Pronto Acolhimento ‘Doutor, o senhor tem um minutinho?’. Não, não tinha. A Unidade de Saúde, como de costume, não dava um minuto de folga. Eram dores físicas, emocionais, sociais. Dores e sofrimento sem fim. Naquela manhã parecia que todos da comunidade acharam de precisar de ‘um minutinho do doutor’. Alguns só por costume, outros por precisar mesmo. O médico suspirou, deu uma pausa, decidindo se tinha um minuto. ‘Pode falar, estou ouvindo’. Ele continuou preenchendo uma ficha ali mesmo no corredor entre a sala e a recepção, e finalizou pedindo para uma Agente Comunitária fazer uma visita e revisar a prescrição do casal de idosos que acabara de ser atendido. A outra mulher, a que tinha pedido ‘um minutinho’, começou. ‘Sabe, eu moro aqui perto, mas hoje estou de folga. Precisava de um favor do senhor. Minha sogra tá em casa passando uns dias, não tá muito bem. Cismou de não comer direito. O senhor não podia dar uma olhada nela, passar uma vitamina, sei lá, pra ver se ela melhora...’. O médico sentia uma incrível vontade de dizer ‘não, não vou poder dar uma olhadinha’. Não conseguiu. ‘Consegue trazer ela? Aí eu vejo o que dá pra fazer...’. Esqueceu do assunto e continuou tocando o serviço. Alguém reclamava de dor de cabeça. Outro reclamava da demora. ‘Vou chamar a polícia! Essa falta de respeito com a saúde da gente. Minha mãe tá passando mal aqui faz um tempão!’. O médico ia ignorando as queixas mais descabidas. Concentrava-se em fazer o melhor. Infelizmente não conseguia nem fazer mais ou menos. Muito gente, muito trabalho. Dor e sofrimento. Também malandragem, falta do que fazer. ‘O senhor não me dá um atestado para o serviço?’. Era um rapaz que entrou mancando. Assim que pegou o atestado saiu rapidinho, sorrindo. Devia ter esquecido a dor. As horas se foram rápida e pesadamente. O médico se sentia esmagado. De novo suspirou. Aquela manhã de segunda parecia particularmente lotada. Perdeu as contas de quanto atendeu. Não tinha nem ideia de quantos esperavam para ser ainda atendidos. ‘Doutor, dá licença. Ela já tá aí’. A mulher voltara. O médico acabara de dispensar mais um paciente e já ia chamar outro. Frente à surpresa do médico ela explicou. ‘Lembra, a minha sogra. Eu trouxe ela pro senhor olhar. Às vezes é só uma vitamina’. O médico lembrou descontente. ‘Ok, vamos lá.’, o médico sorriu sem graça. Encontraram uma senhora idosa, colocada numa maca da sala de medicação, deitada com o olhar perdido no teto. Junto com ela outras duas mulheres. ‘Então, doutor, é ela. Essa é a minha cunhada e essa é filha dela.’. Eram a velha senhora, as três mulheres, o médico. Estava mais para reunião familiar que para um atendimento médico. A velha ficou quieta, mantendo o olhar fixo. O médico logo pensou que a velha devia estar com demência. ‘O que acontece?’. ‘Sabe, doutor, faz um mês ela está desanimada para comer, não tem vontade de fazer nada, a gente tá achando esquisito, ela não é assim...’. ‘Como a senhora chama?’, o médico perguntou quase gritando. ‘Maria, doutor.’. ‘E o que a senhora tá sentindo?’. ‘Ah, uns mal estar, meio esquisito, não tenho fome, tô desanimada.’. ‘A senhora sabe onde está?’. ‘É no postinho, né, doutor?’. ‘Hum, é isso aí. Vamos ver o que dá pra fazer... Olha um pouquinho pra mim, dona Maria.’, continuou gritando. A velha voltou os olhos opacos para ele. ‘Ah, doutor, ela tá cega. Foi perdendo a vista, agora não enxerga nada, faz uns meses...’, explicou a filha. O médico ficou constrangido por um momento. Restabeleceu-se e virou para as mulheres. ‘Então, tem febre, dor, fica confusa?’. ‘Não, doutor. Só esse desânimo, é ruim pra comer...’. ‘Tá bom, vamos ver... tá bom, dona Maria?’. A velha mexeu a cabeça quase imperceptivelmente. O médico examinou rapidamente, escutou o pulmão, o coração. Viu a barriga, o pulso, a pressão. Nada de errado. As mulheres se deram por satisfeitas e disseram que iam esperar a ‘opinião do doutor’. O médico saiu da salinha um pouco desorientado. Que será que a velha tinha? Resolveu hidratar e deixá-la de repouso um pouco ali na observação por não saber bem o que pensar. Talvez pedisse só uns exames de sangue ou mandasse para o Pronto Socorro. De novo esqueceu o caso e voltou para os outros tantos que esperavam atendimento. Quase duas horas depois, tendo visto mais vários pacientes, a mulher veio avisar. ‘O soro acabou, doutor.’. Ia avaliar de novo, tomar uma decisão e dispensar logo. Examinou e analisou novamente a idosa. Nada de errado. A mesma situação. Não sabia o que tanto fazer. Não adiantava mandar para outro lugar, para alguém pedir exames ou internar. Não tinha motivo para encaminhar, não era urgência. Decidiu ser transparente e esperar a reclamação. Todos queriam uma solução do médico. A expectativa pela ‘opinião do doutor’ crescia. ‘O que o senhor acha que ela tem então, doutor?’, a filha perguntava. O médico hesitou. Respondeu exatamente o que pensou. ‘Não sei.’. Antes que mais alguém falasse, a velha paciente se manifestou. ‘Obrigado, doutor, pela atenção do senhor. Deve ser besteira minha...’. O médico sentiu alguma coisa. Não podia deixar a mulher sair assim, desenganada. ‘Besteira como, dona Maria?’. ‘Nada não, doutor. Deve ser chateação mesmo, de não enxergar nada...’. ‘A senhora não enxerga nadinha?’. ‘Não, doutor, foi escurecendo aos poucos. Agora nem sombra eu vejo. Tenho tanto falta de ver meus netos...’. A velha segurou uma lágrima e quis se levantar. O médico pegou na mão da paciente com carinho. ‘A senhora sente falta disso, não é?’. ‘Ah, é doutor... Não consigo mais cozinhar, olhar meus netos. Tenho vergonha de ser uma atrapalhação pra minha filha, pra minhas noras. Não gosto de ficar com os outros, não quero que os outros pensem que eu sou uma velha cega e inútil. Sempre fui tão trabalhadeira...’. O médico achou que nesse momento ela estava vendo o rosto dele. Ela chorou, e ele teve vontade de chorar também. Por um minuto o barulho lá fora se silenciou e o silêncio tocou o coração de cada um naquela salinha do centro de saúde. A mulher apertou a mão do médico. ‘Obrigado, doutor, por dar uma olhada em mim, numa velha imprestável.’. O médico pegou a mão da paciente, segurando-a com as suas duas mãos. ‘Não sei o que a senhora tem, mas entendi o que a senhora sente. Perder a vista é muito difícil... Mas sabe de uma coisa? Quantos sentidos a gente tem?’. Ninguém respondeu. ‘A gente tem pelo menos mais quatro: audição, olfato, gosto e tato. A senhora consegue ouvir quando sua filha diz para senhora o quanto ela te ama?’. A velha senhora confirmou, atenta e se deliciando ao lembrar-se da filha dizendo isso. A filha ali presente entendeu e disse: ‘Mamãe, te amo muito’. A velha sorriu. O médico continuou: ‘E a senhora consegue sentir o cheiro delicioso da comida das suas noras quando elas vão ajudar no almoço? E a comida, só cheira bem ou é bem gostosa também?’. ‘Elas são um amor comigo, sempre fazendo o melhor, cozinham que é uma delícia, doutor...’. Recordou a última refeição que fizeram juntos. ‘A senhora não vê mais os netos, mas sente o abraço deles, o carinho deles? Então, beije bastante eles, abrace, conte histórias. A senhora tem tudo isso pra dar a todos eles, não têm?’. Nisso apertaram ainda mais as mãos. O médico sentiu o calor voltar para aquelas mãos trabalhadoras. ‘O senhor tá certo, doutor. Deus me deu tanta coisa boa. Tenho que agradecer todo dia. Obrigada, doutor.’. Soltaram as mãos. O médico se voltou para as mulheres ali e viu que escondiam o choro. Agradeceram o ‘tratamento’, muito satisfeitas. A senhora, com a ajuda das noras e da filha foi-se embora, muito mais leve. O médico levou o restante da jornada com mais leveza também. Uma semana depois se esqueceu do assunto. Uns dois meses mais tarde, o médico chegava para mais uma segunda de trabalho. Esperava uma manhã bem agitada. Como sempre. Começou disposto e foi aos poucos sendo consumido pelo sofrimento dos outros. Lá pelo fim do dia, depois de dispensar um dos últimos pacientes da tarde, o médico seguia para o consultório transcrever mais umas receitas. ‘Doutor, o senhor dá licença? Ainda bem que não foi embora ainda...’. Era a mulher, nora da velha cega. ‘Ah, quase acabando por hoje’, sorriu cansado. Lembrou da sogra dela. ‘Vim aqui só pra comentar com o doutor, ela foi internada essa semana agora.’. ‘É mesmo, o que aconteceu?’. ‘Ela começou a amarelar, faz umas duas semanas, aí levamos ela lá. Agora descobriram que ela tem câncer. Não vai ter jeito, tá muito avançado. Nem vai fazer cirurgia nem nada’. O médico gelou na hora. Como foi deixar passar isso? Ficou sem saber o que falar, sentindo-se culpado. Falhou. Não conseguiu ajudar a pobre mulher. Além de cega, tinha um câncer. Isso explicava tudo. Mas a mulher continuou. ‘Mas sabe, doutor...’, a voz se tornou melodiosa, ‘Ela está muito bem. Depois que a gente saiu daqui naquele dia, ela passou o melhor mês da vida dela. Ela diz toda hora. Começou a ficar com os netos, a dizer que ama todos nós, da família. Saiu, riu, se divertiu com a gente. Começou a comer bem. Elogia todo mundo. Agradece a Deus. O senhor precisa de ver, doutor.’. O médico incrédulo quase chorou. A mulher concluiu: ‘A gente agradece todo dia por ser o doutor que olhou ela naquele dia.’.