Sinuca Paraguaia Eduardo Felipe P. Matias* O candidato Fernando Lugo ganhou a eleição e também um problema. Tendo adotado como plataforma em sua campanha a renegociação do Tratado de Itaipu, o presidente eleito do Paraguai se pôs em uma posição da qual, para se sair bem, depende da boa vontade do governo brasileiro. O Tratado de Itaipu, firmado em 1973, prevê o aproveitamento hidroelétrico conjunto dos recursos do Rio Paraná. Por esse acordo, a energia produzida é dividida em partes iguais entre Brasil e Paraguai, sendo reconhecido a cada um deles o direito de aquisição do que não for consumido pelo outro. Como o Paraguai só consome 5% da produção, o Brasil adquire os 95% restantes. Lugo alega que o Brasil não paga o preço justo por essa energia. Ainda que seja possível reajustar esse preço sem modificar o Tratado, outras reivindicações – como a possibilidade de o Paraguai vender o excedente de energia para outros países – implicariam a alteração desse instrumento. Levando-se em conta que a revisão dos termos do Tratado somente ocorrerá 50 anos após a sua assinatura – ou seja, em 2023 – de que alternativas dispõe o Paraguai hoje para desfazer ou questionar esse acordo? Um dos meios tradicionais de extinção dos tratados internacionais é a denúncia. Esta consiste no ato unilateral por meio do qual um país expressa a sua vontade de deixar de ser parte em um acordo. A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados admite, em alguns casos, a denúncia por motivo de mudança fundamental das circunstâncias existentes no momento da conclusão do acordo. Essa possibilidade não é, contudo, a regra, e por mais que o Paraguai possa tentar enquadrar o aumento nos preços mundiais de energia – ou a desvalorização do dólar – nessa espécie de mudança, sua missão não seria juridicamente tão simples. Além disso, é difícil entender como o Paraguai poderia “se retirar” de Itaipu, que fornece quase toda a energia consumida naquele país. Outra possibilidade que foi cogitada é a de o Paraguai recorrer à Corte Internacional de Justiça, em Haia. No entanto, o Brasil teria de concordar em submeter o assunto à Corte, uma vez que não reconhece sua jurisdição como compulsória, e porque o Tratado de Itaipu, por sua vez, não a elege como foro para solução de disputas. No que se refere ao Mercosul, do qual tanto o Brasil quanto o Paraguai fazem parte, o Protocolo de Olivos prevê mecanismos de resolução de disputas, como a arbitragem, mas sua aplicação se limita a controvérsias relativas à interpretação e aplicação dos acordos e decisões dessa organização. Assim, resta analisar o que diz o próprio Tratado de Itaipu. Este dispõe que eventuais divergências serão resolvidas pelos meios diplomáticos usuais. Com isso, abre-se espaço para instrumentos como as consultas, os bons ofícios ou a mediação – e o presidente eleito do Paraguai deu a entender que gostaria de adotar esse último mecanismo, de preferência fazendo uso de um mediador regional. É importante lembrar, entretanto, que o Brasil não está obrigado a aceitar essa mediação e que, de qualquer forma, a solução proposta por um mediador não obrigaria as partes. O mais provável é que o meio diplomático mais comum – a negociação direta – seja adotado. Tendo em vista os aspectos jurídicos acima analisados, o Brasil entra nessa negociação em uma posição de força. Mesmo que se conclua ser justo fazer concessões ao Paraguai nesse caso, essa posição nos permitiria obter em troca um compromisso do governo paraguaio em outras áreas – como o combate à pirataria e o controle de fronteiras. Por outro lado, internamente, o governo brasileiro também tem aspectos políticos a considerar. Durante a negociação, nosso governo deverá conciliar a necessidade de mostrar uma postura mais dura, após as críticas sofridas quando da crise entre a Petrobrás e a Bolívia, com a sua diretriz, bastante louvável, de promoção da integração regional. Itaipu, surgida para explorar um recurso comum a duas nações, foi construída com base na cooperação – e não podia deixar de ser diferente. No final, a política (e, quem sabe, o bom senso) deverá prevalecer. *Doutor em Direito Internacional pela USP, autor do livro A Humanidade e suas Fronteiras – do Estado soberano à sociedade global, ganhador do Prêmio Jabuti.