“The role of immune system in the generation of neuropathic pain.” Lancet Neurology 2012;11:629-42 O artigo de Calvo e colaboradores (2012) reúne uma serie de evidências em estudos animais e pré-clínicos sobre o papel de fatores imunológicos associados à fisiopatologia da dor neuropática, enfatizando as lacunas do conhecimento atual sobre o tema. Ao final, os mesmos discutem a possibilidade de tratamentos imunomodulatórios para o controle da dor neuropática e perspectivas futuras no tema. A Dor neuropática (DN) afeta cerca de 5% da população, causando grande incapacidade funcional. A DN é associada com anormalidades sensitivas que incluem dor constante a parestesias, assim como alteração de respostas a estímulos, incluindo alodinia, hiperalgesia e perda de sensação em algumas áreas. De acordo com a IASP (International Association for the Study of Pain), a DN pode ser definida como “dor causada por lesão ou doença do sistema nervoso somatossensitivo”. Apesar dos significativos avanços na área diagnóstica e de entendimento da DN, o seu tratamento ainda constitui um grande desafio na prática clínica. Um dos motivos para os frequentes insucessos terapêuticos é a diversidade de mecanismos fisiopatológicos envolvidos. Neste sentido, Calvo e colegas (2012), por meio de extensa revisão bibliográfica, sugerem que fatores neuro-imunes podem ser contribuidores na origem e perpetuação da DN. A lesão neuronal e consequente liberação de fatores gliais liberam fatores ativadores de células imunes. Consequentemente, várias citoquinas liberadas por estas células imunes alteram diretamente a transdução e transmissão da informação nociceptiva pelos neurônios sensitivos em vários níveis (tronco de nervo, corpo celular no gânglio da raiz dorsal, e terminações sinápticas entre o corno dorsal da medula espinhal). Diversas formas de injúria ao sistema nervoso periférico ou central – sejam de natureza traumática, metabólica ou tóxica – resultam em recrutamento e ativação de células imunes. Estas células envolvem o sistema imune inato, mas evidências também existem de recrutamento de células T e anticorpos anti-antígenos neuronais. Os mediadores liberados pelas células imunes, tais como as citoquinas, sensibilizam a via nociceptiva periférica e central. Dados pré-clínicos sugerem patogênese imune da DN, mas a evidencia clínica do papel deste sistema ainda é menos clara. O principal desafio para o futuro é estabelecer até que ponto esta resposta imune inicia ou mantém a DN nos pacientes e de que forma pode ser aliviada através de tratamentos medicamentosos mais específicos. A pele é o principal órgão-alvo para os nociceptores aferentes primários e a injúria de nervo frequentemente resulta na degeneração combinada de axônios lesados e axônios saudáveis circunjacentes. Os axônios aferentes sensitivos estão em estreita proximidade com as células responsáveis pela resposta imune, tais como as células de Langerhans, os queratinócitos e os mastócitos. Em modelos animais de DN associada ao diabetes, as células de Langerhans estão significativamente aumentadas na pele. Já os queratinócitos são as células mais abundantes na epiderme e, embora não consideradas células imunes, são capazes de liberar mediadores inflamatórios alteradores da via da dor, tais como ATP, citoquinas, fatores de crescimento e opióides endógenos. Por fim, os mastócitos são células imunes residentes do nervo que modulam a infiltração de neutrófilos e macrófagos e, por conseguinte, induzem hiperalgesia após a lesão nervosa. O conhecimento da resposta do nervo periférico à injuria também é de extrema importância para o entendimento do papel dos fatores imunológicos no desencadeamento da DN. De fato, as mudanças promovidas pela degeneração Walleriana apos a injúria traumática do nervo periférico acarretam recrutamento de células inflamatórias e expressão de citoquinas que se correlacionam com a intensidade da DN aferida pela escala visual analógica. Outro produto da injúria do nervo periférico é a expressão aumentada de receptores “toll-like”, presentes nas células do sistema imune, que vem sendo associada a respostas hiperalgésicas em modelos animais. Ambos axônios mielínicos e amielínicos desenvolvem atividade ectópica após a injúria do nervo e tal fenômeno é muitas vezes interpretado como dor por alguns pacientes. Mas como o recrutamento de células imunes dos nervos lesados poderia gerar DN? A resposta é de que várias citoquinas e quimiquinas liberadas, e que coordenam a resposta celular após a injúria neural, podem alterar diretamente as propriedades de transdução sensitiva dos axônios nociceptivos e consequentemente causar atividade elétrica constante (DN). O fator de necrose tumoral, por exemplo, é uma citoquina que estimula o disparo de potenciais de ação nos nervos de pequeno calibre apos a lesão neural, conforme estudos recentes. No entanto, o papel do sistema imune na gênese da DN não se restringe a ações ao nível do SNP. A micróglia representa um conjunto de macrófagos no SNC e é constantemente acionada pelo seu microambiente. Quando a homeostase do SNC é alterada por patógenos ou por injúria, as células da micróglia respondem rapidamente através de alterações na sua morfologia, expressão de proteínas de superfície, expressão genética e proliferação. Esta resposta é denominada “microgliose”. Mesmo uma lesão remota, tal como na axotomia de um nervo periférico, acarreta respostas imunes no SNC. Nos modelos experimentais de injúria nervosa periférica, a microgliose ocorre no corno dorsal da medula espinhal, onde as terminações do nervo acometido estão presentes. Assim, ocorre liberação de citoquinas pela micróglia e consequente sensibilização central. De fato, algumas drogas anti-neuropáticas atuam sobre a microgliose. A gabapentina, por exemplo, é capaz de reverte a microgliose que ocorre ao nível da medula espinhal em ratos com diabete induzido por streptozocina. A micróglia também está envolvida no recrutamento de linfócitos T como parte de uma resposta imune adaptativa. Os linfócitos T tem um papel relevante na manutenção da DN, conforme vários estudos animais. Assim sendo, a inibição da micróglia e das citoquinas liberadas apos a injúria neural parecem ser métodos lógicos para reduzir a DN central, embora a ativação microglial seja importante na limpeza de debris mielínicos apos a lesão neural. Outro conceito novo e relevante na imunologia aplicada a DN é o conceito de “resolução inflamatória”. A neuro-inflamação após a injúria ao sistema nervoso é controlada por uma complexa rede de mecanismos regulatórios que restringem os efeitos danosos da inflamação persistente. A dor neuropática crônica pode se desenvolver quando estes mecanismos são insuficientes para controlar a inflamação. Entre estes componentes regulatórios existem as citoquinas anti-inflamatórias (interleukin-4, interleukin-10, interleukin-13, and TGF-à), promotores da resolução (lipoxins, neuroprotectins, maresins, and resolvins), endocanabinóides, e inibidores da via pro-inflamatória (inhibitor of nuclear factor- à, complement inhibitors, interleukin-1 receptor antagonist, costimulatory molecules, and MAPK phosphatases). As resolvinas sao mediadores lipídicos endógenos que estão envolvidos na resolução da inflamação através da inibição de leucócitos específicos, capazes de alterar diretamente a transdução sensitiva e a plasticidade sináptica no corno posterior da medula. O sistema endocanabinóide também é capaz de regular a percepção dolorosa. Assim, um desbalanço na resposta imune e inflamação em detrimento do reparo, pode contribuir para a transição entre a dor aguda versus crônica. De fato, mecanismos regulatórios imunes são um interessante alvo terapêutico visando a aumento da reparação da função e supressão de efeitos inflamatórios deletérios. Apesar dos avanços no entendimento do papel da imunologia na DN, há poucos estudos de alta qualidade que possam apoiar o uso de agentes imunomoduladores ou anti-inflamatórios no manejo da DN. De fato, nenhum destes agentes está relacionado nas diretrizes mais recentes de tratamento da DN. Agentes terapêuticos que atuem nestes novos mecanismos de interação neuroimune são promissores, mas diferenças no sistema imune de humanos versus roedores devem ser levadas em conta no desenho de futuros ensaios destes agentes, tais como corticóides, imunoglobulinas, anti-TNF, minociclina, propentofilina, metotrexato, fluorocitrato e bloqueadores específicos de purinoreceptores – cada um deles atuando sobre os diferentes níveis imunológicos/inflamatórios apresentados nesta resenha. Pedro Schestatsky