paraplégico) era impeditivo de inclusão nos programas daquela instituição, pois para eles existem o Instituto de Surdos e a ABBR. Se o paciente é psicótico e, além disso, está em cadeira de rodas, conseqüentemente não tem possibilidade de acompanhar os diversos programas existentes nos ambulatórios – em geral estes têm escadas ou não têm banheiros adaptados, pois, afinal, é um serviço para psicóticos. Ou seja, a presença de várias deficiências ou desvantagens torna o cliente não selecionável para o “programa” e ainda hoje o critério de exclusão é o hegemônico, pois a premissa de política pública aplicada durante várias décadas somente leva em conta “um” problema. Essas práticas têm como base a forte determinação nosológica ou taxonômica das intervenções em saúde, sobretudo a partir da influência norte-americana na formação dos profissionais de saúde, o chamado modelo flexneriano, implantado a partir dos anos 40 do século passado. Portanto, seleção e exclusão caminham juntas. No final da década de 80 e início de 90, nós trabalhamos com outros paradigmas relacionados com atenção aos portadores de transtornos mentais, substituindo intencionalmente a palavra “tratar”, que sempre pressupõe uma nomeação diagnóstica, por “cuidar”, termo mais adequado que incorpora vários “problemas” a serem superados, negando, a princípio, critérios habituais de seleção e/ou exclusão. A integralidade, portanto, lida necessariamente com os seguintes conceitos: inclusão, exclusão, seleção e cobertura. A saúde mental é o primeiro campo da medicina em que se trabalha intensiva e obrigatoriamente com a interdisciplinaridade e a intersetorialidade. Quando falarmos das experiências inovadoras, esses dois conceitos estarão juntos. Para entendermos como chegamos até este ponto, colocaremos uma sistematização, menos preocupados com o rigor científico, mas com elementos conceituais e práticos que determinaram uma ou outra organização dos serviços e suas conseqüentes formas de intervenção: Assistência Psiquiátrica – Modelos de Atenção – Período Pressupostos Serviço Até os anos 70 Preventivismo Simplificado Especialização Hospícios Anos 70 – 80 Especialização Hospícios ou AMB Setorização Especializados Anos 80 – 90 Racionalidade Porta de entrada Regionalização Rede serviços regionais Hierarquização Referência / contra-referência Intensidade Anos 90 Território Responsáveis regionais Diversificação Único / integral Complexidade Rede social Tendência no ano 2000 Inversão modelo PSF / PACS Cidade saudável Sem serviço Internação domiciliar Por essa sistematização, observa-se que as premissas às quais nos referimos, tais como seleção e conseqüente exclusão, permeiam as políticas para a área de saúde mental, desde a incorporação da loucura como objeto da medicina, ocorrida no século XVIII, até o início 1 dos anos 90. Vejam como as palavras de ordem são: especialização, racionalidade, hierarquização dos problemas, intensidade. A partir da década de 90, já sob forte influência dos postulados da Psiquiatria Democrática italiana e de sua então estimulante experiência de substituição dos hospitais psiquiátricos, outros pressupostos definem as políticas: noção de responsabilidade territorial / regional e oferta diversificada de programas, entendendo que os problemas são complexos e “diversos”. Tornaram-se assim ultrapassadas, em tese, as premissas de seleção e exclusão. Para entender melhor a necessidade dessa ruptura, levada a cabo inicialmente na já referida exitosa experiência italiana, deve-se mencionar, mesmo que de maneira superficial e sucinta, o surgimento da Psiquiatria enquanto especialidade da medicina. Como já foi dito, deu-se no século XVIII, no auge do Positivismo e da influência da recente identificação da bactéria por Pasteur. Jean Tenon, influente teórico das Humanidades, onde se incluía a Medicina de então, aplicou aos portadores de transtornos mentais a mesma máxima aplicada às bactérias: “é preciso isolar para conhecer e conhecer para intervir”. Estava fundado o hospício e com ele a Psiquiatria. As diversas iniciativas, a partir do pós-guerra, no Ocidente, de substituir ou diminuir o papel do hospital psiquiátrico, passaram pela Antipsiquiatria, pelo preventivismo, pelas comunidades terapêuticas e finalmente pelos pressupostos da reforma italiana, que sinteticamente poderiam ser assim colocados: a incapacidade da Psiquiatria, enquanto campo do conhecimento, de dar conta isoladamente, da questão da loucura; da inadequação do hospital psiquiátrico enquanto dispositivo da intervenção técnica e o direito dos portadores de transtornos mentais de terem cidadania reconhecida (opinar no tratamento, negar-se a procedimentos violentos e administrar seu destino). Esse novo paradigma configurou as políticas de saúde mental de vários países ocidentais a partir da década de 80, e na América do Sul exerceu forte influência, manifestada na Conferência Regional para Reorientação da Assistência Psiquiátrica no Continente, patrocinada pela Organização Pan-Americana da Saúde e realizada em Caracas, em novembro de 1990. O seu produto mais conhecido e importante foi a Declaração de Caracas, uma conclamação aos governos e demais atores do campo da saúde mental a promoverem radicais mudanças na assistência, condenando o papel segregador e iatrogênico do modelo tradicional de tratamento, denunciando os freqüentes martírios no interior dos hospícios e as legislações incompatíveis com o grau de avanço das conquistas de várias minorias no campo do Direito Civil. Essas recomendações da OPAS tiveram conseqüência em diversos países, dentre eles o Brasil, que além de já vir passando por recentes experiências inovadoras, teve novo ordenamento jurídico do setor saúde, a partir de 1990, com a promulgação da Lei Orgânica da Saúde. E onde entra a questão da integralidade? Entram aqui questões de natureza ideológica e de natureza técnica. A primeira diz respeito à condenação da segregação, por ferir direitos à convivência e ao livre arbítrio, e a segunda, ao negar o isolamento como instrumento terapêutico, paradigma essencial à sobrevivência do hospício. A negação do papel do isolamento, aliada à compreensão de que o que deve ser cuidado é o indivíduo e seus problemas e não somente o seu diagnóstico, determinam um olhar “integral” da situação. A pergunta que se segue é: que modelo adotar para atender à integralidade? 2 Temos acompanhado a formulação proposta por Benedetto Saraceno, diretor do Departamento de Saúde Mental da OMS, segundo a qual ele insiste na necessidade de se superar a idéia de modelos e trabalhar com premissas. A que melhor define a qualidade de um programa ou projeto em saúde mental é a decorrente do conceito de acessibilidade, que ele assim sistematiza: ACESSIBILIDADE Geografia: local; fluxo viário; barreiras físicas ou outras Turnos de funcionamento: serviço único ou integrado Menu de programas : assistência; reinserção; lazer; hospitalidade; trabalho A integralidade está implícita nos três indicadores propostos por ele, com destaque no menu de programas, onde assistência é apenas um dos itens obrigatórios de qualquer proposta abrangente, cidadã e ética. Desde 1991, os regulamentos da Política Nacional de Saúde Mental – Portarias n. 189/91 e 224/92 – definem claramente a integralidade como componente obrigatório dessa política e, mais recentemente, a Lei Federal que reorienta a assistência psiquiátrica – n. 10.216, de 06/04/2001, em seu artigo 4º, §2º – determina que: “O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer e outros”. Um exemplo bem claro do que entendemos como integralidade é o que acontece no Projeto de Volta à Cidadania, compartilhado entre o Instituto Franco Basaglia e a Funlar, órgão da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social do Rio de Janeiro. São 34 crianças portadoras de graves deficiências físicas e mentais, com graus variados de dependência de cuidados, morando em três casas no Grajaú e que participam de oficinas na Funlar, em Vila Isabel, ou em outras instituições; freqüentam ambientes com atividades recreativas, culturais e/ou esportivas na Mangueira; algumas estudam e outras não. Estão matriculadas em escolas comuns, pois não as colocamos em escola especial. Para nós, “especial” é a criança; não consideramos a escola especial, em princípio, como lugar adequado para qualquer tipo de pessoa. A escola normal é que deverá criar uma atividade especial. Se valorizarmos a opção pela “escola especial”, vamos ter escola para todo tipo de problema (mais detalhes nas Sugestões de Bibliografia). Consideramos componentes indissociáveis da integralidade: a intersetorialidade e a diversificação. Se nos propusemos a lidar com problemas complexos, há que se diversificar ofertas, de maneira integrada, e buscar em outros setores aquilo que a saúde não oferece, pois nem sempre lhe é inerente. Por isso, o dispositivo estratégico mais eficiente de substituição do hospital psiquiátrico têm sido os Centros ou Núcleos de Atenção Psicossocial (CAPS/NAPS), também chamados de serviços comunitários de saúde mental, que por e para serem comunitários, têm que atender aos postulados de acessibilidade, e portanto, de qualidade, sugeridos por Saraceno. Se estes são comunitários, se inserem em determinada cultura, em território definido, com seus problemas e suas potencialidades, arena onde as “crises” devem ser enfrentadas, resultado que são, geralmente, de fatores do indivíduo, de sua família, eventualmente de seu trabalho, e seguramente de seu meio social. A diversificação de programas é fundamental para se acolher alguém de forma integral, já que, com um menu variado e diversificado de possibilidades, reduz-se muito a tentação da seleção. 3 Aqui os maiores problemas são, além da forte influência do modelo tradicional de cuidado, a grande dificuldade dos profissionais para renunciarem a “um” papel específico – afinal são especialistas, e compartilhar saberes é exercício contínuo e muito difícil. As principais estratégias para superar esse desafio têm sido a disseminação de cursos de especialização em saúde mental, tentando suprir aquilo que não se aprende comumente na graduação e nas pós-graduações de formato clássico, além da supervisão permanente e sistematizada nos serviços comunitários de saúde mental, locais privilegiados para incorporação de um conhecimento de fato “coletivo”. O que temos de novo e de mais radical, não especificamente na saúde mental, mas no campo das políticas públicas de saúde, é a implantação do Programa de Saúde da Família. Por isso a referência, em nossa sistematização dos períodos e respectivos modelos de atenção à “Inversão de Modelo” e “Ausência de Serviços”, à tendência imaginada para este século. De fato, propõe-se aquilo que desde o final da década de 80 era consenso entre os sanitaristas a mudança da lógica do modelo assistencial, do coletivo para o individual. Não podemos cair na tentação de considerar que os problemas agora equacionados, do ponto de vista da saúde pública – pois apesar de ser um modelo defensável, justo socialmente, dirigido aos mais carentes e de financiamento decente, tanto no que se refere aos insumos, como farmácia básica, quanto à valorização profissional – devem ser entendidos como estratégia de reorganização da assistência. Qualquer simplificação em relação a este Programa, uma expectativa demasiado otimista, ou sua cristalização como modelo e não como estratégia, pode levá-lo a um retumbante, caro e frustrante fracasso. Seria também ingênuo apegar-se à terminologia do Programa, pois há que se lembrar sempre que essa “família” nem sempre existe, ou, quando existe, seu núcleo pode estar esfacelado, mas isto deve ser compreendido e não pode se constituir em empecilho, mas em desafio a ser superado. Os resultados das experiências mais duradouras do PSF – mais de dois anos – já são visíveis, mudando para melhor vários indicadores sanitários (ver Sugestões de Bibliografia). No campo da saúde mental, alguns sanitaristas e especialistas ainda divergem quanto à pertinência e eficácia do Programa. O consenso dificilmente será atingido, mas há um significativo avanço de sua compreensão enquanto estratégia, e que, para a área de saúde mental não há nenhuma contradição com os postulados, hoje hegemônicos, entre os formuladores da política da Reforma Psiquiátrica. No PSF estão contempladas, de forma quase insuperável, pois inerentes a ele, a integralidade e a noção do problema enquanto conjunto, aí incluídos o indivíduo, sua família e seu meio social. Então, onde estão as divergências? Aqui temos dois tipos de problema: o primeiro, e mais importante, diz respeito ao formato como se organiza o PSF: tende a repetir o já tradicional modelo médico biológico, com uma hierarquia na relação de conhecimento e “mando” tão nefasta à prática da saúde pública. E, no campo da saúde mental, a superação dessa prática é conquista relativamente recente e nos é muito cara, pois compartilhar saberes, renunciar ao mandato médico, naquilo que ele tem de pior, e trabalhar de fato em “equipe multiprofissional”, tem sido a marca do cuidar nos serviços comunitários de saúde mental. Portanto, não é propriamente uma divergência, mas uma desconfiança legítima. Pensamos que é uma questão superável: haverá PSFs e PSFs e, em alguns, prevalecerá, de fato, o modelo tradicional, hierárquico e biológico. O Programa, no entanto, é, como concebido e formulado pelo Ministério da Saúde e vivido nos diversos municípios, uma estratégia de agregação de conhecimentos. Além disso supõe, para seu sucesso, que tenha um olhar “integral” do problema, do contrário não faria sentido ser local, territorial e portanto, comunitário. 4 Um segundo problema tem sido levantado e nos parece, salvo grande engano, irrelevante: a possibilidade de se criar uma demanda impossível de ser atendida, pois ao se entrar “nas famílias”, problemas psicológicos de toda ordem serão encontrados, e do ponto de vista ético, deverão ser atendidos. Inicialmente, este não tem sido o relato da maioria das experiências em curso (ver Sugestões de Bibliografia) e, por outro, há diversas formas de se lidar com os chamados “problemas menores”, pois o conhecimento da Psicanálise, da Farmacologia e de outro instrumental não quer dizer que somente estes possam e devam ser usados. Há que se ter grande cuidado para não se psicologizar o cotidiano, tentação que vem sendo vencida nos últimos anos. Cabe novamente uma sugestão de Benedetto Saraceno: ao se organizar um programa de saúde pública, há que se priorizar recursos, na lógica, de que “quem mais precisa é quem deve receber primeiro”. Isto quer dizer que a avaliação dos problemas tem que ser feita a todo momento, mas que alguns eventos devem merecer, por sua gravidade e custos social e financeiro, prioridade. Cita, nesta ordem: psicoses, dependência química, grave dependência institucional e deficiência mental. Está então colocado para nós um bom desafio: nos incorporarmos ao PSF, valendo-nos do que ele tem de inovador e reorganizador da assistência e contaminá-lo com nossa prática exitosa de compartilhar saberes e olhar os problemas no conjunto, para cuidar de forma integral. Novos Sujeitos, Novos Direitos: O Debate em Torno da Reforma Psiquiátrica Cad. Saúde Pública v.11 n.3 Rio de Janeiro jul./set. 1995 Castel relata que Jules Falret, encarregado pela Sociedade Médico-Psicológica de Paris de visitar a aldeia belga de Gheel, onde alienados trabalhavam e habitavam em harmoniosa convivência com os camponeses, declarou na reunião de 30 de dezembro de 1861: " Fica-se verdadeiramente estupefato e assustado quando se vê os camponeses deixarem circular livremente os alienados no seio de suas famílias, de suas filhas e das crianças, confiar-lhes armas e ferramentas. (...) O sentimento que predomina em Gheel (...) é a confiança, na verdade exagerada, nos alienados e em seu caráter inofensivo" (Castel, 1978: 254). Mas, anteriormente, o próprio Pinel já afirmava: "Em geral é tão agradável, para um doente, estar no seio da família e aí receber os cuidados e as consolações de uma amizade tenra e indulgente, que enuncio penosamente uma verdade triste, mas constatada pela experiência repetida, qual seja, a absoluta necessidade de confiar os alienados a mãos estrangeiras e de isolálos de seus parentes" (Castel, 1978: 86). A doença mental, objeto construído há duzentos anos, implicava o pressuposto de erro da Razão. Assim, o alienado não tinha a possibilidade de gozar da Razão plena e, portanto, da liberdade de escolha. Liberdade de escolha era o prérequisito da cidadania. E se não era livre não poderia ser cidadão. Ao asilo alienista era devotada a tarefa de isolar os alienados do meio ao qual se atribuía a causalidade da alienação para, por meio do tratamento moral, restituir-lhes a Razão, portanto, a Liberdade. No contexto da Revolução Francesa, com o lema "Liberdade, Igualdade e Fraternidade", o alienismo veio sugerir uma possível solução para a condição civil e política dos alienados que não poderiam gozar igualmente dos direitos de cidadania mas que, também, para não contradizer aqueles mesmos lemas, não poderiam ser simplesmente excluídos. O asilo 5 tornou-se então o espaço da cura da Razão e da Liberdade, da condição precípua do alienado tornarse sujeito de direito. A repercussão que teve a Revolução Francesa para a nova ordem mundial fez com que estes princípios alienistas fossem adotados na maior parte do mundo ocidental. O asilo psiquiátrico tornouse assim o imperativo para todos aqueles considerados loucos, despossuídos da Razão, delirantes, alucinados. O asilo, lugar da liberação dos alienados, transformou-se no maior a mais violento espaço da exclusão, de sonegação e mortificação das subjetividades. "História da Loucura na Idade Clássica", de Michel Foucault, como se sabe, foi fundamental para reescrever a história da loucura, da psiquiatria e de toda a forma da sociedade moderna em lidar, não apenas com a loucura mas, ainda, com todas as formas de diferenças, desvios e divergências sociais e culturais. Muitas obras importantes contribuíram para esta inversão, dentre as quais destacam-se as de Rosen, Castel, Szazs, Goffman a Burton, para exemplificar apenas algumas. No Brasil são de igual importância as obras de Joel Birman, Jurandir Freire Costa a Roberto Machado. Em 1978, no contexto da redemocratização, surge, no Rio de Janeiro, o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), que virá a tornarse o ator social estratégico pelas reformas no campo da saúde mental. O MTSM, num primeiro momento, organiza um teclado de críticas ao modelo psiquiátrico clássico, constatandoas na prática das instituições psiquiátricas. Procurando entender a função social da psiquiatria e suas instituições, para além de seu papel explicitamente médico-terapêutico, o MTSM constrói um pensamento crítico no campo da saúde mental que permite visualizar uma possibilidade de inversão deste modelo a partir do conceito de desinstitucionalização. Em dezembro de 1987, no encontro dos trabalhadores em saúde Mental, em Bauru, surge uma nova e fundamental estratégia. O movimento amplia-se no sentido de ultrapassar sua natureza exclusivamente técnico-científica, tornando-se um movimento social pelas transformações no campo da saúde mental. O lema "Por uma Sociedade Sem Manicômios", construído neste contexto, aponta para a necessidade do envolvimento da sociedade na discussão e encaminhamento das questões relacionadas à doença mental e à assistência psiquiátrica. Deste ano até hoje, o Movimento vem organizando inúmeras atividades culturais, artísticas e científicas nos estados e nas principais cidades do país, com o objetivo de sensibilizar e envolver novos atores sociais na questão: de lá para cá foram organizadas dezenas de associações de familiares, voluntários e usuários de serviços psiquiátricos. Da mesma forma, inúmeras entidades da sociedade civil passaram a incluir o tema em seus debates e pautas de atuação. Em 1989, dois outros acontecimentos marcaram esta trajetória. O primeiro foi a intervenção, pela Prefeitura de Santos, na Casa de Saúde Anchieta, de um hospício privado que contava com mais de 500 internos. Possibilitada pelo processo de municipalização do sistema de saúde, a intervenção deu início ao fechamento do hospício e à substituição do modelo assistencial, com a criação de Centros de Atenção Psicossocial (que funcionam 24 horas, atendendo quaisquer situações de crise psiquiátrica e/ou social relacionada ao estado mental, inclusive com leitos de suporte para hospedagem em situações mais graves), de projetos culturais e artísticos – a exemplo do Projeto TAMTAM –, de Lares Abrigados para exinternos ou para novos pacientes que não tenham casa ou condições de moradia, e de uma cooperativa de trabalho que oferece condições de trabalho para as populações carentes, com ou sem problema especificamente psiquiátrico. Com a repercussão da experiência de Santos, o outro fato importante foi o surgimento do Projeto de Lei Paulo Delgado, que propõe a extinção progressiva do modelo psiquiátrico 6 clássico, com sua substituição por outras modalidades assistenciais e tecnologias de cuidados. O certo é que este conjunto de fatos e iniciativas tem propiciado um importante movimento de transformações no campo da Saúde Mental no Brasil. Autor de vários livros em psiquiatria e saúde mental, assessor de saúde mental da Organização Mundial da Saúde (OMS), Editor da Revista Psiquiatria Pública, diretor da Rede de Serviços Comunitários de Saúde Mental de Madri (onde promove um importante processo de desinstitucionalização), Manuel Desviat é um importante psiquiatra europeu. Em seu último livro, intitulado "La Reforma Psiquiátrica", Desviat dedica um capítulo à reforma psiquiátrica brasileira, que considera um dos mais frutíferos, promissores e vigorosos processos de transformação no campo da saúde mental e da psiquiatria. Este é apenas um exemplo do interesse internacional pelo processo brasileiro. As portarias 189/91 a 224/92 do Ministério da Saúde abriram a possibilidade, até então inexistente, para que o Sistema único de saúde (SUS) possa financiar outros procedimentos assistenciais que não o simples leito/dia ou consulta ambulatorial. De 1991 até abril de 1995, os leitos psiquiátricos caíram da casa dos 86 mil para 72 mil. Portanto, uma redução de 14 mil leitos, considerando que 30 hospitais privados tiveram suas atividades encerradas. No mesmo período foram criados 2.065 leitos psiquiátricos em hospitais gerais e mais de 100 núcleos e centros de atenção psicossocial. Sabemos que o mundo do confinamento não serviu apenas à ordem política e econômica, que necessitava esquadrinhar o espaço público destinando lugares de inclusão e exclusão social. Serviu também, e nisso o Brasil foi praticamente inigualável, a uma promissora "indústria da loucura", como, com muita propriedade, a denominou Carlos Gentile de Mello, consolidada a partir do Plano de Pronta Ação do Ministro Leonel Miranda, que operou a maior privatização da assistência psiquiátrica de que se tem notícia. Tais empresários resistem às reformas no campo da saúde mental, mesmo sabendo que poderiam participar do novo sistema, uma vez que se propusessem a constituir os novos serviços, embora não fôsse possível incluí-los, automaticamente, como veremos, no contexto da desinstitucionalização, já que esta não significa apenas a administração de serviços não hospitalares. Alguns destes empresários, movidos pela ameaça que representa a reforma psiquiátrica, e não apenas o projeto Paulo Delgado, vêm aterrorizando familiares, deturpando os princípios da reforma, dizendo-lhes que o que se propõe é o fechamento dos hospícios e a devolução dos internos aos familiares ou o abandono dos mesmos nas ruas. Tal iniciativa já se faz presente na criação de uma entidade de familiares financiada por estes mesmos empresários, para oporem-se às reformas. Outro setor que vem levantando questões contrárias ao processo da reforma é o acadêmico psiquiátrico clássico. Refutam a idéia de Franco Basaglia, de que a psiquiatria colocou o doente entre parênteses para ocupar-se do estudo da doença, tendo assim construído um objeto fictício, pois não existe a doença sem o sujeito de sua experiência. Seguindo a tradição husserliana, entende Basaglia que seria necessário promover uma redução fenomenológica (épochè), colocando a (doença mental) entre parênteses, para poder ocuparse do doente em sua experiência concreta de sofrimento. Este procedimento epistemológico inscrevese no contexto do primeiro uso da complexidade, tal como proposto por Isabelle Stengers, que está no desafio de resgatar a singularidade da operação que o conceito oculta, sem que esse desmascaramento signifique "descobrir" a verdadeira realidade do objeto, mas sim reabrir a possibilidade de sua re-complexificação. 7 Carvalhal Ribas costumava dizer que o mal maior da psiquiatria era o doente mental que não se dobrava ao saber psiquiátrico. Mesmo assim a psiquiatria não aceita debater seu paradigma. Um argumento de outra natureza, comumente utilizado por estes mesmos setores, é o de que a reforma foi tentada e fracassada em outros países. Utilizam como exemplo mais comum a experiência dos E.U.A., que é a qual a experiência brasileira explicita maior distanciamento, por ter reduzido o conceito de desinstitucionalização à meras medidas de desospitalização, sem a necessária construção de uma nova rede de serviços e cuidados. Em todo o caso, o argumento corresponderia a dizer que, uma vez que ainda se cometem crimes a violências contra negros, mulheres a crianças, a luta contra esta violência não teria nem eficácia nem razão de ser. Finalmente, o modelo psiquiátrico clássico favorece ainda o modelo profissional "liberal", que reduz a atitude terapêutica a sessões individuais, à psicoterapias, à administração de fármacos – sem um maior esforço cotidiano –, ou a uma verdadeira tomada de responsabilidade, como proposto por Giuseppe Dell'Acqua, isto é, o ocuparse do doente em sua experiência-sofrimento. Vimos que não estamos falando de fechar hospícios (ou hospitais psiquiátricos, se preferirem) e abandonar as pessoas em suas famílias, muito menos nas ruas. Vimos que não estamos falando em fechar leitos para reduzir custos, no sentido do neoliberalismo ou no sentido do enxugamento do Estado (aliás, em princípio, a rede de novos serviços e cuidados tende a requerer maior investimento não apenas técnico e social, mas também financeiro). Estamos falando em desinstitucionalização, que não significa apenas desospitalização, mas desconstrução. Isto é, superação de um modelo arcaico centrado no conceito de doença como falta e erro, centrado no tratamento da doença como entidade abstrata. Desinstitucionalização significa tratar o sujeito em sua existência e em relação com suas condições concretas de vida. Isto significa não administrar-lhe apenas fármacos ou psicoterapias, mas construir possibilidades. O tratamento deixa de ser a exclusão em espaços de violência e mortificação para tornar-se criação de possibilidades concretas de sociabilidade a subjetividade. O doente, antes excluído do mundo dos direitos e da cidadania, deve tornar-se um sujeito, e não um objeto do saber psiquiátrico. A desinstitucionalização é este processo, não apenas técnico, administrativo, jurídico, legislativo ou político; é, acima de tudo, um processo ético, de reconhecimento de uma prática que introduz novos sujeitos de direito e novos direitos para os sujeitos. De uma prática que reconhece, inclusive, o direito das pessoas mentalmente enfermas em terem um tratamento efetivo, em receberem um cuidado verdadeiro, uma terapêutica cidadã, não um cativeiro. Sendo uma questão de base ética, o futuro da reforma psiquiátrica não está apenas no sucesso terapêutico-assistencial das novas tecnologias de cuidado ou dos novos serviços, mas na escolha da sociedade brasileira, da forma como vai lidar com os seus diferentes, com suas minorias, com os sujeitos em desvantagem social. A proposta de reabilitação psicossocial de Saraceno: um modelo de auto-organização? Rev. Latino-Am. Enfermagem v.14 n.3 Ribeirão Preto maio/jun. 2006 INTRODUÇÃO A partir da década de 1950, diversos esforços interdisciplinares foram dedicados ao estudo do fenômeno da Auto-Organização, que ocorre quando um sistema aberto altera seus 8 padrões organizacionais, impelido por linhas de força endógenas. Tais estudos levaram à elaboração de uma Teoria da Auto-Organização, que se contrapõe epistemologicamente ao paradigma oriundo da física newtoniana, no qual as causas explicativas do comportamento de um sistema são procuradas no seu exterior. Ao longo da evolução recente da ciência e da filosofia da ciência, a Teoria da Auto-Organização tem sido aplicada em diversas áreas do conhecimento, da física microscópica até os sistemas humanos. Sabe-se que "há autoorganização cada vez que, a partir de um encontro entre elementos realmente (e não analiticamente) distintos, se desenvolve uma interação sem supervisor (ou sem supervisor onipotente) - interação essa que leva eventualmente à constituição de uma 'forma' ou à reestruturação, por 'complexificação', de uma forma já existente" (1). Para a definição dos processos de auto-organização adota-se aqui, os seguintes critérios: a) o sistema em questão deve abarcar diversos fatores independentes entre si; b) do jogo entre esses fatores se desenvolve uma nova forma organizacional no sistema; c) apesar do sistema receber perturbações externas, o que determina a nova forma são as interações entre os fatores internos; d) o sistema não apresenta uma descontinuidade total em função das alterações decorrentes do processo, pois, no caso de uma ruptura radical, ele não poderia ser considerado como sendo o mesmo sistema(2). Uma aplicação da Teoria da Auto-Organização à área de saúde seria desejável para propiciar melhor entendimento da multiplicidade de fatores que regem o processo saúdedoença, e de como esses fatores interagem no tempo e no espaço de forma singular, constituindo a história de vida da pessoa(3). Na área de Saúde Mental, por meio dessa teoria pode-se melhor entender como diversas dimensões ou categorias da experiência de vida de uma pessoa interagem, criando condições para sua saúde mental ou desencadeando crises que podem aumentar a suscetibilidade ao transtorno mental (4-5). Para realizar esse enfoque, começa-se aqui, com uma análise da proposta de Reabilitação Psicossocial elaborada por Saraceno, a qual tem tido grande influência na reforma do atendimento em saúde mental no Brasil. Pensa-se que essa discussão pode respaldar a prática do enfermeiro no contexto atual da Reforma Psiquiátrica, visto que alguns autores (6) destacam a dificuldade desse profissional em abandonar o modelo organicista, como referencial de sua atuação prática, e incorporar os conceitos psicossociais inerentes ao contexto dos serviços substitutivos de atenção em saúde mental. A PROPOSTA DE REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL DE SARACENO A reabilitação psicossocial, que tem em Saraceno um de seus principais representantes, destina-se a aumentar as habilidades da pessoa, diminuindo as deficiências e os danos da experiência do transtorno mental. Tal noção de reabilitação se baseia em importante distinção terminológica proposta pela Organização Mundial da Saúde, ou seja, "Doença ou Distúrbio (condição física ou mental percebida como desvio do estado de saúde normal e descrita em termos de sintomas e sinais); Dano ou Hipofunção (dano orgânico e/ou funcional a cargo de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica); Desabilitação (disabilitá, limitação ou perda de capacidades operativas produzidas por hipofunções); Deficiência (desvantagem, conseqüência de uma hipofunção e/ou desabilitação que limita ou impede o desempenho do sujeito ou das capacidades de qualquer sujeito)" (7). Considerando as definições apresentadas acima, a reabilitação seria compreendida pelo conjunto de ações que se destinam a aumentar as habilidades do indivíduo, diminuindo, conseqüentemente, suas desabilitações e a deficiência, podendo, também, no caso do transtorno mental, diminuir o dano. Para que ocorra uma efetiva reabilitação, é importante a reinserção da pessoa na sociedade. Quando a própria pessoa acredita que é incapaz ou impotente frente à dinâmica de sua vida, há o surgimento de um estado de inércia e diminuição de sua condição para o enfrentamento das dificuldades vividas, situação que pode ser modificada à medida que o apoio da rede social se amplia. 9 Assim, a cisão entre sujeito e contexto social, própria da psiquiatria tradicional, é superada pelo conceito de reabilitação psicossocial, que envolve "profissionais e todos os atores do processo de saúde-doença, ou seja, todos os usuários e a comunidade inteira". Nesse sentido, o processo de reabilitação consiste em "reconstrução, um exercício pleno de cidadania e, também, de plena contratualidade nos três grandes cenários: hábitat, rede social e trabalho com valor social"(8). A reabilitação psicossocial também pode ser considerada como um "processo pelo qual se facilita ao indivíduo com limitações, a restauração no melhor nível possível de autonomia de suas funções na comunidade"(9). Ainda se pode definir "reabilitar" como "melhorar as capacidades das pessoas com transtornos mentais no que se refere à vida, aprendizagem, trabalho, socialização e adaptação de forma mais normalizada possível"(10). A vulnerabilidade psicológica de uma pessoa se define como a capacidade de reação a acontecimentos estressantes. Os acontecimentos podem levá-la ao desenvolvimento de transtornos mentais, quando exigem, para seu enfrentamento, habilidades que não foram elaboradas pela pessoa. Os fatores de vulnerabilidade são inversamente proporcionais à capacidade de enfrentamento de acontecimentos estressantes. Tais fatores podem ser inespecíficos (como isolamento, falta de sono, doenças somáticas e efeitos do uso de tóxicos) e específicos (crises existenciais, reações de perda pessoal, eventos traumáticos e conflitos insolúveis). Durante a vida, uma pessoa pode deparar-se com situações difíceis, nas quais sua capacidade de enfrentamento se encontra reduzida, e assim vir a desencadear um processo que conduz ao transtorno mental. A crise vivida pode trazer para o sujeito mudanças e crescimento; porém, se não for acompanhada de resolução saudável poderá trazer rupturas no processo existencial(11). Esses autores enfatizam a possibilidade de desenvolvimento das habilidades de enfrentamento de situações sociais, desse modo reduzindo o patamar de vulnerabilidade da pessoa. A reabilitação não é a passagem de um estado de desabilidade para um estado de habilidade, ou de incapacidade para a capacidade. Essas noções não se sustentam quando descontextualizadas do conjunto de determinantes presentes nos locais em que ocorrem as intervenções, o que leva a pensar que a reabilitação é ampliada de acordo com as possibilidades de estabelecimento de novas ordenações para a vida. Desse modo, não há uma fronteira delimitadora dos que passaram a estar aptos e não aptos à vida, seja ela no âmbito pessoal, social, ou familiar(8). Várias pesquisas epidemiológicas atuais constataram, contrariamente aos postulados da psiquiatria tradicional, que a cronificação e o empobrecimento do portador de transtorno mental não são intrínsecos à doença, mas ocasionados por um conjunto de variáveis externas ao indivíduo, em geral ligadas ao contexto da família e da comunidade, passíveis de modificação por meio de um processo de intervenção. Por serem essas variáveis ligadas ao meio ambiente do paciente, pressupõem intervenções no nível ambiental que se distanciam das intervenções tradicionais do modelo psiquiátrico de abordagem biológica. Assim, afirma-se que "uma intervenção sobre a psicose tem sentido, desde que conduzida sobre 'todo o campo', influindo assim sobre a complexa constelação de variáveis que constituem os fatores de risco e os de proteção. [...] Nesse sentido, a necessidade de reabilitação coincide com a necessidade de se encontrarem estratégias de ação que estejam em relação mais real com as variáveis que parecem mais implicadas na evolução da psicose"(7). Dessa forma, observa-se que a proposta de reabilitação de Saraceno considera a complexidade do indivíduo, enfocando diversos fatores em interação, sendo, portanto, compatível com os princípios da auto-organização. SUPERAÇÃO DOS MODELOS COMPORTAMENTALISTAS Saraceno discute quatro modelos conceituais e operativos utilizados em reabilitação psiquiátrica, a saber: 1) os modelos de treinamento de habilidades sociais (Social Skills 10 Training ou SST); 2) os modelos psicoeducativos; 3) o modelo de Spivak e 4) o modelo de Luc Ciompi. Aqui, deter-se-á na análise do primeiro, terceiro e quarto modelos(7). Os modelos de treinamento de habilidades sociais têm como alicerce o conceito de sistema biopsicossocial, o qual considera as interações entre vulnerabilidade, stress, enfrentamento e competência como sendo determinantes do transtorno mental. A vulnerabilidade psicológica do indivíduo se manifesta, em termos de sintomas psicóticos, frente a situações estressantes no ambiente familiar, social ou de trabalho interferindo em suas habilidades de enfrentamento. Assim, o SST compreende o desenvolvimento e/ou reforço de habilidades de enfrentamento por meio de mecanismos de aprendizagem, ou seja, por meio da aquisição de hábitos desenvolvidos no setting terapêutico e transferidos para o ambiente natural do paciente(7). Esse modelo seria ineficaz na reabilitação psicossocial, se as atividades que incluem situações de enfrentamento são programadas pelo terapeuta de forma fragmentada e fora do setting da vida real da pessoa que sofre o transtorno mental sem, no entanto, intervir em situações sociais estressantes para o paciente. Aponta-se uma afinidade entre esse modelo e os mecanismos de aprendizagem que ocorrem em redes neurais artificiais por meio de treinamento supervisionado por reforço. No treinamento supervisionado, a rede recebe um padrão de entrada com um padrão de saída desejado, esperando-se que encontre, por meio de mecanismo de aprendizagem, "os pesos adequados das conexões que lhe possibilitem associar o padrão de entrada ao padrão de saída estabelecido por um supervisor". O treinamento por reforço ocorre de modo similar, porém sem o fornecimento de um padrão exato de saída, mas apenas indicadores de que o comportamento está adequado ou não. Tanto no primeiro como no segundo caso, existe a dependência frente a um supervisor e, portanto, não são considerados processos que se auto-organizam(12). Dessa forma, observa-se que os modelos de treinamento de habilidades sociais não possibilitam um processo de reabilitação auto-organizada do indivíduo, visto que o terapeuta funciona como supervisor do processo, excluindo, assim, toda espontaneidade e autonomia do indivíduo. O modelo de Spivak assume como objeto principal de análise a cronicidade psiquiátrica, dando ênfase não a rótulos diagnósticos, mas à descrição de comportamentos e processos que levam à dessocialização progressiva, a qual tem como base, possivelmente, um déficit de competência pessoal e social(13-14). Uma característica fundamental desse modelo é a consideração de fatores ambientais no processo de dessocialização do paciente. Juntamente com a "incompetência da pessoa em satisfazer as próprias exigências e de quem interage com elas, Spivak leva em consideração qual o fator de máxima importância presente em um processo de dessocialização e de progressiva diminuição das articulações sociais, as ações e as reações das pessoas que constituem o ambiente no qual vive e age o paciente"(7). Observa-se que ao considerar tais fatores ambientais no processo de dessocialização do paciente, o modelo de Spivak pode abrir possibilidades para a ocorrência de um processo auto-organizado de reabilitação. Porém, deve-se analisar como acontecem as interações entre paciente e meio ambiente para constatar tal ocorrência. Analisando o desenvolvimento de um processo de cronificação a partir da teoria de Spivak, é possível ressaltar que existe uma ligação entre o insucesso nas competências sociais e as interações que elas produzem, ou seja, a diminuição da competência social do paciente provoca reações negativas nas pessoas que fazem parte de seu ambiente (como, por exemplo, frustração e decepção), que podem levar à recusa, que, por sua vez, provoca "sentimentos de falência no paciente, que, nesse ponto, começará a evitar as situações e as interações que se mostram mais prováveis às falências e à recusa dos outros", manifestando, assim, isolamento social cada vez mais acentuado que pode levá-lo à internação psiquiátrica(7). 11 Aponta-se que essas interações se caracterizam por relações circulares, nas quais os efeitos de uma relação realimentam a mesma(15). Essas relações estão presentes em sistemas complexos e, portanto, pode-se argumentar que o modelo de reabilitação, proposto por Spivak, também considera a complexidade do indivíduo, considerando que a forma de neutralizar a cronicidade seria por meio de um processo de reabilitação que aumente as articulações sociais entre o paciente e seu ambiente, desenvolvendo suas competências de forma a permitir um sucesso no ambiente social. Para que isso seja possível, ressalta-se que é necessário realizar um levantamento das competências sociais deficitárias do paciente em seu ambiente, considerando cinco áreas vitais: moradia, trabalho, família e amigos, cuidado de si e independência, atividade social e recreativa(14). Dessa forma, por meio de um programa de intervenção, os comportamentos incompetentes do paciente, relacionados a essas áreas, devem ser eliminados e os comportamentos competentes devem ser desenvolvidos, de modo que o paciente se readapte às normas da comunidade. No entanto, apesar desse modelo considerar os fatores ambientais no processo de dessocialização do indivíduo que apresenta um transtorno mental, "o tratamento é focalizado sobre a adaptação do indivíduo não socializado às demandas normativas de um contexto que, todavia, nunca vem submetido à crítica e sobre o qual não se prevê agir no sentido de uma redefinição e modificação"(7). Dessa forma, argumenta-se que durante o processo de intervenção propriamente dita, com fins reabilitativos, as interações entre o paciente e seu ambiente, as quais foram justamente consideradas no processo de cronificação, são desconsideradas, e o processo se torna unidirecional e orientado por um supervisor externo (no caso, o terapeuta), banindo a possibilidade de um processo auto-organizado. Assim, pode-se concluir que, apesar do modelo de Spivak considerar aspectos relevantes presentes em um processo de auto-organização, como a complexidade do indivíduo e as interações entre o indivíduo e o meio ambiente, o controle exercido pelo supervisor implica que a autoorganização ocorreria somente durante a dessocialização, o que se caracterizaria de fato como uma auto-desorganização. O modelo de Luc Ciompi é de relevada importância na área de reabilitação psicossocial, pois, além de contribuir para uma interpretação da cronicidade do transtorno mental, enquanto um fator social, explora "o papel preditivo das expectativas no campo da reabilitação"(7). De acordo com esse modelo, assim como nos anteriores, o transtorno mental está relacionado à elevada condição de vulnerabilidade do indivíduo, que o leva a manifestar uma crise frente a condições ambientais estressantes. Essa crise pode levar o indivíduo ao colapso do processo existencial ou, ao contrário, pode promover um processo de mudança e crescimento. Considerando o papel do ruído ou perturbação (12) como desencadeador da auto-organização do sistema, tornando-o mais apto para enfrentar as mudanças ambientais, pode-se argumentar que a crise pode ser considerada um ruído ou perturbação capaz de impulsionar um processo de auto-organização. O processo de cronificação do indivíduo portador de transtorno mental está relacionado às respostas sociais ocasionadas pelo episódio de crise, e a reabilitação é considerada um processo, cujo objetivo é a reinserção do sujeito na vida social e produtiva normal(11), o que se aproxima da idéia de autoorganização a partir de uma perturbação. A compreensão da cronicidade como decorrente de processos psicossociais valoriza o espaço social "como cenário único e possível para o trabalho, seja ele reabilitativo ou clínico"(7). Em estudo realizado a fim de verificar a eficácia de um programa de reabilitação, destinado a pacientes psicóticos crônicos hospitalizados e potencialmente reabilitáveis, foram examinadas todas as variáveis relevantes para essa população, definindo-se dois eixos para a avaliação do sucesso do processo reabilitativo: o eixo casa e o eixo trabalho. Esses eixos são diferenciados em sete níveis, que vão desde uma situação de dependência até a independência total. Em cada um dos eixos são identificados comportamentos sobre os quais deve investir o trabalho reabilitativo. Assim, estudando longitudinalmente os dados 12 dessa pesquisa, os autores correlacionaram as variáveis sociais e psicopatológicas ao sucesso do processo de reabilitação. Os resultados demonstraram que cerca da metade dos pacientes estudados apresentava possibilidade de reabilitação global e que as variáveis sociais influenciam mais o sucesso ou insucesso do processo reabilitativo que as varáveis psicopatológicas ou diagnósticas(11). Em outro estudo longitudinal(11), os autores procuraram identificar a importância das variáveis sociais, psicopatológicas e psicodinâmicas sobre o prognóstico e o sucesso da reabilitação. Os autores apontam, nesse caso, correspondência entre o sucesso da reabilitação e a manutenção das expectativas por parte dos profissionais integrantes da equipe de saúde mental, dos familiares e dos próprios pacientes e as relações sociais no ambiente de trabalho. Observa-se que o modelo de reabilitação de Ciompi poderia ser considerado um processo de reabilitação auto-organizado, ao considerar a crise como um possível desencadeador de um processo de mudança e de crescimento do paciente, e as interações entre ele e o ambiente como responsáveis pelo sucesso ou insucesso do programa de reabilitação. No entanto, como argumenta Saraceno, teme-se que o modelo "não consiga romper os limites dos cenários onde Ciompi 'pensa' a reabilitação e o trabalho, para assumir até o fim a responsabilidade conseqüente de ter mostrado o artifício social colocado sob a naturalidade da doença"(7), isto é, as interações entre paciente e ambiente social nas intervenções reabilitativas ainda são restritas. Para que um processo de reabilitação possa ser considerado um processo auto-organizado, é necessário que o conceito de ambiente social do indivíduo seja ampliado, assumindo-se a possibilidade de interação entre os espaços sociais, desencadeando processos transformadores. AVALIAÇÃO DA PROPOSTA DE BENEDETTO SARACENO A proposta de reabilitação biopsicossocial de Saraceno assume estrutura triádica sem a ocorrência de relações de liderança, o que pode se constituir em indícios de um processo de auto-organização. Para que se possa propor um programa de reabilitação a um indivíduo é necessário saber, anteriormente, "quais práticas e quais conceitualizações são condições necessárias para poder discutir reabilitação, para identificar eixos prioritários de ação e as modificações do campo de intervenções ineludíveis"(7). O primeiro ponto de discussão ressaltado por Saraceno se refere ao lugar onde se desenvolve o programa de reabilitação. Conforme o autor, os dois primeiros modelos nada discutem a respeito dos contextos nos quais se dá a prática reabilitativa, seja o serviço de Saúde Mental, o domicílio do paciente ou a comunidade, já o modelo de Ciompi considera o contexto como parte do processo de reabilitação. O que se vê, em geral, nos serviços que se propõem a desenvolver um programa de reabilitação psicossocial, é que a prática realmente vivenciada se constitui de "constelações de condutas que são a resultante de variáveis conexas ao paciente, à sua família, ao serviço e à sua organização". Em outras palavras, apesar da diversidade de diagnósticos e da variedade de modelos teóricos, os tratamentos utilizados pelos serviços são poucos e sempre repetitivos, não satisfazendo as necessidades reais dos pacientes. Portanto, "é a partir dessa ausência de especificidade da psiquiatria que devemos raciocinar para compreender como entrar em relação com as variáveis reais que mudam as vidas reais das pessoas reais"(7). A padronização e o caráter estigmatizante do diagnóstico psiquiátrico são os fatores que mais contribuem para o fracasso das técnicas terapêuticas utilizadas pelos serviços de reabilitação. Além da pobreza do diagnóstico como fator preditivo da eficácia de programas de reabilitação, esse não é um instrumento que permite obter informações a respeito do contexto da vida real do indivíduo. Uma análise crítica sobre o diagnóstico "deve nos ajudar a compreender que as 'informações' (as variáveis) que o paciente carrega consigo e que é o que nós podemos efetivamente considerar como patrimônio (de risco ou de proteção), estão 13 na realidade mais conectadas à vida do paciente do que à sua doença, cuja identidade autônoma da vida é um artefato da clínica"(7). Além do contexto do paciente referido acima, é importante considerar a concepção do sujeito "como um sistema complexo e indivisível (assim como indivisível é para qualquer indivíduo a relação-vínculo entre sujeito e intersubjetividade)", compreendendo que, por meio de uma relação terapêutica, não é possível conhecer "um sujeito em si e portanto uma doença em si", mas sim as interações compreendidas por esse sujeito e seu ambiente. "São essas interações operativas (entre paciente e outros, entre paciente e vida material, entre paciente e as respostas que ele recebe, entre pacientes e lugares) o patrimônio ao qual se pode, ter acesso e que pode se modificar sob a força de uma intervenção que crie as condições para que o sujeito possa exercitar 'mais' escolhas"(7). Desse modo, ao ampliar os espaços de troca do paciente, o profissional da equipe de reabilitação estará criando condições para que as relações entre esse paciente e o meio ambiente se multipliquem e ocorram de forma autônoma, podendo possibilitar um processo auto-organizado de reabilitação. Somente um serviço psiquiátrico complexo consegue trabalhar com a complexidade do paciente. Um serviço complexo ou "de alta qualidade" é aquele que consegue se ocupar de todos os pacientes, considerando a singularidade de cada um, e que seja capaz de oferecer um processo de reabilitação a todos que se possam beneficiar de tal processo, sem criar anéis hierarquizados de clientela reabilitável e não reabilitável. Assim, esse serviço "deveria ser um 'lugar' (constituído de uma multiplicidade de lugares/oportunidades comunicantes) permeável e dinâmico, onde as oportunidades [...] encontram-se continuamente à disposição dos pacientes e dos operadores" (7). Dessa forma, argumentamos-se que o próprio serviço é constituído por diversidade de lugares que interagem entre si e, portanto, do próprio serviço poderiam emergir processos reabilitativos auto-organizados. O serviço de reabilitação deve ser um lugar de produção de recursos não somente numéricos, mas primordialmente afetivos, na rede de relações dos pacientes. Esses recursos seriam os profissionais, os familiares e a comunidade, não esquecendo de que a família é parte da comunidade, mas essa não se restringe somente ao contexto familiar. "As instituições formais da comunidade e as informais representam recursos potenciais de um serviço: da paróquia ao sindicato, das associações esportivas às agregações mais ou menos formalizadas dos cidadãos, a rede de lugares, recursos e oportunidades é infinita e infinitas são as articulações individuais serviço/paciente/comunidade, capazes de produzir sentido, contratualidade, bem-estar"(7). Observa-se aqui uma diferença fundamental entre a noção de reabilitação elaborada por Saraceno e o modelo proposto por Ciompi. A noção de comunidade para Saraceno é muito mais ampla do que a de Ciompi, que parece conceber família e comunidade como dois contextos separados, e restringir as relações com a comunidade somente no tocante ao trabalho. Um outro contexto importante na orientação de um processo de reabilitação é o contexto de leis e normas de uma comunidade. Elaborar um programa de reabilitação onde o hospital psiquiátrico deixou de existir legalmente é muito diferente de elaborar tal programa em um lugar onde o hospital continua sendo local de referência. Assim, cabe aos reabilitadores o movimento de modificações das normas no sentido de melhorá-las a favor do processo de reabilitação(7). Partindo da análise das variáveis do contexto dos pacientes e dos serviços, observa-se que não existem habilidades ou desabilidades descontextualizadas do conjunto de determinantes composto pelos lugares nos quais ocorrem as intervenções, pelas organizações dos serviços, pelas articulações entre ações sanitárias e sociais territoriais, e pelos recursos disponibilizados. Dessa forma, a reabilitação não é simplesmente a passagem da desabilitação para a habilitação, mas "um conjunto de estratégias orientadas a aumentar as 14 oportunidades de troca de recursos e de afetos: é somente no interior de tal dinâmica das trocas que se cria um efeito 'habilitador'". Por meio dessas trocas materiais e afetivas se cria uma "rede de negociação", as quais aumentam a participação e o poder de contratualidade dos indivíduos menos favorecidos em uma sociedade(7). O aumento da capacidade contratual dos portadores de transtorno mental se constrói sobre os eixos: hábitat, família e trabalho. O hábitat compreende as noções de casa e habitar, sendo que a noção de casa se refere ao espaço físico concreto e a noção de habitar ao envolvimento afetivo e de apropriação do indivíduo em relação a esse espaço. Assim, o processo de reabilitação deve trabalhar com essas duas noções, as quais devem ser separadas em nível teórico para a compreensão de que "as funções da reabilitação aludem seja a uma conquista concreta (a casa), seja à ativação de desejos e habilidades ligadas ao habitar", e unidas no nível prático da intervenção. Dessa forma, existe uma diferença entre o eixo hábitat, apresentado por Saraceno, e o eixo casa descrito por Ciompi, sendo que para a reabilitação é primordial o eixo hábitat e não o eixo casa(7). Quanto ao eixo família, há necessidade de conscientização por parte da equipe de trabalhadores dos serviços de saúde mental em relação ao co-envolvimento dos familiares do indivíduo portador de transtorno mental nos projetos de reabilitação, criando formas de intervenção em que a família desse indivíduo "deixe de ser cúmplice ou vítima da psiquiatria", e passe a ser "protagonista responsável pelos processos de tratamento e organização do mesmo (e da reabilitação)"(7). Em relação ao trabalho como produção e troca de mercadorias e valores, é necessário partir da noção de trabalho enquanto promotor de "articulação do campo dos interesses, das necessidades, dos desejos"(7). Para que o trabalho possa ser um recurso de produção de troca, é fundamental que ele perca a ênfase terapêutica e que o problema da relação entre trabalho e transtorno mental seja enfrentado a partir de um referencial alternativo. É no âmbito das discussões sobre as noções de psiquiatria e saúde mental que se pode compreender melhor o conceito biopsicossocial, assumido por Saraceno como abordagem da sua proposta de reabilitação, e vê-se o surgimento de várias teorias sobre o funcionamento do aparelho psíquico, entre elas o modelo psicossocial/biológico. Esse modelo sustenta que o aparelho psíquico se constitui por uma estrutura hierárquica complexa de sistemas de referência afetivo/cognitivos que se desenvolve por meio de um processo contínuo de ações concretas, ou seja, por repetidas experiências. Os aspectos afetivos da experiência são armazenados tornando-se estrutura básica da construção de processos cognitivos(16). Tal modelo do psiquismo considera que a esquizofrenia se desenvolve por meio da ação interativa de aspectos biológicos, psicológicos e sociais. Em outras palavras, a esquizofrenia, como qualquer outro tipo de transtorno mental seria "o resultado de processos biopsicossociais complexos que interagem entre si" (7). Esses modelos do transtorno mental tentam superar o problema da relação mente-corpo evidenciado pela abordagem dualista cartesiana, sempre presente no contexto da psiquiatria, com a inclusão de uma terceira variável, ou seja, "o ambiente - a interação entre sujeito biopsíquico de um lado e contexto de outro"(7). Observa-se que, apesar de Saraceno considerar o ambiente como uma das variáveis fundamentais para a compreensão da saúde e transtorno mental, ele não formula uma visão sistêmica completa da relação mente-corpo-ambiente, pois em sua concepção de interação, é evidente que o ambiente não é um continuum da relação mente-corpo, isto é, existe uma interação, porém mente-corpo de um lado e ambiente de outro. Além disso, o que é mais importante, a abordagem de Saraceno considera uma variedade de fatores ambientais nas interações entre indivíduo e ambiente, porém não enfoca explicitamente a autonomia dos sujeitos no seio das interações. Uma das condições fundamentais para a ocorrência de um processo auto-organizado é que exista uma decisão autônoma de engajamento no processo 15 de reabilitação, porém esse aspecto não é citado em nenhum momento na proposta de Saraceno. CONSIDERAÇÕES FINAIS A proposta de Reabilitação Psicossocial de Saraceno, aqui discutida, abrange vários aspectos de um processo de auto-organização, deixando apenas de considerar a autonomia dos sujeitos, e as conseqüências da mesma para a assistência em Saúde Mental. Considerando-se a autonomia, conclui-se que o profissional de Saúde Mental não estabelece, de fora, um novo padrão de organização, mas age como facilitador, no sentido de se atingir uma reorganização da vida pessoal e das relações sociais do paciente psiquiátrico. É o próprio sujeito, no interior do sistema de relações em que se encontra no momento da assistência, que poderá desenvolver novas formas de autonomia que possibilitem sua estabilização e relativa independência dos cuidados dos profissionais do sistema de saúde. Mesmo que a doença mental não apresente remissão, é possível desenvolver potencialidades afetivas que diminuam a vulnerabilidade e possibilitem a formação de vínculos sociais. Essa estratégia não é possível no paradigma tradicional do atendimento e internação hospitalar, que se mostra como promotor de exclusão social dos portadores de transtorno mental. Nesse modelo, centrado na doença e que oferece tratamento em nível biológico, é previsível o agravamento da crise de vida da pessoa, uma vez que se retira do paciente a possibilidade de construir sua autonomia. Espera-se que nos serviços abertos ou substitutivos, ao contrário, se procure oferecer, juntamente com a medicação, subsídios que permitam uma auto-organização dos diversos aspectos da história de vida dos sujeitos, tornando possível que esse evolua para quadros de estabilidade em que se estabeleçam novos padrões de organização que facilitem sua inserção social e desenvolvimento de potencialidades encobertas pela experiência de convívio com o sofrer psíquico. A diversidade de fatores a serem trabalhados na reabilitação psicossocial corresponde à variedade de aspectos existentes na vida de uma pessoa. Assim, o profissional de Saúde Mental pode, através de um processo de comunicação, de escuta, de acolhimento e de atividades prático-criativas, junto com o portador de sofrimento mental, agir como facilitador na construção de novas configurações mentais, nas quais o sistema de relações que compõe a vida dessa pessoa possa se auto-reorganizar, desse modo, se estabilizando em um novo padrão de relações. O contexto em que ocorre a reabilitação psicossocial é polissêmico, tendo em vista a pluralidade de sujeitos envolvidos, o que solicita formas de atuação que lhe sejam adequadas. Encontrar possibilidades singulares a cada pessoa, nas diferentes situações de suas vidas, pede a todo instante o olhar e a escuta que reconhecem as subjetividades. Assim, a relação humana é o veículo para se compreender a dimensão simbólica do sofrimento. Desse modo, a proximidade com a pessoa que sofre a experiência de transtorno mental coloca em confronto as diversas possibilidades interpretativas, interroga competências, pede sensibilidade do profissional, e o entendimento de que o sofrer psíquico não pode ser visto como algo a ser eliminado ou combatido, mas pode levar à redescoberta do real, da compreensão da experiência emocional de quem a sofre. Direitos das pessoas com transtorno mental autoras de delitos Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(9):1995-2012, set, 2007 16 Entre os diversos segmentos populacionais que demandam atenção diferenciada, destacase o das pessoas com transtorno mental autoras de delitos. Este é um tema cuja área de interesse vai além da Psiquiatria Forense e transborda os limites de um campo que pode ser definido de forma ampla e genérica como o da Psiquiatria a serviço da Justiça 1. A necessária interdisciplinaridade que o tema envolve exige uma interlocução efetiva com o Direito, a Psicologia, a Saúde Pública, as Ciências Sociais, o Serviço Social, a Jus-Filosofia, entre outros. A articulação entre saúde mental e direitos humanos interessa à sociedade, aos profissionais, aos pacientes e às respectivas famílias 2. Já não se justifica a dicotomia do binômio indivíduo/sociedade, pois a discussão sobre a dignidade da pessoa, independentemente de ser paciente ou autor de delitos, plasma conteúdos de Ciências da Saúde, das Ciências Jurídicas e das Ciências Sociais. Embora a interação com diferentes campos do saber e da prática se configure relevante para a abordagem de vários fenômenos humanos, no que diz respeito às pessoas com transtorno mental autoras de delitos, encontra um vértice muito peculiar que é o da discussão de um dos direitos humanos: o direito à saúde. Este trabalho objetiva, portanto, discutir o direito à saúde dos internos nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) na perspectiva dos direitos humanos. Aspectos históricos O modelo assistencial psiquiátrico hegemônico passou a ser discutido a partir do final da década de 1940. As críticas se fundamentam no anacronismo e na ineficácia do modelo 3,4. As denúncias recorrentes de violência nas instituições psiquiátricas têm sido objeto de mobilizações da sociedade civil e de profissionais de saúde. O crescente clamor social contra as diversas formas de desrespeito aos direitos humanos tem fortalecido uma consciência acerca da importância da luta pelo direito à singularidade, à subjetividade e à diferença. A ampliação da compreensão a respeito da natureza discriminatória dos estabelecimentos psiquiátricos envolveu familiares, comunidade e outros atores sociais na discussão da cidadania dos internos nos manicômios judiciários. Em relação às ações necessárias para a garantia dos direitos humanos dessas pessoas, Costa 5 (p. 143) reitera o caráter segregador desses estabelecimentos afirmando que o hospital psiquiátrico tornou-se um “emblema da exclusão e seqüestro da cidadania”, considerando, ademais, sua repercussão na vida dos padecentes de transtornos mentais ao longo dos últimos duzentos anos. O início da assistência psiquiátrica pública no Brasil data da segunda metade do século XIX. As pessoas que enlouqueciam e eram provenientes das camadas sociais desfavorecidas eram recolhidas aos asilos, onde padeciam de maustratos. Sobre isso, Costa 5 (p. 148) comenta, “ficavam presas por correntes em porões imundos passando frio e fome, convivendo com insetos e roedores, dormindo na pedra nua sobre dejetos, sem nenhuma esperança de liberdade”. Sem muita diferença dos tempos atuais, a sociedade do século XIX via no louco uma ameaça à segurança pública, sendo o recolhimento aos asilos a única maneira de lidar com a pessoa com transtorno psiquiátrico. Esse recolhimento, autorizado e legitimado pelo Estado por meio de textos legais editados pelo Imperador, pretendia oferecer proteção à sociedade. A crescente pressão da população para o recolhimento dos alienados “inoportunos/as” a um lugar de isolamento e o questionamento de alguns médicos e intelectuais frente às condições subumanas das instituições asilares, fizeram com que o Estado Imperial determinasse a construção de um lugar específico com o objetivo de tratá-los. Nesse contexto foi criado o Hospício Pedro II, inaugurado em 1852, na cidade do Rio de Janeiro. 17 De forma gradativa, esse modelo assistencial se desenvolveu e se ampliou em todo o território nacional, consolidando e reproduzindo no solo brasileiro o hospital psiquiátrico europeu como o espaço socialmente legitimado para a loucura. Entre as unidades hospitalares criadas com o cunho segregacionista, encontram-se os HCTP para as pessoas com transtornos mentais que cometeram delitos. A ênfase dessa instituição hospitalar estava no processo de apartação social descomprometida com o cuidado à saúde e com a reinserção psicossocial. O modelo assistencial asilar/carcerário para o tratamento das pessoas com transtornos mentais é o de exclusão, tanto nos hospitais psiquiátricos para loucos não infratores como naqueles para loucos infratores, onde a exclusão é mais incisiva. As práticas exercidas nos hospitais psiquiátricos brasileiros demonstram que o tratamento dispensado tem legitimado a segregação. Tais instituições configuram-se como espaços de estigmatização e de obscuridade. O manicômio judiciário Os hospitais específicos para acolher os loucos infratores foram instituídos no Brasil a partir da segunda década do século XX com a denominação de manicômios judiciários. A sua implementação foi precedida pela discussão acerca de qual seria o encaminhamento institucional que deveriam ter indivíduos que eram considerados loucos e criminosos. Desse modo, além dos hospitais psiquiátricos para pessoas com transtornos mentais, começaram a funcionar no país os espaços asilares para receber e tratar os ditos loucos criminosos. O manicômio judiciário pode ser caracterizado como uma instituição total, uma vez que reforça a exclusão individual e limita a interação com o mundo exterior 6. Nas instituições com essa configuração, as sociedades contemporâneas preservam suas pretensões de controle e de dominação. O manicômio judiciário passou a ser denominado como HCTP, conforme previsão do Código Penal brasileiro nos seus artigos 96 e 97 e na Lei de Execução Penal 7 no artigo 99. A permanência do modelo manicomial tem acirrado a discussão sobre os direitos humanos de pessoas com transtorno mental autoras de delito e sobre o direito das famílias acompanharem e assistirem os seus entes internados. Conforme Carrara 8 (p. 148), “a idéia central é de que ‘loucos perigosos ou que estivessem envolvidos com a justiça ou polícia’ deveriam ser separados dos alienados comuns, constituindo-se em objeto institucional distinto”. Configurava-se, assim, uma nova categoria, a dos “loucos-criminosos”, cujo destino deveria estar absolutamente desvinculado do Hospício Dom Pedro II. Emer gia a compreensão a respeito da necessidade de construir uma nova instituição para recolhimento asilar desse segmento populacional. Forjava-se, dessa maneira, a demanda por um “manicômio criminal”. Essa nova instituição emergia, pois, correspondendo à convergência dos interesses da área de saúde e do âmbito jurídico, atendendo à necessidade de zelar pela segurança da sociedade. A iniciativa, compatível com o pensamento da época e o poder-dever do Estado, excluía a possibilidade de qualquer integração sócio-familiar do denominado “louco-criminoso”. O primeiro manicômio judiciário do Brasil e da América Latina foi inaugurado na cidade do Rio de Janeiro, em 1923. Em relação a esse evento, Carrara 8 (p. 194) comenta que “coroava-se então um processo muito mais amplo que, atingindo as práticas jurídico-penais como um todo, fez com que nossos tribunais, como bem apontou Foucault, passassem, a partir de finais do século XIX, a não julgar mais atos criminosos, mas a própria alma do criminoso”. Com a implementação do manicômio judiciário vislumbrava-se uma solução de interesse da sociedade cujo tecido fora agredido pelo delito da pessoa com transtorno mental. Ao apresentar-se como instituição prisional, sustentava-se na premissa de que o indivíduo, 18 ainda que com transtorno mental, deveria pagar pelos crimes cometidos. Enquanto instituição de custódia, guardava uma natureza diferenciada, a de satisfazer as interpretações patologizantes e biodeterminantes do indivíduo 8. O manicômio judiciário se caracterizava, portanto, como um lugar social específico para o encontro entre crime e loucura. Desse modo, essa instituição apresenta, desde a sua origem, uma estrutura ambígua e contraditória. Enquanto instituição predominantemente custodial, revela, com grades e intervenções psiquiátricas, a dupla exclusão que sofrem as pessoas com transtorno mental autoras de delitos. No que tange à legislação brasileira, o Código Penal de 1890 dispunha que não são criminosos os que “por imbecilidade nativa ou enfraquecimento senil forem absolutamente incapazes de imputação” e “os que se acharem em estado de completa privação dos sentidos e da inteligência no ato de cometer o crime”. E ainda preceituava que “os indivíduos isentos de culpabilidade em resultado de afecção mental serão entregues às suas famílias ou recolhidos a hospitais de alienados, se o seu estado mental assim exigir para a segurança do público”. Cinqüenta anos depois, o Código Penal de 1940 instituiu o chamado sistema do “duplo binário”, que apresentava dois tipos de reação penal: de um lado, a pena, medida segundo o grau de culpabilidade do sujeito e a gravidade de seu ato; e, de outro, a medida de segurança, fundada na avaliação do grau de periculosidade do acusado. A medida de segurança deveria atingir os “loucos criminosos” e algumas outras classes de delinqüentes não-alienados. Assim, configurava-se a aplicação dupla de pena e medida de segurança. Com a Reforma Penal de 1984, foi adotado o sistema vicariante: o fundamento da pena passa a ser exclusivamente a culpabilidade, enquanto a medida de segurança encontra justificativa somente na periculosidade aliada à incapacidade penal do agente 7,9. A partir daí, a medida de segurança passou a ser aplicada apenas aos inimputáveis, tendo tal instituto a natureza preventiva e não a punitiva. Com tal Reforma, portanto, as medidas de segurança, que visavam a garantir a proteção tanto do indivíduo com transtorno mental quanto da sociedade, são alteradas no artigo 96 do Código Penal e passam a significar obrigatório tratamento psiquiátrico; seja em internação em HCTP ou, à falta de outro estabelecimento adequado, a sujeição ao tratamento ambulatorial. Assim, conceitos de culpabilidade, de imputabilidade e periculosidade emergem plasmando a terminologia jurídica à da Psiquiatria. A imputabilidade é definida como a capacidade de entendimento psíquico do caráter ilícito do comportamento delituoso, de acordo com o que prevê o artigo 26 do Código Penal brasileiro 10. O conceito de periculosidade tem sido objeto de muitos debates nas áreas médica e jurídica, constituindo-se relevante desde o século XIX. Segundo Foucault 11 (p. 85): “a grande noção da criminologia e da penalidade em fins do século XIX foi a escandalosa noção, em termos de teoria penal, de periculosidade. A noção de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam”. Assim, o conceito da periculosidade presumida justificou a criação e a manutenção do instituto da medida de segurança como forma de proteger a sociedade daquele que é perigoso a priori. Dessa forma, quando se suspeita que o indivíduo que praticou ato delituoso apresenta algum transtorno mental, deve ser feita uma solicitação de exame médico-legal para que se avalie a imputabilidade com vistas à formação do processo de 19 Incidente de Insanidade Mental 12. Após a finalização do exame de insanidade mental, este é remetido ao juiz, que poderá acatar ou não o parecer dos peritos. Caso a insanidade mental tenha sido argüida e o juiz acate o parecer, absolverá o acusado e aplicará a medida de segurança. O juiz, com a competência jurisdicional específica, uma vez observado o devido processo legal, deve aplicar a medida de segurança, que tem tempo indeterminado em face da situação considerada de periculosidade do indivíduo e deverá ser cumprida num HCTP, sendo que o internamento do indivíduo em tal instituição se destina ao tratamento psiquiátrico 13. Destacando a natureza reducionista da compreensão do ser humano quando se elege a periculosidade como a única expressão possível do sujeito, Barros 14 afirma a inobservância do equacionamento de suas necessidades. Esse reducionismo compromete o cuidado integral à saúde da pessoa com transtorno mental e a garantia dos seus respectivos direitos. A medida de segurança surge como sendo uma pena de caráter aflitivo. Em que pese constituir-se em um processo terapêutico, a estabilização do quadro patológico diagnosticado anteriormente não marca o término da medida de segurança, configurando, assim, uma situação de desrespeito aos princípios dos direitos humanos pela circunstância de perpetuar a restrição de ir e vir de uma pessoa. Nessa perspectiva crítica das medidas de segurança, Corrêa 15 (p. 147) acrescenta que elas “continuam sobre conceitos incertos e ambíguos, e espelham um tipo de conceito indeterminado”. Baseando-se, portanto, no potencial de periculosidade do infrator, a medida de segurança possibilita uma segregação indeterminada, pois se o laudo psiquiátrico concluir que não cessou a periculosidade do paciente, este deverá permanecer internado. Resta ao juiz da Vara de Execução Penal acatar esta circunstância de caráter médico-psiquiátrico. A medida de segurança configura, para o interno, a falta de perspectiva do seu retorno ao convívio comunitário. Este potencial rompimento dos laços sócio-familiares constitui uma das dimensões pelas quais os direitos humanos repelem a indeterminação do tempo de internação no HCTP. Segundo Corrêa 15, a assistência psiquiátrica custodial encontra respaldo na legislação penal vigente e na organização do Estado. Ambas, pretendendo proteger as pessoas com transtorno mental autoras de delito, acabam propiciando situações de desrespeito aos direitos individuais previstos pela Constituição, seja pelo isolamento nos HCTP, seja pela não garantia das condições mínimas de vida. A partir de uma nova concepção da doença mental e da situação em que vivem as pessoas internadas, argumenta-se sobre a pertinência, tanto para a pessoa com transtorno mental autora de delito quanto para a própria sociedade, não ser aquela considerada irresponsável. Propõe-se que ela venha a ser julgada e, se condenada, receberá uma pena pelo ato praticado. Assim, configurando-se necessário o seu tratamento psiquiátrico, a pessoa autora de delito deve ter acesso ao mesmo, de acordo com as suas características e necessidades individuais. Política de saúde mental contemporânea Ao longo do século XX, foram empreendidos esforços para alterar a realidade asilar mediante o desenvolvimento de outros modelos de atenção, capazes de promover um maior grau de interação e de democracia nas relações existentes entre os profissionais e os internos da instituição psiquiátrica. O advento do Movimento da Reforma Psiquiátrica marca um novo período, a partir do final da década de 1990, propondo a superação do modelo hegemônico de caráter excludente e discriminatório. 20 Diversos setores das áreas de saúde pública e dos direitos humanos convergiram esforços na tentativa de ruptura, construindo, como proposta alternativa, a estruturação de uma rede de serviços de atenção diária em saúde mental de base territorial, correspondente ao modelo dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), cujo projeto integra os usuários às suas respectivas famílias e à comunidade 16. Esse processo de superação da centralidade do hospital psiquiátrico tem sido contemporâneo da dinâmica de descentralização das ações e dos serviços de saúde, inaugurada formalmente na Constituição Federal de 1988, artigos 1o e 204, juntamente com as Leis Orgânicas de Saúde – Lei nº. 8.080/90 e Lei nº. 8.142/90 – e as Normas Operacionais do Sistema Único de Saúde (SUS). A consolidação normativa do Estado Democrático de Direito refletiu, portanto, também na esfera dos interesses dos cidadãos, inclusive daqueles com transtorno mental. A Política Nacional de Saúde Mental foi objeto de recentes reformulações: uma nova perspectiva no ordenamento jurídico do país em relação à pessoa com transtorno mental ensejou, com a sanção presidencial, a Lei nº. 10.216, em 6 de abril de 2001 17. Essa legislação especial dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e sobre a reformulação do modelo assistencial em saúde mental, refletindo, assim, os princípios da Reforma Psiquiátrica. Essa Reforma visa, entre outros aspectos, a criar uma rede de serviços diversificados, regionalizados e hierarquizados que promova a efetiva contextualização e reabilitação psicossocial da pessoa com transtorno mental. Nessa perspectiva, a Reforma apresenta como princípios: a centralidade da proteção dos direitos humanos e de cidadania das pessoas com transtornos mentais, a necessidade de construir redes de serviços que substituam o modelo hospitalocêntrico e a pactuação de ações por parte dos diferentes atores sociais 18. Contemplando mudanças significativas no modelo de atenção psiquiátrico, o advento dessa nova política se identifica com o paradigma da co-responsabilidade da sociedade e do Estado, com evidente perspectiva da descentralização administrativa que já fora inaugurada em normas anteriores relativas ao segmento infanto-juvenil, em 1990, à saúde, por meio das Leis Orgânicas de Saúde e da própria Lei Orgânica da Assistência Social. As orientações dispostas no texto da Lei nº. 10.216/2001 subvertem a lógica das instituições totais, inovando em diversos procedimentos e estabelecendo os direitos das pessoas com transtornos mentais. Essa lei afirma o direito ao tratamento respeitoso e humanizado das pessoas com transtorno mental, preferencialmente em serviços substitutivos, estruturados segundo os princípios da territorialidade e da integralidade do cuidado. De acordo com essa legislação, a internação psiquiátrica configura-se como último recurso terapêutico a ser adotado, sendo a sua concretização condicionada à emissão de parecer médico com a devida explicitação de seus motivos. Embora a lei não mencione explicitamente a circunstância de internação na eventualidade de autoria de delito por pessoa com transtorno mental, trata da internação compulsória em geral, ou seja, quando for judicialmente determinada. De acordo com a norma, independentemente das circunstâncias que precipitaram a internação psiquiátrica, esta deve se configurar como um recurso terapêutico compromissado com a reintegração social dos internos. Nesse compromisso situa-se a garantia do direito à saúde de toda pessoa com transtorno mental. No caso particular daquela autora de delito, propõe-se que a internação compulsória em HCTP mantenha-se coerente com os mesmos princípios éticos de garantia de direitos humanos, de forma que a penalização da pessoa não se sobreponha ao direito de uma atenção integral às suas necessidades de saúde. Ademais, a penalização legal da pessoa com transtorno mental 21 autora de delito deve observar o princípio da definição temporal da pena, cujo final implica a reinserção do apenado ao convívio familiar e comunitário. A construção de uma proposta inovadora na atenção à saúde mental, de acordo com Costa 5 (p. 173), almeja “a cidadania e a recuperação das garantias e direitos fundamentais dos portadores de Transtornos Mentais”. O autor reconhece, ainda, que “torna-se cada vez mais relevante a atuação dos organismos da sociedade responsáveis por essa proteção e garantias constitucionalmente asseguradas”. Nessa perspectiva, a experiência acumulada há cinco anos pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, por meio do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ), aponta algumas possibilidades concretas de reorientação da atenção à saúde das pessoas com transtorno mental autoras de delito. O PAI-PJ promove o tratamento em saúde mental na rede pública de saúde, através do acompanhamento da aplicação das medidas de segurança ao agente infrator, oferecendo ao juiz subsídios para decisão nos incidentes de insanidade mental. Estruturado de forma multidisciplinar, esse programa, pioneiro no país, sugere a aplicação a cada caso de uma medida singular, tensionada pelos princípios normativos universais 19,20. O PAI-PJ inaugura, assim, uma ruptura com o processo histórico e dogmático, instaurando, segundo Barros 19 (p. 3), “o conceito da inserção no cerne de sua ação, atuando em qualquer processo criminal onde um portador de sofrimento mental esteja na condição de réu”. Uma das questões centrais trazidas por esse programa está no fato de possibilitar a convocação da pessoa com transtorno mental autora de delito a responder pelo seu ato: respondendo publicamente por sua ação através dos estabelecimentos das penas substitutivas e, ao mesmo tempo, tendo o acompanhamento de saúde necessário. A experiência do PAI-PJ, diferenciando-se das práticas tradicionalmente exercidas em relação aos “loucos infratores”, revela que a responsabilidade pelo crime cometido restaura a dignidade perdida quando foi decretada a inimputabilidade. O seu diferencial é percebido na realização da mediação entre a clínica, o ato jurídico e o social. Vislumbra-se, assim, a possibilidade de operacionalizar uma dinâmica que assimile tanto o princípio da Integralidade quanto o da Eqüidade, na perspectiva do SUS e dos Direitos Humanos. Essa lógica, centrada na singularidade do ser humano e na cidadania da pessoa, supera o modelo assistencial hegemônico, inspirado na presunção de periculosidade, que faz com que tais pessoas sejam segregadas no HCTP até que cesse o perigo que anunciam. Considerações finais A Reforma Psiquiátrica não tem contemplado a reorientação das práticas assistenciais desen volvidas no âmbito dos HCTP. A manutenção do modelo hegemônico de atenção psiquiátrica aos loucos infratores tem favorecido uma assistência custodial, impossibilitando mudanças que venham a integrar a pessoa à sua comunidade e, especialmente, o respeito aos direitos individuais previstos pela Constituição de 1988. Considera-se que os dispositivos do Código Penal que criaram a inimputabilidade e a medida de segurança estão ultrapassados e inadequados, necessitando de mudanças que passem a considerar todas as pessoas como efetivamente iguais perante a lei, sem a inimputabilidade ou irresponsabilidade e a medida de segurança. Na administração do HCTP, o Estado incorpora a demanda punitivo-segregacionista produzida socialmente, voltando-se para os internos com uma estrutura alicerçada na violência, amparada pelo medo, controladora e reprodutora da desconfiança. Assim, o que se evidencia é a presença de uma tradição fundada na negação dos direitos humanos dos pacientes psiquiátricos que não contam com uma rede de serviços de atenção à saúde 22 mental estruturada, capaz de prestar assistência de forma contínua e integral. São escassas as políticas públicas de promoção à saúde mental, de promoção à convivência familiar e de prevenção aos transtornos mentais. Mesmo o Programa Saúde da Família (PSF), implementado a partir de 1994, como proposta de reorientação da atenção básica, não tem propiciado, de forma sistemática, uma atenção à saúde mental nas comunidades assistidas. Evidencia-se, assim, a pertinência da discussão e da integração de ações entre o Ministério da Justiça e o Ministério da Saúde, com participação, em todos os níveis, de representantes do Ministério Público, do Poder Judiciário, da sociedade civil, dos profissionais de saúde, entre outros. Justifica-se, ademais, a inclusão do tema na formação dos profissionais de saúde, visando a potencializar os contatos destes com as famílias, seja no âmbito da unidade de saúde ou nos espaços comunitários, para a identificação dos casos e para o desenvolvimento da cidadania por meio de uma abordagem dialógica 21. Salienta-se, sobretudo, a importância de trazer para a instância de formação dos operadores jurídicos a perspectiva do direito à saúde 22. Embora o direito à saúde tenha sido assimilado de diferentes formas ao longo do século XX, entende-se que a política de saúde mental deve ser baseada em princípios mais equânimes, observando-se a promoção da saúde dentro do espectro de políticas econômicas e sociais. Assim, o tema do direito à saúde das pessoas com transtorno mental autoras de delitos corresponde a um direito social a ser perseguido 22. Cabe aos agentes do Estado a materialização da responsabilidade no cumprimento da função social a ele destinada. Nesse sentido, o Estado, em co-responsabilidade com a sociedade, deve promover a efetiva reorientação do modelo de atenção à saúde das pessoas com transtorno mental autoras de delitos. Dentre os instrumentos de proteção e defesa dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais encontra-se a Lei nº. 10.216/2001, a qual assimilou os princípios e os objetivos da Reforma Psiquiátrica. Nesse sentido, considera-se fundamental estender os benefícios dessa legislação aos internos e egressos de HCTP, de forma a promover a integralidade e a humanização dos serviços prestados a essas pessoas, o respeito a seus direitos e a melhoria da qualidade de suas vidas, na perspectiva dos direitos humanos. 23